DAS ÁGUAS DO RIO ORINOCO ÀS ÁGUAS DO RIO GUAMÁ: A TRAJETÓRIA DO PROCESSO EDUCACIONAL AS CRIANÇAS E ADOLESCENTES INDÍGENAS DA ETNIA WARAO NOS ABRIGOS EM BELÉM DO PARÁ.

FROM THE WATERS OF THE ORINOCO RIVER TO THE WATERS OF THE GUAMÁ RIVER: THE TRAJECTORY OF THE EDUCATIONAL PROCESS FOR INDIGENOUS CHILDREN AND ADOLESCENTS OF THE WARAO ETHNIC GROUP IN SHELTERS IN BELÉM DO PARÁ.

REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.11114387


Sílvia Carla Bezerra Pereira¹
Fabio Coelho Pinto²


RESUMO: Esta pesquisa buscou retratar como aconteceu o processo de educação para as crianças e adolescentes indígenas Warao nos abrigos Domingos Zaluth e Autogestão da Perimetral em Belém- Pará. Partindo de observações e da escuta aos mais velhos, liderança indigena e caciques dentro dos abrigamentos foi possível construir um trabalho pedagógico que levou em consideração seus modos de vida, cultura, tradições e a língua materna. Nesse contexto, o objetivo deste artigo é refletir sobre as práticas pedagógicas utilizadas para a educação indígena levando em consideração que os povos ameríndios possuem conhecimentos próprios. Para isso, utilizei a contribuição de estudiosos como Garcia Castro (2000), e Baniwa (2006) ressaltam que a escola indígena se caracteriza por ser comunitária, ou seja, os conhecimentos transmitidos estão articulados às suas práticas tradicionais. Dessa forma, estudos apontam que para compreender a educação indígena faz-se necessário entender que cada grupo étnico possui sua cultura específica e sua maneira de enxergar o mundo.

Palavras-chave: Educação Indígena, Metodologias Pedagógicas, Cultura e Tradições.

ABSTRACT: This research sought to portray how the education process happened for Warao indigenous children and adolescents in the Domingos Zaluth and Perimetral Self-management shelters in Belém- Pará. Based on observations and listening to the elders, indigenous leadership, and chiefs within the shelters, it was possible to construct a pedagogical work that took into account their ways of life, culture, traditions and mother tongue. In this context, the objective of this article is to reflect on the pedagogical practices used for indigenous education, considering that Amerindian peoples have their own knowledge. For this, I used the contribution of scholars such as Garcia Castro (2000), and Baniwa (2006) who emphasize that indigenous schools are characterized by being community-based, that is, the knowledge transmitted is linked to their traditional practices. Thus, studies point out that to understand indigenous education, it is necessary to understand that each ethnic group has its specific culture and way of seeing the world.

Keywords: Indigenous Education, Pedagogical Methodologies, Culture, and traditions.

1 – INTRODUÇÃO

 O desafio de realizar este artigo dentro da temática indígena nasceu pela oportunidade de vivenciar a experiência da docência dentro dos Abrigo Estadual Domingos Zaluth e Abrigo Municipal de Autogestão da Perimetral em Belém – Pará as crianças e adolescentes indígenas venezuelanas da etnia Warao. 

A trajetória percorrida para se chegar a um trabalho pedagógico que pudesse estar de acordo com os processos definidos para a educação indígena tendo como norte o Artigo nª 210 da Constituição Federal de 1988 que diz: “Os povos indígenas têm direito a uma educação intercultural, multilíngue, comunitária e que respeite suas tradições e crenças.” foi tecida através das observações diárias aos grupos indígenas presentes nos abrigos, assim como, da escuta aos anciãos, caciques e lideranças indígenas com objetivos de construir um trabalho pedagógico que pudesse ser utilizado no atendimento educacional às crianças e adolescentes da etnia Warao.

Nesse sentido, o presente artigo procurou trazer para discussão a temática sobre as práticas pedagógicas voltada para os saberes específicos e tradicionais da cultura indigena Warao levando em consideração suas vivências e realidade. Para isso, foi necessário envolver a comunidade indígena do abrigo em atividades que pudessem construir junto com as crianças sobre experiências vivenciadas em seu local de origem construindo assim relatos de danças, músicas, histórias, costumes, crenças, brincadeiras e muitos outros. 

Para a realização deste estudo utilizei as contribuições de Martins (2013) que defende  a escola indígena estando interligada a aldeia sem contrapor valores e sobrepor conhecimento compreendendo o aluno indígena acima de tudo, Bergamaschi (2008) caracteriza a escola indígena como comunitária onde os conhecimentos são transmitidos e articulados com os anseios da comunidade, Garcia Castro (2000) enfatiza que nas sociedades  indígenas o passado é preservado através das memórias dos mais velhos e Sanchez ( 2019) fala da importância da língua para o indígena que a reconhecem como património cultural e identitário.

Diante deste contexto o presente artigo vem trazendo em sua estrutura um capítulo sobre as observações e o trabalho realizado no atendimento educacional ao Abrigo Estadual Domingos Zaluth e outro capítulo sobre o trabalho e registros realizados no Abrigo Municipal de Autogestão da Perimetral e finalizando com as conclusões sobre a pesquisa. 

            Os Warao são um grupo étnico que habita em sua maioria, o Delta do Rio Orinoco. Na Venezuela, mesmo que ocupem tradicionalmente uma vasta região que abarca o estuário do Orinoco (no estado venezuelano Delta Amacuro), também são encontrados em estados vizinhos como os de Monagas, Sucre, e Bolívar, além de circularem pela região fronteiriça com a Guiana. (ACNUR, 2019. p.7).

