DIÁSPORA E TRAUMA NA OBRA REINO TRANSCENDENTE DE YAA GYASI

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11121188


Ma. Paula de Sousa Costa (UFCG);
Dra. Josilene Pinheiro-Mariz (UFCG)


Resumo:

Neste trabalho, buscamos realizar uma leitura de como é apresentada a relação entre diáspora e trauma no romance Reino Transcendente (2021) da escritora nascida em Gana, Yaa Gyasi. O romance apresenta a problemática situação de uma família ganesa que vai para os Estados Unidos em busca do sonho americano; e, nesse movimento, se depara com uma realidade segregacionista. Assim, a obra suscita no leitor a complexa situação de diáspora no contexto de norte-americano, revelando situações vivenciadas por homens e a mulheres negros, bem como os enfrentamentos diários que refletem a influência do colonialismo e da escravização. Para fundamentarmos as nossas reflexões, buscamos em (2008) argumentos para pensar sobre a diáspora africana, bem como em Caruth (1995), que nos apresenta concepções de trauma, dentre outras ponderações que nos ancoram. Esta pesquisa caracteriza-se como qualitativa e bibliográfica, pois descreve e analisa o acervo literário crítico e teórico sobre as temáticas analisadas.

Palavras-chave: Diáspora. Trauma. Literatura. Gyasi.

Abstract:

In this work, we seek to read how the relationship between diaspora and trauma is presented in the novel Transcendent Kingdom (2021) by the Ghanaian-born writer, Yaa Gyasi. The novel presents the problematic situation of a Ghanaian family who goes to the United States in search of the American dream; and, in this movement, it is faced with a segregationist reality. Thus, the work raises in the reader the complex situation of diaspora in the North American context, revealing situations experienced by black men and women, as well as the daily confrontations that reflect the influence of colonialism and slavery. To support our reflections, we looked to (2008) for arguments to think about the African diaspora, as well as to Caruth (1995), who presents us with conceptions of trauma, among other considerations that anchor us. This research is characterized as qualitative and bibliographic, as it describes and analyzes the critical and theoretical literary collection on the themes analyzed.

Keywords: Diaspora. Trauma. Literature. Gyasi.

Introdução

A diáspora é um lugar de encontro de culturas que se entrelaçam e se enriquecem, mas, também se tornou um lugar de confronto, de onde emergem diferenças e estranhamentos na maioria das vezes causados pelo racismo. Sabe-se que esse preconceito pode causar traumas na psiquê humana, prejudicando a saúde mental dos indivíduos que o sofrem. O romance Reino Transcendente (2021), de Yaa Gyasi conjectura em seu enredo essa relação entre diáspora e trauma. A família da protagonista, Gifty, sai de Gana para os Estados Unidos com o desejo de melhorar de vida e viver o sonho americano no país das oportunidades. Contudo, a realidade no novo país se transforma em um traumático modo de vida, devido ao racismo enraizado na sociedade, hoje conhecido como racismo estrutural (Almeida, 2018).

Assim, nestas reflexões, discutimos como se dá relação entre a diáspora e o trauma decorrente do racismo, apresentado no contexto do romance Reino Transcendente (2021) da jovem escritora ganesa supracitada. A autora nasceu em Gana, mas ainda criança sua família migrou para os Estados Unidos e seu romance, então, trata de uma família de imigrantes que tem sua estrutura fragilizada e destruída pelo trauma do racismo cotidiano, onde as relações são abaladas. Nesse contexto a mãe da protagonista é acometida de depressão, o irmão morre, o pai volta para Gana; e, Gifty, personagem narradora torna-se uma cientista. Além, desse romance, Yaa Giasi publicou O Caminho de casa (2017), sua obra de estreia, na qual narra a história da escravização do povo ganês desde a captura de homens e mulheres, o traslado nos navios negreiros e a vida nas plantations americanas.

A obra também nos faz perceber que este contexto racista continua como legado do período da escravização, uma continuidade negativa que marginaliza os povos de cultura africana, pela cor da pele, e pelos paradigmas segregacionistas impregnados no pensar e no saber da população branca americana. Para abordar essa temática Santos (2008) traz relevantes contribuições sobre a história do movimento diaspórico, especialmente a africana. 

