REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8002079
Lílian Gabriella Castelo Branco Alves de Sousa1
Brenno Fidalgo de Paiva Gomes2
RESUMO
O presente artigo, fruto de uma pesquisa realizada acerca dos povos indígenas GuaraniKaiowá, traz a reflexão sobre o corpo enquanto um lugar de expressão performática, assim como a relação com a fabricação de pessoa organizado no espaço-tempo origem (Ára Ypy) e a (des) estruturação durante os processos de mudança no espaço-tempo atual (Ára ypyrã). Para a construção desta produção, invocaremos os autores Anthony Seeger et al., (1979), Marcel Mauss (2003), Oyèrónké Oyewúmi (2002) e David Le Breton (2013) para trabalhar na abordagem do conceito de corporalidade, enquanto estrutura social do grupo, e para um diálogo mais específico a respeito da construção da tradição de conhecimento dos Kaiowá, utilizaremos os autores Fábio Mura (2006), Graciela Chamorro (2008), Clóvis Brighenti (2010) e Tonico Benites (2012). Ademais, usamos como escopo para a expressão artística da performance corporal o autor Richard Schechner (2003) para pensar a arte indígena em sua forma de enfeite com pinturas corporais, danças e cânticos.
Palavras-chaves: Corpo, Lugar, Fabricação de pessoa, Performance.
ABSTRACT
This article, the result of a research carried out on the Guarani-Kaiowá indigenous peoples, brings the reflection on the body as a place of performative expression, as well as the relationship with the manufacture of an organized person in the original space-time (Ára Ypy) and the (de)structuring during the processes of change in the current space-time (Ára ypyrã). For the construction of this production, we will invoke the authors Anthony Seeger et al., (1979), Marcel Mauss (2003), Oyèrónké Oyewúmi (2002) and David Le Breton (2013) to work on the approach of the concept of corporality, as a social structure of the group, and for a more specific dialogue about the construction of the tradition of knowledge of the Kaiowá, we will use the authors Fábio Mura (2006), Graciela Chamorro (2008), Clóvis Brighenti (2010) and Tonico Benites (2012). In addition, we use as a scope for the artistic expression of body performance the author Richard Schechner (2003) to think of indigenous art in its form of ornament with body paintings, dances and songs.
Keywords: Body, Place, Fabrication of person, Performance.
INTRODUÇÃO
Essa é uma proposta de trabalho originada nos anos de estudo no mestrado em Antropologia, em que foram abordados textos sobre os povos Guarani-Kaiowá que localizados nas proximidades do munícipio de Dourados, estado do Mato Grosso do Sul, ocupam obrigatoriamente as Reservas Indígenas (RI), consideradas por estes como “verdadeiras áreas de abates”, resultado de uma política nefasta estabelecida pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), atualmente substituída pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
Cansados de permanecer em uma completa condição de vulnerabilidade diante dos olhos do governo, os Guarani – Kaiowá estabelecem os encontros (reuniões) da Grande Assembleia (Aty Guasu) para iniciar as estratégias de autodemarcação de suas terras originárias. Após o consentimento dos guardiões espirituais dos territórios sagrados, locais de onde foram despejados, são transmitidos às lideranças religiosas (ñanderu e ñandesy1) no decorrer dos longos dias do ritual religioso (jeroky), (entremeados pelo canto e a reza, como expressões artísticas de performance), a mensagem para iniciar a caminhada de retomada. A equipe de frente, juntamente com os demais Kaiowá, preparam seus corpos com pinturas, ornamentos, os portes dos objetos e os instrumentos de proteção e seguem caminhando em retomada à Terra-Mãe. Isso é resultado de todo um preparo performático do corpo indígena que abre espaço para sua cosmologia sagrada, assim como entende um caminho de aproximação com suas artes pictóricas e performáticas.
É baseado nesse sucinto argumento que enfatizamos a razão de objetivar neste artigo o processo de mudança dos tempos para apresentar as (re)construções das organizações indígenas para a resistência dos Kaiowá e principalmente fortalecer suas tradições de conhecimento que constantemente vem sendo atropeladas. Para isso, usamos também da reflexão sobre o corpo coletivo dos indígenas que se utilizam de seus saberes e fazeres para criarem um elo afetivo de pertencimento social diante suas expressões artísticas.