             Pela extensão da área que tradicionalmente habitam, bem como pela multiplicidade de pessoas e grupo Warao, estes não apresentam elementos culturais homogêneos, afora compartilharem a mesma língua, são grupos bastante diversos.  Existem indícios pré-coloniais de coexistência entre diversos sistemas interétnicos no Delta do Orinoco. Com a posterior chegada dos europeus e seu processo de missionação, estes sistemas tornaram-se ainda mais complexos, sendo incluídas novas relações sociais causadas pela invasão colonial.  (Garcia Castro, 2000).

             Segundo dados da Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), quando um novo casal se forma, ele busca se estabelecer na casa ou na comunidade da mulher. Ao longo do tempo, formam-se nesse local agrupamentos (unidades domésticas), constituídos por pessoas ou comunidades diferentes. Esses agrupamentos podem chegar a um total de 200 a 300 pessoas, que apesar de terem diferentes origens, se conhecem como unidades. 

Suas comunidades são ribeirinhas e suas casas (Hanoko), são palafitos¹, construídas com troncos de árvores e cobertas com folhas de palmeiras interligados por pontes ou passarelas. As atividades de subsistência são tradicionalmente localizadas em margens fluviais, marítimas e zonas úmidas (pântanos, manguezais, florestas inundáveis). (ACNUR, p.13)

No período pré-hispânico, de acordo com o antropólogo Johannes Wilbert, os Warao estariam divididos em quatro subgrupos, ocupando áreas específicas do Delta, conforme suas práticas culturais e de subsistência. No Noroeste ficavam aqueles que praticavam o extrativismo do buriti, a pesca e fabricavam canoas; no Nordeste nas áreas de mangues e pântanos, viviam os coletores e pescadores; no Sudoeste praticavam o extrativismo do buriti, cultivavam mandioca e milho; e no Sudeste, os que viviam da caça e da pesca. (Garcia, Castro e Heinen 2000).

1 – São casas tradicionais de comunidades ribeirinhas construídas com troncos de árvores sendo coberta pelas folhas das palmeiras que são amarradas, as casas são interligadas por pontes ou passarelas. 

Segundo Wilbert e Ayala Lafée (2009), embora o povo Warao constitua uma unidade étnica em termos linguísticos, há uma heterogeneidade nos “modos de ser Warao”, que variam de acordo com a região ou comunidade do Delta do Orinoco. Essa heterogeneidade interna ao grupo se reflete nas relações que se estabelecem aqui no Brasil, afetando por exemplo as dinâmicas de abrigamento. 

A economia baseada na coleta vigente até o século XX, implicava em deslocamentos sazonais no interior de seu território, orientados com base no ciclo das cheias do Rio Orinoco. Esses deslocamentos podem alcançar até 120 quilômetros de distância, durando até dois meses. As unidades domésticas compostas por uma ou mais famílias extensas com 30 a 50 membros, percorriam a região em busca de alimentos, acampando em habitações temporárias feitas de folhas de palmeiras. Nas florestas e pântanos, coletavam frutas, sementes, mel, pequenos animais e Yuruma (amido extraído do caule do buriti). (Ayala Lafée & Wilbert 2008).

Devido à crise econômica e política instalada na Venezuela em 2014 os Warao têm empreendido migrações para o Brasil, em busca de melhores condições de vida, entrando no país pela fronteira de Roraima nas cidades de Pacaraima e Boa Vista e seguindo para o Amazonas e Pará permanecendo nos municípios de Manaus, Santarém e Belém. Sendo que o deslocamento para as cidades é feito por grande parte da população indígena na Venezuela e não só pelos Warao, mas por outras etnias indígenas. Assim, intensificando o fluxo desde 2014 em território brasileiro, chegando em Belém, em 2017, um pequeno grupo de 15 pessoas e desde então sua demografia tem crescido progressivamente.

Para compreendermos melhor essa emigração é necessário comentar rapidamente que ao longo do último século foi marcado por severas mudanças socioambientais em seu território natural de ocupação no Delta do Rio Orinoco e os deslocamentos forçados para as cidades venezuelanas e mais recentemente para as cidades brasileiras. Uma série de empreendimentos governamentais realizados ao longo dos séculos como por exemplo o estímulo à monocultura extensiva, a construção do dique na estrada que barrou o Rio Manamo, a exploração do petróleo entre outros.    (Garcia Castro, 2021)

 Estas situações provocaram efeitos adversos severos para atividades produtivas e dinâmicas não especiais dos Warao no nordeste da Venezuela, como a salinização do rio na estação seca, a acidificação dos solos, o aumento do nível da água, além do desmatamento, poluição dos rios e surgimento de doenças, como foi o caso da epidemia de cólera na década de 1990. (Garcia Castro,2000).

 No seu habitat natural os indígenas Warao retiram sua sobrevivência da floresta, praticam o extrativismo vegetal, e tudo que consomem vem de recursos naturais, em período da cheia do Rio Orinoco, as famílias abandonam suas casas, que são os palafitos¹, pois, as águas dos rios chegam até o telhado, então eles vem para a parte urbana da Venezuela e nesse período sobrevivem da coleta realizada diariamente nas ruas e esquinas das cidades, é o que chamamos de extrativismo urbano, como  não tem a floresta para tirar seu sustento estes passam a pedir nas ruas e sinais de trânsito, assim como, em frente de estabelecimentos comerciais como supermercados, bancos, padarias, feiras livres e em locais de grande circulação de pessoas como o terminal rodoviário, centro comercial  e outros.

