OS DANOS SOCIAIS E A ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO NA CONCRETIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.6759800


Autor:
João Henrique de Brito Marinho1


1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho objetiva uma análise sobre uma nova espécie de dano indenizável, os chamados danos sociais, tema que vem sendo objeto de amplo debate doutrinário e jurisprudencial.

Tomando como ponto de partida aspectos relevantes da teoria geral da responsabilidade civil, com especial enfoque para as espécies de danos indenizáveis, são abordados os danos sociais como uma nova categoria de prejuízo, estabelecendo as diferenças entre estes e as outras espécies, sobretudo com relação aos danos morais coletivos, que possuem maior similitude com os danos sociais.

Em linhas gerais, dano social seria aquele que, através de uma conduta socialmente reprovável, dolosa ou culposa, ultrapassa a órbita individual da vítima, atingindo os direitos difusos e ocasionando uma diminuição do nível de vida da coletividade, ou seja, de sujeitos indeterminados ou indetermináveis.

No direito atual, a tendência é de não deixar a vítima de atos ilícitos sem ressarcimento, de forma a restaurar seu equilíbrio moral e patrimonial.

Face sua relevância no Direito Civil contemporâneo e sua complexidade, passaremos então à análise do presente objeto de estudo, elaborado mediante pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, com uma abordagem dos principais aspectos e características dos danos sociais frente ao sistema de responsabilidade civil brasileiro.

2. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL E SEUS PRESSUPOSTOS

Preliminarmente, antes de adentrarmos no tema do nosso estudo, necessário se faz a abordagem de alguns pontos relativos ao instituto da responsabilidade civil, que nada mais é que uma obrigação de reparar um prejuízo decorrente da violação de um dever jurídico causador de dano relevante, com o fito de restituir o lesado ao status quo ante.

Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 19) assim define responsabilidade civil:

Toda atividade que acarreta prejuízo traz em seu bojo, como fato social, o problema da responsabilidade. Destina-se ela a restaurar o equilíbrio moral e patrimonial provocado pelo autor do dano. Exatamente o interesse em restabelecer a harmonia e o equilíbrio violados pelo dano constitui a fonte geradora da responsabilidade civil. Pode-se afirmar, portanto, que responsabilidade exprime ideia de restauração de equilíbrio, de contraprestação, de reparação de dano.

Em nosso atual Código Civil, essa violação, ensejadora do dever de indenizar, pode se dar de duas formas:

◉ Ato ilícito civil, configurado nos casos em que a conduta humana é praticada em desacordo com a ordem jurídica, lesionando direitos de outrem, causando-lhe danos. Seu conceito pode ser observado no Art. 186 do Código Civil de 2002:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

◉ Abuso de direito, para as hipóteses em que um ato originariamente lícito, mas que por ter sido exercido fora dos limites impostos pelo seu fim econômico-social, pela boa-fé ou pelos bons costumes, converte-se em ato ilícito, conforme previsto no Art. 187 de nosso Código Civil:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Como espécies de ato ilícito que são, ambos possuem como consequência o surgimento do dever de indenizar, desde que coexistam com os demais pressupostos da responsabilidade civil, que serão analisados a seguir.

Embora não haja uma unanimidade sobre quais seriam esses pressupostos, a doutrina majoritária, a exemplo dos civilistas Flávio Tartuce e Sílvio de Salvo Venosa, adota a existência de quatro elementos da responsabilidade civil:

1. Conduta humana;
2. Culpa genérica ou lato sensu;
3. Nexo de causalidade;
4. Dano ou prejuízo.

É salutar frisar que os elementos supracitados são os adotados pela Teoria da Responsabilidade Civil Subjetiva, regra geral de nosso sistema de responsabilidade civil. Não podemos deixar de mencionar a existência da Responsabilidade Civil Objetiva, que não adota a culpa genérica como requisito essencial, conforme parágrafo único do Art. 927 do Código Civil:

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. (grifo nosso).

Todavia, dentre os elementos da responsabilidade civil subjetiva acima epigrafados, cumpre-nos dar destaque ao nexo de causalidade e ao dano, fundamentais para o desenvolvimento do presente estudo.

