TRABALHO E EDUCAÇÃO: UMA ANÁLISE DOS BOLETINS DE EDUCAÇÃO DO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7120700


Autores:
Gleison da Silva1
Marcos Gehrke2
Érika do Nascimento3


RESUMO

O presente artigo é resultado de uma investigação qualitativa documental. Tem como objetivo central analisar de maneira crítica como o MST documentou em seus Boletins da Educação sua demarcação da concepção de educação e trabalho.. Partimos do problema: quais são as implicações socioculturais da concepção de trabalho e educação para o MST? Dessa maneira, pretendemos contribuir com a relevância dos estudos sobre os movimentos sociais, para pensarmos a educação do MST, que tem como uma das suas finalidades sociais, uma pedagogia do trabalho popular para formação de construtores e lutadores da classe trabalhadora. O artigo desenvolvido possibilita pensarmos a categoria trabalho e educação para o MST como uma condição necessária para vida. Tendo essas duas categorias, traduzidas na Pedagogia do Movimento Sem Terra e de seus documentos.

Palavras-chave: Trabalho e Educação; Educação do Campo; Educação no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST.

INTRODUÇÃO

Discutir o trabalho e a educação no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), é resultado da discussão realizada na dissertação de mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), na linha das políticas educacionais. Como um catalisador, nesse trabalho aproximamos as duas categorias para extraí-las de suas contradições e mediações.

Durante o processo de luta pela Reforma Agrária Popular, o MST (2020), se coloca na posição de enfrentamento ao Estado, entendendo que o direito à Educação é um elemento central nesta luta. As discussões levaram à compreensão de que, a educação e a escola capitalista e, sua forma escolar, não serviam para formação humana da classe trabalhadora do campo (CALDART, 2012), logo, se coloca a necessidade de transformar a escola. Frente a isso, desde sua origem da década de 1980 (STEDILE, 2005), o MST vem construindo a pedagogia do movimento, como sistematiza Caldart (2000). Nessa pedagogia, forjou a escola do acampamento, depois as escolas públicas de assentamento e, a experiência maior de resistência, a Escola Itinerante em acampamentos.

Os dados já produzidos, e que aqui socializamos, analisam a categoria trabalho e educação de um dos grupos de documentos produzidos pelo Movimento nessa trajetória, os Boletins de Educação (1992 – 2020).

No processo investigativo, realizamos o levantamento dos documentos produzidos pelo setor de educação do MST e que, se configuram como a biblioteca do setor de educação, conforme sistematiza Gehrke (2010).  Os documentos são diversos, produzidos entre 1992 e 2020, agrupados em 06 categorias: 15 documentos denominados “Boletins da Educação” (1992 – 2020); 14 “Cadernos de Educação” (1992 – 2017); 07 obras na “Coleção fazendo história (1995 – 2001);  05 materiais na “Coleção fazendo escola” (1998 – 2011); 10 documentos “Cadernos do concurso nacional de redação e desenho” (1999 – 2006); por fim, a “Coleção pra soletrar a liberdade” (2000 – 2001), com 02 documentos, totalizando cinquenta e dois documentos que tratam, especificamente, da educação.

Do ponto de vista metodológico assumimos a concepção do trabalho como princípio educativo, que valorize a experiência dos sujeitos, colocando-se na perspectiva de superação da contradição entre trabalho manual e trabalho intelectual, que é própria do modo de organização da produção capitalista (CALDART, 2004), aspecto analisados nos documentos.

Desta forma, a análise dos documentos possibilita afirmar que o Movimento espera que a escola usufrua da produção bibliográfica, na contradição da intenção que o acervo produzido possa provocar. Esse movimento de escrita analisado evidencia que escrever e restringir o escrito ao caderno e a escola, pode e precisa ser superado. Assumir, na escola, um projeto de leitura e escrita em que escrever é uma forma de lutar é extremamente necessário. Essa luta envolve estudantes, professores, a comunidade, o movimento social e a escola. Todos produzindo e por meio da leitura, trazendo a possibilidade de forjar a biblioteca viva, centro de informação, cultura, itinerância. Escrever, ler e compor biblioteca como forma de luta.

