EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA: MAIS UM CASO DE ATIVISMO JUDICIAL?

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.6755417


Autora:
Paula Matos Torres1


RESUMO

No presente estudo, buscou-se analisar a decisão do Supremo Tribunal Federal a partir de um caso concreto – o julgamento do HC 126.292/SP – com o fito de analisar se a decisão em comento pode se enquadrar como manifestação do fenômeno denominado ativismo judicial. Para tanto, foram trazidas as balizas teóricas relativas ao ativismo judicial, com as principais considerações acerca dos pesquisadores que se debruçam sobre o tema, por meio de uma pesquisa bibliográfica. Nesse sentido, questionou-se se o como o resultado alcançado no julgamento em espeque se apresenta frente à ordem jurídica: exercício legítimo da jurisdição constitucional ou atuação não amparada pelo ordenamento? Ao final, observou-se haver espaços vazios na decisão que colocam em xeque a sua compatibilidade com o ordenamento posto, numa perspectiva de supremacia da Constituição, tendo sido considerado um extrapolar na interpretação dos comandos normativos que disciplinam a matéria, caracterizando-se uma postura ativista não amparada pelo ordenamento.

Palavras-chave: ativismo; HC 126.292/SP; supremacia da Constituição.

ABSTRACT

In this study, we sought to analyze the decision of the Supreme Court from a concrete case – the trial of HC 126.292/SP – in order to analyze whether the decision under consideration may fit as a manifestation of the phenomenon called judicial activism. For this, were brought the theoretical frameworks relating to judicial activism, with the main considerations about the researchers who address the issue, through a literature search. In this sense, it was questioned whether the result achieved in the trial in question presents itself before the legal order: legitimate exercise of constitutional jurisdiction or performance not supported by the order? At the end, it was observed that there are empty spaces in the decision that put in check its compatibility with the existing legal system, in a perspective of supremacy of the Constitution, having been considered an extrapolation in the interpretation of normative commands that govern the matter, characterizing an activist posture not supported by the legal system.

Keywords: activism; HC 126.292/SP; supremacy of the Constitution.

1. INTRODUÇÃO

No presente artigo, pretende-se averiguar se a decisão do Supremo Tribunal Federal que autorizou a execução da pena privativa de liberdade a partir do acórdão condenatório de segundo grau se insere no contexto do fenômeno conhecido como ativismo judicial. Para tanto, será realizada uma análise teórica, por meio de consulta bibliográfica, para a compreensão desse fenômeno e como ocorre a sua manifestação na ordem jurídica. 

As razões que motivaram a análise se a decisão se enquadra como ativista dizem respeito à controvérsia, já delineada no capítulo anterior, em relação à legitimidade do Judiciário em realizar uma interpretação de encontro a um preceito constitucional expresso como também ao questionamento sobre uma possível invasão da esfera do Poder Legislativo em proceder a alteração constitucional atinente à antecipação da execução da pena para a segunda instância.

Ressalta-se, inclusive, que uma eventual modificação realizada pelo Legislativo é objeto de questionamentos tendo em vista os limites materiais do poder de reforma da Constituição.  Frisa-se, de antemão, que a antecipação da execução já fora objeto de Proposta de Emenda Constitucional (PEC) em 2011, quando sob influência de declarações do Ministro do Supremo Cesar Peluso, apresentou-se proposta no sentido de fixar o marco do trânsito em julgado para a segunda instância, com vistas a respaldar a execução provisória a partir do acórdão condenatório de segundo grau.  Entretanto, após diversas modificações, a proposta inicial não subsistiu, não sendo realizada, portanto, a pretendida alteração (LUCHETE, 2013). 

Desse modo, embora não tenha logrado êxito a proposta de emenda, em 2016 a temática retornou à pauta do Supremo que, em uma decisão paradigmática, alterou o posicionamento, permitindo a execução a partir do segundo grau. Em face tanto da interpretação empreendida a respeito da norma constitucional em questão, como também diante do questionamento relacionado à legitimidade do Judiciário em promover a alteração, estudar-se-á se há ligação com o fenômeno do ativismo. 

2. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS ACERCA DO FENÔMENO DO ATIVISMO JUDICIAL

Nesse tópico, procurar-se-á abordar os principais conceitos que permeiam o fenômeno do ativismo judicial, com a delineação do contexto sobre o qual se insere e a sua compatibilidade com a ordem jurídica. O protagonismo dos Tribunais, sobretudo em decidir questões de relevo para a sociedade bem como à amplificação de novas demandas levadas ao Judiciário tem recebido a atenção de pesquisadores ao redor do mundo. Nota-se que, apesar de existir um maior consenso a respeito do conjunto de fatores que levam a esse processo de assunção de centralidade por parte do Poder Judiciário, há, por vezes, uma confusão terminológica que associa, inclusive, o ativismo à judicialização, sendo necessário perscrutar o alcance desses termos. 

Destarte, devido ao tratamento conjunto comumente dispensado à judicialização e ao ativismo, serão expostos, inicialmente, os fatores desencadeadores da intensificação da judicialização das relações sociais e as tentativas de diferenciação com o ativismo judicial.

Como interessa mais ao presente estudo o entendimento do chamado ativismo, justamente para averiguar o caráter da decisão proferida no HC 126.292/SP, buscar-se-á expor leituras diferentes desse fenômeno bem como a vagueza que, por vezes, permeia a sua abordagem.  