2.1 NEXO DE CAUSALIDADE

O nexo de causalidade, que deve estar presente em todas as modalidades de dano para gerar direito à indenização, é o liame ou vínculo entre a conduta positiva/comissiva ou negativa/omissiva praticada e o resultado danoso indenizável.

Assim leciona Flávio Tartuce (2016, p. 513-514) sobre o nexo de causalidade:

O nexo de causalidade ou nexo causal constitui o elemento imaterial ou virtual da responsabilidade civil, constituindo a relação de causa e efeito entre a conduta culposa – ou o risco criado -, e o dano suportado por alguém. (…) Ora, a responsabilidade civil, mesmo objetiva, não pode existir sem a relação de causalidade entre o dano e a conduta do agente. Se houver dano sem que a sua causa esteja relacionada com o comportamento do suposto ofensor, inexiste a relação de causalidade, não havendo a obrigação de indenizar.

Reforçando a relevância do nexo de causalidade para configurar o dever indenizatório, acrescenta Caio Mário da Silva Pereira (1994, p. 75):

Para que se concretize a responsabilidade é indispensável se estabeleça uma interligação entre a ofensa à norma e o prejuízo sofrido, de tal modo que se possa afirmar ter havido o dano ‘porque’ o agente procedeu contra o direito.

Demonstrada sua imprescindibilidade para a identificação da responsabilidade civil, seja objetiva ou subjetiva, não podemos esquecer de mencionar as excludentes de responsabilidade, que devem ser analisadas no caso concreto com vistas a, via de regra, afastar o nexo de causalidade e, consequentemente, o dever de indenizar.

As excludentes de responsabilidade civil se dividem em três espécies, quais sejam:

1. Culpa exclusiva de terceiro;
2. Culpa exclusiva da vítima;
3. Caso fortuito e força maior.

Como se pode notar, o nexo de causalidade é requisito indispensável à configuração da responsabilidade civil, e a análise de sua presença no caso concreto deve ser conjugada com o estudo das excludentes de nexo supracitadas, a fim de que se possa examinar se determinada conduta foi responsável pela produção de um prejuízo reparável. Compreender melhor o dano indenizável é essencial para o estudo do objeto do presente trabalho, razão pela qual será analisado a seguir.

2.2 DANO

Muito embora o Código Civil de 2002 não tenha trazido um conceito de dano, uma definição de fácil compreensão que pode ser extraída da doutrina é a de Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias (2015, p. 207) de que o dano seria “a lesão a um interesse concretamente merecedor de tutela, seja ele patrimonial, extrapatrimonial, individual ou metaindividual”.

Tendo em vista essas classificações de dano trazidas logo acima, é relevante destacar que, no Direito Civil contemporâneo, o estudo do dano vem ganhando destaque na doutrina e na jurisprudência brasileiras, havendo uma tendência atual de se reconhecer novas espécies e classificações, como bem explana Tartuce (2016, p. 522):

Diante desse contexto de ampliação, em que o dano assume papel fundamental na matéria da responsabilidade civil, pode-se elaborar o seguinte quadro, que aponta quais são os danos clássicos ou tradicionais e os danos novos ou contemporâneos, na realidade jurídica nacional:
– Danos clássicos ou tradicionais – Danos materiais e danos morais.
– Danos novos ou contemporâneos – Danos estéticos, danos morais coletivos, danos sociais e danos por perda de uma chance.

O reconhecimento de espécies autônomas de dano, destinadas a conferir maior proteção aos interesses coletivos e difusos, guardam íntima relação com o fenômeno da Constitucionalização do Direito Civil, aliado ao princípio da Socialidade e ao sistema de cláusulas gerais adotados na citada legislação substantiva, em que configurou-se nítida superação do caráter individualista da codificação anterior e se aplicou uma conotação social aos mais diversos institutos civis, dentre os quais merece destaque a função social da responsabilidade civil. Nesse sentido, Anderson Schreiber (2009, p. 88):

O fenômeno da constitucionalização do direito civil refletiu-se, portanto, também na responsabilidade civil, e de forma notável. Um novo universo de interesses merecedores de tutela veio dar margem, diante da sua violação, a danos que até então sequer eram considerados juridicamente como tais, tendo, de forma direta ou indireta, negada a sua ressarcibilidade.