No artigo descrevemos os 15 boletins publicados e, na sequência, analisamos as categorias teóricas de trabalho e educação, presentes nos referidos boletins. Por fim, produzimos as considerações finais e as referências utilizadas.

1. OS BOLETINS DE EDUCAÇÃO DO MOVIMENTO

Após a organização e ordenamento dos documentos ‘Boletins de Educação’, passamos a apresentá-los de forma descritiva expondo o conteúdo dos mesmos para em seguida identificar as concepções de trabalho e educação presente nos mesmos. O quadro 1 reúne os 15 “Boletins de Educação” produzidos entre 1992 e 2020.

QUADRO 1 – BOLETINS DA EDUCAÇÃO (1992 – 2020)

Fonte: Gehrke (2014), atualizado pelos autores Silva e Nascimento (2020).

O boletim de número 1, produzido pelo coletivo nacional do Setor da Educação, Como deve ser a escola de assentamento, publicado em 1992, totalizando 18 páginas, lança uma nova forma de comunicação interna no MST. Com as palavras de ordem na capa, “Ocupar – Resistir – Produzir” Também na Educação. Os escritos buscam apresentar ao leitor, uma nova proposta de escola, construída da cooperação do Setor da Educação articulada com os outros setores do movimento. O documento tem dois objetivos principais: o primeiro, contribuir na discussão da proposta de Escola de Acampamento e Assentamento e o segundo, subsidiar diretamente o trabalho dos professores em cada escola.

O boletim de número 2, Como trabalhar com a mística do MST com as crianças, publicado em1993. Tem como objetivo trabalhar com o hino, a bandeira, as palavras de ordem, as canções, os gestos, entre outros exemplos, no sentido de cultivar e reinventar os símbolos da luta, da arte e da história do MST. Um documento, que como o primeiro boletim, possui 18 páginas. Organizado em três partes: Hino da Educação do MST: Nova Forma de Aprendizado; Bandeira e Hino Nacional: Símbolos Oficiais do MST e; Palavras de Ordem. Tendo como considerações finais, a transcrição da palestra de Madalena Freire, filha de Paulo Freire, aos professores municipais de Porto Alegre/RS, em 1992. Com isso, percebemos como necessário a importância desse documento para afirmar a posição de desenvolver a mística do trabalho, do estudo e da cooperação. Como também, cultivar e reinventar os símbolos, a arte e a história do movimento.

O boletim de número 3, Como trabalhar a comunicação nos assentamentos e acampamentos, publicado em1993 pelo Setor da Educação. Tem como ideia central apresentar algumas sugestões de como criar instrumentos práticos e simples para melhorar a comunicação interna no movimento. Como sugestão, são propostos: o Jornal Mural e o Jornal do Assentamento/Acampamento. Um documento de 08 páginas. Organizado de forma didática, contribuindo para apresentar aos educadores como elaborar um Jornal Mural, como preparar os materiais necessários para sua produção, seus objetivos ao público e a elaboração dos artigos que fazem parte do jornal. Dessa maneira, é ressaltado a importância de uma equipe destinada ao trabalho da comunicação popular do movimento. Consideramos a relevância desse documento, por tratar da formação de opinião pelo e para o MST.

No boletim de número 4, Escola Trabalho e Educação, publicado em 1994 pelo Setor da Educação. Observamos uma mudança estrutural do texto, como também na sua capa, em que os três primeiros mantiveram as mesmas palavras de ordem e fonte das letras. Porém, a partir desse documento, temos mudanças significativas. Isto porque, é o primeiro documento dessa coleção, com a organização de um sumário. Dessa divisão interna, que conta com introdução e o desenvolvimento dividido em quatro partes: O trabalho educa; A escola pode educar pelo trabalho; O MST e a escola do trabalho e A escola do trabalho: Cooperação e Democracia. Por fim, observamos uma um referencial de apoio, que sugere leituras complementares. Um documento com 20 páginas.