   No Brasil não seria diferente, devido às perdas de territórios e recursos, forçadas por agentes endemos², levaram os indígenas Warao a depender em contextos urbanos como atividade complementar a coleta de recursos e doações, mas estes desenvolveram um modo Warao de fazê-lo: nele, as mulheres respondem pelas atividades de coleta, cabendo a elas também um papel importante na repartição e distribuição dos alimentos e demais produtos. Sendo possível observar mulheres e crianças nas esquinas, parada de ônibus, sinais de trânsito 

Dessa maneira, essas crianças estão em situação de vulnerabilidade, mediante isto, o Ministério Público Estadual do Pará no uso de suas atribuições convocou diversas instituições municipais e estaduais e delegou a estas responsabilidades dentro de suas esferas de atuação com intuito de retirar as crianças indígenas Warao e suas famílias das ruas.

 Para direcionar e viabilizar ações a comunidade indígena foi criado o Grupo de Trabalho Integrado (GTI), o qual em conjunto com diversas secretarias em reunião com o Ministério Público Federal do Pará fariam a escuta ao povo Warao, colocando em pauta suas principais e reais necessidades. 

               Nos dias 04, 11 e 26 de outubro de 2018, reuniram-se no Fundação Cultural do Pará  (CENTUR), instituições governamentais como Secretaria Municipal de Educação de Belém   ( SEMEC), Secretaria de Estado e Educação ( SEDUC), Ministério Público do Estado do Pará ( MPP), Sociedade Civil Organizada, Secretaria do Meio Ambiente (SEMMA), Secretaria Municipal de Saúde ( SMS), Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (SEJUDH), Fundação Papa João XXIII ( FUNPAPA), Universidade do Estado do Pará ( UEPA) e voluntários ligados ao povo Warao; em rodas de diálogos com os refugiados indígenas Venezuelanos com objetivo de escutar suas principais reivindicações e necessidades e a partir desta escuta delegar funções as instituições conforme suas atribuições e assim direcionar ações concretas a fim de sanar ou minimizar as principais necessidades.

Uma das principais reivindicações da comunidade indígena Warao foi alojamento para as famílias que estão hospedadas em hoteis, pagando diária de vinte e cinco reais por pessoa em locais insalubres e as famílias que montaram acampamento na praça da bandeira. Ficando, portanto, sobre a responsabilidade da Fundação Papa João XXIII (FUNPAPA), viabilizar casas para abrigar estas famílias e a partir do alojamento destas em abrigos municipais as demais instituições começariam a agir dentro de suas especificidades de trabalho objetivando a integração do povo Warao na sociedade, seja por meio da língua e oportunidades de trabalho.

Devido às condições de moradias precárias e de vulnerabilidades das famílias que estavam vivendo nas ruas, o estado disponibilizou dois abrigos que recebem e atendem as famílias paraenses que vêm do interior do estado, que são o Abrigo Estadual Domingos Zaluth e o Abrigo Cametá. 

           Fiquei por dois anos desenvolvendo atividades pedagógicas para crianças e adolescentes indígenas venezuelanas primeiro no Abrigo Estadual Domingos Zaluth e depois no Abrigo Municipal da Perimetral, trabalhando a pedagogia da emergência que visa desenvolver intervenções pedagógicas de emergência procurando ajudar crianças afetadas através de medidas de estabilização durante o processo de superação de seus traumas, além de ter sido também um trabalho humanitário.

Dessa forma, buscando informações mais precisas sobre os indígenas Warao foi encontrado um trabalho de conclusão de curso escrito em espanhol, algumas informações relevantes como nomes de animais e frutas que faz parte das vivências desta etnia indígena foram importantes para a construção de recursos pedagógicos.  Analisando como poderia ser construído um trabalho pedagógico com pouquíssimas informações sobre as crianças indígenas Warao, partimos em organizar brincadeiras e jogos como atividade na primeira semana com objetivo de coletar informações sobre a linguagem predominante devido ao contexto bilíngue, assim como, saber se reconhecem as cores, letras, números, nomes das frutas e animais.

Dito isto, utilizou-se jogos e brincadeiras partindo de ideias e atividades utilizadas em outros momentos na educação infantil e ensino fundamental, porém, adequando-os à realidade de vida da criança indígena Warao. Utilizando materiais reciclados como a garrafa pet com objetivo de identificar se as crianças reconheciam as cores, números, letras e animais. 

2 – Atendimento Educacional às Crianças e adolescentes indígenas Warao no Abrigo Estadual Domingos Zaluth

          Depois de grande expectativa iniciou se em outubro de 2018 o atendimento educacional às crianças e adolescentes indígenas venezuelanas da etnia Warao no Abrigo Estadual Domingos Zaluth, o espaço do salão de recepção foi organizado com atividades lúdicas e aos poucos as crianças foram chegando e escolhendo os jogos e brincadeiras que gostaram, em cada espaço havia duas professoras para conduzir e orientar nas atividades.

Conduzi algumas atividades dentre estas destaco o “jogo do boliche com animais”, foi elaborado através de materiais reciclados sendo utilizado dez garrafas pet transparentes contendo em seu interior papel crepom picado em cores diferentes, cada garrafa com uma cor, foram fixadas cartelas com imagens coloridas de animais da realidade de vida do povo Warao, logo abaixo o nome em Warao, espanhol e português respectivamente. 

O jogo consiste em acertar bolinhas nas garrafas até derrubá-las, o participante deverá dizer o nome do animal e a cor da garrafa. Esta atividade tem como objetivo verificar a linguagem mais utilizada pelas crianças devido ao contexto bilíngue, também averiguar se elas sabem identificar as cores e os nomes dos animais. Nesta atividade todas as cores foram faladas em espanhol, nenhuma das crianças souberam dizer a cor em Warao, apesar de naquele momento não conhecer os nomes das cores na língua materna, mas sabendo identificá-las em espanhol. 