Neste artigo, além das ponderações de Santos (2008), nos apoiamos em Cathy Caruth (1995) sobre a concepção de trauma, em Jeffrey C. Alexander (2004) e Ron Eyerman (2004), que discute acerca de trauma em uma perspectiva cultural enquadrando o período da escravização como um trauma cultural para os povos africanos. Nesse âmbito, não podemos deixar de pensar do ponto de vista e nas teorias fanonianas sobre o trauma causado nos territórios coloniais.

No primeiro tópico, discutiremos a respeito da diáspora africana, sua história e o lugar epistêmico dos povos que viveram a imigração. No segundo, discorreremos sobre a concepção de trauma para entender como ele se estabelece e afeta a saúde humana e coletiva de uma população. No terceiro, discutimos acerca de como o romance apresenta essa relação entre trauma e diáspora representada na vida da família da protagonista. 

Do ponto de vista da psicologia, toda ação e/ou palavra surge primeiramente no pensamento; daí, portanto, a importância deste artigo em suscitar um pensar mais justo a partir do conhecimento a respeito da história dos povos africanos, a fim de reconstruir e humanizar as ações e ideias acerca dos povos negros, principalmente em nosso país, com suas marcas de ancestralidade de povos africanos.

Diáspora africana: identidade e lugar epistêmico

O termo diáspora vem do grego diaspeirein e significa ‘dispersão’ ou ‘espalhar’. É um termo comumente relacionado à literatura africana ou à diáspora do povo hebreu, na narrativa bíblica em que é descrito o primeiro fluxo migratório da humanidade. Muitas obras literárias retratam essa experiência que povos do mundo inteiro já vivenciaram. Para entender a importância desse movimento para a literatura africana, precisamos iniciar adentrando nos aspectos históricos, traçando fatos que reconstroem essas trajetórias diaspóricas. A origem desse termo, portanto, está na Bíblia, no Velho Testamento, usado para se referir à migração dos judeus pelo mundo. 

A partir disso, a palavra diáspora começou a ser usada para designar um fluxo migratório de povos que deixam sua pátria e buscam abrigo ou um recomeço de vida. Recentemente, temos observado a crise que gerou no mundo o grande fluxo de refugiados, formando filas de espera para entrar em vários países da Europa, além de guetos e alojamentos improvisados. Muitos morreram tentando chegar a esse lugar almejado ou, depois de alcançá-lo, devido às condições desumanas a que são submetidos. Essas notícias nos jornais chocaram o mundo, no entanto, nos mostraram que este fluxo transitório ainda é uma questão recorrente na nossa contemporaneidade.

Santos (2008) assegura que esse termo passa a ser usado para designar o trânsito do povo africano pelo mundo. Ele discute sobre as possíveis razões que provocaram esse movimento, destacando que elas poderiam ser, de maneira forçosa, como a escravização, ou espontânea, como a busca por uma qualidade de vida melhor. Sinalizamos a presença dessas causas contextualizadas em narrativas literárias, quando, por exemplo, em Reino transcendente (2021), a família de Gifty deixa Gana para buscar uma vida melhor nos Estados Unidos.

Ora, é bem verdade que a escravização é uma prática milenar; entretanto, a mácula deixada pela escravização dos negros africanos torna-se pungente, pois, por meio dela foi desumanizado um povo e suas características: o corpo, as feições, o cabelo, a cor, além dos comportamentos. Esta forma de pensar se estabeleceu de uma maneira tão contundente que é possível perceber os reflexos desses estereótipos construídos pela institucionalização do padrão branco-europeu que se tornou massiva, autodenominados ‘donos dos saberes’. Todavia, vale ressaltar que é este ser em deslocamento que se posiciona e questiona o seu lugar no mundo, tentando romper com os matizes opressores da sua história. Hoje, estes considerados ‘deslocados territorialmente’, como exemplo na narrativa de Gyasi, são vozes que lutam pelo espaço e direitos do negro em seus territórios. A seguir, Santos (2008) apresenta essa perspectiva da construção de uma visão crítica a partir da experiência epistêmica:

O deslocamento e a reterritorialização da população negra redefiniram as noções de pertencimento e de identidades étnicas, o que nos leva a concluir que o mundo construído no processo da diáspora africana favoreceu o desenvolvimento e o fortalecimento de melhores condições para criticar o eurocentrismo vigente desde o seu centro. (Santos, 2008, p.186)

Conforme a citação acima, o deslocamento toma uma nova perspectiva, quando ele acaba possibilitando as populações que imigraram uma visão mais ampla do domínio europeu sob as demais culturas, não só a visão, mas esta experiência também dá condição para tomar espaço de voz, ou seja, é o ser em deslocamento que se torna capaz de questionar os padrões estabelecidos como universais.