O boletim de número 5, O trabalho e a coletividade na educação, publicado em 1995 pelo setor da educação do MST. É uma tradução dos escritos de Anton Semionovitch Makarenko, que relata sua experiência na Colônia Gorki e suas contribuições para a educação socialista e na reeducação de jovens marginalizados no antigo regime que antecedeu a revolução de 1917. É apresentado e abordado os escritos do tema A educação pelo Trabalho, Relações, Estilo e Tom na Coletividade. Um documento com 19 páginas, tendo na última página uma menção ao ano de 1995, que é realizado o 3º Congresso Nacional do MST, com as palavras de ordem: “Reforma Agrária: uma luta de todos”. Consideramos a relevância do documento, por trazer a categoria trabalho como pilar na formação da educação socialista pós revolução, que inspiraram a formação dos sujeitos Sem Terra.

O boletim de número 6, O desenvolvimento da educação em Cuba, publicado em 1995. Tem como objetivo expor a tradução e transcrição da palestra realizada por Luis Ignacio Gómez Gutiérrez, Ministro da Educação da República de Cuba, no Congresso Internacional de Pedagogia no ano de 1995. O autor busca demonstrar os avanços da educação em Cuba, a partir da Revolução de 1959. O documento está dividido em três parte: A História do Povo Cubano – Nossa História, com os subtítulos: Luta contra o colonialismo; A revolução; O Bloqueio do Imperialismo. A segunda parte, O Mundo Capitalista: Aumento dos Excluídos. E a terceira parte, Nossa Política Educacional.

O boletim de número 7, Educação infantil: construindo uma nova criança, de 1997, traz na sua capa uma foto de Sebastião Salgado, que retrata três estudantes enfileirados em sala de aula, sentados nas carteiras de pés descalços, a menina que aparece na primeira carteira, com olhar profundo, olhando diretamente para foto. O documento tem 37 páginas. Divido em três subtítulos, que traz como tópicos, a apresentação, que irá destacar dois fatores principais da sua realização: o resultado do esforço coletivo do movimento em sua elaboração no debate sobre Educação infantil e a continuidade das publicações dos boletins. E o segundo fator, lançar o desafio da Educação infantil para toda a organização, agarrando no desafio de transformar em ação concreta os direitos dos “pequenos”.

O boletim de número 08, Pedagogia do Movimento Sem Terra Acompanhamentos às Escolas, publicado em 2001 pelo coletivo nacional do Setor de Educação, tem como intenção central ser um documento, que avance nas discussões sobre as escolas, entendendo-as como lugares de formação humana, de compromisso com a educação da personalidade de novos e antigos militantes que estão voltados para as causas do povo. Um documento com 63 páginas, que demonstra um significativo avanço nas discussões sobre educação no Setor da Educação do movimento. Nesse documento, é lançado o problema: “que ser humano estamos ajudando a formar através de nossas práticas e das escolas que fazemos no dia a dia de nossas intensas atividades no MST?”.

O boletim de número 9, Educação no MST – Balanço de 20 anos, publicado em 2004 pelo coletivo nacional do Setor de Educação tem como finalidade traçar o percurso educacional no MST, dentro deste período histórico, ou seja, esse recorte temporal. O documento conta com 65 páginas. Em que é apresentado as características do Setor de Educação, a sua construção e as dificuldades enfrentadas. Pontua a concepção de educação e escola, as principais linhas de ação, bandeira de luta e relação com as políticas públicas. O documento também discutirá o conceito de Pedagogia da Terra e Educação do Campo. Por fim, relata duas entrevistas com Gaudêncio Frigotto e João Pedro Stédile, discutindo a educação do campo como impulsionadora de mudanças sociais e a história do MST como aprendizado vivo.