 Em relação ao reconhecimento dos animais observou-se que os nomes foram pronunciados em espanhol. Algumas observações importantes foram constatadas: reconheceram o jacaré como Crocodilo, uma das variações de nomes dados a este animal, vale ressaltar que na placa contendo a imagem abaixo vem os nomes escritos nas três línguas e a tradução em Warao é Niarabaka, espanhol é Caiman. Algumas crianças pequenas falaram ser Caiman e os maiores disseram ser crocodilo. Os restantes dos animais foram falados em espanhol.

Nesse sentido, a linguagem predominante na fala desse grupo de crianças e adolescentes é o espanhol, as crianças maiores entendem com mais facilidade o português. As famílias indígenas que estão no Abrigo Domingos Zaluth vieram de Manaus e a maioria das crianças e adolescentes frequentaram a escola, reconheciam algumas letras do alfabeto, conseguiam realizar a escrita de seu primeiro nome, identificavam números com alguma dificuldade de relacioná-los às suas quantidades, reconheciam as cores, se comunicavam em espanhol e estavam sempre dispostas em participar das atividades propostas. 

Dito isto, algumas atividades lúdicas foram direcionadas com intuito de observar os níveis de aprendizagem, as variações das linguagens, a forma como estão se apropriando de alguns conhecimentos na língua portuguesa. Principalmente com objetivo de reconhecer os contextos e agentes a fim de selecionar informações prioritárias que pudessem auxiliar no processo educacional que estava só começando.

Neste período, foram priorizadas atividades com jogos e materiais concretos com crianças e adolescentes de faixas etárias e níveis de conhecimentos diferentes. Partindo da observação e da intermediação quando as crianças se apropriaram do lúdico e interagiam com os jogos, foi solicitado que montassem utilizando o alfabeto móvel seus nomes, elas não conseguiam, mas a partir do momento que era realizada a escrita em uma folha de papel elas conseguiram. As crianças com idades entre 8 e 10 anos algumas conseguiram formar os nomes sem haver necessidade de copiá-los. Então, perguntei onde haviam aprendido escrever eles relataram que frequentaram a escola em Manaus, não souberam informar até que período estudaram, souberam informar suas idades, conhecem o alfabeto e em algumas atividades com números conseguem realizar a sequência numérica corretamente sendo que as crianças menores apresentavam alguma dificuldade e todas pronunciavam em espanhol.

A brincadeira faz parte da vida da criança, não importa de qual cultura ou nacionalidade ela faça parte, elas simbolizam a relação pensamento-ação e, sob este ponto aguça os vários sentidos das crianças, tornando possível o uso da fala, dos gestos, pensamentos e imaginação, oportunizando a comunicação, socialização e forneceu informações que norteou este trabalho 

Os brinquedos e as atividades lúdicas, muitas vezes, foram os responsáveis pela transmissão da cultura de um povo de uma geração para a outra. Essas atividades lúdicas têm objetivos, usadas para divertir, outras vezes para socializar, para promover a comunicação de línguas diferentes, união entre grupos e, num enfoque pedagógico, um instrumento para diagnosticar e transmitir conhecimentos. (Pinto, 2003. p.42) 

Desde o início do atendimento educacional com as crianças e adolescentes indígenas, Warao foi priorizado utilizar o lúdico como estratégia para diagnosticar algumas estruturas cognitivas, assim como, facilitar a interação entre o grupo. O resultado foi positivo, não há dúvida que as brincadeiras foram as melhores propostas para coletar informações necessárias de um público desconhecido. 

Criança é criança em qualquer lugar, seja indígena, muçulmanas, francesas todas gostam de brincar. A brincadeira faz parte do mundo infantil e se for associada a aprendizagem ou adequá-las a proposta de investigação como foi feita com intuito de coletar dados que pudessem subsidiar futuros trabalhos foi de fundamental importância para o sucesso desta proposta pedagógica. O lúdico foi uma metodologia assertiva e muito prazerosa promovendo interação entre professores e alunos, e integração entre o grupo. 

Segundo Ribeiro (2013), o lúdico é parte integrante do mundo infantil e da vida de todo ser humano. O olhar sobre o lúdico não deve ser visto apenas como diversão, mas sim, de grande importância no processo de ensino -aprendizagem. Além de ser um recurso metodológico muito importante e necessário para auxiliar na aprendizagem de crianças, que por meio dele começa a expressar-se com mais facilidade, ouvir, respeitar e discordar de opiniões, exercendo sua liderança e compartilhando sua alegria.

A brincadeira está entre as práticas mais importantes que contribui de forma significativa para o desenvolvimento do ser humano, seja ele de qualquer idade, auxiliando não só a aprendizagem, mas também no desenvolvimento social, pessoal e cultural facilitando o processo de socialização, comunicação, expressão e construção do pensamento.

No Abrigo Estadual Domingos Zaluth existe uma gestão que organiza o funcionamento e o dia a dia desta instituição, há uma equipe de funcionários que trabalham para que os moradores sejam assistidos, e a rotina para quem mora no abrigo deve ser respeitada.  

Após esse período de diagnóstico, as crianças e adolescentes passaram a ser divididas por faixa etária e por níveis de conhecimento. Atividades mais elaboradas e direcionadas conforme os níveis de aprendizagem foram incorporadas a este grupo.

O atendimento pedagógico no Abrigo Domingos Zaluth iniciou em outubro com todos os professores destinados a realizarem este trabalho, conforme os avanços dos encaminhamentos do Grupo de Trabalho Integrado (GTI), dois novos abrigamentos surgiram e essa equipe foi dividida a estes espaços.  No trabalho pedagógico realizado no Domingos Zaluth constatou-se que as crianças e adolescentes Warao se comunicam em espanhol, conseguem compreender as atividades propostas, algumas já pronunciam palavras em português, reconhecem as letras do alfabeto e números, são bem sociáveis, inteligentes, interagem muito bem com todos os professores.