Trauma, memória e identidade 

A noção de trauma tem sido discutida em vários ramos das ciências, não apenas na medicina e psicologia; pois, expandiram-se os estudos que se debruçam sobre esse comportamento em campos como história, sociologia e literatura. Isso demonstra que o trauma pode também ser visto como um campo de estudo que pode abranger várias áreas de pesquisas e desenvolvimento de sua existência, conceituação e representação. Apesar de existirem várias concepções acerca da sua definição, existe um entendimento geral de que ele significa ‘ferida’. Embora não haja marcas aparentes dessa ‘ferida’, ela pode trazer danos incomensuráveis para a vida do indivíduo.

Atualmente, trabalhos discorrem sobre as configurações que implicam os eventos traumáticos e seus efeitos negativos no ser humano, discutindo as implicações dos eventos traumáticos sob várias perspectivas de acordo com o escopo da pesquisa. Esses eventos traumáticos podem acontecer nas esferas sociais, familiares e culturais, deixando marcas na memória coletiva ou individual, como uma imagem construída e frequentemente revisitada, que causa problemas emocionais. Assim, torna-se pertinente discutir acerca dos impactos que o trauma pode causar à saúde mental e de acordo com esta ótica, a literatura propicia esse espaço de entrada e análise. 

Segundo Winnicott (1994, p. 113): “A ideia de trauma envolve uma consideração de fatores externos; em outras palavras é pertinente à dependência. O trauma é um fracasso relativo à dependência”. Essa dependência pode ser entendida dentro das relações sociais e interpessoais, nas quais os sujeitos vivenciam conflitos ou falhas durante sua vida os quais podem desenvolver feridas e entraves na construção do ser.

Quando o sujeito vivencia o acontecimento traumático e este não consegue gerir um sentido que o faça atravessar os sentimentos negativos, ele permanece marcado na memória. Isto é, frequentemente, gatilhos podem fazer o sujeito retornar às imagens e lembranças geradas pelo trauma. Para Moreno e Coelho Júnior (2012: 

[…] o trauma tem como efeito uma fratura no processo de simbolização, introduzindo uma lacuna no psiquismo e desencadeando como defesa a incorporação fantasiosa do objeto. Esta lacuna é preenchida pela inclusão de dados brutos da realidade traumática, pelo objeto inteiro ou por parte dele. (Moreno; Coelho Júnior, 2012, p. 57).

Essas fraturas na construção do significado prejudicam a reflexão e a formulação de um sentido para o evento traumático, ocorrendo a impossibilidade do luto. Corroborando tal pensamento, Cathy Caruth (1995) salienta que o sujeito não percebe que foi traumatizado logo quando ocorrido o fato, apontando que como o evento não foi assimilado no momento factual, ele é retardado e somente depois se percebem os efeitos que ela chama de ‘tardios’: “O impacto do evento traumático reside precisamente em seu atraso, em sua recusa em ser simplesmente localizado, em sua aparição insistente fora dos limites de qualquer lugar ou tempo”1. (Caruth, 1995, p.9). Por isso, pode-se dizer que esta lacuna permanece ‘adormecida’ por um tempo, mas em algum momento ela é revisitada e aparece, causando sofrimento. 

Com esse efeito negativo na mente das pessoas, o trauma pode trazer prejuízos para mente e corpo. Sob essa perspectiva, faz-se necessário ressaltar a configuração do racismo como trauma representado na obra da escritora Gyasi. Seus dois romances apresentam personagens africanos e afro-americanos que vivem em diáspora e, portanto, estão propensos a experimentarem mais corriqueiramente este preconceito. O romance que constitui o objeto de nosso estudo apresenta essa percepção do trauma da escravização e do racismo dentro do contexto contemporâneo do homem e da mulher negros. Esse trauma está marcado na memória e na história desses povos, causando distorções na construção de uma identidade coletiva que afeta a identidade individual dos povos africanos.