Nessa toada, é necessário buscar na literatura jurídica as conceituações referentes a ambos os fenômenos. Sabe-se que a discussão sobre a expansão do Judiciário já movimentava o cenário norte-americano, sendo a obra The Global Expansion of Judicial Power (1995), elaborada por Tate e Valinder apontada comumente como central no estudo sobre a judicialização. Na referida obra, Tate (1995) a define da seguinte maneira:

A expansão do domínio dos tribunais ou dos juízes em detrimento dos políticos e/ou dos administradores, isto é, a transferência do poder de decisão do legislador, do governo, ou da administração civil ou, pelo menos, a propagação dos métodos da tomada de decisão judicial para fora do campo judicial propriamente dito. Em conclusão, podemos dizer que a judicialização envolve essencialmente uma transformação na direção do processo judicial. (TATE, 1995).

No artigo  intitulado  Judicialização  da  Política,  Poder  Judiciário  e  Comissões Parlamentares de Inquérito, Azulai (2010, p. 9) expõe como alguns dos fatores elencados por Tate  como  facilitadores  do  processo  de  judicialização  os  seguintes:  a  existência  de  um ordenamento ancorado no princípio da separação dos poderes; a presença de uma Constituição consagradora de direitos; a valoração negativa de instituições majoritárias em contraste com a legitimação do Poder Judiciário, assim como a delegação de funções por parte dessas instâncias majoritárias em direção ao Judiciário. 

Ainda nessa perspectiva de apontar as razões determinantes no processo de intensificação da judicialização das relações sociais, Tassinari (2012, p. 29-33) assevera que o cenário pós-segunda guerra gerou uma pressão para que houvesse o rompimento com a tradição legislativa anterior, de modo a endossar a centralidade e o conteúdo dos direitos fundamentais para além de um formalismo estéril, ultrapassando as fronteiras de um Estado Legislativo para um Estado Constitucional de Direito. Nesse sentido, aponta que são reflexos desse processo o reconhecimento da força normativa da Constituição e a incorporação de novos direitos. Além disso, cita a criação de Tribunais Constitucionais na Europa com o intuito de disciplinar a jurisdição constitucional, em face da ausência de previsão no marco institucional anterior à segunda guerra. 

Soma-se a esse processo da substancialização do direito, a complexificação da sociedade contemporânea, na medida em que há mais centros de poder em disputa, com o aumento dos polos de decisão e fortalecimento da economia de mercado, desencadeando um contexto social de maior conflituosidade. Se, por um lado, os novos direitos assumem a feição coletiva, muitas vezes, o modo de busca de sua concretização ocorre pela via individual, o que fomenta o desenvolvimento de mecanismos aptos a atender às novas exigências de prestação jurisdicional (TASSINARI, 2012, p. 33-37).  Em arremate, Tassinari pontua que:

Todas estas transformações – a complexidade, o caráter de litigiosidade e a massificação da sociedade – desaguam na judicialização também porque foram impulsionadas por uma redefinição do acesso à justiça. (TASSINARI, 2012, p.36).

Nessa linha de abordagem acerca dos fatores desencadeadores da judicialização, o Ministro do Supremo Barroso discorre sobre o tema.  Segundo Barroso (2009, p.  3-4), contribuíram para o fenômeno da judicialização, no caso brasileiro: a redemocratização do país, da qual adveio uma  intensificação do exercício da cidadania, seja com a previsão de novos direitos, como também com o fortalecimento de instituições, como o Ministério Público bem como com a criação da Defensoria Pública, aumentando a demanda do Judiciário; o processo de  constitucionalização,  com  o  maior  disciplinamento  na  própria  constituição  de  questões outrora  relegadas  à  legislação  infraconstitucional  ou  de  incumbência  das  instâncias majoritárias,  o  que  faz  projetar  uma  cobrança  maior  pela  efetividade,  dirigida  ao  Poder Judiciário e, por fim, o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, o qual caracteriza-se pela hibridez, com a junção dos modelos difuso e concentrado e a existência de uma ampla gama de legitimados a provocar o Judiciário. 

Adentrando na diferenciação entre a judicialização e o ativismo, Barroso (2009, p. 6) explicita que, em que pese a judicialização seja um fato oriundo da constitucionalização dos direitos, o ativismo se insere como uma escolha de interpretar a Constituição em um tom ampliador tanto do seu sentido como do seu alcance. Nessa perspectiva, expõe que a aplicação do texto constitucional a situações não expressamente previstas, a interferência em políticas públicas, com a imposição de obrigações ao Poder Público, bem como a declaração de inconstitucionalidade de leis em situações em que não seja patente o vício são maneiras pelas quais o ativismo se manifesta. 

Percebe-se que o referido Ministro demonstra uma valoração positiva em relação ao ativismo, afirmando, inclusive, que “o ativismo, até aqui, tem sido parte da solução, e não do problema”. Nessa toada, Barroso emite uma postura de dualidade ao contrastar o ativismo com a autocontenção, afirmando ainda que a postura ativista busca alcançar a máxima efetividade do texto constitucional, sem, com isso, adentrar no espaço destinado à criação do direito. No entanto, adverte que, se não for controlado, o ativismo pode gerar consequências danosas (BARROSO, 2009, p. 7- 19). 

Em crítica à caracterização dada por Barroso em relação ao ativismo judicial, Tassinari (2012, p.  20)  pontua que os critérios levantados pelo Ministro para conceituação desse fenômeno, devem ser, na verdade, atitudes comuns ao exercício da atividade jurisdicional. Nesse sentido, para a autora, a extração das máximas potencialidades do texto constitucional, a imposição de condutas ao Poder Público bem como o exercício do controle de constitucionalidade são condutas inerentes à atividade judicial, não servindo como elementos aptos a caracterizar o fenômeno do ativismo.  Reconhece, no entanto, como adequado o entendimento acerca da judicialização como oriunda do novo modelo constitucional bem como da passagem de um Estado Social para um Estado Democrático de Direito. 

