TERRITORIALIZAÇÃO DO CORPO FEMININO: A LEGITIMAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES NO SISTEMA PATRIARCAL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7472689


Renata Dias Dutra


RESUMO:

Com a temática do patriarcado como instrumento legitimador da violência contra as mulheres e da apropriação desses corpos-territórios, este artigo objetivou, de forma geral, analisar tal violência como produto do patriarcado; especificamente, buscou contextualizar a história das mulheres e as conquistas legislativas, respaldar em dados da violência contra as mulheres, sobretudo durante a pandemia do Coronavírus e, por fim, ressaltar como o poder patriarcal atravessa os corpos e a existência das mulheres e alimenta a continuidade da violência, seja física, psicológica, patrimonial, sexual, moral ou simbólica. Para tanto, como método científico, fundou-se na Fenomenologia de Merleau-Ponty (1999), partindo da violência contra as mulheres, o patriarcado, o corpo-território enquanto fenômenos a serem compreendidos em si e não em sua materialidade ou nas abstrações sobre eles. Como metodologia, tratou-se de uma pesquisa qualitativa, bibliográfica, em fontes como artigos científicos e livros, sobretudo fundamentado em Haesbaert (1997; 2008; 2021), Perrot (2017), Foucault (1984) e Safioti (2015); a forma de abordagem dos dados foi analítica, comparativa e descritiva. Como principais resultados, observou-se que a continuidade histórica do patriarcado, a permanência geracional, cultural do poder do homem sobre as mulheres, atravessam e violam os corpos-territórios femininos. 

Palavras-chave: Gênero e Patriarcado. Coronavírus. Corpo-Território. Violência.

ABSTRACT: With the theme of patriarchy as a legitimizing instrument for violence against women and the appropriation of these bodies-territories, this article aimed, in general, to analyze such violence as a product of patriarchy; specifically, it sought to contextualize the history of women and legislative achievements, to support data on violence against women, especially during the Coronavirus pandemic, and, finally, to highlight how patriarchal power crosses the bodies and existence of women and feeds continuity. violence, whether physical, psychological, patrimonial, sexual, moral or symbolic. For that, as a scientific method, it was based on the Phenomenology of Merleau-Ponty (1999), starting from violence against women, patriarchy, the body-territory as phenomena to be understood in themselves and not in their materiality or in the abstractions about they. As a methodology, it was a qualitative, bibliographic research, in sources such as scientific articles and books, mainly based on Haesbaert (1997; 2008; 2021), Perrot (2017), Foucault (1984) and Safioti (2015); the way of approaching the data was analytical, comparative and descriptive. As main results, it was observed that the historical continuity of patriarchy, the generational, cultural permanence of man’s power over women, cross and violate female bodies-territories.

Keywords: Gender and Patriarchy. Coronavirus. Body-Territory. Violence.

INTRODUÇÃO

Durante o primeiro ano da Pandemia do Coronavírus, três mulheres foram vítimas de feminicídio por dia. Milhares foram violentadas, das quais, possivelmente uma minoria conseguiu denunciar, comprovar as agressões e ter acesso à segurança. O silenciamento dessas vítimas é o mesmo das demais mulheres em suas casas, no convívio familiar, no trabalho, na história; as mulheres foram relegadas à vida privada, mas seus corpos foram convertidos em espaços públicos. As formas, o peso, o cabelo, a maquiagem, as roupas, os gestos, o comportamento são constantemente vigiados, controlados e punidos. “Desterritorializaram” os corpos das mulheres e os violam quando lhes é conveniente.

O agravante da pandemia é que, dentre as medidas de contenção da Organização Mundial da Saúde estava o confinamento. Essas mulheres vítimas tiveram que se trancafiar com seus agressores, sem possibilidade de fuga, sem poder proteger seus filhos e denunciar o violador, pois o isolamento retirou das mesmas suas redes de apoio. Não obstante, com as vacinas e o término do isolamento, os índices reduziram. 

Esses dados escancararam as violências contra as mulheres, ou seja, alarmaram para as constantes rupturas das integridades física, psicológica, moral, patrimonial e sexual que ocorrem respaldadas por um sistema que reproduz o poder dos homens sobre as mulheres, cultural e institucionalmente. 

Como aponta Safioti (2015, p. 89) “o poder apresenta duas faces: a da potência e a da impotência. As mulheres são socializadas para conviver com a impotência; os homens – sempre vinculados à força – são preparados para o exercício do poder”.