A autora expõe, por meio desses romances, como se reconstrói e como é passada essa renovação contínua da segregação. Dentro deste contexto, ela narra o trauma racial do passado que se reverbera no presente, quando historicamente o homem e a mulher negros vivem os conflitos raciais desencadeados desde as gerações de seus ancestrais. Ela apresenta fortemente essa continuidade do trauma em O caminho de casa (2017), no qual evidencia que, embora o contexto histórico tenha mudado, -assim como a política, a medicina, a ciência e as artes-, seus personagens continuam vivendo a problemática do trauma do racismo, de maneira que não acontece da mesma forma, pois em cada geração, esse comportamento ganha novo contexto e dimensões novas. Esse novo contexto configura o que ela chama de trauma reinventado. 

Já em Reino Transcendente (2021), uma família é destruída e adoecida pelo trauma: a) o pai de Gifty sente-se hostilizado e rejeitado nos Estados Unidos, a ponto de abandonar a família e voltar para Gana; b) Nana, seu irmão, não supera o abandono do pai, encontrando no esporte uma válvula de escape, mas acaba morrendo de overdose no auge da sua carreira como jogador de basquete; c) a mãe adoece de uma depressão profunda, perde o emprego, as relações sociais, os cuidados pessoais e fica em profunda letargia; d) Gifty cresce tendo que lidar sozinha com toda a desestrutura de sua família: o abandono da figura paterna, a morte do irmão e a doença da mãe. Torna-se uma pessoa retraída, não consegue confiar em ninguém e tampouco se relacionar com as pessoas à sua volta.

Para Caruth (1995), o trauma é mais que uma ferida psíquica, ele é a história de uma ferida que clama para ser contada e que não está mais disponível, a não ser na memória fraturada, no qual seu aspecto tardio está relacionado não só ao que é conhecido e gravado na mente, mas também ao que é desconhecido. Uma vez que este desconhecido se configura como uma faceta que o sujeito carrega em si e não foi revelado, mas ao passo que ele é ativado por um gatilho ou pelo trauma renovado dentro da experiência contemporânea, ele aparece e se revela. O ser humano acumula vivências ao longo de sua existência que influenciam sua forma de perceber e ver o mundo ao seu redor e até a própria percepção que tem de si mesmo. Algumas experiências causadas de maneira repentina pelo choque, podem ser difíceis de assimilar ou atribuir-lhes significado. Isso dificulta a introjeção do fato, ficando gravado na memória. Dentro dessa projeção/percepção interna, a negação do fato acontecido provoca problemas emocionais e até interpessoais. Neste contexto, narrar sobre o fato pode contribuir para uma melhora dos sentimentos provocativos e intuitivos sobre o evento traumático, o que possibilita uma nova compreensão e construção simbólica.

A reconstrução histórica na narrativa de escravidão possibilita ao leitor explorar e descobrir traços de um trauma racial e cultural que foram ou são base para fragilizar a identidade individual e também coletiva, de um povo que foi sujeito a eventos danosos que distorceram sua originalidade e legitimidade. Sobre trauma cultural, o sociólogo Jeffrey C. Alexander (2004) define como: 

O trauma cultural ocorre quando os membros de uma coletividade sentem que foram submetidos a um evento horrendo que deixa marcas indeléveis em sua consciência de grupo, marcando suas memórias para sempre e mudando sua identidade futura de maneiras fundamentais e irrevogáveis.2 (Alexander, 2004, p. 3) 

A escravização como um evento danoso e traumático à população negra afetou a memória coletiva e a formação de uma identidade emergente.

Nos Estados Unidos, após a Guerra Civil (Civil War) e a abolição da escravização, surge o termo ‘afro-americano’ para distinguir e diferenciar esses povos que eram excedentes, já que não eram mais escravizados e também não eram vistos como a categoria de “americanos nativos”. Este termo emerge com o intuito de forjar uma identidade coletiva de um povo escravizado ou não, mas com a ascendência africana. Se por um lado essa identidade é continentalizada, uma vez que na África cada nação é reconhecida pela sua origem e distinção, na América passa-se a ter uma concepção mais homogeneizada, baseada nas ideias racistas vigentes à época. Por outro lado, o surgimento do termo denota um reconhecimento da existência deste povo, em uma tentativa de se construir uma identidade coletiva, mesmo que esta nomenclatura demonstre o contexto de uma identidade segregada.