  A dificuldade encontrada nesse processo pedagógico foi realizar o atendimento em um abrigo, pois, há muitas influências externas que dificultam o processo de ensino aprendizagem. No local onde realizávamos o atendimento sempre estava sujo havendo necessidade de higienização antes de iniciar o trabalho. O ambiente não possui uma estrutura física que atendesse alunos e professores, realizávamos as atividades no chão. O fluxo de pessoas entrando e saindo ocasionava dispersão e falta de concentração nas crianças. 

No final do mês de outubro de 2018, a equipe de professores foi dividida a outros espaços, o trabalho pedagógico no Domingos Zaluth continuou com alguns professores desta equipe.  Os estudos relatados a partir de agora serão das experiências vivenciadas enquanto docente no Abrigo de Autogestão da Perimetral.  

3 – Atendimento Educacional às crianças e adolescentes indígenas Warao no Abrigo Municipal de Autogestão da Perimetral.

O atendimento pedagógico no Abrigo de Autogestão da Perimetral teve início no final do mês de outubro de 2018 o local destinado para as atividades pedagógicas foi o espaço aberto ao lado da casa, um local ventilado, com bastante árvores, as aulas aconteciam ao ar livre. a Fundação Papa João XXIII (FUNPAPA), responsável pelo monitoramento deste abrigo disponibiliza mesas e cadeiras e todos os dias eram organizadas para atividades pedagógicas com as crianças. Na primeira semana os homens recebiam os professores e se comunicavam em espanhol, as mulheres e crianças ficavam distantes e tímidas com a nossa presença.

O espaço foi organizado com jogos como havíamos feito no abrigo anterior e aos poucos as crianças e adolescentes iam chegando.  Dessa vez os professores ficaram conduzindo as brincadeiras juntos. Na atividade lúdica do “jogo do boliche com animais” as crianças pequenas conseguiram identificar as cores e os animais e responderam seus nomes em Warao, porém, os adolescentes identificaram e responderam em espanhol. A linguagem predominante nesse grupo é o Warao, os homens e os adolescentes se comunicam em espanhol com os professores, porém, as mulheres e as crianças predomina a linguagem materna.

As famílias indígenas do Abrigo de Autogestão da Perimetral no primeiro contato se apresentaram distantes, tímidas, às vezes agressivas, muitas vezes as mulheres retiravam seus filhos à força do local preparado para as atividades,  foi uma realidade totalmente diferente do abrigo anterior, primeiro que as crianças e adolescentes do Domingos Zaluth são de um grupo de indígenas mais urbanizados, mais sociáveis, falam fluentemente o espanhol, portanto, entendem melhor a língua portuguesa, compreendiam as brincadeiras e tem conhecimento sobre o alfabeto, os números, a escrita do nome. 

Devido ao contexto bilíngue acreditava -se que a dificuldade no atendimento educacional seria em relação a linguagem não foi o que ocorreu com o grupo de crianças do Domingos Zaluth, porém, essa dificuldade foi vivenciada com o grupo de crianças do Abrigo da Perimetral. Na comunidade indígena presente na Perimetral a linguagem predominante é o dialeto Warao, somente os homens e os adolescentes priorizam a comunicação em espanhol. 

Na condução dos trabalhos pedagógicos com as crianças pequenas era necessário   a presença de um adulto da comunidade que pudesse entender a nossa fala e repassá-la. O trabalho neste abrigo oportunizava observar a rotina das famílias, o relacionamento e cuidados com os filhos. Assim como no abrigo anterior as mulheres saiam cedo para as ruas levando as crianças menores, para arrecadar recursos que servirão para a subsistência de sua família. Cabia aos homens a responsabilidade de cuidar das outras crianças que ficavam, da limpeza, almoço e cuidados com a casa.

Nos primeiros meses houve dificuldade de comunicação para desenvolver atividades com as crianças com menos de sete anos, nesse sentido, as lideranças nos ajudavam explicando as atividades em Warao. 

  Importante ressaltar que para se chegar a um trabalho pedagógico que leve em consideração os costumes, tradições e a linguagem do povo Warao foi necessário ouvir a comunidade indígena e inseri-la no trabalho pedagógico junto com as crianças. Dessa forma foi possível aprender sobre as danças, o artesanato, músicas, tradições, os números de zero a vinte e inserir estas informações nos jogos e brincadeiras, nas atividades com arte, pintura, linguagem envolvendo em uma proposta pedagogica interdisciplinar. Nesse sentido Garcia Castro (2021): 

“Em sociedades indígenas o passado é preservado através das memórias dos mais velhos, que são responsáveis pela sua transmissão de geração em geração por meio da oralidade. As histórias estão sempre na iminência de acabarem junto a geração que detém as lembranças dessas histórias, por isso, prezam os velhos e suas memórias” (Garcia Castro, 2021)

Conversando com algumas lideranças Warao sobre como a educação escolar era promovida em seu lugar de origem foi relatado que as crianças são alfabetizadas na língua materna e os ensinamentos são repassados pelos pais e pessoas mais velhas da tribo desde pequenos, a educação é transmitida por todos da comunidade. Quando a criança completa sete anos são inseridas dentro de um contexto escolar para aprender o espanhol que será sua segunda língua. Sendo assim, a cultura e tradições são repassadas as crianças desde cedo fortalecendo o patrimônio cultural as futuras gerações. Nesse momento, foi possível entender sobre as diferenças na linguagem das crianças menores de sete anos para os adolescentes observadas no decorrer deste trabalho.  

