THE PROTECTION OF THE RIGHT TO PROPERTY AS A FUNDAMENTAL RIGHT OF THE HUMAN PERSON
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11117587
Marcus Vinicius Lopes Pereira1
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo perquirir acerca da proteção, alcance e significado do direito à propriedade no ordenamento jurídico brasileiro, assim como a sua elevação a um direito fundamental da pessoa humana e princípio geral da atividade econômica na Constituição Federal de 1988. Para isto, far-se-á um estudo bibliográfico, através de uma leitura histórica da noção de propriedade, para identificar as bases de sua origem e fundamentos como direito fundamental da pessoa humana, desde a antiguidade clássica até os tempos atuais e os seus reflexos nas Constituições brasileiras. Demonstrar-se-á que a noção e o conceito de propriedade sofreu diversas mutações no decorrer do tempo, assim como influências de diversas teorias, passando de direito absoluto e inato à natureza humana para uma concepção jurídica alicerçada em uma finalidade social e coletiva, com o objetivo de assegurar a todos uma existência digna conforme os ditames da justiça social.
Palavras-chave: Direitos fundamentais; Direito fundamental da pessoa humana; Direito à propriedade; Propriedade privada; Função social da propriedade.
ABSTRACT: This article aims to investigate the protection, scope and meaning of the right to property in the Brazilian legal system, as well as its elevation to a fundamental right of the human person and general principle of economic activity in the Federal Constitution of 1988. A bibliographic study will be carried out, through a historical reading of the notion of property, to identify the bases of its origin and foundations as a fundamental right of the human person, from classical antiquity to the present time and its reflexes in the Brazilian Constitutions. It will be shown that the notion and concept of property has undergone several mutations over times, as well as influences from different theories, passing from an absolute and innate right to human nature to a legal concept based on a social and collective purpose, with the objective of assuring everyone a dignified existence in accordance with the dictates of social justice.
Keywords: Fundamental rights; Fundamental right of the human person; Right to property; Private property; Social function of property.
1. INTRODUÇÃO
A discussão acerca da proteção, alcance e significado do direito à propriedade remonta à antiguidade clássica, atravessa o nosso cotidiano e está presente constantemente no nosso dia-a-dia. Possivelmente, nenhum outro direito fundamental tenha sido tão questionado no contexto social, sendo considerado por alguns filósofos, até mesmo, como a raiz de todos os males e injustiças.
Não obstante, o direito à propriedade resistiu a todas essas investidas que não foram capazes de afastar a sua condição de direito fundamental da pessoa humana, constante nos diversos ordenamentos jurídicos ao redor do mundo, presente, inclusive, expressamente em diversas Constituições e documentos internacionais, como, por exemplo, na Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 em seu art. 17.
Historicamente, o direito de propriedade se tornou absoluto, tornando-se verdadeiro dogma da sociedade contemporânea, consolidando-se como direito de primeira dimensão, estritamente relacionado ao direito à liberdade, em que se exige uma abstenção direta do Estado, fruto da Revolução Liberal do Século XVIII.
Os diversos textos constitucionais trataram de positivar o direito de propriedade, ainda que em um mundo repleto de desigualdades sociais e com forte concentração da riqueza em uma pequena camada da população e foi apenas com a erupção dos descontentamentos populares, quer através de protestos, greves, revoltas, ou até mesmo guerras e revoluções, foram sendo conquistados os direitos sociais e, consequentemente, formulou-se uma releitura do direito de propriedade, reconhecendo-se sua função social.
A tutela concedida pelo legislador ao direito à propriedade na órbita constitucional perpassa desde a proteção à inviolabilidade do domicílio, a tipificação do crime de roubo, furto, apropriação indébita, o direito de reivindicar o bem de sua propriedade a quem injustamente o detenha, até hipóteses de desapropriação, intervenção na propriedade privada e proteção das marcas, patentes, herança, dentre outras.
A categorização do direito de propriedade como direito fundamental, assim como o tratamento diferenciado atribuído direta e expressamente pelo legislador constituinte faz surgir a necessidade de maior e peculiar reflexão acerca da sua origem, fundamentos e características no próprio ordenamento jurídico. Para desenvolver o objetivo proposto no presente artigo, far-se-á um estudo bibliográfico, através de uma leitura histórica da noção de propriedade, para identificar as bases de sua origem e fundamentos como direito fundamental da pessoa humana.
2. ESCORÇO HISTÓRICO DO DIREITO À PROPRIEDADE
Para se compreender melhor os contornos da acepção do direito à propriedade como um direito fundamental da pessoa humana no contexto contemporâneo, necessário se elaborar um breve apanágio histórico da ideia e concepção de propriedade no decorrer de cada momento histórico.
Ainda nos primórdios da civilização humana, o poder ideológico do detentor da propriedade fica evidente com o surgimento dos clãs religiosos, onde a figura do chefe de família (depois, pater famílias para o Direito Romano) tem destaque e liderança sobre as demais pessoas fixadas em um território. Tanto o Império grego como o Império romano implicaram a eventual liderança ideológica e, posteriormente, econômica ao conceito de propriedade, sendo que os jurisconsultos romanos trouxeram à tona o conceito de direitode propriedade como algo absoluto, indisponível, quase uma garantia fundamental do indivíduo (DE ASSIS 2008, p. 782).
Nesse contexto a propriedade torna-se um direito absoluto e exclusivo que permite a uma pessoa extrair de uma coisa toda a sua utilidade econômica, sustentada nos dogmas do jus fruendi, que se caracteriza pelo direito de receber os frutos e os produtos da coisa; jus utendi como o direito de usar a coisa; et jus abutendi como o direito de gozar ou de não gozar do bem, destruí-la, dispô-la juridicamente, aliená-la, de forma gratuita ou onerosa, por atos entre vivos ou por causa mortis (NONES, 2009, p. 109).