Do sonho americano ao paraíso perdido: reminiscências de um trauma coletivo

O romance Reino Transcendente (2021) apresenta os enfrentamentos no contexto diaspórico, causados pelas distinções culturais, revelando como elas influenciam na formação das identidades. Partindo dessa afirmação, entendemos que o ser-humano em diáspora tem como referência sua pátria, pois, este sentimento de pertencimento primeiro parte daquilo que constituiu a sua história, como base e alicerce de sua identidade. Conforme Santos (2008), “Os africanos da diáspora procediam de um amplo leque de culturas, línguas e religiosidades diferenciadas, que podiam, assim como seus descendentes, olhar para trás e ver um ponto geográfico originário comum e imaginar um paraíso perdido.” (SANTOS, 2008, p. 184). Essa ideia de “paraíso perdido”, em que aquele que se afastou de sua terra natal constrói idealizações saudosas de um lugar que parece ideal. Ao deparar-se com suas raízes, traça um caminho para o autoconhecimento e ressignificação identitária. Esse sentimento de pertencimento, todavia, acontece também com o estranhamento, ao deparar-se com o outro; a partir desse confronto, as identidades também emergem. Assim, a imersão em uma nova realidade aos poucos possibilita uma transformação de identidades plurais, como salientam Hall (2003) e Woodward (2007).

Nesse pensamento, entendemos que o contexto diaspórico possibilita conflitos consequentes dessa intolerância com o outro, como por exemplo, o preconceito racial. A obra estudada apresenta essa difícil realidade para as pessoas negras nos Estados Unidos. A narrativa em estudo se desenvolve traçando um enredo com vários exemplos dessas desigualdades, que esboçam contextos diferentes, que nos permitem observar como se estabelecem essas relações conflituosas, nas quais o negro é segregado e impedido de viver em condições de igualdade.

Reino Transcendente (2021) é uma narrativa que conta a história de imigrantes que vivem a experiência diaspórica, um sentimento de deslocamento, experimentando o preconceito gerado pela herança cultural da escravização revelando como a mulher negra resiste à opressão dentro de realidades repressoras e limitantes. A ideia de viver o sonho americano começa com a mãe de Gifty, Mama, como a chama a protagonista, entusiasma-se com o fato de um parente sempre mandar presentes e roupas dos Estados Unidos e convence seu marido a irem para esse país maravilhoso. Tendo ido antes do marido, a partir dos trabalhos realizados, consegue recursos, para que o marido vá ao seu encontro, juntamente com o filho.

Chegaram ao país dos sonhos, os três: Mama, Nana e seu pai – o Cara do Chin Chin. No romance, estes três personagens são chamados pelos apelidos que Gifty os usa para se referir a cada um; o apelido Mamba-negra é de sua mãe, que é o nome de uma cobra negra que vive no deserto do Saara. Essa comparação demonstra a difícil relação entre a mãe e a filha. Do começo ao fim do romance, elas vivem em conflito ou em silêncio. Buzz era o Nana, seu irmão mais velho, um jovem que retinha sua admiração e carinho. 

O Cara do Chin Chin é seu pai, o apelido “Chin Chin” se deu quando conheceu Mama. Nessa época, visitava a banca de comida na qual sua sogra trabalhava, sempre pedindo esse lanche crocante e frito, feito à base de farinha, açúcar, leite e manteiga. Todos começaram a chamá-lo de Chin Chin, nome dessa iguaria nigeriana. Com o passar do tempo, mostrando um significativo afastamento do pai, Gifty passa a chamá-lo de O Cara do Chin Chin. 