O boletim de número 10, Poética Brasileira, publicado em 2005 pelo coletivo nacional do Setor de Educação aborda uma coleção de poetas e poesias do Brasil. O documento tem 58 páginas. Dentro desta coleção, é encontrado a autoria e nacionalidade, como: Paulo Leminski, Cora Coralina e Cecília Meireles. O documento é dividido em duas seções: Adultos e Crianças. A finalidade da obra é proporcionar acesso à cultura nacional por meio da poesia, num país em que nem todas as pessoas têm acesso aos livros, o movimento mantém sua intenção solidária, sem a comercialização do material produzido.

O boletim número 11, Educação Básica de Nível Médio nas Áreas de Reforma Agrária, publicado em 2006 pelo coletivo nacional do Setor de Educação, tem como finalidade construir definições do movimento sobre a educação básica e envolver a juventude nesta luta. Este material traz uma coletânea de textos e se divide em dois blocos, totalizando 143 páginas. O primeiro bloco apresenta o Debate Teórico Específico, o qual busca fundamentar, de forma científica e técnica, a relação entre trabalho e educação. Além disso, busca discutir a concepção de escola unitária e de politécnica. Dentro deste bloco teórico, são apresentados 7 artigos de diferentes autores para construir a argumentação. O segundo bloco, esta centrado em um contexto de debate. Neste bloco é proposto discutir o modelo agrícola neoliberal do Brasil, a educação básica para os Povos do Campo e a Pedagogia do Movimento.

O boletim de número 12, II Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária II ENERA, publicado em 2014 pelo coletivo nacional do Setor de Educação. Tem como objetivo apresentar a trajetória histórica da educação no/do MST. O documento contém um total de 144 páginas. Está dividido em duas partes: A primeira com textos preparatórios para o encontro, que busca apresentar, um balanço dos 30 anos da educação no MST e o Manifesto das Educadoras e Educadores da Reforma Agrária. A segunda parte, discute textos por eixos temáticos, citando o Programa Agrário do MST, Fórum Nacional de Educação do Campo e os Desafios de Formação da Juventude, entre outros temas relacionados à Educação e Reforma Agrária. Para os autores do documento, trata-se de um balanço político e organizativo, de luta e de olhar para frente, analisando os desafios no contexto mais amplo das lutas da classe trabalhadora.

O boletim da educação número 13. Intitulado, Alimentação saudável: um direito de todos!, é uma produção em parceria do setor de saúde e o setor de educação do MST. Publicado em, 2015, traz conceitos e orientações em torno da alimentação saudável, uma preocupação do movimento desde a sua produção, consumo e comercialização de alimentos.

O boletim de educação número 14, Literatura, sociedade e formação humana, publicado em 2018, traz um conjunto de textos tratando dos aspectos da formação humana no âmbito das artes e da estética do movimento. É uma produção que envolve o setor de educação e de cultura do movimento.

O boletim de número 15, Paulo Freire e a pedagogia do trabalho, publicado em 2020 pelo coletivo nacional do Setor de Educação, tem como intenção central ser um documento de estudo para os educadores em comemoração ao centenário de nascimento de Paulo Freire e, contribuir na Jornada Nacional de formação e trabalho de base, lançado pelo movimento em 2019. Um documento de 158 páginas, organizado com três partes: sobre Paulo Freire; Textos de Paulo Freire; Diálogo com Paulo Freire desde práticas. Consideramos que esse documento reafirma em seu título, a posição do movimento quanto ao seu compromisso histórico com a obra de Paulo Freire, aqui, especialmente assumindo a concepção de pedagogia e o trabalho popular desde a posição freireana que firmou raízes na Pedagogia do Movimento (CALDART, 2000).

2. DEMARCANDO A CONCEPÇÃO DE TRABALHO E EDUCAÇÃO NOS DOCUMENTOS

Apresentados os 15 “boletins da educação” do MST de forma descritiva, verificamos que os documentos de número: 1 – Como deve ser uma Escola de Assentamento, publicado em 1992; 4 – Escola Trabalho e Educação, publicado em 1994; e o 15 – Paulo Freire e a pedagogia do trabalho, publicado em 2020, tiveram maior aproximação com o objetivo proposto no artigo, que está centrado na análise das categorias teóricas trabalho e educação. Buscamos por meio destes documentos, demarcar o itinerário teórico-metodológico de forma a organizar alguns dos pontos levantados das concepções de trabalho e educação pelo Movimento.