A Lei da Doze Tábuas pode ser considerada a origem dos textos escritos consagrados da liberdade, da propriedade e da proteção aos direitos do cidadão, sendo possível visualizar no direito romano um feixe de mecanismos e interditos visando tutelar os direitos individuais contra os abusos estatais (MORAES, 2001, p. 7).
Com as invasões dos povos bárbaros nas províncias romanas e o consequente declínio deste Império, instituiu-se um sistema senhorial que representava a essência do feudalismo, em que o poder concentrava-se na mão do monarca, e o vassalo era responsável por cultivar as terras e, em contrapartida, poderia utilizá-las para moradia e subsistência, recebendo proteção do senhor feudal, não sendo possível vendê-las ou transmiti-las aos descendentes.
Com a consolidação do feudalismo europeu, o direito de propriedade adquiriu características próprias em que era possível identificar três classes: nobreza, clero e trabalhadores. As duas primeiras classes, representadas pelo senhor feudal e pela Igreja detinham plena liberdade de exercer o direito de propriedade imobiliária, ao contrário dos trabalhadores camponeses (NONES, 2009, p. 110).
Essa relação com a propriedade permaneceu até o surgimento de novos meios de produção de bens, da divisão do trabalho, da produção massificada, do aumento de rotas comercias em distintas regiões, do fortalecimento do comércio e da formação de cidades, gerando a estrutura econômica do capitalismo, na qual resultou no amplo crescimento da classe burguesa. A partir daí, a terra deixou de ser o principal, e praticamente único, meio de dominação e status social.
Nesse período, por volta do século XVI, no Brasil, foram criadas as quatorze capitanias hereditárias e, não havia nas sesmarias hereditárias as características do regime feudal, mas sim um regime latifundiário que envolvia os donatários, o governo geral e a Coroa Portuguesa, que vigorou até 1822 (NONES, 2009, p. 111).
Antes do fortalecimento da classe burguesa, a propriedade e a posse podiam ser traduzidas como expressão do político, uma vez que o uso da terra fazia-se por concessões em que o Rei atribuía a terra a um Duque, este a um Conde, até chegar no vassalo, de uma forma diferente da que ocorria no direito romano, assemelhando-se a uma forma de enfiteuse (NONES, 2009 p. 110).
A visão da propriedade como algo absoluto passa incólume também durante o período da Idade Média, quando o direito de propriedade é mantido inclusive como condição de manutenção da divisão social, havendo uma concentração imobiliária nas mãos de poucos que detinham certo poder social sobre os demais indivíduos (DE ASSIS, 2008, p. 782).
Os ideais liberais que pairaram sobre a Europa e América, principalmente a partir da transição da Idade Média para a Idade Moderna, trouxeram à tona o questionamento da concentração de direitos individuais por parte dos pensadores iluministas que povoaram esses territórios, principalmente, ao longo dos séculos XVII e XVIII (DE ASSIS, 2008, P. 783).
LEAL (2012, p. 54) relembra que a noção de propriedade enquanto direito fundamental encontra raízes na própria ideia de liberdade, na medida em reconhece ao homem a liberdade pelo natural domínio de seu corpo e, mencionando John Locke, traz uma passagem do referido autor que expressa “que cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo”.
Em momento posterior, surge a ideia de que o trabalho exercido pelo homem constitui sua propriedade, assim como os frutos que dele obtiver, sendo o direito de propriedade, em sua origem, o domínio sobre o resultado obtido com o trabalho e, nessa perspectiva, trabalho e propriedade são visto como inerentes à condição humana, à liberdade pessoal e à dignidade dos direitos humanos (LEAL (2012, p. 54-55).
Em resposta aos regimes despóticos existentes, nos séculos XVII e XVIII, surgiram na Europa e na América importantes movimentos revolucionários inspirados nos ideais de defesa e proteção da liberdade, visando criar mecanismos de contenção do poder estatal para garantir as liberdades fundamentais do homem. Supera-se, nesse momento, a ideia oriunda da Idade Média de que os direitos constituem prerrogativas, privilégios e regalias decorrentes de determinados estamentos, castas ou categorias para reconhecer a existência de direito que derivam da própria natureza humana, constituindo realidade preexistente ao Estado e à sociedade (LEAL, 2012, p. 55).
Os iluministas defendiam o homem como um ser livre e dotado de direitos, sendo que, neste momento o capitalismo surgiu vorazmente na Europa, como um sistema de organização econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção, trazendo consigo novas técnicas de produção, bem como a ascensão da burguesia ao poder.
DE ABREU PESSOA (2010, p. 67) aduz que com a vitória da Revolução Francesa consagrou-se o ideário liberal da burguesia que, no que concerne à propriedade, pregava a liberdade de aquisição e fruição da mesma, sem a interferência do poder estatal ou a imposição de privilégios da nobreza. O direito de propriedade se tornou absoluto à luz da primeira geração dos direitos fundamentais.
Dessa forma, inspirado a partir das ideias de John Locke, a propriedade foi inserida nos principais documentos escritos da época como um direito vinculado à ideia de liberdade e trabalho, um direito fundamental e inato à pessoa humana, dentre eles a Declaração de Direitos da Virgínia de 1776 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Posteriormente, pode ser vista a sua consagração também na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
Embora a Revolução Francesa tenha procurado dar um caráter democrático ao direito de propriedade, através da abolição de privilégios, esse direito acabou sendo diretamente condicionado aos interesses econômicos e políticos da nova classe dominante – a burguesia e, dessa forma, contribuíram para modificar a estrutura do direito de propriedade (NONES, 2009, p. 111).