Dessa forma, encontramos uma família que vive em diáspora, enfrentando as dificuldades de lidar diariamente com o preconceito. Embora o sonho da mãe fosse conseguir mudar de vida, a família se desfazia mais a cada dia. O pai é o primeiro a demonstrar a fragilidade diante da discriminação: ele não consegue lidar com os olhares e insultos; não pode entrar pela porta da frente dos lugares; tem a sua honestidade constantemente posta em dúvida, dentre muitas outras situações com as quais os negros se deparam diariamente, ainda hoje. No trecho a seguir, observaremos como ele reflete sobre sua vida na América em comparação com Gana:

Na minha terra, os vizinhos cumprimentam a gente em vez de virar a cara para o outro lado como se não te conhecessem. Na minha terra, come-se o alimento recém-colhido. O milho duro da espiga, não mole como o espírito dessa gente. Na minha terra, não existe palavra meio irmão, meia irmã, tio ou tia. Só existe irmã, irmão, mãe, pai. Nós não nos dividimos. Na minha terra, as pessoas podem não ter dinheiro, mas tem felicidade em abundância. Ninguém aqui nos Estados Unidos é feliz. (Gyasi, 2021, p.82)

Percebemos que o pai se referia aos EUA de maneira desiludida e frustrante; em contrapartida, lembrava de Gana como o lugar feliz e adequado para viver. Este pensamento do pai corrobora as ponderações de Santos (2008), quando discute que o ser em diáspora pensa em sua terra natal como referência, como um “paraíso perdido”, sendo o único lugar em que poderia encontrar as coisas importantes da vida. A seu ver, nenhum dinheiro ou estilo americano de viver, valeria o preço que ele pagava diariamente. Observamos que sua identidade estava agredida, gerando uma ferida. Essa ideia de “paraíso perdido” reflete a sua identidade em Gana, já que ele se descreve como um homem bem conhecido e admirado. Na nova pátria, sua identidade foi distorcida ao estigma de um “crioulo”; apesar disso, a visão de sua mulher e filhos era bem distinta, embora enfrentassem os mesmos preconceitos, resistiam e tinham esperança.

Para Nana e para mim, era difícil ver os Estados Unidos como nosso pai via. Nana não se lembrava de Gana, e eu nunca tinha ido lá. Southeast Huntsville, na região norte do Alabama, era tudo o que conhecíamos, a localização física de nossa vida consciente inteira. Havia lugares no mundo onde os vizinhos nos cumprimentariam em vez de olhar para o outro lado? Lugares onde meus colegas de turma não zombariam do meu nome, não me chamariam de carvão, macaca, alguma coisa pior? Eu não conseguia imaginar, porque, se imaginasse, se visualizasse esse outro mundo, eu teria tido vontade de ir para lá. (Gyasi, 2021, p.83)

Gifty demonstra sua compreensão a partir do seu lugar epistêmico, pois, toda a experiência que tiveram esteve relacionada à experiência de uma identidade de afro-americana contestada pelo preconceito, onde quer que estivessem, fosse na vizinhança, nas ruas, nas escolas etc. Isso apresenta um contexto em que a discriminação racial se aprofundava nas raízes sociais e se naturalizava no cotidiano; dessa forma, podemos compreender que a experiência diaspórica se confirma como traumática. Percebe-se também que há, em sua fala, revolta e medo, mas não o desejo de sair, porque não tiveram como o pai “a outra experiência do paraíso perdido”. Seu pai não conseguia convencer a mulher e os filhos a voltarem para Gana, então, ele cria a desculpa de visitar o irmão na sua terra natal e nunca mais retorna. Sua partida é o início para a desestrutura e problemas que se seguem na família. 

A autora dá um nome bem sugestivo à protagonista na narrativa: Gifty. É um nome de origem africana usado em nações como Gana e Etiópia. Possui alguns significados, entre eles destacamos: ‘rainha’. Em inglês significa presente. Um nome que nos remete à caracterização da personagem que possui características de uma mulher que transgride e resiste, que se opõe aos padrões, lutando para estabelecer seu lugar no mundo.

Durante a infância, Gifty sentia-se deslocada em casa, porque percebia que o pai e a mãe preferiam o irmão. Na escola, era filha de imigrantes, negra e sem recursos, sendo, constantemente, discriminada por ser negra.  