CORPORIZANDO A IDEIA
O conceito de corpo apreendido na modernidade para longe de uma abordagem rudimentar, isto é, biológico, penetra em uma estrutura individualista, mas concebido como aparato de um “idioma simbólico focal”, termo utilizado por Anthony Seeger et al., (1979), em que manifestado pelos saberes, pelas representações sociais e culturais de diversas sociedades, esses corpos são capazes de produzir sentidos, regras e valores. Para a autora Elizabeth Grosz apud Oyèrónké Oyewúmi (2002), o corpo é um texto, em vista e à vista, composto por signos prontos para serem interpretados.
No entanto as explicações biológicas não contemplam as expressões interiores, e novamente segundo a autora Oyewúmi (2002), é o raciocínio corporal que estabelece as posições de poder. E nesse quesito, os indígenas são desfavorecidos por ser renegados a uma pré-condição de primitivos, sendo esse o ponto de partida para que possamos entender a história de violência em que os indígenas sobrevivem, pois é a partir do prisma da hereditariedade que começa o sistema de funcionamento da sociedade. O ponto que justamente constitui as populações indígenas, e não como etnia, a uma apresentação de atraso frente ao progresso econômico e humano. E, portanto, são lançados a essas situações de extrema vulnerabilidade.
Apesar desse artigo partir de uma abordagem da noção de corpo na sociedade indígena, gostaríamos que o leitor atentasse para as lutas destacadas no decorrer desse texto como as entrelinhas para uma segunda ideia de que o corpo indígena, em uma construção de categorias sociais, é diferente e está (re)exposto em uma posição inferior.
Na visão das sociedades tradicionais, como no caso dos indígenas Kaiowá, o corpo, segundo David Le Breton (2013) não é um objeto de individuação, em que em seu isolamento é destacado do mundo, pois, o “lugar do corpo” está impreterivelmente associado à “construção da pessoa” enquanto “os caminhos básicos para uma compreensão adequada da organização social e cosmologia destas sociedades” (Seeger, 1979, p. 03). Então, voltando aos argumentos do autor David Le Breton (2013) ao mencionar os canaques, a sociedade indígena não compreende a existência de um corpo sem a presença da palavra, ou como os Kaiowá entendem, Palavra-alma.
Partindo para uma compreensão acerca do “antigo” modo de ser indígena (ñande reko), em que justamente refere-se aos aspectos centrais deste trabalho, apresentamos o antropólogo Fábio Mura (2006) em sua tese “Àprocura do “bom viver”: território, tradição de conhecimento e ecologia doméstica entre os Kaiowá”. No decorrer de sua pesquisa, o mesmo apresenta a construção da cosmologia Guarani regida por uma noção de pessoa, de que o corpo é constituído por duas almas: a primeira e a mais vital, é a alma corporal, denominada de nhe’ë (ou ayvu), que quer dizer Palavra. E devido à relação social estabelecida no momento do nascimento à importância conferida a esta alma, é o desenvolvimento do nome (transmitido por Deus através do sonho dos pais, ou durante o ritual de nominação (nimongarai) realizado pelos xamãs), o assentamento do espírito no aparato corporal, e a capacidade de transmissão de conhecimentos adquiridos ao longo da vida.
No entanto, durante os momentos de crises da vida, quando exposto o nhe’ë, este tende a enfraquecer e a se afastar do corpo, acometendo os Kaiowá a um estado de dor emocional e suscetível a incorporação do espírito animal (tupichúa) que sempre o acompanha em cima do ombro, gerando possíveis comportamentos agressivos, dependendo da forma do animal que está ao seu lado. A segunda alma, identificada pelo nome de (angué), é a alma espiritual que se desprende do corpo após o falecimento, e dependendo da idade do indivíduo, esta pode causar doenças espirituais aos vivos.
Segundo Graciela Chamorro (2008), a alma enquanto símbolo, é a palavra do Kaiowá, e é a única forma de estar em conexão direta com Deus e o permite procurar o modo correto do bem viver.