Diversos autores contratualistas à época afirmavam que a propriedade integrava o resíduo de liberdade natural que restou ao homem em face da liberdade sacrificada para a construção do Estado (LEAL, 2012, p. 56)
OLIVEIRA FILHO (2008, p. 63/64) ressalta que, por meio do desenvolvimento da teoria dos direitos das coisas a dogmática recepcionou esse pensamento liberal, e sistematizou o conceito de direito de propriedade, como uma situação subjetiva patrimonial que restou consagrada no Código Civil Francês de 1804 (Código Civil Napoleônico) como núcleo do ordenamento jurídico, influenciando diversas outras legislações civilistas, inclusive a brasileira em 1916.
O legislador do Código Civil francês de 1804 optou por positivar o direito de propriedade de forma semelhante às concepções do direito romano na versão de Justiniano. O art. 544, por exemplo, dispôs que a propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas da maneira mais absoluta, desde que não se faça um uso proibido pelas leis ou pelos regulamentos, enquanto estabelecia no art. 545 que ninguém pode ser obrigado a ceder a sua propriedade, senão por motivo de utilidade pública mediante uma justa e prévia indenização (NONES, 2009, p. 111).
DE ABREU PESSOA (2010, p. 66) menciona que a concepção do direito de propriedade como um direito natural e inerente ao ser humano foi historicamente corroborada pela Igreja Católica, que com reiteradas encíclicas, contribuiu para a construção da visão de um direito de propriedade que transcende as razões legais, para ter uma fundamentação metafísica e divina. A Santa Sé defendeu ostensivamente a propriedade privada também como forma de minar o avanço das teses socialistas e comunistas, assim como serviu de oposição às concepções econômicas marxistas.
Além da previsão expressa em diversas Declarações de Direitos, outra solução concebida à época foi a definição dos direitos fundamentais, bem como dos demais princípios de limitação do poder estatal, em texto normativo formal e solene: a Constituição, com a finalidade de impedir seu comprometimento ou violação por outros diplomas e atos normativos, buscando impor um dever de abstenção, assim como uma esfera de autonomia privada imune à interferência estatal ou de terceiros.
Contudo, o avanço do liberalismo econômico que marcou, sobretudo, o início do século XX, acabou por ensejar profunda revisão sobre o alcance e o significado do direito de propriedade, especialmente em razão da influência de outras correntes de pensamento, como o socialismo, com base no posicionamento de filósofos como Marx, Engels, Duguit e Comte, que visavam desconstituir o conceito absolutista, inviolável e sagrado do direito à propriedade, uma vez que muitos ideólogos encaravam a propriedade como instrumento de opressão de massas e fonte de crescente desequilíbrio social.
É possível destacar três posições teóricas distintas que contribuíram para a evolução do direito de propriedade. De acordo com a primeira, o direito firmou-se sob o caráter absoluto da propriedade individualista privada própria do Estado liberal, especialmente a partir do Código de Napoleão e, com isso, a propriedade passa a ser um bem de valor econômico que representa, para alguns, uma reserva de capital e, para outros, um meio de produzir outros bens. A segunda posição teórica, a propriedade assumiu uma concepção socialista, na qual o interesse coletivo fez com que o Estado avocasse a si o domínio sobre o direito de propriedade. A terceira procurou conciliar essas duas posições opostas, com o objetivo de harmonizar os aspectos econômicos e sociais da propriedade como forma própria do Estado Social (NONES, 2009, p. 113).
A igualdade que fundamentava o liberalismo era a igualdade formal e, a partir das mazelas provenientes do Estado Liberal, surge o Estado Social, com a intervenção do Estado buscando a igualdade material e, dessa maneira, a concepção de propriedade é alterada, desvinculando-se do liberalismo individualista, passando a ser concebida como um direito individual que não pode ser exercido em prejuízo da coletividade.
Portanto, o aprofundamento das desigualdades em decorrência da concentração de riquezas nas mãos da burguesia resultantes da Revolução Industrial deram ensejo ao avanço dos ideais sociais, surgindo, então, a segunda dimensão de direitos, os econômicos, sociais e culturais, amparados na noção de igualdade social. Neste momento, há uma contestação da ideia de que o direito de propriedade é absoluto, sendo dado, desde então, novo tratamento constitucional à questão.
A influência do socialismo, em suas diferente concepções constituiu uma fonte de significativa contribuição para que a propriedade passasse a assumir determinado caráter social ao incorporar o princípio da função social, conciliando o interesse individual com o interesse social (NONES, 2009, p. 113).
Toda esse escorço histórico do direito de propriedade envolve uma classificação que abrange os elementos essenciais naturais – homem e coisa – e o elemento essencial formal consubstanciado por um vínculo jurídico, o qual se adiciona o interesse social como manifestação do interesse público coletivo. Dessa forma, a propriedade encontra a razão jurídica de sua existência a partir do homem, dos bens e do direito (NONES, 2009, p. 114).
3. DIREITO À PROPRIEDADE COMO DIREITO FUNDAMENTAL DA PESSOA HUMANA
3.1 DIREITO À PROPRIEDADE NO DIREITO COMPARADO
Em contraposição aos regimes despóticos imperantes nos séculos XVII e XVIII, surgiram, na Europa e na América, importantes movimentos revolucionários inspirados em ideais de defesa e proteção da liberdade, que fomentaram o surgimento do constitucionalismo, com a introdução de instrumentos voltados à limitação ou contenção do poder estatal com o objetivo de assegurar as liberdades básicas do homem (LEAL, 2012, p. 55).
O constitucionalismo, portanto, supera a ideia oriunda da Idade Média de que os direitos constituem prerrogativas, privilégios e regalias decorrentes de determinados estamentos, castas ou categorias e passa a reconhecer a existência de direitos que derivam da própria natureza humana e fundantes da constituição do Estado (LEAL, 2012, p. 55).
