O PODER DE REQUISIÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA COMO IMPORTANTE FERRAMENTA DE ACESSO À JUSTIÇA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.6755484


Autora:
Paula Matos Torres1


RESUMO

A temática da assistência jurídica gratuita foi objeto de diversos tratamentos ao longo da história constitucional brasileira. Nesse sentido, no presente artigo, será realizado um cotejo histórico acerca da normativa referente à assistência jurídica, como também a apresentação das principais inovações advindas da implementação da Defensoria Pública como instituição essencial à função jurisdicional do Estado, sobretudo a partir das modificações realizadas pelas emendas constitucionais nº 45/2004 e 80/2014. A par dessa perspectiva teórica, abordar-se-á a prerrogativa da requisição como mecanismo indispensável para a concretização da defesa, judicial e extrajudicial, dos necessitados, consoante preconiza o mandamento constitucional. Destarte, serão expostos os fundamentos que levaram o ajuizamento das ações diretas de constitucionalidade questionando a prerrogativa em tela, assim como os principais fundamentos que respaldaram a decisão do Supremo Tribunal Federal no sentido da constitucionalidade.

Palavras-chave: assistência jurídica; Defensoria Pública; requisição; necessitados.

ABSTRACT

The theme of free legal aid has been the object of various treatments throughout Brazilian constitutional history. In this sense, in this article, a historical comparison will be made about the legislation on legal aid, as well as the presentation of the main innovations arising from the implementation of the Public Defender’s Office as an institution essential to the jurisdictional function of the State, especially from the changes made by constitutional amendments 45/2004 and 80/2014. Alongside this theoretical perspective, the prerogative of the request will be addressed as an indispensable mechanism for the realization of the defense, judicial and extrajudicial, of the needy, as advocated by the constitutional mandate. Thus, the reasons that led to the filing of direct actions of constitutionality questioning the prerogative in question will be exposed, as well as the main reasons that supported the decision of the Federal Supreme Court in the sense of constitutionality.

Keywords: legal assistance; Public Defender; request; needy.

1. INTRODUÇÃO

Por meio do presente artigo, pretende-se traçar um panorama histórico a respeito da evolução normativa concernente à previsão de assistência jurídica gratuita no ordenamento pátrio, com a subsequente previsão da Defensoria Pública em âmbito constitucional, trazendo as características centrais que moldam o seu desenho institucional no cenário nacional.

Outrossim, será realizado um estudo a respeito, especificamente, da prerrogativa da requisição, prevista na Lei Complementar nº 80/1994, e de que forma essa prerrogativa se apresenta como instrumento para efetivação das funções conferidas à Defensoria. Nesses termos, serão abordadas as razões que motivaram o ajuizamento da ADI nº 6852, pelo Procurador-Geral da República, como também os argumentos invocados pelo Supremo para a decisão no sentido da constitucionalidade da requisição.

Para tanto, será realizada uma pesquisa bibliográfica junto aos principais teóricos que possuem produção acadêmica quanto às temáticas afetas à Defensoria Pública, bem como o estudo específico do acórdão que referendou o julgamento da constitucionalidade da supracitada prerrogativa.

2. A DEFENSORIA COMO INSTITUIÇÃO PERMANENTE E ESSENCIAL À FUNÇÃO JURISDICIONAL DO ESTADO

A Defensoria Pública, diante de seu mister constitucional estabelecido no artigo 134 da Constituição Federal, que o coloca como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, cuja missão, dentre outras, é a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita aos necessitados, é, por excelência, a instituição que viabiliza o acesso à justiça.

Nesse sentido, cabe pontuar que o acesso à justiça, para além de garantia fundamental, consagrada no art. 5º, XXXV, da Constituição é um metadireito que se coloca como instrumento para a efetivação de outros direitos. Com efeito, sabe-se que, por meio do Projeto Florença, capitaneado pelo jurista italiano Mauro Cappelletti em coautoria com Bryant Garth, foi realizado um estudo com o objetivo de verificar os principais obstáculos jurídicos, econômicos, político-sociais, culturais e psicológicos, que obstavam o acesso e a utilização do sistema jurídico. (PAIVA; FENSTERSEIFER, 2019, p.44)

Por conseguinte, para fins analíticos, houve a estruturação da pesquisa realizada pelos juristas supracitados em três ondas renovatórias de acesso à justiça, as quais se vinculam a diferentes perspectivas e objetivos. Destarte, tem-se que a Defensoria Pública, enquanto instituição vocacionada à defesa dos interesses dos necessitados está situada na primeira onda, a qual guarda relação com a assistência jurídica aos necessitados econômicos, de modo a revelar a necessidade de criação de órgãos encarregados de prestar assistência aos desamparados.