Muitas vezes, a pessoa negra se sente presa, pois deve atender ao que se espera dde um negro, evidentemente do ponto de vista da pessoa branca. Frantz Fanon (2020) nos lembra que:

Sim, do negro se exige que seja um bom negro; posto isso, o resto vem por si só. Fazê-lo falar petit-nègre é acorrentá-lo à sua imagem, enredá-lo, aprisioná-lo, vítima eterna de uma essência, de uma aparência pela qual ele não é responsável. E, obviamente, assim como um judeu que gasta dinheiro sem fazer as contas é suspeito, o negro que cita Montesquieu deve ser vigiado. Que nos entendam: vigiado, na medida em que, com ele, algo se inicia. E, claro, não suponho que o estudante negro pareça suspeito a seus colegas ou professores. Mas fora dos círculos universitários subsiste um exército de imbecis: o importante não é educá-los, e sim levar o negro a não ser escravo de seus arquétipos. (Fanon, 2020, p.49)   

 A protagonista, por diversas vezes, sofreu por não agir como uma garota negra, ratificando o pensamento fanoniano. No excerto a seguir, observamos o preconceito racial no tratamento recebido pela professora e colegas. Além disso, reflete sobre esse sentimento de não pertencimento, autenticando o pensamento de Woodward (2007), ao ter sua identidade confrontada. Contudo, coloca-se como alguém que tem consciência do preconceito quando cogita que a professora escolheu seu lugar no final da sala, sentando-se próximo de alguém que também é preterido pela turma.  

_Na verdade, eu sou uma princesa – eu disse a Geoffrey, um aluno na minha turma do jardim de infância que estava sempre com o nariz escorrendo. Geoffrey e eu nos sentávamos a uma mesa, sozinhos, bem nos fundos da sala de aula. Sempre desconfiei de que minha professora me pusera ali como uma espécie de castigo, como se tivesse designado aquele lugar para eu ser obrigada a olhar para lesma de ranho no centro do lábio superior de Geoffrey e sentir meu não pertencimento com ainda maior intensidade. Eu me ressentia com tudo isso me esforçava ao máximo para torturar Geoffrey. 
_Não é não-disse Geoffrey. -Uma negra não pode ser princesa. (GYASI, 2021, p.32-34)

Evocamos as palavras de Almeida (2007), quando discorre que a noção de raça ainda é usada como pretexto para realizar injustiças. Não ter o direito de escolher com quem e onde sentar pode parecer uma coisa bastante pequena, mas nos permite elevar e ampliar essa noção para além da escola, e perceber a presença da interseccionalidade, uma vez que essa negação do direito de escolha e oportunidades para a mulher negra e imigrante se estende a outros ramos, como o mercado de trabalho e política. Além de não se sentir acolhida, sua autoestima também é ferida quando sente a desumanização por parte do colega e da professora que agem de acordo com a perspectiva do colonizador.

Na sua infância, portanto, a protagonista buscava forças e maneiras para enfrentar aquela escola diariamente. Mas sua mãe era sempre ocupada demais, trabalhando, seu pai já havia abandonado a família. A mãe não dialogava, sequer respondia às suas curiosidades sobre Gana, sua origem: “Fui para casa e perguntei a minha mãe se isso era verdade, ela me mandou calar a boca e parar de importuná-la com perguntas. Era o que ela dizia a qualquer hora em que lhe pedisse para contar histórias.” (Gyasi, 2021, p. 33) O interesse pelas histórias reflete a necessidade de Gifty sentia de saber mais sobre sua cultura africana, pois a falta dessas histórias distorcia a sua memória e dificultava a construção de sua identidade. 

Conforme Ron Eyerman (2004), a memória é um elemento importante para a formação de identidades. Desse modo, Gifty possui, de um lado, a sua identidade de afro-americana constantemente agredida pelo preconceito; e, do outro lado, apesar de ter nascido em solo americano, sua cor e corpo denunciavam sua identidade de origem africana, que permanecia no vácuo, sem memórias que a pudessem alimentar e a consolidar. Nesse contexto, ela demonstra seu desejo de mudança, de autoconhecimento, para isso, ela precisava mudar sua localização geográfica: “Eu tinha vindo para Califórnia porque queria me perder, me encontrar.” (Gyasi, 2021, p.13) Ela enxergou nessa oportunidade a possibilidade de se afastar dos seus problemas, das suas dores e da doença da mãe. Entretanto, percebemos que ao longo do desenvolvimento da narrativa, a personagem é construída de forma que vai se tornando uma mulher que resiste. Ela encontra motivação na neurociência, estudando o comportamento cerebral de ratos, com o objetivo de descobrir a cura para ajudar as pessoas com problemas de dependências, como o irmão. Ela vai se tornando uma mulher que assume a direção da própria vida e luta, mesmo diante da perda do irmão e doença da mãe.