O art. 1º da Declaração de Direitos da Virgínia de 12 de junho de 1776, dispõe que todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade. Da mesma forma, prevê a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 4 de julho de 1776, ao afirmar que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade (LEAL, 2012, p. 55).
Neste período, ainda, consideram-se como legislações marcantes a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789), a Constituição francesa de 1791 e o Código Civil Napoleônico de 1804. Mesmo apesar de não avançar no significado filosófico do direito à propriedade, a doutrina considera a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e a Revolução Francesa como marcos ao consagrá-lo como um direito natural, inalienável e sagrado do ser humano.
Saliente-se, que tais documentos são denominados “declarações” pois não estariam a instituir ou criar direitos, uma vez que a sua finalidade resume-se a declará-los, reconhecê-los, na medida em que emanam da própria natureza humana, constituindo realidade pré-existente ao Estado e à sociedade (LEAL, 2012, p. 55).
Inspirada a partir das lições de John Locke (1963), como direito vinculado às ideias de liberdade e de trabalho, a propriedade passou a constar de tais declarações como direito fundamental e inato à pessoa humana. Dessa forma, a Declaração da Virgínia ao trazer em seu art. 1º os direitos certos, essenciais e naturais do homem, indica o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança. Por sua vez, o art. 2º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, ao discriminar os direitos naturais e imprescritíveis do homem, estabelece que esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. Já o art. 17 da mesma Declaração reitera a mesma ideia, agregando, ainda, a seguinte disposição: como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado (LEAL, 2012, p. 55).
Muitas foram as Constituições que incorporaram os direitos sociais em seu texto, a exemplo da Constituição Mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar de 1919, consideradas como marcos na elevação da teoria da função social da propriedade à categoria de princípio jurídico constitucional, trazendo à tona os direitos sociais de segunda dimensão. As duas constituições consagraram que a propriedade deve satisfazer ao bem da coletividade e influenciou fortemente a Constituição brasileira de 1934.
Percebe-se, que a propriedade foi concebida no cenário internacional do Ocidente, como direito de primeira dimensão, juntamente, por exemplo, com a liberdade, ou seja, como direito fundamental do homem, pois inerente à sua condição humana e, dessa forma, precede à formação do Estado, devendo o mesmo se abster em interferir.
3.2. ESCORÇO HISTÓRICO DO DIREITO À PROPRIEDADE NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS
A Constituição Brasileira de 1824 foi marcada pelo individualismo, de conteúdo liberal, e o conceito de propriedade estava vinculado à noção de um direito abstrato, de uso perpétuo. A única ressalva ao direito de propriedade que se fazia estava relacionado à possibilidade de desapropriação para uso público, mediante indenização prévia, conforme se previa em seu art. 179º:
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte. (…) XXII. É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem público legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A Lei marcará os casos, em que terá lugar esta única exceção, e dará as regras para se determinar a indenização. (…) XXVI. Os inventores terão a propriedade das suas descobertas, ou das suas produções. A Lei lhes assegurará um privilégio exclusivo temporário, ou lhes remunerará em ressarcimento da perda, que hajam de sofrer pela vulgarização. (NOGUEIRA, Octaciano; BALEEIRO, Aliomar, 2001, p. 103).
A Constituição Federal de 1981 também atribuía o caráter de individualidade à propriedade, reflexo do liberalismo e ressalvava a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante prévia indenização, assim como reconhecia a propriedade aos bens imateriais como os direitos de autor e as marcas, na forma do seu art. 72º:
Art. 72 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (…) § 17 – O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salva a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. As minas pertencem aos proprietários do solo, salvas as limitações que forem estabelecidas por lei a bem da exploração deste ramo de indústria. (…) § 25 – Os inventos industriais pertencerão aos seus autores, aos quais ficará garantido por lei um privilégio temporário, ou será concedido pelo Congresso um prêmio razoável quando haja conveniência de vulgarizar o invento. § 26 – Aos autores de obras literárias e artísticas é garantido o direito exclusivo de reproduzi-las, pela imprensa ou por qualquer outro processo mecânico. Os herdeiros dos autores gozarão desse direito pelo tempo que a lei determinar. § 27 – A lei assegurará também a propriedade das marcas de fábrica. (BALEEIRO, Aliomar, 2001, p. 97/99).
Somente a partir da Constituição de 1934 se estabelece referência à atividade da pessoa com relação à sua propriedade, uma vez que o texto constitucional à época sofreu bastante influência das Constituições do México de 1917 e Weimar em 1919, característica do Estado Social. Dessa maneira, a propriedade segundo o texto constitucional não poderia ser exercida contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar, de acordo com o quanto disposto no art. 113º, 17.
A Constituição Federal de 1937, também conhecida como “Constituição do Estado Novo” ou “Constituição Polaca”, limitou-se a assegurar o direito à propriedade, reservando para a lei infraconstitucional definir seu conteúdo e limitações.
A Constituição de 1946 apresenta alguns avanços relativos ao direito à propriedade, uma vez que estabelece como justificativa à desapropriação, além da necessidade ou utilidade pública, o interesse social, refletindo os ideais do Estado Social e da função social da propriedade. Este argumento se reforça com o disposto no artigo 147º que condiciona a utilização da propriedade ao bem estar social, quando se refere à ordem econômica e social, de forma a promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos, com observância do art. 141º §16:
Art. 141 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (…) § 16 – É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, se assim o exigir o bem público, ficando, todavia, assegurado o direito a indenização ulterior. § 17 – Os inventos industriais pertencem aos seus autores, aos quais a lei garantirá privilégio temporário ou, se a vulgarização convier à coletividade, concederá justo prêmio. § 18 – É assegurada a propriedade das marcas de indústria e comércio, bem como a exclusividade do uso do nome comercial. § 19 – Aos autores de obras literárias artísticas ou científicas pertence o direito exclusivo de reproduzi-las. Os herdeiros dos autores gozarão desse direito pelo tempo que a lei fixar. (BALEEIRO, Aliomar; SOBRINHO, Barbosa Lima, 2001, p. 99/103).