A palavra circula pelo esqueleto humano. Ela é justamente a que o mantém em pé, que o humaniza […]. É a verticalidade assegurada pela palavra que diferencia o ser humano vivo dos outros seres e dos seres humanos mortos doentes ou sem nome divinizado (Chamorro, 2008, p.56).
Conforme argumenta os autores Anthony Seeger et al., (1979), a “construção de pessoa” estrutura os indivíduos a partir de suas experiências, isto é, por meio dos estágios de vivências ao qual são submetidos. E como recompensa estes recebem conhecimentos para continuar mantendo o comportamento adequado para se alcançar o bem viver, porém, quando, estes indivíduos, apresentam atitudes distintas dos demais integrantes, desencadeia uma variabilidade no modo de ser (teko reta), ocasionando o enfraquecimento e espantando o nhe’ë do assento corporal.
No entanto, a alma, como dito anteriormente, segundo Mura (2006), pode ser desestabilizada devido à influência de espíritos malignos, como o angué, ou estar em lugares que exalam maus fluidos, capazes de espantar o nhe’ë e fazer os Kaiowá assumir posturas indecorosas que não faz parte do seu caráter. E para reestabelecer uma relação de equilíbrio, a fim de que os Kaiowá possam alcançar o “bem viver”, é necessário a incorporação de procedimento terapêuticos, realizados pelos xamãs ou curandeiros.
As técnicas terapêuticas individuais consistem em uma cerimônia mais específica, em que as orações em aspectos de cura e intercessão são acompanhadas de gestos, as mãos direcionadas ao paciente, de modo que “esfrie” a doença, e afugente os espíritos malignos, ou a feitiçaria, responsável pelo mal comportamento e a dor emocional que assola o corpo do indivíduo.
Uma outra forma de procedimento terapêutico, segundo argumenta Graciela Chamorro (2008), é o ato de “celebrar a Palavra”, representado por um ritual coletivo, em que o nhe’ë através do canto-reza pode alcançar a restauração de estabilidade, e ser conduzido a uma relação com o divino, e consequentemente com a natureza. “Na reflexão dos Kaiová, por exemplo, a Palavra cantada é considerada um ser peregrino. Ao ser proferida ela percorre a superfície do corpo (a carne) do Dono do Ser, Tekojára ro’o pe jerosy, que no fundo é a totalidade do cosmo” (Chamorro, 208, p.256). Isto é, ao ser exaltada a Palavra, como dito anteriormente, sendo esta, o resultado da conexão de Deus com o Kaiowá, e que está em completa relação com o plano da natureza e do cosmo.
A partir disso, podemos pensar em Schechner (2003), quanto este autor fala sobre aprendizagens adquiridas ao longo da vida, num sentido de “um repertório de conhecimento incorporado, uma aprendizagem no e através do corpo, bem como um meio de criar, preservar e transmitir conhecimento” (SCHECHNER, 2003, p.28). Assim, podemos entender que os Guarani com seus cantos e rezas estabelecem uma aliança com conhecimentos adquiridos com os seus ancestrais, ao passo que correspondem a princípios de ligação com o campo sagrado cultuado em sua cultura. Essas possibilidades de aprendizado constituídas no corpo refletem uma expressividade performática que vai muito além de uma manutenção física, mas atrelada à espiritualidade. Pensando nisso, os cantos e rezas são um meio de fazer arte no seu valor espiritual, pois reconectam com suas práticas performáticas sua vivência com o sagrado.
Sob a ótica de Marcel Mauss (2003) em “As técnicas do corpo”, o autor entende que cada sociedade possui a sua manifestação particular. E o mesmo também pode ser atribuído aos procedimentos terapêuticos retratados na fala da Graciela Chamorro, pois, não é porque trata-se de uma manifestação cultural indígena que todas as sociedades indígenas terão tal abordagem, pelo contrário, são conhecimentos discrepantes, são formas de pensar, de falar, e de agir diferenciado, do qual, o corpo é identificado como a única similaridade e principal categoria técnica natural desprovida das técnicas de instrumento para executar tais movimentos de tradição. Para tanto, Mauss (2003), apresenta que o conceito de técnica é
(…) um ato tradicional eficaz (e vejam que, nisto, não difere do ato mágico, religioso, simbólico). É preciso que seja tradicional e eficaz. Não há técnica e tampouco transmissão se não há tradição. É nisso que o homem se distingue, sobretudo dos animais: pela transmissão de suas técnicas e muito provavelmente por sua transmissão oral (MAUSS, 2003, p. 407).