Na tese de mestrado intitulada Ativismo judicial: uma análise da atuação do Judiciário nas experiências brasileiras e norte-americana, Tassinari (2012, p. 43-44) discorre a respeito da diferenciação entre a judicialização e o ativismo.  Compreende a judicialização como fenômeno cuja matriz principal não é jurídica, mas derivada de uma conjunção de fatores políticos, sociais e também jurídicos, encontrando-se, de um lado, uma intensificação na busca por novos direitos e, de outro, uma ineficiência na implementação desses por parte das instâncias majoritárias.  Por sua vez, o ativismo decorre explicitamente da atividade jurisdicional, tendo como elemento central o aspecto comportamental no que tange à interpretação da norma. 

A autora liga o ativismo a uma manifestação de vontade do intérprete não subsidiada por “pressupostos jurídicos” (TASSINARI, 2012, p. 93). Abordando especificamente o cenário brasileiro, a autora pontua o seguinte:

o ativismo judicial aparece como um problema, carregado de um pragmatismo que torna a interferência judicial, nos moldes de um ativismo judicial à brasileira, perigosa, porque vinculada a um ato de vontade do julgador (TASSINARI, 2012, p. 122). 

Nessa linha de abordagem exposta por Tassinari e diferentemente dos apontamentos do Ministro Barroso – o qual coloca o ativismo como um fenômeno que pode ser proveitoso ao jogo democrático -, o professor Lênio Streck (2016, p. 724) entende que o ativismo judicial é sempre prejudicial à democracia, sendo um expoente na crítica dirigida à postura ativista, no contexto nacional.  Considera, por outro lado, a judicialização como um fenômeno “contingencial” que se manifesta em países regidos por uma constituição analítica, sendo o grau de intensidade definidor de sua valoração como positiva ou negativa, não realizando um juízo de valor prévio, nesse caso.  Com isso, vê-se que, nesse ponto atinente à compreensão da judicialização, a sua análise se aproxima do Ministro Barroso ao compreendê-la como um reflexo de um modelo constitucional analítico. Nessa toada, assevera Streck (2016, p. 724): 

O ativismo sempre é ruim para a democracia, porque decorre de comportamentos e visões pessoais de juízes e tribunais, como se fosse possível uma linguagem privada, construída à margem da linguagem pública.  Já a judicialização pode ser ruim ou pode não ser.  Depende dos níveis e da intensidade em que ela é verificada. Na verdade, sempre existirá algum grau de judicialização (da política) em regimes democráticos que estejam guarnecidos por uma Constituição normativa. (STRECK, 2016, p. 724). 

Streck (2018) parte da premissa de que as decisões ativistas ancoradas tanto em uma postura progressista baseada na ampliação de direitos não contemplados no texto normativo como também em uma ação conservadora de encontro a garantias constitucionalmente asseguradas são, igualmente, negativas ao jogo democrático. Desse modo, percebe-se que o jurista entende que não se deve ter uma visão utilitarista em defesa do ativismo somente quando esse se manifesta em um tom progressista, ampliador de garantias, sendo a postura judicial ativista, independentemente do viés que assuma, uma atuação não amparada pelo ordenamento. 

Aponta Streck (2016, p. 725-726) um questionamento central que deve ser feito para averiguar se há uma postura ativista: “a decisão (uma determinada decisão), nos moldes em que foi proferida, pode ser repetida em situações similares?”. Explica que se a resposta for negativa, de modo a se afastar da premissa da universalidade, há um risco de que a decisão se constitua como ativista. Nessa toada, o autor ainda salienta que, a título de exemplificação, as decisões do Supremo acerca da equiparação das uniões homoafetivas bem como do reconhecimento do Estado Inconstitucional de Coisas são manifestações do ativismo judicial. 

Nacionalmente, uma obra considerada referência na abordagem da temática intitula-se “Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF”, organizada por Vanice Regina Lírio do Valle. Na obra, mostra-se que, mesmo nas consultas preliminares a dicionários norte-americanos, evidencia-se a falta de clareza quanto à significação do termo. Se, por um lado, remete-se a uma postura de busca pelo alargamento do alcance dos direitos individuais, por outro, remete-se a um aspecto comportamental, no sentido de fazer prevalecer as visões pessoais no ato de interpretação das normas. Apesar da ausência de critério no uso do termo, é apresentada a sistematização realizada por Keenan Kmiec no âmbito da pesquisa acadêmica.  (VALLE, 2012, p.  19-21).  Com isso no livro em questão compilou-se os principais sentidos atribuídos ao ativismo, nos termos propostos por Kmiec:

É ainda de Kmiec a sistematização das definições traçadas ao termo – em sede doutrinária, e mesmo em sua utilização jurisdicional – ao reconhecer as cinco principais conceituações do ativismo judicial, de uso corrente na atualidade: a)  prática  dedicada  a  desafiar  atos  de  constitucionalidade  defensável emanados em outros poderes; b) estratégia de não-aplicação dos precedentes; c) conduta que permite aos juízes legislar “da sala de sessões”; d) afastamento dos  cânones  metodológicos  de  interpretação;  e)  julgamento  para  alcançar resultado pré-determinado. (KMIEC APUD VALLE, 2012, p. 21).   

Entende-se, no entanto, que cada uma dessas conceituações possui insuficiências explicativas que afastam a devida compreensão do fenômeno. Nessa toada, a autora aponta não ser possível somente a partir da própria atividade de controle etiquetar a decisão como ativista, podendo ser a conduta reiterada de contestação dos atos dos demais poderes em casos difíceis uma possibilidade de ativismo, a qual, contudo, remete à controvérsia sobre a classificação do caso como “difícil”. No que tange ao segundo parâmetro ligado ao desrespeito aos precedentes, a autora entende que a doutrina, de forma geral, não reconhece a superação de uma linha inadequada de interpretação ou a superação do entendimento a partir das novas circunstâncias existentes como uma decisão ativista. (VALLE, 2016, p. 21-22). 