OLIVEIRA FILHO (2008, p. 54) menciona que apesar dessa expressa previsão no texto constitucional de 1946, associando a propriedade ao bem estar social, esta norma não logrou efetividade por se considerada norma de eficácia limitada, ou seja, careceria de normatividade posterior para produzir todos os seus efeitos essenciais.
Até a Carta de 1937 não havia que se falar em função social da propriedade, uma vez que apenas existia a obrigatoriedade de a propriedade não ser posta contra o interesse social, ou seja, implica apenas em omissão do proprietário diante do interesse social, e não em ação propriamente dita (DE ABREU PESSOA, 2010, p. 68).
A expressão função social da propriedade foi utilizada pela primeira vez no Brasil no Estatuto da Terra (Lei nº. 4.504/64) e apenas com a Constituição de 1967, positivou-se em âmbito constitucional a expressão função social da propriedade, em seu art. 157, III, a qual foi deslocada para o art. 160, por ocasião da Emenda Constitucional n.º 1/69, deslocando-se o referido dispositivo para o art. 160, III:
Art. 160 – A ordem econômica tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos seguintes princípios: (…) III – função social da propriedade. (CAVALCANTI, Brandão Themistocles; DE BRITO, Luiz Navarro; BALEEIRO, Aliomar; SOBRINHO, Barbosa Lima, 2001, p. 168).
3.3 DIREITO À PROPRIEDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Com a redemocratização ocorrida em 1988, exsurge a Constituição Federal trazendo diversos dispositivos em que se faz menção ao direito de propriedade em sentido amplo, assim como a função social da propriedade, prevista expressamente no art. 5, XXIII, constituindo-se, ainda, cláusula pétrea, de acordo com o art. 60, §4º do texto constitucional.
TEPEDINO; SCHREIBER(2005, p. 103) relembram que nunca em toda histórica constitucional brasileira, a função social recebeu tratamento tão amplo e tão concretizante como na atual Constituição Federal, em que a mesma foi erigida como direito fundamental, como princípio da ordem econômica e traçou contornos expressos acerca da propriedade urbana e rural.
Dessa forma, o legislador constituinte buscou fixar critérios objetivos mínimos da realização da função social e assegurou a efetividade da fórmula como meio de controle do exercício da situação subjetiva da propriedade, sendo que a garantia da propriedade está condicionada ao cumprimento da função social (TEPEDINO; SCHREIBER, 2005, p. 105).
Segundo MENDES; BRANCO (2011, p. 363) o direito fundamental à propriedade apresenta-se como garantia institucional e como direito subjetivo, cabendo ao legislador a tarefa de definir, em essência, o próprio conteúdo do direito regulado. Fala-se, nesses casos, de regulação ou conformação, ao invés de restrição.
A garantia constitucional da propriedade assegura uma proteção das posições privadas já configuradas, bem como dos direitos a serem eventualmente constituídos, assim como garante a propriedade enquanto instituto jurídico, obrigando o legislador a promulgar complexo normativo que assegure a existência, a funcionalidade, a utilidade privada desse direito (MENDES; BRANCO, 2011, p. 378/379).
3.3.1 CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DO DIREITO À PROPRIEDADE
OLIVEIRA FILHO (2008, p. 60), relembra lição de Orlando Gomes que considera a propriedade como um direito complexo que pode ser conceituado a partir de três critérios: o sintético, cuja propriedade é a submissão de uma coisa a uma pessoa em todas as suas relações; o critério analítico em que o mesmo se caracteriza pelo direito de usar, gozar e dispor de um bem assim como reavê-lo daquele que o possuir injustificadamente; e o critério descritivo que se consubstancia no direito através do qual uma coisa submete-se às vontade de uma pessoa, de forma absoluta, perpétua e exclusiva, de acordo com as limitações da lei.
MENDES; BRANCO (2011, p. 364), por sua vez, afirmam que o conceito de propriedade sofreu profunda alteração no século passado, uma vez que a propriedade privada tradicional perdeu muito do seu significado como elemento fundamental destinado a assegurar a subsistência individual e o poder de autodeterminação como fator básico da ordem social, sendo que a base da subsistência e autodeterminação do homem moderno é o próprio trabalho e o sistema previdenciário e assistencial instituído e gerido pelo Estado.
Essa evolução e mudança da função da propriedade foi fundamental para o abandono da ideia de identificação entre o conceito civilístico e conceito constitucional de propriedade. MENDES; BRANCO (2011, p. 364) menciona que a Constituição de Weimar passou a admitir a garantia do direito de propriedade não apenas dos bens móveis ou imóveis, mas também os demais valores patrimoniais, decorrentes de relações de direito privado ou não.
Portanto, para a definição e qualificação do direito à propriedade se faz necessário aferir a utilidade privada do direito patrimonial para o indivíduo, isto é, a relação desse direito patrimonial com o titular. Dessa forma, o conceito constitucional de proteção ao direito de propriedade transcende à concepção privatística estrita para abranger outros valores de índole patrimonial, como as pretensões salariais e as participações societárias (MENDES; BRANCO, 2011, p. 365)
MENDES; BRANCO (2011, p. 379) afirma que não existe um conceito constitucional fixo, estático de propriedade, uma vez que necessariamente deve-se ter um conceito dinâmico. Dessa forma, são legítimas não só as novas definições de conteúdo como a fixação de limites destinados a garantir a sua função social.