O Código de Defesa do Consumidor reforça esse viés social aplicável à responsabilidade civil, ao autorizar expressamente a indenização por danos morais, inclusive coletivos, dos consumidores:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (…)
VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;

Ainda com relação à coletivização dos danos, cumpre destacar o Enunciado 456 aprovado na V jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal:

Enunciado 456 – Art. 944 – A expressão ‘ dano ‘, no art. 944, abrange não só os danos individuais, materiais ou imateriais, mas também os danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos, a serem reclamados pelos legitimados para propor ações coletivas.

Todavia, dentre as espécies de dano acima epigrafadas, cumpre-nos dar destaque ao dano social, objeto do presente trabalho, modalidade denominada por Antônio Junqueira de Azevedo, professor titular da Universidade de São Paulo, que vem sendo amplamente debatido na doutrina e aplicado na jurisprudência.

3. DA RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS SOCIAIS

3.1 CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA DOS DANOS SOCIAIS

Os danos sociais são uma nova espécie de prejuízos causados à coletividade, que, embora ainda não possuam previsão legal, gozam de ampla aceitação na doutrina e na jurisprudência pátria, inclusive do Superior Tribunal de Justiça.

Um conceito interessante de dano social encontrado na doutrina é o de Antônio Junqueira de Azevedo[1]:

Os danos sociais são lesões à sociedade, no seu nível de vida, tanto por rebaixamento de seu patrimônio moral – principalmente a respeito da segurança – quanto por diminuição na qualidade de vida. Os danos sociais são causa, pois, de indenização punitiva por dolo ou culpa grave, especialmente, repetimos, se atos que reduzem as condições coletivas de segurança, e de indenização dissuasória, se atos em geral da pessoa jurídica, que trazem uma diminuição do índice de qualidade de vida da população.

Por sua vez, Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 563) conceitua o instituto da seguinte forma:

Danos sociais são aqueles que causam um rebaixamento no nível de vida da coletividade e que decorrem de condutas socialmente reprováveis. Nesses casos, o juiz fixa a verba compensatória e aquela de caráter punitivo ao dano social. Esta indenização não se destina à vítima, mas a um fundo de proteção consumerista (CDC, art. 100), ambiental ou trabalhista, por exemplo, ou até mesmo a uma instituição de caridade, a critério do juiz. Constitui, em suma, a aplicação social da responsabilidade civil.

Portanto, pode-se inferir que danos sociais, corolários que são da aplicação da função social da responsabilidade civil, seriam aqueles causados por condutas reprováveis socialmente e que atingem direitos difusos, ou seja, um número indeterminado de pessoas.

Alguns exemplos interessantes citados na doutrina são os casos do pedestre que joga papel no chão, do passageiro que atende ao celular no avião e do pai que solta balão com seu filho. Tais condutas socialmente reprováveis podem gerar danos como o entupimento de bueiros em dias de chuva, problemas de comunicação do avião causando um acidente aéreo e o incêndio de casas ou de florestas por conta da queda do balão.

No tocante à sua natureza jurídica, a doutrina não é uníssona, havendo quem o repute como dano moral ou como dano material. Todavia, a doutrina majoritária classifica o dano social como uma nova espécie de dano reparável, que não se confunde com os danos materiais, morais (individuais ou coletivos) ou estéticos, podendo inclusive, vir a ser cumulados.

Dentre essas novas modalidades de danos acima destacadas, é interessante estabelecer as diferenças entre os danos morais coletivos e os danos sociais, tendo em vista a similitude entre ambos e a possibilidade de sua coexistência, a depender do caso em análise, de modo que reste devidamente respeitado o sistema indenizatório civil com a reparação adequada.

3.2 DANO MORAL COLETIVO E DANO SOCIAL – PRINCIPAIS DIFERENÇAS

Para melhor compreensão do assunto, cumpre, inicialmente, definir o que seria dano moral coletivo para, posteriormente, estabelecer as principais diferenças entre este e o dano social.