Ao delinear a sua concepção de educação, o MST confirma que entende a educação e a luta como prioridade na formação humana emancipadora. Levando em consideração, a intencionalidade educativa, pois assume como necessário a construção de uma escola, que esteja ligada à realidade das pessoas, que torne a luta social, o trabalho socialmente produtivo, a organização coletiva como matrizes organizadoras do ambiente educativo escolar. Nesse caso, não pode ser entendido como educativo apenas o dito, mas o visto, o vivido, o sentido, o participado, o produzido (MST, 2005, p. 213).

No boletim de número 1, é colocado em pauta a escola que temos (capitalista) das escolas que queremos nos Assentamentos/Acampamentos. Isto, coloca em cheque, a escola capitalista que forma para o mercado de trabalho alienado, “educação bancária”, da escola queremos de Assentamento/Acampamentos que forma o trabalhador emancipado, com uma proposta de “educação problematizadora”.

Nesses escritos é possível perceber que o trabalho já é considerado como um dos pilares fundamentais das escolas de Acampamento/Assentamento, juntamente com o conhecimento científico e o amor pela luta. Anunciava-se como necessário que as crianças vivessem experiências que envolvessem o trabalho com a agricultura e que estas pudessem estar relacionadas com a produção real que se desenvolvia. Considerava-se essencial que começassem desde pequenas vivenciarem o processo produtivo, pois a maioria delas já desenvolvia trabalhos, porém, sem que estes tivessem planejamento, intencionalidade pedagógica e acabavam por não alcançar os resultados que poderiam ser alcançados.

Podemos perceber que desde o início da elaboração teórica e prática da Proposta de Educação do MST, já esteve presente a necessidade de lidar com o trabalho, considerado um dos pilares fundamentais. Fica demarcado que não é qualquer trabalho, mas aquele que se relaciona a produção real desenvolvida pela comunidade, inserir os estudantes em situações de trabalho não para que se tornem mão-de-obra barata disponível ao capitalismo, mas que por essa atividade humana criadora se desenvolvam plenamente. A percepção sobre o trabalho trazida é ampla, inserir em situações de trabalho para que aprendam e se desenvolvam por ele, ao ir fazendo, refletir sobre o processo, recolocar, reestruturar, não permitir que torne-se algo mecânico, ou que ações naturalizadas pelo sistema capitalista sejam reproduzidas. A realização de experiências com o trabalho não pode se configurar de forma artificial, simples, mas realmente provocar transformações na vida da comunidade, não é para ser mecânico, “cumprir tabela”, é para ser tão educativo, formativo a ponto de não só desenvolver os que diretamente se relacionam a ele, mas os que se conectam também pela vivência na localidade.     

Uma questão central que não pode ser abandonada ao lidarmos com o trabalho é a reflexão constante sobre as ações. Vivemos em uma sociedade com sistema econômico capitalista, que tem o trabalho em sua proposta educativa também, porém visto de outra forma, com objetivos que não se aproximam dos propostos pelo MST. Realizar ações sem intencionalidade, planejamento, avaliação sobre o processo pode nos levar a contribuir com a formação de trabalhadores pretendida pela classe dominante. Há ações que reproduzimos sem ao menos perceber, esse desvelamento é essencial e a vigilância sobre ele também. De nada nos adianta assumir uma teoria que tem o trabalho como princípio educativo, se ao materializar as ações permitimos que traços, mecanismos próprios do capitalismo sejam reproduzidos. Esse exercício não é fácil, exige olhar para nós mesmos, entender o processo de dominação capitalista e como fomos e somos moldados dentro dele, tendo percebido de que forma se materializam em nossas ações, transformá-las.