Na organização da aldeia, em conformidade com o autor Clovis Brighenti (2010), o lugar a ser ocupado na comunidade, está baseado na Palavra, na capacidade de falar, e as atividades desenvolvidas enquanto lideranças, divide-se em duas: a liderança religiosa e a política. Para um Kaiowá tornar-se liderança religiosa, este, deve saber se comunicar, transmitir as mensagens de Ñanderu (Nosso Pai) e saber aconselhar o seu povo. Já, para a ocupar o papel de liderança política, o indivíduo deve desenvolver uma fala controladora, e saber interagir nos “dois mundos”, em sua aldeia, e no espaço do não-indígena.
Ancoradas nessa perspectiva, os estudos de Marcel Mauss (2003), apontam-nos a partir de suas reflexões sobre as diversas culturas e sociedades retratadas em sua obra, que o indivíduo, como parte integrante de uma sociedade, possui funções representativas dentro de uma trama social no qual uma determinada sociedade adquire nome, bens, faz uso de objetos, usa pinturas corporais, participa das danças e das cerimônias, porém, logo, esta persona, não se apresenta como a questão central desta construção, e sim, o papel em que esta desempenha dentro da sociedade, e inscreve seu corpo para o social.
Considerando comprovar essa afirmação, o trabalho de Le Breton (2013) nos permite destacar uma melhor conclusão para o discurso já referido:
O homem (…) imerso no seio do cosmos, de sua comunidade, ele participa da linhagem de seus ancestrais, de seu universo ecológico, e isso nos fundamentos mesmos do seu ser. Ele permanece uma espécie de intensidade, conectada a diferentes níveis de relações. É deste tecido de trocas que ele tira o princípio de sua existência (Le Breton, 2013, p. 37).
Com isso, notamos como os indígenas em seu seio social proporcionam várias nuances de manifestação dos seus ideais e valores. Pensar nisso, é entender que suas pinturas no corpo, suas danças e cerimônias festivas usam de uma performance para experimentar suas formas de ver e perceber o mundo que os cerca, seja em seu território cultural, seja fora dele. Desta forma, podemos pensar que
Performances, sejam elas performances artísticas, esportivas ou a vida diáriaconsistem na ritualização de sons e gestos. (…). De fato, uma performance pode ser: comportamento ritualizado condicionado/permeado pelo jogo. Rituais são uma forma de as pessoas lembrarem. Rituais são memórias em ação, codificadas em ações (SCHECHNER, 2012, p.49).
“Ocupar de novo” (jeike jey) no espaço-tempo atual (Ará ypyrã)
De acordo com Clovis Brighenti (2010), diante da perda da terra sagrada, enquanto a Palavra de origem interligada à construção de pessoa, propiciou o desequilíbrio cósmico, um desmantelamento na antiga organização social e territorial dos indígenas Kaiowá, pois face da falta de espaço territorial provocado pela superlotação, não há como ter uma pequena produção de alimentos para o autoconsumo. Então, sem meios de sustento, estes precisam se deslocar para as fazendas, para as usinas de açúcar e de álcool, e ou até mesmo para a cidade em busca de trabalhos remunerados, em que os obriga a se manter fora das Reservas por longos dias.