Seu conceito é controvertido, porém o dano moral coletivo pode ser denominado como aquele que atinge, ao mesmo tempo, vários direitos da personalidade, de pessoas determinadas ou determináveis, também chamado de danos morais somados ou acrescidos. Um exemplo interessante que foi julgado pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 2012, foi o que condenou determinada instituição bancária por danos morais coletivos causados a clientes com deficiência física, eis que os caixas especiais foram colocados em local de difícil acesso, no primeiro andar de agência bancária[2].

Com relação à sua aplicação em nosso ordenamento jurídico, frise-se que o tema já foi controverso, mas atualmente o entendimento majoritário, inclusive do STJ, é no sentido de sua aplicação. Em que pese haver precedente da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça[3] no sentido de não o admitir, por entender que o dano moral somente pode ser individual pela sua relação com o conceito de sofrimento humano, a 2ª Turma do STJ, especializada em direito privado, considera possível a condenação do infrator ambiental, por exemplo, a sanção pecuniária a título de compensação por dano moral coletivo[4].

Estabelecida a definição de dano moral coletivo e demonstrada sua atual aceitação pela jurisprudência pátria, é salutar estabelecer as diferenças entre o dano social e o dano moral coletivo.

Como já destacado alhures, o dano moral coletivo é o que atinge direitos da personalidade de indivíduos determinados ou determináveis, enquanto o dano social é aquele decorrente de comportamentos negativos ofensivos a vítimas indeterminadas.

Outrossim, frise-se que o dano moral será sempre extrapatrimonial, enquanto que o dano social pode ser tanto imaterial quanto patrimonial, a depender do caso concreto. Vale destacar que o dano social, ainda que imaterial, não se confunde com o dano moral coletivo, porque no dano social a vítima é a sociedade e no dano moral coletivo são os titulares de direitos individuais homogêneos e coletivos em sentido estrito que são atingidos.

Outra diferença que merece destaque diz respeito aos destinatários da indenização, pois enquanto as compensações pelos danos morais coletivos devem ser destinadas para as próprias vítimas, os danos sociais, por serem uma forma de compensação à coletividade em sentido difuso, devem ser revertidos para a sociedade através de entidades beneficentes ou fundos públicos, e não para o particular. Nesse sentido, Flávio Tartuce (2013, p. 58):

(…) os danos sociais são difusos e a sua indenização deve ser destinada não para a vítima, mas sim para um fundo de proteção ao consumidor, ao meio ambiente etc., ou mesmo para uma instituição de caridade, a critério do juiz.

Todavia, cumpre frisar que há um entendimento minoritário na doutrina e na jurisprudência pátrias, como o manifestado por Antônio Junqueira de Azevedo, no sentido de que a indenização por dano social deve ser revertida à própria pessoa parte do processo, não a reputando como uma causa de enriquecimento ilícito, e, ainda, postulando que tal permissão seja positivada.

Estabelecidas as principais diferenças entre os danos morais coletivos e os danos sociais, notadamente com relação às suas naturezas jurídicas e finalidades, é de se concluir que ambos podem coexistir em um mesmo processo. Nesse mesmo sentido, afirma o professor Antônio Junqueira de Azevedo:

O art. 944 do Código Civil, ao limitar a indenização à extensão do dano, não impede que o juiz fixe, além das indenizações pelo dano patrimonial e pelo dano moral, também – esse é o ponto – uma indenização pelo dano social. A ‘pena’ – agora, entre aspas, porque no fundo é reposição à sociedade -, visa restaurar o nível social de tranquilidade diminuída pelo ato ilícito.