Segue-se apontando que a atribuição de uma atividade legiferante aos juízes esbarra na própria dificuldade atinente a estabelecer qual o conceito do direito, e ainda, de forma mais específica, na falta de parâmetros para apontar o comportamento criacionista por parte dos juízes. As insuficiências dessa definição que situa o ativismo como uma atividade de criação do direito assemelham-se àquelas relacionadas à definição de uma postura ativista como decorrente do “afastamento dos cânones metodológicos de interpretação”, justamente em razão da ausência de consenso no que tange aos parâmetros que permeiam essa tarefa interpretativa da constituição. Por fim, a definição que toma como pressuposto a orientação a um resultado pré-determinado levanta o questionamento em relação às dificuldades empíricas de perscrutar os motivos que levaram o julgador àquela determinada linha de argumentação, se já havia ou não um juízo antecipado (VALLE, 2016, p. 23-24). 

A par da demonstração dessas insuficiências explicativas no que tange à conceituação do ativismo judicial, Valle demonstra se coadunar com a perspectiva trazida por William Marshall relativamente ao ativismo jurisdicional, o qual recebe a conceituação do referido autor como sendo a “recusa de os tribunais se manterem dentro dos limites jurisdicionais estabelecidos para o exercício de seus poderes” (VALLE APUD MARSHALL, 2012, p. 39). Amparada nessa perspectiva, a autora entende que há um processo de redefinição da competência do Supremo, dentro do qual a Corte passa a se projetar em áreas que não estavam previstas originariamente no texto constitucional como de sua atribuição.

Desse modo, a autora levanta a tese de que o manejo conferido por parte do Supremo aos institutos processuais da reclamação constitucional e do mandado de injunção ilustra o quadro que denomina de ativismo jurisdicional. Isso porque, em síntese, com a remodelação do uso  desses  instrumentos  processuais,  por  meio,  no  caso  da  reclamação,  de  uma  postura ampliadora das possibilidades de propositura bem como da declaração de inconstitucionalidade incidental, e, no caso do mandado de injunção, a partir da concessão de efeitos constitutivos, conferindo efetividade a direitos que estavam à espera da concretização por parte do legislador, houve  uma  redefinição  das  competências  da  Corte,  de  modo  a  conferir  ao  Supremo  o conhecimento de temas que, a priori, não estavam em seu âmbito de abrangência. Em outras palavras, Valle aponta que esse ativismo jurisdicional “reconhece maior amplitude ao conjunto de interferências possíveis no funcionamento dos demais poderes” (VALLE, 2012, p. 63). 

Percebe-se  que  diferentemente  das  análises  que  associam  o  ativismo  a  uma  postura comportamental,  na  medida  em  que  o  intérprete  faz  prevalecer  as  suas  visões  pessoais  na aplicação da norma, ultrapassando os limites previamente estipulados, a leitura trazida pela autora,  partindo  do  conceito  de  ativismo  jurisdicional,  remete  a  condições  mais  objetivas  a partir das quais a Corte Suprema redefine o seu próprio papel no âmbito institucional por meio de instrumentos processuais existentes e passa a operar em novos termos, de modo a alterar a configuração inicial da definição das funções. Ou seja, nos casos ilustrados na referida obra, passou-se a flexibilizar as hipóteses de admissão da reclamação, ampliou-se o rol de legitimados a suscitá-la, bem como foi conferido a esse instituto características das ações de controle concentrado, afastando-se das previsões iniciais atinentes à reclamação. No caso do mandado de injunção, o ponto central é a previsão de concretude aos direitos que dependiam de providências do Poder Legislativo, com decisões mais conteudistas que refletiam no rearranjo das funções inicialmente previsto.

Há ainda aqueles, a exemplo de Hachem (2016), que encaram o ativismo não como uma postura que necessariamente se caracterize por ir de encontro ao texto legal, podendo uma decisão ativista se manifestar de diferentes maneiras. O referido autor reconhece o papel contra majoritário desempenhado pelo Poder Judiciário, em uma dimensão protecionista dos direitos fundamentais que, por vezes, encontrem-se à mercê da regulamentação por parte das maiorias legislativas. Entretanto, adverte que ao Judiciário não é concebível realizar uma interpretação contrária aos ditames legais e em violação as garantias asseguradas ao cidadão. Portanto, não compreende o autor o ativismo em uma visão que o associa a um ato de vontade não amparada pelo ordenamento, mas como um fenômeno que merece análise caso a caso, podendo estar ligado a uma interpretação ampliativa do texto normativo.

São, portanto, formas distintas de ativismo judicial: uma para proteger direitos e a outra para restringir direitos. A primeira encontra apoio na função contramajoritária do Poder Judiciário – se as maiorias parlamentares, por ação ou omissão, vulnerarem direitos fundamentais, incumbe aos juízes tutelar as minorias afetadas. A segunda encontra vedação no princípio democrático e no princípio da legalidade – é preciso ter legitimidade democrática para, por meio da criação de leis, restringir a esfera jurídica do cidadão. (HACHEM, 2016).

Diante das conceituações trazidas, percebe-se que, por vezes, o ativismo está vinculado a um elemento comportamental, evidenciado por um ato de vontade do julgador na interpretação da norma, bem como uma decisão amparada por critérios “não jurídicos”, conforme apontamentos veiculados por Streck e Tassinari, os quais enxergam de forma negativa a existência dessa postura. Por sua vez, a abordagem presente na obra organizada por Do Valle já possui um viés mais estrutural, na medida em que entende o ativismo como redefinição das competências da Suprema Corte, a qual passa a remodelar a própria atuação alcançando esferas que originariamente não estavam previstas. Ainda, Barroso liga o termo a uma acepção positiva, compreendendo, no entanto, que deve haver uma dosagem.