Submetidos a viver em pequenos hectares de terras, em alguns casos nas extremidades da BR, os Kaiowá, abrigados em barracas de lonas, estão em completo estado de miséria, vulnerabilidade, e dependência do Governo, além do sentimento de humilhação, porém, mesmo cansados dessa penúria, os indígenas enquanto grupos bastante espirituais e adaptáveis continuam encontrando meios para resistir na esperança de um dia retornar para suas terras originárias mesmo que o alto preço a se pagar seja com os seus corpos tombados sem vida. Observemos a seguir, o trecho recortado de uma carta de rezadores (as) Guarani e Kaiowá que foi publicado pelo CIMI2 (Conselho Indigenista Missionário) em 28 de julho de 2013, reivindicando seu desejo pela demarcação territorial:
Queremos entrar na nossa terra e morrer nela. Nosso sonho é esse e não dá mais pra esperar. Nós temos o nosso jeito de viver, e de se organizar, de lidar com as coisas. Cada reza é para uma coisa: para ter uma plantação, para ter saúde, para não vir uma tempestade e destruir tudo. Temos rezas para eclipse do sol. Nós Tekoa’ruvixa fervemos casca de cedro para beber e rezar, e também para dar banho em crianças e jovens e curar. Para toda essa cultura continuar viva nós precisamos da terra. Essa cultura funciona com a terra. Não temos como viver assim na beira de uma estrada nem um canto de uma fazenda. Enquanto não tiver a terra, não tem como viver. Muitas pessoas brancas acham que o índio só quer terra. Mas a vida do índio depende da terra. Por estarem sem tekoha há muito tempo, muitos jovens já crescem sem saber o que é isso, tem um convívio traumatizado da vida. Então as vezes os jovens não querem saber sobre os rezadores porque não sabem mais o que é isso, porque estão longe da natureza, dos remédios, do benzimento, das matas. O nosso espaço é que fornece isso. […] A terra é sobrevivência da nossa cultura, da nossa nação. Essas são as principais coisas. Isso não interessa para os brancos. Para os brancos isso não é nada.
Exauridos de tantas violações e violências decorrentes até hoje, em 1970, conforme argumenta o antropólogo e liderança indígena, Tonico Benites (2012), os Guarani-Kaiowá elaboraram o Aty Guasu (Grande Assembleia) e o Jeroky Guasu (Grande ritual religioso) destinados aos encontros de líderes políticos e religiosos para um engajamento de estratégias de retomada territorial existente até os dias atuais. Os papeis das lideranças, durante os encontros no Aty Guasu, são primordiais para esse processo, pois os longos rituais religiosos (jeroky) representam uma estratégia de luta contra os ataques dos pistoleiros comandados por fazendeiros e latifundiários, e, portanto, os indígenas frente a essa ação possam caminhar protegidos para a reocupação territorial.
É fundamental enfatizar, a importância do ritual, conforme apresenta Tonico Benites (2012, p. 171):
Nessas ocasiões e encontros específicos, os líderes religiosos explicam repetidamente que a realização simultânea de ritual religioso (jeroky) é fundamental para recuperar o diálogo com os seres invisíveis e os guardiões dos tekoha antigos. Estes seres são divindades supremas que pertencem ao cosmo (yvaga) Guarani e Kaiowá. Os ñanderu declararam que somente através do jeroky permanente é possível buscar essa comunicação, apoio e intervenção de seus parentes invisíveis e guardiões da terra, rio e floresta para recuperar e retomar os territórios tradicionais que foram abandonados por conta das expulsões.
Ainda segundo Tonico Benites (2012), no decurso do ritual, os ñanderu permanecem rezando e cantando durante a madrugada, sacudindo os chocalhos (mbaracá), enquanto as ñandesy batem no chão com o caule de taquara (takuapu). Após 4 ou 5 dias antes do fim do ritual para o início da reocupação, os participantes da equipe de frente integram-se no ritual religioso (jeroky), permanecendo diante do altar sagrado (yvyra’iMarangatu), para a elaboração do ritual de batismo (mongarai) para que o espírito de seus antepassados os reconheça e os proteja de todo o mal no decorrer da retomada territorial.
No dia do retorno à terra sagrada, a liderança, recita palavras de orientações, como forma de avisar que a comunicação com os deuses e guardiões foi reestabelecido e a partida para o tekoha, foi consentido. Os Guarani – Kaiowá, preparam seus corpos com pinturas provenientes do colorau, denominado de urucum (yruku), simbolizando o respeito aos espíritos dos antepassados e aos guardiões (ñanderyke’yoveravayvyjara), os homens segurando o arco e a flecha, carregando pertences para o acampamento na sua terra sagrada, proferem o juramente de reocupação e deslocam-se de madrugada para retornar ao seu tekoha.