A possibilidade de cumulação entre referidos danos foi apreciada pelo Superior Tribunal de Justiça, que decidiu no mesmo sentido supradestacado, senão vejamos:

DIREITO COLETIVO E DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PLANO DE SAÚDE. CLÁUSULA RESTRITIVA ABUSIVA. AÇÃO HÍBRIDA. DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS, DIFUSOS E COLETIVOS. DANOS INDIVIDUAIS. CONDENAÇÃO. APURAÇÃO EM LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA. DANOS MORAIS COLETIVOS. CONDENAÇÃO. POSSIBILIDADE, EM TESE. NO CASO CONCRETO DANOS MORAIS COLETIVOS INEXISTENTES.
1. As tutelas pleiteadas em ações civis públicas não são necessariamente puras e estanques. Não é preciso que se peça, de cada vez, uma tutela referente a direito individual homogêneo, em outra ação uma de direitos coletivos em sentido estrito e, em outra, uma de direitos difusos, notadamente em se tratando de ação manejada pelo Ministério Público, que detém legitimidade ampla no processo coletivo. Isso porque embora determinado direito não possa pertencer, a um só tempo, a mais de uma categoria, isso não implica dizer que, no mesmo cenário fático ou jurídico conflituoso, violações simultâneas de direitos de mais de uma espécie não possam ocorrer.
4. Assim, por violação a direitos transindividuais, é cabível, em tese, a condenação por dano moral coletivo como categoria autônoma de dano, a qual não se relaciona necessariamente com aqueles tradicionais atributos da pessoa humana (dor, sofrimento ou abalo psíquico).
5. Porém, na hipótese em julgamento, não se vislumbram danos coletivos, difusos ou sociais. Da ilegalidade constatada nos contratos de consumo não decorreram consequências lesivas além daquelas experimentadas por quem, concretamente, teve o tratamento embaraçado ou por aquele que desembolsou os valores ilicitamente sonegados pelo plano. Tais prejuízos, todavia, dizem respeito a direitos individuais homogêneos, os quais só rendem ensejo a condenações reversíveis a fundos públicos na hipótese da fluid recovery, prevista no art. 100 do CDC. Acórdão mantido por fundamentos distintos.
6. Recurso especial não provido. (REsp 1293606/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 02/09/2014, DJe 26/09/2014) (grifos nossos).

Dessa forma, resta clarividente que não há qualquer óbice para a cumulação entre danos morais, ainda que coletivos, e danos sociais, o que nos permite prosseguir no estudo dos danos sociais, agora com relação a sua aplicação no âmbito jurisprudencial.

3.3 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL SOBRE A APLICAÇÃO DE INDENIZAÇÕES POR DANOS SOCIAIS

Conforme já demonstrado, a necessidade de proteção aos danos sociais enseja uma indenização pelos danos causados, que se caracteriza como uma espécie de indenização punitiva, de caráter dissuasório ou didático, uma vez que sua maior pretensão é o desestímulo à prática de atos danosos contra a coletividade.

Nos últimos anos, tem ganhado notoriedade na doutrina e na jurisprudência o tema dos danos sociais, principalmente na punição de sociedades empresárias que, por reiteradas condutas, atingem os direitos difusos da sociedade, mesmo sem prévia cominação legal.

Vejamos a seguir alguns interessantes posicionamentos jurisprudenciais demonstrativos da aceitação desse instituto em nosso ordenamento jurídico.

Respeitante à possibilidade processual de se aplicar uma indenização punitiva desestimuladora por danos sociais, amolda-se perfeitamente o caso julgado em 2013 pela Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que condenou a empresa AMIL a pagar uma indenização de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) a título de danos sociais, a ser destinada ao Hospital das Clínicas de São Paulo, cumulada com compensação por danos morais. A condenação se deu diante de reiteradas negativas de coberturas médicas, notoriamente praticadas por essa operadora de planos de saúde, conforme ementa do acórdão:

PLANO DE SAÚDE. Pedido de cobertura para internação. Sentença que julgou procedente pedido feito pelo segurado, determinado que, por se tratar de situação de emergência, fosse dada a devida cobertura, ainda que dentro do prazo de carência, mantida. DANO MORAL. Caracterização em razão da peculiaridade de se cuidar de paciente acometido por infarto, com a recusa de atendimento e, consequentemente, procura de outro hospital em situação nitidamente aflitiva. DANO SOCIAL. Caracterização. Necessidade de se coibir prática de reiteradas recusas a cumprimento de contratos de seguro saúde, a propósito de hipóteses reiteradamente analisadas e decididas. Indenização com caráter expressamente punitivo, no valor de um milhão de reais que não se confunde com a destinada ao segurado, revertida ao Hospital das Clinicas de São Paulo. LITIGÃNCIA DE MÁ FÉ. Configuração pelo caráter protelatório do recurso. Aplicação de multa. Recurso da seguradora desprovido e do segurado provido em parte. (TJSP – Apel.: 0027158-41.2010.8.26.0564, Relator: Teixeira Leite; Comarca: São Bernardo do Campo; Órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 18/07/2013; Data de registro: 19/07/2013).