Para melhor compreensão das atribuições da instituição, vale ressaltar as principais fases que marcam a história da assistência judiciária gratuita no cenário do ordenamento jurídico nacional. Nesse sentido, a Constituição de 1934 foi a primeira a positivar a assistência judiciária aos desamparados, com a previsão, inclusive, de criação de órgãos especiais. Posteriormente, após um hiato sem a regulamentação da temática pela Constituição de 1937, houve, novamente, a previsão quanto ao direito à assistência judiciária pela Constituição de 1946. (Ibid, p. 47).

Impende frisar, contudo, que a constitucionalização da Defensoria Pública somente ocorreu por meio da Constituição de 1988, a qual, após as modificações empreendidas, sobretudo pelas Emendas Constitucionais 45/2004 e 80/2014, dotaram a instituição de autonomia funcional e administrativa, além de assento em seção própria do texto constitucional, destacando a sua relevância na promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, dos direitos individuais e coletivos dos necessitados. 

Delineados esses aspectos concernentes à evolução do tratamento quanto à assistência jurídica a ser prestada aos desamparados, cabe esclarecer o modelo de prestação de assistência que vigora no cenário nacional. Desta feita, a doutrina pátria comumente destaca o modelo salaried staff model como àquele elegido pela Constituição de 1988. Como características centrais desse modelo, destacam-se a estruturação de uma carreira pública voltada à tutela dos interesses dos vulneráveis, com a atribuição de uma remuneração fixa, além da atuação com base em critérios objetivos previamente definidos, de modo que os profissionais são designados para atuação nos casos, sem que a parte assistida tenha o poder de escolha (PAIVA; FENSTERSEIFER, 2019  p. 40).

Por oportuno, menciona-se que o modelo supracitado comporta divisões, de modo que na sua faceta direta, há o estabelecimento de um vínculo funcional entre o poder público e os profissionais que integram a carreira, de forma direta, sem intermediários. Nesse sentido, em que pese haja a crítica no sentido da ausência de escolha por parte da população assistida quanto ao profissional que irá subsidiar a sua defesa, verificam-se como vantagens apontadas pelos professores Caio Paiva e Tiago Fensterseifer: a presença de uma instituição livre de interferências externas, a qual conta com a independência funcional do seu corpo de integrantes; a especialização do serviço de assistência, de modo a propiciar uma maior qualidade na prestação dos serviços; por fim, a visualização dos destinatários como classe, para além de uma perspectiva outrora individualizada, de modo a subsidiar uma atuação estratégica, sobretudo no que tange à tutela coletiva (Ibid, p. 41).

Realizada essa trajetória histórica, incumbe explanar as principais características da instituição enunciadas a partir da Constituição com o fito de melhor compreender em que medida se dá a importância da prerrogativa da requisição. Nesse sentido, a partir da Emenda Constitucional nº 80/1994, a instituição foi dotada do caráter permanente, de modo que não pode ser objeto de enfraquecimento ou abolição por parte de condutas comissivas ou omissivas de quaisquer dos poderes. (Ibid, p. 50-51)

Além disso, caracteriza-se por ser função essencial à justiça, de modo que a compreensão não se limita ao acesso ao Judiciário, mas visa a concretização de direitos pelos mais amplos meios, com o destaque, inclusive, para a sua função extrajudicial, enunciada na Lei Complementar nº 80/1994. (Ibid, p. 50-51).