Para demarcarmos parte da atual compreensão do MST sobre o trabalho e mostrarmos o quanto foi ampliando as considerações trazidas sobre ele, mas sem abandonar elementos firmados desde o início, trazemos na sequência escritos da autora Caldart (2015). A autora considera que o trabalho está entre as matrizes formativas. Para serem constituídas estas, buscaram na vivência dos Sem Terra, naquilo que provoca transformações em suas vidas, situações que os formam enquanto seres humanos e mexem com seu jeito de ser, mas não somente na vida deles, mas na de qualquer ser humano, e essas situações com dimensão educativa passaram a ser consideradas elemento essencial da proposta educativa do MST. “[…] destacam-se como atividades humanas específicas ou como matrizes formadoras fundamentais: o trabalho, a luta social, a organização coletiva, a cultura e a história”. (CALDART, 2015, p. 124) Como matriz primeira da constituição do ser humano é apontado o trabalho, que nesse sentido é considerado como:

[…] atividade humana criadora, a própria vida humana na sua relação com a natureza, na construção do mundo e de si mesma. Trabalho que produz cultura e produz também a classe trabalhadora capaz de se organizar e lutar pelo seu direito ao trabalho e pela superação das condições de alienação que historicamente o caracterizam, participando assim do movimento da história. Afirmar o trabalho como princípio educativo é, neste sentido amplo, afirmar a própria vida como princípio educativo. […] Mas no plano histórico concreto, a práxis social acontece em diferentes especificações dessa atividade vital criadora, que se completam na formação dos seres humanos concretos, encarnando as contradições da forma de sociedade onde se objetivam. É assim que, na sociedade atual, reafirmamos o sentido positivo do trabalho ao mesmo tempo em que lutamos contra o sentido negativo do trabalho assalariado/explorado/alienado que esta atividade humana específica assume nas relações sociais capitalistas. (CALDART, 2015, p. 123 e 124)   

A escola precisa articular essas matrizes de forma que atenda os objetivos formativos e o ambiente escolar necessita ser transformado para que esteja em consonância com cada uma delas. O ensino não pode estar separado delas. No que se refere em específico ao trabalho, ele é essencial no sentido de ser por ele que o ser humano constitui sua vida. Precisamos que a apropriação dos conteúdos seja convertida em conhecimento e que este esteja relacionado à vida para que seja pleno e possibilite realizar transformações. 

O boletim de número 4, Escola Trabalho e Educação, traz na segunda página uma citação de Marx, que norteia a ideia central do documento, sobre educação: “Gratuita para todas as crianças. E unificação do ensino com a produção material através do trabalho!” (Karl Marx, Manifesto Comunista.). Na primeira linha da introdução do documento, compreendemos o propósito da Escola do MST relacionada aos escritos acima de Marx sobre educação e trabalho:  “É preciso juntar o estudo com o trabalho. É preciso preparar as crianças e os jovens para a cooperação. Educá-los dentro do mundo da produção”. Complementando, a defesa da relação entre trabalho e educação, e também da cooperação.

Uma das grandes referências teóricas do MST ao tratar do trabalho é Marx (1867) que o compreende como processo em que a natureza e o ser humano participam com este impulsionando, regulando e controlando com sua ação toda a relação material com a natureza, tornando ela uma de suas forças. O ser humano apropria-se dos recursos da natureza e faz com que se tornem úteis à sua vida. Essa atuação sobre a natureza faz com que ela se modifique e no processo o ser humano também é modificado, conseguindo dominar as forças naturais. O trabalho é construtor do ser humano, mas este não é descolado do contexto material em que o processo ocorre e as relações que se dão atualmente no mundo do trabalho estão imersas no sistema capitalista, sistema econômico esse que submete a dimensão educativa do trabalho a interesses do grupo que tem controle sobre o restante da sociedade.