Segundo Luciana Sanchez professora do Instituto de letras da Universidades Federal Fluminense do Rio de Janeiro “as línguas são muito mais do que apenas formas de se comunicar, elas trazem consigo também os saberes que marcam a identidade e o pensamento de um povo, seus traços culturais, conhecimentos ecológicos, imaginário religioso, assim como sua história e a forma específica de conceber a realidade “. Dito isto, verifica-se que a cada língua que morre, desaparecem também partes do patrimônio cultural e histórico daquele povo, portanto, é necessário preservá-la. Sanchez (2019), ressalta que: 

Os grupos indígenas veem na importância dada a sua língua uma forma de reconhecimento identitário importante, por ser parte do patrimônio cultural. (Luciana Sanchez, 2019).

Diante disso, quando se pensa em educação indígena, deve-se ter claro que a escola não é o único lugar de aprendizado, pelo contrário, a comunidade e seus membros, professores indígenas, conselhos de pais e anciãos têm uma sabedoria para ser transmitida, que é o conjunto de valores próprios e tradicionais da cultura indígena. Esses conhecimentos não são incompatíveis com os conhecimentos da escola contemporânea, na verdade eles fazem parte de um conjunto de saberes capazes de contribuir com a formação escolar.

Pensar em Escola Indígena específica é pensar no respeito, no incentivo à língua materna e no seu uso e o professor é o interlocutor capaz de manter o diálogo. É pensar também no diálogo com os mais velhos, buscando um aporte de conhecimentos que permitam a educação diferenciada (Martins, 2013, p. 288).

A educação e o conhecimento dos povos indígenas vêm sendo produzidos, armazenados, transmitidos e reelaborados historicamente, desde antes da institucionalização da escola. Os seus conhecimentos científicos e filosóficos são fruto de muita observação, experimentação, estabelecimento de relações e formulações de princípios capazes de explicar os fenômenos observados. Esses povos produziram um rico acervo de informações e reflexões sobre a natureza e sobre os mistérios da existência humana. Assim, um aspecto que deve ser considerado no trabalho da escola indígena é a valorização da oralidade. As habilidades de ouvir em silêncio, armazenar as informações e retransmitir os conhecimentos por essa mesma via são aspectos fundamentais de transmissão de conhecimento e cultura no meio indígena. 

        As escolas precisam estar integradas às demais atividades que permeiam a aldeia, sem contrapor valores ou sobrepor conhecimentos. Essa integração vem da necessidade de compreender o aluno indígena, observar o seu desenvolvimento acima de tudo, reconhecer que existem outros espaços de aprendizagem formadores do indivíduo e que precisam ser considerados (Martins, 2013, p. 280).

Deve-se ter claro que para o indígena a educação não se dá exclusivamente no ambiente escolar, pelo contrário. Para os Warao, os conhecimentos não necessitam da escola para se sustentarem. A vida em comunidade, dentro de um conjunto de valores, de uma cosmologia que identifica, unifica e constroi, prescindem da escola, que é o espaço destinado à aprendizagem da escrita e tecnologias necessárias para a inter-relação com o universo não indígena. É preciso, portanto, reconhecer os diversos espaços educativos em que o aluno indígena transita. A prática pedagógica “Nosso modo de ser”. O modo de ser Warao deve ser pensada em um contexto de diversidade, de acordo com características que se tornaram definidoras da escola indígena como uma categoria específica da Educação Básica: a interculturalidade, o bilinguismo ou multilinguismo, a especificidade, a diferenciação e a participação comunitária.

Durante a realização deste estudo, constatei também que sou um elemento da pesquisa. Decerto, sou o sujeito condutor enquanto pesquisador que passou dois anos entre esses sujeitos, desenvolvendo minha atividade profissional enquanto fazia anotações diárias em um caderno de registro no sentido de manter viva à lembrança de tantos acontecimentos simultâneos. Assim, refletir sobre os processos de aprendizagens dessas crianças a partir do que eu mesma observei, dialogando com outros agentes do campo de pesquisa que me são interessantes e construindo assim uma etnografia que me auxiliasse no decorrer deste trabalho. Nessa perspectiva, minha pesquisa não consistia apenas de fatos documentais, mas se converte em signos plenos de sentidos.

Encarno em mim um narrador, e faço de minhas experiências, pesquisas. E com elas outras experiências. De acordo com Batista (2019): 

        Os registros no diário também passam por uma evolução, onde a primeira fase se caracteriza por apenas descrever o que acontece, sem muito espaço para as reflexões, depois passa-se a refletir o que aconteceu e então escrever a reflexão até chegar na fase em que relaciona a escrita com outros autores e começa-se então a apropriação da escrita e da leitura, entretanto essa evolução é gradual e necessita que o “escritor” queira e procure sempre uma maior sistematização de suas escritas.  (Batista, 2019, p. 288).

Nessas observações foi possível compreender que existem um conjunto de processos responsáveis pela aquisição, compartilhamento, transmissão e desenvolvimento de conhecimentos. Essa transmissão é realizada através de troca de saberes e experiências, que podem acontecer nas mais diversas formas, explorando os diversos conhecimentos existentes e em qualquer lugar que se faça necessário. Esse conhecimento não é científico, institucionalizado ou para fins profissionalizantes. Ele é sobretudo ancestral, que acontece dos pais para os filhos, da comunidade indígena e do grupo dos mais velhos.