De acordo com Schechner (2011), existem rituais em que há a consonância de expressões gestuais e sonoras para sua execução coletiva. Nesse caso dos indígenas estudados, o uso dos cantos e a forma como os chocalhos são tocados é o que torna suas expressões artísticas um ritual de consagração aos espíritos ancestrais e manutenção dos seus saberes cosmológicos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O corpo, como uma “matriz de significados”, nos conduz, para cada etapa da sociedade, desde o nascimento à morte, da saúde à doença, da imaterialidade ao passo que se converte em um sustentáculo das pinturas, dos ornamentos, dos portes de utensílios e instrumentos de uma cultura que insistentemente atravessa o tempo para se manter viva e fortalecida. E, sobretudo, para que a futura juventude conheça o verdadeiro modo de ser, de fazer, e de viver kaiowá e para que jamais permita que essa tradição se torne esquecida e apagada, visto que esse é o objetivo principal daqueles que encontram-se no poder.
É necessário destacar, que após a perca da Terra-Mãe, os Guarani-Kaiowá, sofreram um desequilíbrio cósmico, que como já dito anteriormente por Anthony Seeger et. al., (1979), Marcel Mauss (2003) e Le Breton (2013), a existência do indivíduo está conectado a essa trama social, não há um corpo sem alma, portanto, não há Kaiowá sem a Palavra. E o espaçotempo atual (Ará ypyrã)representa a elaboração desses espaços de expressão, do qual os indígenas buscam a (re)estrutura e o fortalecimento da sua noção de pessoa. Através dos encontros do Aty Guasu, estes, podem novamente reviver as antigas histórias ao transmiti-las para a juventude, realizar as cerimônias ritualísticas entremeadas pelo canto-reza e os rituais de batismo (mongarai). E principalmente preparar a retomada, pois está foi a única forma de resistência que os indígenas encontraram para voltar as suas terras sagradas e viver como antigamente, no espaço-tempo origem (Ará Ypy).
Enquanto isso, para cada nova geração que surgi levantam-se novas lideranças fabricadas pelo novo tempo e no novo espaço, afirmados pela evolução são preparados para essa luta, para transitar entre os “dois mundos” e de serem capazes ainda de entoar o verdadeiro canto do “verás que um filho teu não foge à luta”. Essa geração sabe que suas vidas não serão duradouras, mas nada os impedirá de retornar à sua terra sagrada, que devido a um ato desrespeitoso e de opressão, o território sagrado foi retirado de um povo originário provocando um esgarçamento no tecido de sua organização, e os acuando em reduzidas áreas que o antigo SPI julgou ser suficiente.
Portanto, para finalizar este artigo, recito um trecho da carta elaborada pelo Aty jovem mobilizando-se para a retomada, disponível no site do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) divulgado em 26 de julho de 20163.
(…). Fomos empoderados pela trajetória e pelo ensinamento de nossos anciões que apesar de tudo mantiveram acesas as fogueiras de nossa tradição. Que mesmo ao lado das rodovias, expulsos de nossas terras, guardaram com carinho as sementes de nossa cultura ancestral. É por isso que continuamos gritando alto e com orgulho: SOMOS GUARANI E KAIOWA. Não somos mais as crianças indígenas de olhar assustado após cada despejo e cada ataque como já fomos. Não somos mais pequenos com falta de esperança com nossas mãos pequenas cortando cana como muitos de nós fomos. Não somos mais aqueles que tiraram a própria vida como muitos de nossos irmãos fizeram. O destino nos vestiu diferente, nos vestiu com a luta e com a resistência de nossas lideranças e de nossos antepassados (…).
REFERÊNCIAS
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1 As definições em Guarani de ñanderu e ñandesy remete-se às lideranças homens e mulheres.
2 Disponível em: < http://www.cimi.org.br/site/pt–br/?system=news&action=read&id=7048> Acesso em 01 de março de 2022.
3 Carta final, disponível, em: <http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=8837>. Acesso em 18 de fevereiro de 2022.
1 Bacharel em Ciências Sociais pela UFPI (2016). Mestra em Antropologia pela UFPI (2019). Especializada em Supervisão e Gestão Escolar com Docência Superior pela FAEX (2019). Especializanda em Direitos Humanos e Movimentos Sociais pela UESPI (2021).
2 Licenciado em Educação Artística pela UFPI (2013). Mestre em Antropologia pela UFPI (2019). Especialista em Educação, Culturas e Regionalidades pela UESPI (2022).