No caso, é possível inferir que a indenização punitiva por dano social, arbitrada em razão de reiteradas condutas lesivas, tem como fito desestimular novos comportamentos de mesma natureza ao punir a empresa AMIL por agir de forma a desprestigiar a dignidade humana.

Outro precedente que merece destaque é o julgado do Tribunal Regional do Trabalho da 2.ª Região, que condenou o Sindicato dos Metroviários de São Paulo a destinar indenização para instituição filantrópica devido a uma greve reputada abusiva, causando prejuízo à população da cidade (TRT da 2ª Região, Dissídio coletivo de greve, Acórdão 2007001568, Rel. Sonia Maria Prince Franzini, Revisor(a): Marcelo Freire Gonçalves, Processo 20288-2007-000-02-00-2, julgado em 28.06.2007, Data de Publicação: 10.07.2007).

É relevante destacar que para a reparação civil decorrente de referido dano, entende o c. STJ, sob pena de caracterizar ofensa aos princípios da demanda, da inércia e da adstrição, ser imprescindível a provocação do juízo mediante pedido expresso da parte interessada, conforme se infere da decisão proferida em Reclamação submetida à sistemática de recurso repetitivo, cuja ementa colaciona-se a seguir:

RECLAMAÇÃO. ACÓRDÃO PROFERIDO POR TURMA RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS. RESOLUÇÃO STJ N. 12/2009. QUALIDADE DE REPRESENTATIVA DE CONTROVÉRSIA, POR ANALOGIA. RITO DO ART. 543-C DO CPC. AÇÃO INDIVIDUAL DE INDENIZAÇÃO. DANOS SOCIAIS. AUSÊNCIA DE PEDIDO. CONDENAÇÃO EX OFFICIO. JULGAMENTO EXTRA PETITA. CONDENAÇÃO EM FAVOR DE TERCEIRO ALHEIO À LIDE. LIMITES OBJETIVOS E SUBJETIVOS DA DEMANDA (CPC ARTS. 128 E 460). PRINCÍPIO DA CONGRUÊNCIA. NULIDADE. PROCEDÊNCIA DA RECLAMAÇÃO.
1. Na presente reclamação a decisão impugnada condena, de ofício, em ação individual, a parte reclamante ao pagamento de danos sociais em favor de terceiro estranho à lide e, nesse aspecto, extrapola os limites objetivos e subjetivos da demanda, na medida em que confere provimento jurisdicional diverso daqueles delineados pela autora da ação na exordial, bem como atinge e beneficia terceiro alheio à relação jurídica processual levada a juízo, configurando hipótese de julgamento extra petita, com violação aos arts. 128 e 460 do CPC.
2. A eg. Segunda Seção, em questão de ordem, deliberou por atribuir à presente reclamação a qualidade de representativa de controvérsia, nos termos do art. 543-C do CPC, por analogia.
3. Para fins de aplicação do art. 543-C do CPC, adota-se a seguinte tese: “É nula, por configurar julgamento extra petita, a decisão que condena a parte ré, de ofício, em ação individual, ao pagamento de indenização a título de danos sociais em favor de terceiro estranho à lide“.
4. No caso concreto, reclamação julgada procedente. (Rcl 12.062/GO, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 12/11/2014, DJe 20/11/2014) (grifo nosso).

Ainda no tocante aos danos sociais, embora se observe divergência nos Tribunais de 2ª instância, entende o STJ que sua reparação não se aplica em ação individual, por ausência de legitimidade para postulá-lo, uma vez que a vítima dos danos sociais é a própria sociedade, e não o particular. Dessa forma, entende-se somente ser possível a propositura de demandas indenizatórias por danos sociais pelos legitimados ativos de ações coletivas.