A garantia constitucional da propriedade está submetida a um intenso processo de relativização, sendo interpretada, fundamentalmente, de acordo com parâmetros fixados pela legislação ordinária, sendo que as disposições legais relativas ao conteúdo têm, portanto, inconfundível caráter constitutivo. Contudo, a definição desse conteúdo pelo legislador há de preservar o direito de propriedade enquanto garantia institucional, assim como as limitações impostas ou as novas conformações emprestadas ao direito de propriedade hão de observar especialmente o princípio da proporcionalidade (MENDES; BRANCO, 2011, p. 379).
A faculdade confiada ao legislador de regular o direito de propriedade obriga-o a realizar o exercício da ponderação entre o interesse individual e o interesse coletivo, analisando-se os bens, valores e particularidades de cada situação. Nesse sentido, tem-se a manifestação da Corte Alemã:
“A propriedade privada caracteriza-se, na sua dimensão jurídica, pela utilidade privada e, fundamentalmente, pela possibilidade de disposição; seu uso deve servir, igualmente, ao interesse social. Pressupõe-se aqui que o objeto da propriedade tenha uma função social. Compete ao legislador concretizar esse postulado também no âmbito do direito privado. Ele deve portanto, considerar a liberdade individual constitucionalmente garantida e o princípio de uma ordem de propriedade socialmente justa – elementos que se encontram em relação dialética na Lei Fundamental – para o fim de, mediante adequada ponderação, consolidar relações equilibradas e justas”. (MENDES; BRANCO, 2011, p. 379/380)
No direito alemão, o conceito de propriedade compreende-se direito de construção, títulos com juros prefixados, ações, licença de exploração mineral, direitos autorais, direitos de marcas e patentes, domínio na internet, créditos privados e o direito de posse do locatário (MENDES; BRANCO, 2011, p. 366).
Como acentuado pela Corte Constitucional alemã, a faculdade confiada ao legislador de regular o direito de propriedade implica em uma liberdade relativa, uma vez que ele deve preservar o núcleo essencial do direito de propriedade, constituído pela utilidade privada conformando-o com a sua vinculação social.
3.3.2 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
3.3.2.1 NOÇÕES PRELIMINARES ACERCA DA TEORIA DA FUNÇÃO SOCIAL
Historicamente, a função social teve sua ideia formadora no Cristianismo e no direito natural, com a ideia de que a propriedade deveria atender a uma finalidade produtiva e, assim, atender ao bem estar coletivo e aos ditames da justiça social. Alicerçado em tais ideais surgiram algumas encíclicas papais:
a) a Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, por meio do qual “o proprietário que tenha recebido bens em abundância não é proprietário absoluto, mas simples administrador da Providência divina, que lhe assegurou bens para seu próprio proveito e também para o benefício de todos os demais”;76 b) o Quadragésimo Anno, do Papa Pio XI, que previa ser indispensável a intervenção harmônica por meio da aplicação da função social; c) a La Solemita e Oggi – do Para Pio XII, que veiculava a possibilidade de expropriação, como medida sancionatória imposta a quem não usasse a sua propriedade em desatendimento com o interesse coletivo; d) a Mater et Magistra, do Para João XXIII, que ligava a qualquer propriedade privada a uma função social, de modo que o seu proprietário ao exercê-la não deve dissociar-se do bem comum; e) a Populorum Progressio, do Papa Paulo VI, que veiculava a idéia de que aquele que possuísse em excesso devera distribuir com os menos afortunados. (OLIVEIRA FILHO, 2008, p. 36).
A doutrina jusnaturalista defendia a ideia de que a propriedade deveria ser exercida em harmonia com a justiça divina, fundamentada nos conceitos de equidade e justiça. Tais ideais não conseguiram resistir à Revolução Francesa e, partir daí, a propriedade passaria a gozar um status de direito absoluto, ilimitado e sem restrições.
A concepção absoluta da propriedade encontrou em John Locke um de seus maiores defensores. Menciona OLIVEIRA FILHO (2008, p. 51) que o referido filósofo entendia que a propriedade era fruto de muito esforço e trabalho humano, e que seu excedente não podia pertencer a seu dono apenas se houvesse risco de perecimento, assim como defendia a existência de dois tipos de propriedade: a propriedade natural decorrente do labor e a propriedade convencional, originária do ganho pecuniário decorrente do processo de troca.
Somente após a reação ao modelo liberal pela sociedade que se aprofundava com problemas e mazelas sociais, idealizada pelo avanço das ideias sociais que viam a propriedade como instrumento de opressão, ocorreu a profusão dos direitos de segunda dimensão ou direitos sociais desconfigurando o cenário de caráter absoluto da propriedade vigente.
A Constituição do México de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919 são consideradas os principais marcos teóricos responsáveis pela difusão dos direitos sociais e a profusão da ideia de que a propriedade também deverá atender a uma finalidade coletiva ou social.
Contudo, para se entender a ideia de função social prevista no ordenamento jurídico, deve-se ter em mente que o Direito precisa ser observado como um sistema aberto, uma vez que as relações sociais são dinâmicas e fluidas, devendo o sistema legal se apoiar em um modelo não estático ou fechado, como aquele apoiado na Revolução Francesa em que o juiz era apenas “a boca da Lei”.
A ideia de sistema fechado era defendida pela classe emergente da Revolução Francesa em busca de um direito que lhe proporcionasse uma maior segurança e para evitar o arbítrio das decisões judiciais, a fim de manter intacto a ideologia burguesa que era a classe dominante e privilegiada na época. Dessa forma, não poderia haver lacuna na Lei, pois a mesma representava, “funcionava como um disfarce para que nenhuma decisão contrariasse os escopos legislativos (a vontade do legislador), garantindo não a inteireza do direito, mas sim os ideais burgueses”, como bem elucida OLIVEIRA FILHO (2008, p. 36).