Observamos ainda a protagonista na vida adulta, madura, alcançando reconhecimento profissional. Ela demonstra ter uma visão crítica sobre o que acontece na política e sociedade: 

Eu não queria ser considerada uma mulher na ciência, uma mulher preta na ciência. Queria ser considerada uma cientista, ponto final. E me deixava atônita que Katherine, cujo trabalho saía nas melhores publicações científicas, ficasse satisfeita em chamar a atenção para o fato de ser mulher. (Gyasi, 2021, p.98)

Temos, portanto, uma personagem consciente do racismo, que se posiciona como mulher negra. Capaz de problematizar questões de gênero e da colonialidade. Gifty é uma personagem que vai crescendo aos poucos na narrativa, em busca do autoconhecimento. Opõe-se ao olhar que o outro tem sobre ela (Fanon, 2020), construindo uma identidade nova, como discorre Hall (2003), volátil e que flui. Esta, por sua vez, dialoga com a cultura em que está inserida e com a cultura das suas raízes africanas. 

Considerações Finais

Discutir temas da atualidade é também foco da literatura, uma vez que questões como a diáspora surge com a problemática emergente dos refugiados. Por esse prisma, verifica-se a possível associação da doença depressão com a vivência em diáspora, devido a tantos desafios e problemas sociais enfrentados pelos imigrantes, desde a qualidade de vida precária como também a discriminação racial. Compreendemos que os conflitos durante a adaptação social e geográfica do imigrante negro pode se configurar em um trauma que prejudica a saúde e a identidade coletiva desse povo.

Com a nossa análise, identificamos que o romance Reino Transcendente (2021) tece essa conjuntura problemática da imigração nos Estados Unidos, onde é possível observar a contínua influência do pensamento e dos padrões colonizadores. Nesse contexto, averiguamos que a obra apresenta essa relação entre diáspora e trauma, uma vez que o homem e a mulher negra enfrentam diariamente injustiças e discriminações raciais que os levam a viver à margem da sociedade, em condições desiguais e segregantes. Podemos entender que o contexto diaspórico pode causar traumas devido ao racismo, ao desencantamento com a nova pátria que parecia promissora e cheia de oportunidades, as dificuldades sociais e econômicas etc. 

Torna-se um lugar de dor, como é o caso da família de Gifty, que vieram cheios de expectativas em busca do sonho americano de progredir e ter uma qualidade de vida melhor, mas acontece que eles acabam se desestruturando, adoecendo como é o caso de sua mãe que desencadeia um quadro de depressão, o irmão morre de overdose, seu pai abandona a família e volta para Gana onde acaba se reestruturando e Gifty permanece resistindo a todo o descompasso de sua família, foca em seus estudos, torna-se uma neurocientista e transcende a todo o sofrimento e contexto de impossibilidades a que foi submetida desde a infância.  

Desse modo, entendemos que embora Gifty esteja sujeita a toda a trama de dificuldade na narrativa, ela é a personagem que representa a figura feminina que transgride, pois, ousa conquistar espaço na ciência, um campo que ela mesmo descreve ser majoritariamente ocupado por brancos quando ela relata ser a única mulher negra no laboratório; e, resiste quando não sucumbe diante de toda a carga traumática vivida e reconstrói sua identidade e sua própria história.


1“The impact of the traumatic event lies precisely in its belatedness, in its refusal to be simply located, in its insistent appearance outside the boundaries of any single place or time”. (Tradução nossa) (CARUTH, 1995, p. 9)
2 “Cultural trauma occurs when members of a collectivity feel they have been subjected to a horrendous event that leaves indelible marks upon their group consciousness, marking their memories forever and changing their future identity in fundamental and irrevocable ways.” (tradução nossa).


REFERÊNCIAS

ALEXANDER, Jeffrey C. Toward a Theory of cultural trauma. In Cultural trauma and collective identity. University of California Press, 2004. 

ALMEIDA, Sílvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

CARUTH, Cathy. Trauma: Explorations in memory. The Johns Hopkins University Press: Baltimore/London, 1995.

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