Em uma leitura diferente da usual, Rodriguez e Nobre lançam perspectiva diversa acerca de ambos os fenômenos, em visão que dessacraliza o arcabouço institucional existente, questionando o formato inicial proposto à separação dos poderes. Nesse sentido, na obra “Como decidem as Cortes?” Rodriguez e Nobre (2013), no capítulo 5, intitulado “Judicialização da política? Sobre a naturalização da separação dos poderes (I)”, lançam reflexões, partindo do questionamento do desenho institucional e da tensão entre o direito e a política.

Os autores partem do pressuposto de que, na democracia, a dinâmica institucional deve ser submetida à análise, de modo a evitar a naturalização da noção de que as regras do jogo estão predefinidas e são categorias justificáveis por si mesmas. Nesse sentido, entendem que a compreensão naturalizada e peculiar da ideia de separação de poderes está na base das noções de “judicialização da política” e de “ativismo judicial”. De forma geral, mostram que esses conceitos partem de uma idealização dos papéis do Legislativo e do Judiciário, delimitando-os, com a noção de que o espaço jurisdicional é infenso à política em sentido amplo (RODRIGUEZ; NOBRE, 2013, p. 183).

Entendem Rodriguez e Nobre (2013, p. 184) que, por mais que se tome referida configuração institucional como ideal, verifica-se que essa não se amolda à realidade presente. Diante disso, demonstram que é possível encontrar uma variedade de desenhos institucionais e de modelos normativos possíveis diante da ideia de separação dos poderes, afastando-se a compreensão de que essa noção veicula um modelo único a ser adotado. Segundo eles,

A cristalização da visão de que os poderes são três e de que cada um deles tem a função de controlar o outro é apenas uma das possibilidades institucionais que mesmo a ideia original de freios e contrapesos de Montesquieu permite pensar (RODRIGUEZ; NOBRE, 2013, p. 185).

A crítica realizada pelos citados autores a essa visão unívoca e naturalizada do desenho institucional a ser seguido perpassa por uma visão formalista do direito, a qual se ampara seja na “aplicação mecânica do direito positivo” seja na “verdade transcendente” atribuída às categorias do direito. Essa compreensão, dentre outros aspectos, impede o acesso a diferentes configurações institucionais, além de restringir o alcance do que se entende como sendo o “jurídico” (RODRIGUEZ; NOBRE, 2013, p. 119). Em outras palavras, é como se afastasse o diálogo com as outras dimensões da realidade, sobretudo, com a política em sentido amplo. Nessa toada, asseveram Rodriguez e Nobre:

Abandonar a visão que embasa as ideias de “judicialização da política” e de “ativismo judicial” não significa abdicar de qualquer pretensão normativa. Significa apenas dar um passo atrás em relação a uma teoria normativa por demais determinada, que bloqueia tanto uma boa descrição dos conflitos como o surgimento de alternativas para encontrar as melhores fórmulas 65 institucionais de seu regramento democrático. (RODRIGUEZ; NOBRE, 2013, p. 199).

Decerto, é evidente a diferença entre a leitura proposta pelos referidos autores e a perspectiva tradicional acerca desses fenômenos. Essa nova forma de olhar a questão, de certa forma, remete à vagueza que ainda existe quanto à caracterização do ativismo, sendo o objetivo ultrapassar essa discussão amparada em uma moldura pré-fixada do desenho institucional, de modo a rejeitar qualquer tipo de desvio, para adentrar, mais concretamente, na seara argumentativa, como parâmetro de controle das decisões. Frisa-se, no entanto, que a preocupação com o extrapolar do texto legal por parte do Judiciário encontra-se presente, assim como na análise tradicional, porém em uma vertente mais interna de análise da racionalidade da decisão.

Na presente pesquisa, diante do confronto entre as posições, não se adota uma visão prévia pejorativa acerca do fenômeno do ativismo. Percebe-se que há múltiplas caracterizações do fenômeno, sendo difícil adotar uma conceituação unívoca quanto a ele. Partindo-se da multiplicidade de respostas existentes aos problemas jurídicos e da diversidade das formas de interpretação, é, inclusive, controverso identificar uma tomada de decisão como sendo um ato de vontade daquele que julga. Se o resultado, muitas vezes, pode ser diverso, como saber então qual daqueles partiu de um ato de vontade ou não? É certo que o critério trazido por Streck acerca da universalidade que deve pautar o julgamento é uma premissa a servir de guia na interpretação, visto que, se assim não fosse, o caráter do sujeito é que determinaria o tipo de resposta a ser dada, não se coadunando, dessa forma, com um pressuposto isonômico. Deve-se ter em mente a consonância da intepretação com o texto legal em vigor, não se legitimando uma postura do Judiciário que, sob a premissa de fazer justiça, desconsidere o parâmetro legalmente estabelecido. Por outro lado, reflete-se se uma interpretação ampliativa do texto legal, desde que não desconsidere a norma em vigor, deve não ser encarada, necessariamente, como ruim ao jogo democrático.

3. COMO SE ENQUADRA O JULGAMENTO DO HC 126.292/SP: EXERCÍCIO LEGÍTIMO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL OU ATUAÇÃO NÃO AMPARADA PELO ORDENAMENTO?