Historicamente, e na atualidade com ainda mais força, a classe dominante projeta e executa ações direcionadas para o trabalho. Sabe de seu potencial formativo e o utiliza de forma que atende a seus interesses. A intenção é preparar os seres humanos de acordo com posições específicas. Para aqueles que melhor se destacarem, cargos mais promissores, para os demais mão-de-obra. A própria estrutura da escola é feita de forma a ir filtrando, afunilando cada um e sua respectiva função. Dentre as diversas instituições da sociedade capitalista, está a escola que, conforme defende Frigotto (2010), se articula aos interesses do capitalismo, se inserindo em seu movimento geral, mesmo que de forma contraditória e com distintas mediações. Defende a tese que:

A relação que a teoria do capital humano busca estabelecer entre educação e desenvolvimento, educação e renda é efetivamente um truque que mais esconde que revela, e que neste seu escondimento exerce uma parcela de uma produtividade específica. […] a educação escolar em geral não tem necessariamente um vínculo direto com a produção capitalista; ao contrário, esse vínculo direto tende a ser cada vez mais tênue, em face do movimento geral do capital de submeter de modo não apenas formal, mas real, o trabalhador produtivo às leis do capital. A história do capitalismo, neste sentido, é um esforço crescente de degradação do trabalho e do trabalhador (FRIGOTTO, 2010, p. 34).

Afirma ainda que ao analisarmos a prática escolar, olhando para o trabalho mental, “intelectual”, perceberemos que ela contribui na reprodução da força de trabalho dos indivíduos que supervisionam, planejam, administram na empresa capitalista e em nome do capital, podendo dessa forma afirmar que a escola é necessária para formar a força de trabalho improdutiva.

Com as análises estabelecidas pelo autor é possível afirmar que há uma relação intensa entre escola e trabalho e esta é uma das instituições criadas e mantidas pelo capital para garantir que seu interesse na formação humana de cada sujeito se consolide. Segundo Pistrak (2009, p. 111), na pedagogia socialista soviética,

[…] A escola sempre foi, e não poderia deixar de ser, reflexo do seu século, sempre respondeu àquelas exigências as quais um determinado regime político-social colocou para ela e, se ela não respondeu ao regime do seu tempo, então não pôde ficar viva. Nos tempos pré-revolucionários, a escola, naturalmente, foi um instrumento nas mãos das classes dominantes. Não houve interesse destas em esclarecer a essência de classe da escola; ao contrário, colocaram para si o objetivo de ocultar esta essência, de evitar a preparação da destruição deste regime com sua própria ajuda. Uma das tarefas básicas da revolução social consiste no esclarecimento desta essência de classe (PISTRAK, 2009, p. 111).

Desse modo, o trabalho ocupa um lugar essencial dentro da realidade concreta, podendo a partir dele, defini-la como “[…] luta pelas novas formas sociais de trabalho”. Dentro disso o trabalho se coloca no centro do processo, e assim deve ser considerado também na escola, “[…] Ele entra na escola como elemento social e social-formativo, ou seja, une ao redor de si todo processo educativo-formativo”. (PISTRAK, 2009, p. 127)

Entretanto, o autor ressalta que a escola pode ser um instrumento de mediação na negação das relações capitalistas de produção e mais, pode ser instrumento de auxílio na formulação de condições concretas para superar as relações que separam capital e trabalho, trabalho manual e intelectual, mundo da escola e mundo do trabalho. Da mesma forma, o MST entende, a educação não apenas para o trabalho, mas para a classe trabalhadora. A escola que não é por natureza capitalista, pode se articular com interesses contrários ao deste sistema econômico, pois não é orgânica, inerente a este modo de produção.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Avaliar é retomar objetivos do estudo, nesse caso, foi reunir e ordenar os boletins de educação do setor de educação do MST e, neles, identificar as concepções e práticas do trabalho e educação.

A análise empreendida permite concluir que, os documentos evidenciaram que o Movimento trabalha com um conjunto de gêneros do discurso, para alguns educadores as tipologias textuais, destacando-se: conceitos, definições, canções, poemas, orientações, objetivos, princípios, depoimentos, entre tantos outros. Diante dessa realidade, consideramos necessária a formação de educadores no sentido da compreensão dessa concepção e prática, para que ela possa ser intencionada e incorporada na prática da escola e da educação.