De grande relevância, destaca-se a sua característica de ser uma expressão e instrumento do regime democrático, o que se materializa, dentre outros aspectos, pela necessidade de participação nos processos decisórios, sobretudo no que tange à definição de políticas públicas que tenham o condão de afetar a população necessitada, além de uma atuação estratégica junto à população necessitada na vertente da educação em direitos como um instrumento de emancipação pedagógica e política (PAIVA; FENSTERSEIFER, 2019, p. 51).

Estabelecidas essas características centrais, cabe esclarecer o que se entende propriamente como poder de requisição, a sua importância para a atuação da Defensoria, bem como as razões que motivaram o ajuizamento de uma ação direta de inconstitucionalidade na qual se pleiteava a declaração de inconstitucionalidade de tal prerrogativa.

3. O PODER DE REQUISIÇÃO ENQUANTO PRERROGATIVA INSTRUMENTAL PARA A CONCRETIZAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA

Embora não conste de forma expressa no texto constitucional, a prerrogativa de requisição encontra-se prevista na Lei Complementar nº 80/94, precisamente nos arts. 44, X, 89, X e 128, X, da referida LC. Nesse sentido, assegura-se aos Defensores a possibilidade de “requisitar de autoridade pública e/ou de seus agentes exames, certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercício de suas atribuições”. Para melhor compreensão da natureza jurídica de tal instituto, cabe mencionar a definição apontada pelos eminentes defensores Franklyn Roger e Diogo Esteves:

A requisição constitui ato administrativo dotado de imperatividade, autoexecutoriedade e presunção de legitimidade. Por isso, a requisição não depende de qualquer controle judicial prévio para que produza seus regulares efeitos jurídicos; uma vez concluído o ato requisitório, o comando nele embutido está disponível para interferir na esfera jurídica do indivíduo, impondo o fornecimento da informação ou a realização da providência requisitada. (2014, p. 503).

Delineada a definição do instituto, frisa-se que o objetivo da requisição é viabilizar a produção probatória e o acesso às informações que possibilitaram a defesa jurídica do usuário dos serviços da instituição. Isso porque, diante da dificuldade estrutural ainda enfrentada pela instituição bem como considerando o amplo espectro de vulnerabilidades que, muitas vezes, acometem os assistidos, há uma dificuldade na produção de provas de forma equânime àqueles que possuem condições materiais.

Nesse diapasão, para além dos custos que envolvem os requerimentos em instituições públicas quanto a certidões e informações que visem subsidiar a resolução de uma questão de forma extrajudicial ou munir de documentos necessários para o ingresso em juízo, há também um obstáculo de ordem informacional no que tange à compreensão em relação à forma e aos locais aos quais se devem dirigir os requerimentos pertinentes. (ROGER, Franklin; ESTEVES, Diogo, p. 503).

Caio Paiva e Tiago Fensterseifer (2019, p. 378) elencam duas distinções quanto à prerrogativa de requisição atribuída ao Ministério Público e à Defensoria Pública: enquanto o poder de requisição atribuído ao MP possui sede constitucional e infraconstitucional, a prerrogativa disposta para a Defensoria possui previsão apenas na LC nº 80/94; por fim, no que tange à extensão subjetiva desse ato administrativo, menciona-se que ao passo que o Ministério Público pode direcionar a requisição tanto a autoridades públicas quanto privadas, a Defensoria tão somente pode expedir requisições a autoridades públicas e a pessoas que se encontram no exercício de funções públicas.

Superada a caracterização do instituto, menciona-se que o debate sobre o poder de requisição atribuído à Defensoria se tornou latente no cenário nacional a partir do ajuizamento tanto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade pelo Procurador Geral da República, Augusto Aras, em face do comando contido na Lei Complementar nº 80/1994 bem como de outras vinte e duas ADI´s em face de leis estaduais que reproduziam o preceito.