O ponto central da discussão que permeia a comunidade jurídica sobre a mudança de entendimento que referendou a possibilidade da execução provisória da pena a partir de um acórdão de segundo grau diz respeito à existência de expressa menção na Constituição do marco 66 temporal referente ao trânsito em julgado. A partir da exposição dos votos, vê-se que a tônica argumentativa esteve direcionada tanto a razões de política criminal atinentes ao aumento da efetividade do sistema processual penal como também à ponderação entre princípios em jogo. Diante da repercussão gerada na comunidade jurídica e levando-se em consideração os reflexos do referido julgamento para o sistema criminal cabe perscrutar se o resultado alcançado se revela como um exercício legítimo da jurisdição constitucional ou uma atuação do Judiciário que vai de encontro ao ordenamento.

É importante destacar que, por mais que não haja uma caracterização precisa do que seja propriamente uma decisão ativista, levando-se em conta as controvérsias entre os pesquisadores tanto sobre o conceito do ativismo como sobre a sua valoração em relação ao jogo democrático, torna-se possível, a partir da análise argumentativa já realizada, tecer considerações em relação à ligação do resultado alcançado no julgamento do HC 126.292/SP pela Corte Suprema com o fenômeno do ativismo judicial, a partir das análises já realizadas.

Como se trata de uma decisão com potencial para interferir na esfera jurídica da liberdade daqueles que estão sujeitos ao curso de um processo criminal e também levando-se em conta a reflexão trazida concernente aos limites da interpretação a ser realizada pelo julgador, é necessário demonstrar em qual perspectiva teórica estar-se-á se pautando para tornar possível a compreensão se houve uma manifestação judicial compatível com o ordenamento jurídico posto. Nesse sentido, partindo-se da teoria garantista de Ferrajoli, presente na obra Direito e Razão, especificamente no tópico 12 “Discricionariedade. O poder de disposição e os princípios gerais”, procurar-se-á refletir sobre a legitimidade da atuação discricionária em uma perspectiva garantista, tendo em vista o tipo de interpretação realizada. Antes de adentrar a análise específica no que tange à discricionariedade judicial com base nessa perspectiva teórica, pertinente se faz esclarecer a conceituação de garantismo:

O garantismo penal é, antes de tudo, um modelo cognitivo de identificação do desvio punível, baseado em uma epistemologia convencionalista e que comporta refutações (ou declarações de falsidade), tornada possível pelos princípios de legalidade estrita e de estrita jurisdicionariedade. É, além disso, um modelo estrutural de direito penal caracterizado por alguns requisitos substanciais e por algumas formas procedimentais em grande parte funcionais a tal epistemologia: como a consequencialidade da pena ao delito, a exterioridade da ação criminosa e a lesividade de seus efeitos, a culpabilidade ou responsabilidade pessoal, a imparcialidade do juiz e sua separação da acusação, o ônus acusatório da prova e os direitos da defesa. (FERRAJOLI, 2002, p. 135).

Ao adentar na seara da discricionariedade, Ferrajoli (2002, p.136-137) discorre sobre o que denomina de “poder de disposição”, o qual, segundo o autor, manifesta-se com a alusão a valores “extra ou metajurídicos”, derivados de uma insatisfatória obediência ao princípio da estrita legalidade que tem como consequência a presença na lei de expressões indeterminadas ou antinômicas. Nesse sentido, esses espaços de indeterminabilidade se encontram mais conectados “aos defeitos de garantias e às imperfeições estruturais, diversamente presentes em todos os ordenamentos penais positivos” do que propriamente à atividade judicante. Dessa forma, cita, levando-se em conta o ordenamento italiano, a vagueza que existe em torno das palavras “obsceno” e “vilipêndio”, o que proporciona uma maior autonomia ao juiz para integrar “post factum”, por meio de alternativas discricionárias e que não se sujeita aos “controles de verdade nem, portanto, de legalidade”.

Ao discorrer sobre o papel dos princípios gerais como mecanismos de racionalização do poder de disposição, explana o autor que há, no garantismo, a crítica dirigida à aplicação mecânica da lei, de modo que não é concebível um sistema plenamente fechado, sendo necessário o recurso a “heterointegrações remetidas à autonomia e à discricionariedade do intéprete”. Segundo Ferrajoli, ilegítimo é o “poder de disposição, gerado pela colocação substancialista e decisionista do sistema e não, sem dúvida, os argumentos políticos ou substancialistas com os quais é exercido e controlado” (FERRAJOLI, 2002, p. 139/140).

Percebe-se que o tom da crítica do autor é dirigida ao que denomina de poder de disposição, como sendo representativo de carências estruturais no sistema que revelam uma menor deferência à estrita legalidade e possui como reflexo a utilização de juízos de valor a respeito de conceitos indeterminados existentes na própria lei. Diante desse “poder de disposição”, reconhece a necessidade de utilização dos princípios gerais do direito, os quais possuem como função específica “orientar politicamente as decisões e permitir sua valoração e seu controle cada vez que a verdade processual seja em todo ou em parte indeterminada” (FERRAJOLI, 2002, p. 138-139).

Muito embora a atenção do autor se volte à indeterminabilidade que porventura exista na legislação, da qual resulta maior autonomia ao julgador, também é dirigida a crítica à atitude do magistrado, diante do poder destinado à verificação da verdade sobre os fatos, o qual é definido como poder de denotação, em livremente utilizar uma linguagem judicial indeterminada. Nesse caso, a atenção é voltada ao julgador, atribuindo-o o cometimento de um vício por defeito de estrita jurisdicionariedade. Para que fique mais claro, vale trazer à luz a exposição de Ferrajoli:

Por sua vez, o poder de denotação fática que o juiz se arroga, mediante o uso de uma linguagem judicial indeterminada, assinala um vício de invalidez dos pronunciamentos judiciais por defeito de estrita jurisdicionariedade. (FERRAJOLI, 2002, p. 138).