Todavia, a ideia de Direito como sistema fechado se mostrou ineficiente diante da sua incapacidade de responder a todos os problemas sociais que se mostram eivados de complexidade e diversidade dando espaço para o surgimento da ideia de Direito como sistema aberto, repleto de conceitos indeterminados, cláusulas gerais, princípios, cabendo ao juiz a tarefa integradora no caso concreto.
A função social foi definida como princípio da ordem econômica na Constituição Federal de 1988, expressamente prevista no art. 170, III e, portanto, serve como norte interpretativo e de aplicação das demais normas do ordenamento jurídico. Segundo a clássica definição de Celso Antônio Bandeira de Mello, pode-se definir princípio como:
“mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente para definir a lógica e racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico”. (MELLO, 2004, p. 51)
Ainda, a noção de função social deve ser entendido associado à ideia de bem comum, na medida que o cumprimento da função social de determinado direito deve tê-lo como parâmetro a ser perseguido. A noção de bem comum variou bastante ao longo do tempo, desde teorias individualistas e coletivas, sendo necessário frisar que a concepção contemporânea considera que o bem comum ideal deve ser aquele que ao mesmo tempo atende ao bem geral e respeite a personalidade de cada indivíduo (OLIVEIRA FILHO, 2008, p. 47)
A função social emerge na sociedade como um produto da funcionalização do direito que “tem por escopo a reedificação dos institutos jurídicos individuais, tendo sempre sob sua mira o justo equilíbrio entre as necessidades da coletividade e as necessidades individuais” (OLIVEIRA FILHO, 2008, p. 47). Dessa forma, a função social surge como instrumento em que se busca uma finalidade específica de natureza coletiva e não individual.
A funcionalidade foi o elemento jurídico encontrado para conciliar o direito de propriedade individual com a concepção social da propriedade e, dessa forma, a propriedade privada deixa de comportar somente faculdades e passa a ter atribuições, limitações e deveres, pela imposição ao proprietário do cumprimento de uma função social que o obriga a praticar atos positivos de caráter econômico (NONES, 2009, p. 119).
3.3.2.2 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
O Estado Contemporâneo deve perceber e concretizar as aspirações coletivas, exercendo um papel de conotação social. O Estado do século XIX não tinha essa preocupação, uma vez que a doutrina do liberalismo econômico assegurava ampla liberdade aos indivíduos e considerava intangíveis os seus direitos de propriedade, ao tempo em que permitia que o aprofundamento dos abismos sociais, deixando em evidência os inevitáveis conflitos surgidos da desigualdade entre as várias camadas da sociedade.
A reação ao avanço do liberalismo econômico que marcou, sobretudo, o início do século XX, acabou por ensejar profunda revisão sobre o alcance e o significado do direito de propriedade, especialmente tendo em vista a influência de outras correntes de pensamento, como o socialismo, uma vez que muitos ideólogos encaravam a propriedade como instrumento de opressão de massas e fonte de crescente desequilíbrio social.
Decorre daí a ideia de impor limitações à propriedade no sentido de que ela, além de atender os desejos e interesses de seu titular, pudesse também responder e servir às necessidades da sociedade.
A terminologia “função social da propriedade” foi inaugurada por Auguste Comte no século XIX, sustentando que o positivismo vê uma função social da propriedade como algo que enobreceria a posse sem retirar a liberdade dela, tornando-a mais respeitada (DE ABREU PESSOA, 2010, p. 71). O autor afirmou a necessidade do positivismo atribuir uma função social à propriedade, destinada a administrar os capitais nos quais uma geração prepara os trabalhos das gerações futuras (OLIVEIRA FILHO, 2008, p. 69).
Embora o princípio da função social tenha encontrado sua consolidação no direito constitucional no início do século XX com o advento do Estado Social, as primeiras manifestações doutrinárias mais concretas do filósofo Augusto Comte (1798-1857 datam do século XIX, que apresentou significativa contribuição ao defender que as funções (ações) humanas, mesmo exercidas individualmente, sempre têm uma natureza social, conforme consta na Décima Conferência de seu Catecismo Positivista (NONES, 2009, p. 114).
A ideia de função social da propriedade representa e ressalta a redefinição do conteúdo ou a limitação do direito de propriedade em razão da ponderação entre o significado da propriedade na ordem constitucional e a necessidade de observância de sua função social. Dessa forma, houve uma mudança de paradigma em que o direito de propriedade deixa de ser absoluto e subordina-se à finalidade coletiva.
A função social da propriedade têm função de princípio constitucional impositivo e, em se admitindo a propriedade como direito fundamental, existe a obrigação de efetuar o seu exercício em conformidade com a função social, sendo esta a cláusula constitucional de conformação do direito à propriedade (DE ABREU PESSOA, 2010, p. 69/70). Dessa forma, a mesma não deve ser tomada como sendo um simples dever jurídico ou elemento externo limitador da propriedade, mas sim como elemento conformador da própria estrutura desse direito, ou seja, a função da sociedade deve ser enxergada como algo ínsito ao próprio direito da propriedade (OLIVEIRA FILHO, 2008, p. 57).
O caráter conformador da função social da propriedade não se confunde com uma restrição ao direito de propriedade. Rememorando-se lição de Canotilho, as normas legais restritivas restringe as posições que, a princípio, seriam incluídas no campo de proteção dos direitos fundamentais, enquanto as normas legais conformadoras se prestam a complementar, precisar, concretizar ou definir o conteúdo de um direito fundamental a ser protegido (DE ABREU PESSOA, 2010, p. 71)
TEPEDINO; SCHREIBER (2005, p. 106) assentam que a função social compõe a propriedade e, assim, não há que se falar em um espaço mínimo em que a propriedade do indivíduo se manteria imune ao interesse social, uma vez que a função social molda o estatuto proprietário constituindo o seu título justificativo, a causa e o fundamento de atribuição dos poderes do titular. A propriedade que não se conforma aos interesses sociais relevantes não merece ser digna de tutela.