Nesse sentido, é onde essas comunidades encontram a estratégia de sobrevivência de sua história e saberes tradicionais. Mesmo sabendo que a tarefa de definir o que é educação não é fácil Alonso (1996) dirá que a educação pode ser vista: 

    (…) Como um processo ativo e contínuo de construção humana (desenvolvimento), realizada através da interação(mediação) com o meio /cultura (aprendizagem), tendente à consecução da autonomia pessoal (consciência e responsabilidade), e da cidadania (integração ativa e crítica na comunidade). (Alonso,1996, p 06).

             Com a Constituição de 1988, assegurou-se aos índios no Brasil o direito de permanecerem índios, isto é, de permanecerem eles mesmos, com suas línguas, culturas e tradições. Ao reconhecer que os índios poderiam utilizar suas línguas maternas e seus processos de aprendizagem na educação escolar, instituiu-se a possibilidade de a escola indígena contribuir para o processo de afirmação étnica e cultural desses povos, deixando de ser um dos principais veículos de assimilação e integração. Desde então, as leis subsequentes à Constituição que tratam da educação, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e o Plano Nacional de Educação, têm abordado o direito dos povos indígenas a uma educação diferenciada, pautada pelo uso das línguas indígenas, pela valorização dos conhecimentos e saberes milenares desses povos e pela formação dos próprios índios para atuarem como docentes em suas comunidades. Comparativamente a algumas décadas atrás, trata-se de uma verdadeira transformação em curso, que tem gerado novas práticas a partir do desenho de uma nova função social para a escola em terras indígenas.

A educação indígena, enquanto específica e diferenciada, assegurada pelo artigo 210, da Constituição Federal (1988), que conhecemos atualmente, é uma política recente. É também fruto de lutas históricas dos povos indígenas em garantir a diferença cultural que o estado nacional desde o século XVI se empenhou em exterminar.

 Em alguns relatos ao descreverem diferentes atividades realizadas em situações da vida na aldeia, foi possível compreender algumas ideias sobre como e onde ocorre a transmissão dos conhecimentos. Neste momento observa-se que o processo educacional para o índio não perpassa somente por uma sala de aula, a vida na aldeia, os conhecimentos a serem repassados por toda a comunidade aos mais jovens tem uma sabedoria a ser transmitida que é o conjunto de valores próprios de sua cultura indígena. São conhecimentos muitas vezes milenares emitidos por gerações que vêm sendo produzidos, armazenados, difundidos e reelaborados historicamente desde antes da criação das escolas. Segundo Bergamaschi (2008):

A escola indígena se caracteriza por ser comunitária, ou seja, os conhecimentos transmitidos estão articulados com os anseios da comunidade e seus projetos de sustentabilidade territorial, cultural, religioso e de subsistência. (Bergamaschi, 2008, p.136).

Nesse sentido, o processo educacional das crianças começa cedo desde os primeiros raios do sol quando seus pais saem da aldeia e na divisão das tarefas cabem às mulheres colher pela manhã frutos, raízes, sementes e tubérculos que servirão de alimentos durante aquele dia a sua família. Assim como, utilizar fibras, sementes das plantas para o artesanato na confecção de cestas, bolsas, pulseiras, colares e cocar. Aos homens fica a função de caçar animais silvestres e pesca, a extração de madeira das árvores para confecção de canoa, arco e flexa e outros utensílios, todas essas atividades e muitas outras são tradicionais da cultura Warao. Temos também a religiosidade, os mitos, as lendas, culinária, danças, músicas que são conhecimentos transmitidos pelos anciãos, pajés e caciques que por possuírem mais experiência e sabedoria são os líderes do seu povo. Cabem a todos da comunidade transmitir esses conhecimentos às crianças e aos mais jovens.  Segundo Garcia Castro (2000):

Os indígenas Warao fortalecem sua língua na oralidade, sua visão de mundo é passada de geração a geração. A palavra para eles tem um significado muito forte, dão o devido valor ao que estão pronunciando, cultuam o falar e escutar conscientes. A oralidade, traço forte da cultura indígena, está presente não apenas na fala, mas na escuta respeitosa e atenta à palavra. (Garcia Castro 2000).

Para a construção de um diálogo mais abrangente faz-se necessário apresentar distinções entre Educação Indígena e Educação Escolar Indígena. De acordo com Grupioni (2000), “as práticas tradicionais de socialização e transmissão de conhecimentos próprios a cada sociedade é o que denominamos de Educação Indígena”. (Grupioni, 2000, p.24).

Nesse sentido, precisamos compreender que cada grupo étnico possui sua cultura específica, a maneira de enxergar o mundo e desta forma transmite este conhecimento às futuras gerações. Logo, a educação indígena perpassa pela difusão de saberes específicos com objetivos de proporcionar o reconhecimento de suas origens com intuito de preservar os costumes e crenças. Portanto, o antropólogo Luciano (2006), enfatiza que:

A educação se define como um conjunto de processos envolvidos na socialização dos indivíduos, pelos quais uma sociedade internaliza em seus membros um modo próprio e específico de ser, que garanta sua sobrevivência e reprodução ao longo de gerações, englobando mecanismos que visam ser transmitidos e perpetuados. (Luciano,2006, p.129).

A escola é uma instituição social, local de troca de saberes e conhecimentos diversos, aprendizagem, desenvolvimento e reprodução de cultura, conscientização política, social e ambiental, além de ser uma das responsáveis pelo aprimoramento de habilidades cognitivas, motoras, lúdicas e sociais. Esses são alguns aspectos que compõem a identidade da escola. Dentro do contexto do trabalho que realizava no Abrigo da Perimetral utilizava a estratégia da Pedagogia da Emergência que visa apoiar crianças que passaram por eventos traumatizantes ou situações inesperadas que abalaram suas vidas. Portanto, as atividades pedagógicas envolviam pinturas, brincadeiras, jogos educativos, desenhos, musicalidade, pinturas aquarelas, ouvir histórias, pula corda, brincadeira de bola. 