Em que pese a análise de Ferrajoli se volte ao poder de disposição dado ao julgador como derivado de uma vagueza existente na própria norma, a decisão ora em análise – o HC 126.292/SP – mais parece estar ligada à atividade realizada pelo intérprete do que propriamente relacionada à norma que ventila a discussão, a qual, não transparece evidenciar a presença de conceitos indeterminados. Notou-se, a partir da leitura do referido capítulo 12 da obra Direito e Razão (2002), que o recurso a fatores extrajurídicos é admitido na teoria garantista, quando há uma indeterminabilidade da norma. Partindo do pressuposto da estrita legalidade, critica-se, de um lado, a vagueza porventura presente na legislação como também a conduta do juiz que se arvora de uma linguagem indeterminada. Mesmo que a controvérsia na decisão em análise resida na interpretação realizada do preceito constitucional, no caso, o artigo 5º, LVII da Carta Magna, não parece estar relacionado o vício – porventura existente na decisão proferida no julgamento do HC 126.292/SP – à utilização de uma linguagem jurídica indeterminada, tal qual exposto por Ferrajoli como um vício de jurisdicionariedade. A discussão chega a ser redundante porque, mais uma vez, retorna-se à legitimidade do extrapolar do critério constitucional expressamente definido. É nesse sentido que vale trazer à discussão acerca de um potencial viés ativista presente na discussão, o qual será melhor delineado a seguir.

Dessa forma, mesmo para aqueles que não veem o ativismo como uma postura necessariamente prejudicial ao jogo democrático, sobretudo considerando o papel contramajoritário do Judiciário na proteção de minorias, a decisão em comento foi encarada como uma violação concreta à Constituição. Em tal sentido, posiciona-se Hachem (2016), para quem, nesse caso específico da execução provisória, houve uma restrição a um direito fundamental, não se amparando uma postura ativista do Judiciário que, indo além do texto constitucional, reduza a proteção conferida pela Constituição.

Na perspectiva que associa o ativismo a um ato de vontade que transcende os limites semânticos da legislação, Streck (2018) entende que a decisão que possibilitou a execução provisória é um claro exemplo de ativismo. A respeito dessa decisão, afirma tratar-se de um ativismo às avessas, pelo qual, diferentemente de uma postura criacionista, adota-se um viés de afronta a direitos assegurados, sendo ambos prejudiciais à democracia.

Dessa forma, por meio da pesquisa a autores que possuem pontos de vista distintos em relação ao citado fenômeno – se para Hachem, o ativismo pode ser positivo ou negativo, a depender da existência ou não de uma postura expansionista no que tange à proteção de direitos fundamentais, para Streck, por outro lado, o ativismo é sempre prejudicial ao jogo democrático porque decorre de um ato de vontade, observa-se, entretanto, que houve convergência quanto à crítica realizada à decisão, entendendo tratar-se de um extrapolar dos critérios expressamente demarcados na Constituição.

Inclusive, adentrando-se na análise argumentativa, nota-se que há, nos votos vencedores da decisão, elementos indicativos de que o tipo de interpretação realizada não condiz com a literalidade do dispositivo em discussão, conforme se extrai, por exemplo, de passagem do voto do Ministro Fachin, na qual afirma interpretar o aludido art. 5º, LVII “sem o apego à literalidade com a qual se afeiçoam os que defendem ser impossível iniciar-se a execução penal antes que os Tribunais Superiores deem a última palavra sobre a culpabilidade do réu” (HC 126.292/SP, 2016, p. 21).

De fato, independentemente da visão que seja adotada em relação ao fenômeno do ativismo, o aludido julgamento, diante dos fundamentos ancorados em razões de política criminal, como aumento de eficiência do processo penal e combate à impunidade, levanta a tensão entre a intersecção das fronteiras entre a política e o direito. Uma das vertentes de discussão do ativismo o coloca como um ato de vontade imbuído de critérios não jurídicos, de modo a desconsiderar as regras estabelecidas. Nesse ponto, Streck, Tassinari e Lepper (2015, p. 59) advertem para o risco da instrumentalização do Direito, de modo a ficar à mercê da conveniência almejada pelo intérprete. Aprofundando as reflexões, os autores pontuam:

O Tribunal que julga por meio de “argumentos metajurídicos” (que não deixam de ser elementos pragmáticos-axiológicos) assume postura apartada da normatividade. Enfraquece-se o Direito, uma vez que o afasta da tradição e o instrumentaliza. Tanto o discricionarismo positivista quanto o pragmatismo (que é uma forma de positivismo), que se funda no declínio do direito, tem déficit democrático. Se o direito como transformador das relações sociais foi a grande conquista do século XX, decidir por meio de argumentos metajurídicos é um retrocesso. A Democracia é, antes de tudo, uma jornada, uma grande caminhada. Pede uma atenção e um cuidado constante. A democracia exige de nós estarmos em alerta. (STRECK, TASSINARI, LEPPER, 2015, p. 59).

A perspectiva trazida por Streck (2010, p. 63) parte do paradigma da autonomia do direito, a qual ganha maiores contornos a partir da elaboração das Constituições dirigentes no pós-segunda guerra. Para o autor, há uma co-originalidade entre a Moral e o Direito, de modo que não há sentido em invocar a distinção entre as duas esferas, a partir do Estado Democrático (STRECK, 2010, p. 170), dando-se a entender a junção de elementos na constituição da norma jurídica. Com isso, infere-se que o autor remete a existência de uma carga material na norma pronta, o que esvazia a tentativa de decidir a partir de critérios não jurídicos, na tentativa de buscar a correção da norma a partir da moral ou da política, por exemplo.