A análise dos documentos permite considerar que, para o MST, a formação de um sujeito alfabetizado, que escreve e lê é, na práxis, a articulação possível e necessária entre falar, pensar, ler e escrever, para agir no mundo. Ocupar a terra, ocupar-se da escrita e por ela ser ocupado, assim, alfabetiza e é alfabetizado o Sem Terra que agora é capaz de ler o texto impresso. Verificamos que esse processo mistura luta, sonhos, prazer, conquistas, vida e morte, gerando sentido para produção da biblioteca, lugar ordenado para ser desordenado pelo leitor crítico.

Verificamos que do conjunto de 15 documentos relaciona o trabalho e a educação, seja pelas orientações para a educação e a escola, a poética, as questões de luta, entre outros. Mas, três deles, trazem em seu título as aproximações entre educação e trabalho, aspecto que definiu a análise a partir desse recorte de documentos. Consideramos, ainda, que a biblioteca do setor de educação precisa colaborar no refazer a biblioteca escolar da escola do acampamento e assentamento, para que educadores escolares possam desordenar e ordenar as práticas pedagógicas. Este, quem sabe, seja o maior desafio.

Destacamos por fim, a concepção de educação e trabalho se ́ pauta no pensamento marxista, na experiência socialista soviética, na produção brasileira da educação popular de Freire. Essas referências fundamentam o Movimento na produção da sua pedagogia, a pedagogia do Movimento. Essa, na atualidade, traz contribuições significativas para o projeto de Educação do Campo em curso no Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. Petrópolis: Vozes, 2000.

_________. Educação do campo: notas para uma análise de percurso. Trab. educ. saúde [online]. 2009, vol.7, n.1, pp.35-64.

_________. Caminhos para transformação da escola.In: CALDART, R. S., STEDILE, M. E., DAROS, D. (orgs.). Caminhos para transformação da escola: agricultura camponesa, educação politécnica e escolas de campo. 1ª ed. – São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 115 – 138.

FRANCO, Maria Laura P. B. Análise de conteúdo. Brasília: Plano Editora, 2003.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 8. ed. São Paulo: Cortez, 1984.

_____. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

_____. Ação cultural para liberdade e outros escritos. 9 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.

FRIGOTTO, G. A produtividade da Escola Improdutiva: um (re) exame das relações entre educação e estrutura econômico-social capitalista. 9 ed. – São Paulo: Cortez, 2010.

GEHRKE, Marcos. Escrever para continuar escrevendo: as práticas de escrita da Escola Itinerante do MST. Dissertação de mestrado em educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010.

MARX, K. O capital. Volume 1. 1. ed. – Coimbra: Centelha – Promoção do Livro, SARL, 1867. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/ocapitalv1/vol1cap07.htm > Acesso em: 01 fev. 2021, 16:30:30.

MILANESI. Luiz. Ordenar para desordenar: centros de cultura e biblioteca pública. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.

PISTRAK, M. M. (Org.). A Comuna Escolar. Tradução de Luiz Carlos de Freitas e Alexandra Marenich. – 1 ed. – São Paulo: Expressão Popular, 2009.

THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. v. 3. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.


1Professor da Rede Estadual de Educação do Paraná, na disciplina de História.
Mestrando no Programa de Pós-graduação em Educação Strictu-Sensu da Universidade do Centro-Oeste do Paraná (UNICENTRO).
Membro do grupo de pesquisa Campo, Movimentos Sociais e Educação do Campo.
E-mail: gleisondsilva@hotmail.com

2Doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Professor do Departamento de Pedagogia da Universidade Estadual do Centro Oeste (Unicentro).
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/Unicentro).
Membro do grupo de pesquisa Campo, Movimentos Sociais e Educação do Campo.
Coordenador do Curso de Pedagogia para Povos Indígenas e do curso de Pedagogia: Docência na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental no contexto do Campo.
E-mail: marcosgehrke@unicentro.br

3Aluna do Mestrado no Programa de Pós-graduação em Educação Strictu-Sensu da Universidade do Centro-Oeste do Paraná (UNICENTRO).