MENDES; BRANCO (2011, p. 384) mencionam que a doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade. Os autores afirmam a possibilidade de se converter o princípio da reserva legal no princípio da reserva legal proporcional, que pressupõe não só a legitimidade dos meios utilizados e dos fins perseguidos pelo legislador, mas também a adequação desses meios para consecução dos objetivos pretendidos e a necessidade de sua utilização.
3.3.2.3 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Na Constituição Federal de 1988 a função social da propriedade está prevista no rol de direitos e garantias fundamentais previsto no art. 5º, XXIII do texto constitucional. Não obstante, a Carta Magna trouxe o instituto como princípio da ordem econômica cristalizado no art. 170, III e deve observar os ditames da justiça social, assim como assegurar a todos existência digna.
A função social emerge no ordenamento jurídico brasileiro fruto da confluência entre diversos fundamentos como a máxima eficácia dos direitos fundamentais, com base no art. 5º, §1º da Constituição Federal, em simbiose com a ideia de solidariedade prevista no art. 3º, I, assim como com fundamento na dignidade da pessoa humana prevista no art. 1º, III.
A função social da propriedade urbana também foi objeto de atenção por parte do legislador constitucional, que trouxe que a mesma será verificada quando atender às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, na forma do art. 182, §2º, deslocando a competência para a sua observância para o ente municipal, facultando-se, inclusive ao Poder Público Municipal, atendido os requisitos legais, efetuar o parcelamento ou edificação compulsório da propriedade, estabelecer imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo e, até mesmo, promover a desapropriação do imóvel, em caso de descumprimento.
No que tange à propriedade rural, a Constituição Federal previu em seu art. 184, caput, a possibilidade de desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social e delimitou no corpo do art. 186 os requisitos para serem observados pela propriedade rural para atender a função social, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, quais sejam: – aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
O Código Civil de 2002 seguiu a mesma sintonia dos dispositivos constitucionais e trouxe expressamente nos §§1º e 2º do art. 1.228, que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas, assim como proibiu os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
4. CONCLUSÃO
A propriedade não assume contornos de direito absoluto, ainda que considerada historicamente como direito inato à condição humana e, portanto, pré-existente à formação do Estado, submete-se a diversos condicionamentos e restrições decorrentes de outros direitos e princípios também tutelados pelo texto constitucional.
A tarefa do intérprete constitucional deve ser realizada buscando considerar a liberdade individual constitucionalmente garantida e o princípio de uma ordem de propriedade socialmente justa, com o objetivo de mediante adequada ponderação, consolidar relações equilibradas e justas.
Portanto, o direito à propriedade deve ser analisado sob o prisma do princípio da função social da propriedade, esta vista como norma geral conformadora, que traduz a ideia que todos os órgãos do Poder Público devem considera-la como princípio diretivo e operante, seja no momento da criação do direito seja no momento de sua aplicação.
Na busca pela concretização da função social da propriedade, o legislador está obrigado a concretizar um modelo social fundado, de um lado, no reconhecimento da propriedade privada e, de outro, no princípio da função social, em uma relação contínua e equilibrada entre esses dois elementos dentro da ordem jurídica, observando-se, sempre, os princípios constitucionais da justiça social e da dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS
BALEEIRO, Aliomar. Constituições brasileiras: 1891. Senado Federal, vol. 2, 2001.
BALEEIRO, Aliomar e SOBRINHO, Barbosa Lima. Constituições brasileiras: 1946. Senado Federal, vol. 5, 2001.
CAVALCANTI, Themistocles Brandão, DE BRITO, Luiz Navarro e BALEEIRO, Aliomar. Constituições brasileiras: 1967. Senado Federal, vol. 6, 2001.
DE ABREU PESSOA, Emanuel. A constitucionalização da função social da propriedade: alteração na dogmática do Direito Civil. Revista Jurídica da FA7, v. 7, p. 65-75, 2010.
DE ASSIS, Luiz Gustavo Bambini. A evolução do direito de propriedade ao longo dos textos constitucionais. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 103, p. 781-791, 2008.
LEAL, Roger Stiefelmann. A propriedade como direito fundamental. Revista de informação legislativa, Brasília, v. 49, n. 194, p. 53-64, 2012.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 17 ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 10a ed. São Paulo: Atlas, 2001.
NOGUEIRA, Octaciano; BALEEIRO, Aliomar. Constituições brasileiras: 1824. Senado Federal, vol. 1, 2001.
NONES, Nelson. Direito de propriedade e função social: evolução histórico-jurídica. Revista Jurídica (FURB), v. 13, n. 25, p. 108-126, 2009.
OLIVEIRA FILHO, João Glicério de. Fundamentos jurídicos da função social da empresa. 2008. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal da Bahia. https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/12323/2/DISSERTA%c3%87%c3%83O%20DE%20MESTRADO%20UFBA%20ELEMENTOS%20TEXTUAIS.pdf. Acesso em 20 de outubro de 2022.
POLETTI, Ronaldo. Constituições brasileiras: 1934. Senado Federal, vol. 3, 2001.
PORTO, Walter Costa. Constituições brasileiras: 1937. Senado Federal, vol. 4, 2001.
TAYER NETO, Pedro Felippe; GONÇALVES NETO, João da Cruz. Função Social da Propriedade Rural: uma regra constitucional. Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curitiba, n. 57, p. 181-201, 2013.
TEPEDINO, Gustavo e SCHREIBER, Anderson. A garantia da propriedade no direito brasileiro. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VI, nº. 6, p. 101-119, Junho de 2005.
1Mestre em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Procurador do Município de Lauro de Freitas-BA. Advogado. Membro do Grupo de Pesquisa Constituição, Política e Instituições Judiciais.