É importante ressaltar o papel da jurisprudência sobre o tema, principalmente porque o dano social ainda padece de regulamentação, razão pela qual o Judiciário, ao ser provocado, tem o dever de atuar com o fim de coibir comportamentos ilícitos, tais como os que, por condutas reprováveis socialmente, atingem direitos difusos, passíveis de indenização de caráter punitivo, dissuasório ou didático.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

À vista de tudo quanto se expôs, é inegável a magnitude do reconhecimento dos danos sociais para o sistema de responsabilidade civil pátrio, uma vez que essa nova modalidade de dano, destinada a conferir maior proteção aos interesses difusos, guarda íntima relação com o fenômeno da Constitucionalização do Direito Civil, além de representar verdadeira aplicação da função social da responsabilidade civil.

Ressalte-se que, em compasso com as normas processuais civis, vem caminhando a jurisprudência e a doutrina brasileiras no tratamento dado ao tema, uma vez que, em consagração aos fins sociais e às exigências do bem comum, autorizam o julgador a aplicar o ordenamento jurídico em prol da dignidade da pessoa humana.

O Novo Código de Processo Civil, em seu Art. 8º, ao expressamente destacar a aplicação do ordenamento jurídico pelo magistrado, reforça a relevância que os princípios possuem na solução de conflitos jurisdicionais, de forma que a mera ausência de previsão legal do dano social não pode ser óbice para o seu reconhecimento, medida esta que atende aos ideais de justiça ao punir o infrator, desestimulando-o à reiteração de conduta reprovável socialmente.

Ante o exposto, para concluir, restou plenamente demonstrada no presente estudo, por meio de ampla pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, a relevância dos danos sociais e sua aplicação no âmbito dos Tribunais pátrios, pois afiguram-se necessárias medidas aptas à promoção do bem-estar da coletividade em suas relações humanas, de forma que, inobstante a importância da regulamentação da matéria pelo Legislativo, é papel do Judiciário adotar uma postura ativa contra os abusos perpetrados em prejuízo da sociedade.

[1] AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. ln: FILOMENO, José Geraldo Brito; WAGNER JÚNIOR, Luiz Guilherme da Costa.

[2] STJ, REsp 1 22 1 75 6/RJ, 3ª Turma, Rel . Min. Massarni Uyeda, j . 02.02.2012, DJe 10.02.2012, publicado no Informativo n . 490.

[3] AgRg no REsp 1305977/MG, julgado em 09/04/2013.

[4] REsp 1.328.753-MG, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 28/5/2013.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. ln: FILOMENO, José Geraldo Brito;WAGNER JÚNIOR, Luiz Guilherme da Costa;

Danos morais coletivos e danos sociais. In: Dizer o direito. Disponível em: <http://www.dizerodireito.com.br/2013/10/danos-morais-coletivos-e-danos-sociais.html>. Acesso em março. 2016.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Responsabilidade Civil, vol. 4. São Paulo: Saraiva, 2012.

GONÇALVES, Renato Afonso (Coord.). O Código Civil e sua interdisciplinaridade. Belo Horizonte: Dei Rey, 2004.

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ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Peixoto Braga. Curso de Direito Civil. Responsabilidade Civil. Volume 3. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2015.

SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos – 2ª edição. SãoPaulo: Atlas, 2009.

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil – Volume único. 6. ed. rev. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2016.

TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor. 2ª ed., São Paulo: Método, 2013.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Código Civil interpretado. São Paulo: Atlas, 2010.


1Advogado. Pós-Graduado em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Pós-Graduado em Direito Penal e Direito Processual Penal pela FACET. Pós-Graduado em Acesso à justiça e Defensoria Pública pelo Centro Universitário Uniprojeção em Brasília. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Aprovado nos concursos da Defensoria Pública dos Estados do Maranhão, Sergipe e Rio Grande do Norte. Aprovado nos concursos de Analista Judiciário do TRF – 5ª Região e TJ/PE. Aprovado no concurso de Oficial de Justiça do TJ/PE. Aprovado no concurso de Advogado da FUNSAÚDE. Aprovado no concurso de Técnico Judiciário do TRF – 5ª Região.