Dentre os argumentos elencados pelo autor da ação, destaca-se a menção de que o mencionado poder seria incompatível com as atribuições previstas para a instituição, de modo a se constituir como fonte de desequilíbrio na relação processual no que tange à produção probatória, revelando ofensa ao princípio da isonomia. Nesse sentido, menciona-se, consoante se depreende da leitura da exordial da ação, que referida prerrogativa não se encontra prevista para os advogados, públicos ou privados. Argumenta-se também que os dispositivos impugnados subtraem vários atos da apreciação jurisdicional, o que, por conseguinte, lesiona o princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF)

No julgamento da referida ADI nº 6852, no qual se decidiu pela improcedência da ação, de modo a referendar a requisição como prerrogativa em consonância com o texto constitucional, encontra-se como uma das principais razões de decidir a menção de que o art. 134 da Constituição é uma norma que concretiza o direito ao acesso à justiça, delineado no art. 5º, LXXIV, da Constituição, de maneira que o direito à assistência jurídica, integral e gratuita, constitui-se verdadeira garantia fundamental, cuja concretização é dever da Defensoria.

Quanto à comparação empreendida na exordial da ação entre os regimes jurídicos da Defensoria e da Advocacia, foi destacado pelo relator min. Edson Fachin que o desenho institucional da Defensoria guarda maior proximidade com o Ministério Público. Nesse sentido, distancia-se da advocacia, tanto diante das diferentes incumbências atribuídas pela Constituição notadamente em seções distintas do texto constitucional, como também em decorrência do regime jurídico díspare, sobretudo diante do estabelecimento de um vínculo funcional do defensor para com o ente estatal em relação ao qual desempenha as suas funções. (Acórdão ADI nº 6852, p. 12).

Além disso, realizando o cotejo com a teoria dos poderes implícitos, também se destacou que supracitada prerrogativa é prevista como um instrumento para a realização do mister constitucional conferido à Defensoria, notadamente ao possibilitar o acesso a informações, documentos e certidões, de forma mais célere, aos usuários dos serviços prestados pela instituição. Menciona-se também a ligação realizada no que concerne à importância desse poder para fins de viabilizar a atuação coletiva em juízo. Nesse sentido, ressalta-se:

A retirada da prerrogativa de requisição implicaria na prática a criação de obstáculo à atuação da Defensoria Pública, a comprometer sua função primordial, bem como da autonomia que lhe foi garantida. O poder de requisitar de qualquer autoridade pública e de seus agentes, certidões, exames, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e demais providências necessárias ao exercício de suas atribuições, foi atribuído aos membros da Defensoria Pública porque eles exercem, e para que continuem a exercer de forma desembaraçada, uma função essencial à Justiça e à democracia, especialmente, no tocante, a sua atuação coletiva e fiscalizadora. (Acórdão ADI nº 6852, p. 19).

Importa pontuar que o ajuizamento da ação direta causou uma grande mobilização nacional, por parte de defensores públicos, pesquisadores e juristas, no sentido da importância de tal prerrogativa para o bom desempenho das atribuições das quais se encontra imbuída a Defensoria Pública. Nesse sentido, lado outro, para além da importância do julgamento propriamente dito no sentido de conferir constitucionalidade ao instituto, possibilitando segurança jurídica à temática, é inegável também a visibilidade conferida tanto à Defensoria enquanto instituição como também aos meios que se fazem necessários ao desempenho de seu mister.

4. CONCLUSÃO

Diante das balizas teóricas trazidas a respeito do instituto, bem como do recente entendimento emanado do Supremo, tem-se a requisição como um importante instrumento de efetivação do acesso à justiça, de modo a conferir efetividade às funções delineadas para a Defensoria, sobretudo ao possibilitá-la o ingresso em juízo para a defesa dos usuários da instituição com o arsenal probatório que se revelar pertinente àquela demanda.

Além disso, possibilita-se também a concretização da função institucional concernente à priorização da defesa extrajudicial, de modo a tornar desnecessário o ingresso em juízo nos casos em que a obtenção dos documentos, informações e certidões já se revelarem suficientes para a concretização do direito perseguido no caso concreto. Para além, diante das modificações empreendidas pela Emenda nº 80/1994, revela-se a importância da requisição também para instruir demandas coletivas, notadamente diante da necessidade de colacionar aos autos o maior número de informações suficientes em virtude do caráter mais amplo do direito objeto de tutela.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ESTEVES, Diogo; FRANKLIN, Roger. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro: editora Forense, 2014.

PAIVA, Caio; FENSTERSEIFER, Tiago. Comentários à Lei Nacional da Defensoria Pública.  Belo Horizonte: editora CEI, 2019.


1Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Sergipe.