Embora os autores possuam visões dissonantes quanto ao fenômeno do ativismo, conforme explanado no tópico anterior, Rodriguez (2013, p. 69), assim como Streck, lança a preocupação com o julgamento baseado em um ato de vontade, asseverando que a forma de julgar dos tribunais brasileiros assume, por vezes, ares de uma “justiça opinativa”. Nesse sentido, expõe que “prevalece no Brasil a articulação de opiniões acompanhadas da citação, sem contextualização ou análise, de uma série de “jurisprudências” e “doutrinas” a título de argumento de autoridade”. Desse modo, evoca a necessidade de suplantar os ônus argumentativos que são apresentados a fim de descentralizar a autoridade e, por meio do levantamento de premissa de validade que sejam aplicados a casos futuros, construir uma argumentação racional. (RODRIGUEZ, 2013, p. 77-79).

Na perspectiva que levanta um excesso de voluntarismo na forma de julgar, Jardim (2018), expõe que, em que pese já tenha sido favorável à execução provisória da pena, a partir da nova redação dada em 2001 ao artigo 283 do Código de Processo Penal, não resta mais dúvida de que a prisão-pena só pode ser executada após o trânsito em julgado. Dessa forma, entende que o julgamento em comento se revela como um claro exemplo de ativismo judicial, permeado por uma postura pragmatista.

Desse modo, por meio da consulta a autores que partem de pressupostos distintos quanto ao entendimento do que seja o ativismo – como é o caso de Hachem e Streck – observou-se uma uniformidade quanto à crítica dirigida a essa decisão, levando-se em conta a extrapolação do texto constitucional, baseada em uma visão restritiva de uma garantia individual. Dessa forma, por meio da análise dessas posições, entende-se que a decisão é uma manifestação de ativismo – seja adotando-se a perspectiva de um voluntarismo na interpretação, por meio da adoção de critérios não jurídicos seja pela direta violação ao texto normativo – despida de amparo normativo.

4. CONCLUSÃO

Foram elencadas diversas posições a respeito do ativismo e ao mesmo tempo evidenciada a vagueza que permeia a sua conceituação, o que, de certa forma, dificulta a adoção de uma definição unívoca sobre o referido fenômeno. Embora tomadas como pertinentes as observações de Streck sobre o perigo de um julgamento a partir de um ato de vontade norteado por critérios “não jurídicos”, não se entende que o ativismo deva ser caracterizado somente a partir dessa perspectiva, podendo ocorrer uma interpretação ampliativa a abarcar hipóteses que outrora não eram contempladas, sem haver a transgressão ao texto legal, conforme análise de Hachem.

 Superando a conceituação do fenômeno e adentrando na decisão em análise, percebeu-se que, mesmo aqueles que possuem visões dissonantes acerca do ativismo, tanto Streck como Hachem, reconheceram que o referido julgamento se apresenta como um clássico exemplo de uma postura ativista que vai além do texto posto e, portanto, não se coaduna com os parâmetros jurídicos existentes no ordenamento pátrio.

A perspectiva da discricionariedade também foi analisada à luz da teoria garantista, a qual enuncia estar a discricionariedade vinculada ao poder de disposição concedido ao julgador, em vista de insuficiência na estrita legalidade, representada, por exemplo, por meio de conceitos vagos existentes na legislação. Dessa forma, diante de casos assim, recorre-se a argumentos extrajurídicos no ato de decidir, em vista da insuficiência do preceito legal, sendo os princípios gerais parâmetros orientadores da interpretação. Pode haver também um vício de estrita jurisidicionariedade quando o intérprete se vale de uma linguagem judicial indeterminada. Na decisão em questão, apontou-se comumente um extrapolar do preceito legal na interpretação realizada, não se encaixando propriamente na perspectiva de uma insuficiência estrutural na norma nem na utilização de uma linguagem indeterminada, conforme apresenta a teoria garantista.

Sendo assim, diante da análise discursiva realizada, como também por meio das pesquisas a que se teve acesso, ainda que não se pretenda esgotar a tratativa do tema nem oferecer a resposta “correta”, entendeu-se que o julgamento realizado foi de encontro aos ditames constitucionais que ventilam a discussão, tendo amparo somente à luz de uma perspectiva eficientista que mais considere aspectos consequencialistas, muitas vezes, endossados pela opinião pública, como a impunidade, em detrimento da norma constitucional em si. Entende-se também, a partir das leituras realizadas, que a decisão pode ser enquadrada como ativista, seja considerando-se o fenômeno como um ato de vontade imbuído de critérios não jurídicos seja considerando-se como um extrapolar dos critérios legais – manifestada em viés de restrição à garantia fundamental da presunção de inocência.

Visualiza-se, por outro lado, que a decisão deve suscitar a discussão sobre a problemática envolvendo a demora no julgamento de recursos que, muitas vezes, resultam na prescrição da pretensão punitiva. Desse modo, viu-se, por exemplo, que, mesmo doutrinadores contrários à execução provisória, como Lopes Júnior e Badaró, reconheceram que, no caso específico do Superior Tribunal de Justiça, a existência de duas câmaras criminais se mostra aquém da demanda existente, devendo ser um fator a merecer análise. Entende-se, porém, que não é por meio da desconsideração do texto legal e do desrespeito à garantia constitucionalmente assegurada que irá se obter a solução de um problema estrutural no sistema de justiça criminal.

Desse modo, tomando-se a fundamentação como parâmetro de controle, observou-se espaços vazios na decisão que colocam em dúvida a sua legitimidade frente ao ordenamento pátrio. Além disso, observou-se uma atuação restritiva do Judiciário na proteção de uma garantia fundamental consubstanciada no princípio da presunção de inocência, sendo forte a reação doutrinária em relação ao resultado alcançado na decisão em comento.

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1Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Sergipe.