As crianças Warao foram privadas de vivenciarem suas infâncias com segurança e proteção, sendo violentadas no direito básico de sobrevivência. Os espaços organizados para as atividades pedagógicas sempre foi um ambiente em que a brincadeira esteve presente com intuito de ajudar a transformar o comportamento de crianças que passaram por traumas ou alguma transformação brusca.

           Estudos de Faustino (2006) e Menezes (2016) permitem perceber que a criança indígena desenvolve diferentes linguagens em suas experiências vividas junto ao seu grupo familiar extenso: observando o meio ambiente, brincando, participando com sua família da coleta de alimentos e sementes; pescando, caçando, indo para as roças, convivendo com irmãos e primos mais velhos, observando e convivendo com animais do seu entorno, participando das assembleias comunitárias, das festas e dos rituais religiosos; transitando nos diferentes espaços institucionais de suas comunidades, incorporando-se às atividades e ao trabalho dos adultos, viajando para as cidades para venda de artesanato, ouvindo histórias narradas, aconselhamentos e ensinamentos dos mais velhos.

Porém, devido ao pouco prestígio que as línguas indígenas têm no Brasil, as escolas indígenas carecem de recursos didáticos e metodologias consolidadas na área da alfabetização bilíngue. (Novak, 2014)

Pensando em como estaria organizando um trabalho pedagógico que pudesse contribuir para auxiliar na leitura e escrita das crianças e adolescentes, Warao acabou criando e confeccionando várias cartelas com imagens de animais, frutas e objetos com a identificação dos nomes em Warao, espanhol e português. Estas cartelas de figuras e palavras poderiam estar associadas a cantigas de suas vivências, ou a um texto de repetições, que tem um papel importante no processo de alfabetização, não só pela sua familiaridade, mas também porque permite à criança a conquista da linguagem. As imagens selecionadas para compor este recurso são da realidade de vida deles.  Foi possível também criar um alfabeto móvel destacando a primeira letra dos nomes das imagens com animais e frutas em que a escrita inicia-se tanto em Warao como em português.

Os Warao são um povo caminhante e a língua é um importante traço de identidade, pois permite que permaneçam vivas suas raízes. Neste contexto, ações educacionais voltadas à afirmação das identidades étnicas à recuperação das memórias históricas, a valorização das línguas e conhecimentos são fundamentais na ampliação da oferta de educação básica intercultural de qualidade. Somente o diálogo com os indígenas pode apontar o caminho para uma escola diferenciada. Bergamaschi afirma:

 É nos pequenos gestos cotidianos, sustentados pelas características de sua educação tradicional – a curiosidade, a observação, a imitação e o respeito, entre outros atributos responsáveis pela confecção da pessoa Warao que se apropriam da escola, tornando-a sua. (Bergamaschi,2007, p.122)    

É importante compreender a diversidade implícita na pluralidade étnica para a formulação de políticas e ações adequadas às realidades de cada povo indígena. Por isso, não são condizentes que desenvolva atividades e trabalhos pedagógicos fora do contexto da realidade de determinado povo indigena, devendo sempre contemplar suas especificidades em termos culturais e linguísticos.

CONCLUSÃO

O atendimento pedagógico às crianças e adolescente Warao nos abrigos permitiu o debate referentes às ações desenvolvidas no contexto escolar na busca por uma prática pedagógica compatível com a realidade de vida desta etnia indígena. Refletindo sobre os saberes indígenas favoreceu a análise do processo de construção desse conhecimento partindo da escuta aos mais velhos, liderança Warao, pajés para subsidiar metodologias que estejam de acordo com a identidade dessa comunidade.

          O espaço escolar deve atender a proposta pluricultural, ao tempo e linguagem apropriadas do indivíduo.  A temática discursiva oportunizou reflexão sobre as práticas tradicionais de socialização e transmissão de conhecimentos próprios a cada sociedade na qual denominamos de Educação Indígena, assim como, pensar e estruturar estratégias pedagógicas diferenciadas a cada etnia indigena.  

         A pesquisa mostrou que é possível construir um trabalho pedagógico específico a determinada etnia indígena respeitando sua identidade e utilizando metodologias adequadas que leve em consideração a realidade do mundo daquela comunidade.  

          Muitas propostas educativas vêm sendo elaboradas e discutidas com intuito de proporcionar à comunidade indigena autonomia, a partir do acesso a conhecimentos considerados comuns, indispensáveis e desejáveis para a sua coexistência na sociedade. Contudo, os caminhos percorridos têm sido árduos e os avanços acontecem conforme os percalços galgados pela sociedade. Por isso, é necessário conhecer as diretrizes curriculares para o ensino de uma escola indígena permitindo a compreensão de que elas precisam ser resultadas no desenvolvimento de atividades educacionais destinadas a estes povos.

REFERÊNCIAS

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¹ Graduada em pedagogia (UEPA)-Pós-graduação em Psicopedagogia; Mestranda em Ciências da Educação pela FICS.E-mail:carlabezerra2009@hotmail.com
² Professor de Sociologia efetivo na rede estadual do Pará; Professor de educação geral (pedagogo) efetivo na rede municipal de ensino de Cametá-Pa; Doutorando do programa de Pós-Graduação em Ciências da Educação da Faculdade Interamericana de Ciências Sociais – FICS; Mestre em Educação e Cultural pelo PPGEDUC-UFPA; Mestre em Ciências da Educação – FICS; Graduado em pedagogia (UFPA); Graduado em Letras . E-mail: profphabiopinto@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7169-2716