Logo, procurando analisar os aspectos que perpassam o fenômeno da violência de gênero, o patriarcado como instrumento legitimador da violência contra as mulheres e da apropriação desses corpos-territórios, este trabalho se ancorou, principalmente, na análise da história das mulheres de Perrot (2017), nas conceituações de patriarcado em Safioti (2015), na legislação brasileira para a proteção das mulheres, na concepção do conhecimento e das coisas enquanto fenômeno em Merleau-Ponty (1999), nas elaborações sobre território e corpo-território de Haesbaert (1997; 2008; 2021) e nas dimensões do poder em Foucaul (1984).

Enfim, foi estruturado tencionando, à priori, contextualizar histórica, conceitual e legalmente as condições de existência das mulheres, os riscos e os respaldos legais; os dados da violência contra as mulheres nos últimos anos e as consequências do confinamento da COVID 19; à posteriori, analisar, a partir da fenomenologia pontyana, a violência, o patriarcado, o poder e o corpo-território.

SER MULHER NO MUNDO TERRITORIALIZADO POR HOMENS

Seja fundada na inferioridade física ou intelectual, a supressão do poder da mulher fora, desde os primórdios da humanidade, equivalente ao seu apagamento histórico. Pouco se sabe sobre as crenças, as vivências, os conhecimentos das mulheres até o século XIX porque esses registros eram feitos por/para/sobre homens e os registros que têm, são a partir do olhar desses homens. Todavia, Perrot (2017) destaca que não é porque não aparecem nos livros, ou, se aparecem, estão em lugar de submissão, que não haviam mulheres insubmissas, detentoras de grande conhecimento, subversivas e dominantes; embora restringissem seu espaço à esfera privado (aos homens, o público), das casas, da família, exerciam grande influência nos maridos e nos filhos. É o que a autora denomina de poderes informais.

Na Idade Média as mulheres eram mantidas como objetos do poder masculino, de tal forma, que as subversivas eram prontamente perseguidas e mortas. Desde então, as funções sociais dos sexos aparecem distinguidas, ou seja, a esfera pública, do trabalho e da política cabiam aos homens: “o poder político é apanágio dos homens – e dos homens viris”; às mulheres, o privado, a criação dos filhos, atividades domésticas e a procriação. “Ademais, a ordem patriarcal deve reinar em tudo: na família e no Estado. É a lei do equilíbrio histórico” (PERROT, 2017, p. 159).

O patriarcado é definido por Safioti (2015, p. 111) como “um pacto masculino para garantir a opressão das mulheres”, ou seja, “uma maneira de os homens assegurarem, para si mesmos e para seus dependentes, os meios necessários à produção diária e à reprodução da vida”. Logo, “as relações hierárquicas entre os homens, assim como a solidariedade entre eles existente, capacitam a categoria constituída por homens a estabelecer e a manter o controle sobre as mulheres”.

O capitalismo, no lugar de fomentar a igualdade, já que objetifica qualquer mão-de-obra, aglutina essas diferenças, com a divisão sexual do trabalho. “Aos homens, o cérebro (muito mais importante do que o falo), a inteligência, a razão lúcida, a capacidade de decisão”, enquanto às mulheres, “o coração, a sensibilidade, os sentimentos”. Era o discurso naturalista predominando nos finais do século XIX, ancorado numa pseudo inaptidão das mulheres à política e ao trabalho intelectual; desde então, couberam-lhes trabalhos de cuidado (enfermeiras, recepcionistas, secretárias, domésticas, babás, professoras); aos homens, o trabalho administrativo, o físico, o político e o cognitivo (PERROT, 2017, p. 161).

O capitalismo do século XX convocou as mulheres ao trabalho, de modo que elas, ao experienciar esse entremeio público-privado, começa a ter maior acesso à profissionalização, educação, bem como ao exercício do poder e, como tal, continua as lutas em prol da igualdade e equidade de direitos, iniciadas no final do século XIX. É o nascimento da “mulher emancipada” que reivindica a igualdade dos direitos civis e políticos, o acesso às profissões intelectuais e recusa, justamente, confinar-se à “vocação” materna” (PERROT, 2017, p. 165). No entanto, a inserção na esfera pública, no trabalho, não a eximiu dos papéis da esfera privada. O patriarcado continua impondo-lhes o acúmulo de funções, as triplas jornadas e ao trabalho doméstico não remunerado, enquanto viola seus corpos objetificados de todas as formas possíveis.

Há que se reiterar, todavia, a importância do Movimento Feminista, em suas três ondas que visavam, sobretudo, o sufrágio universal, políticas públicas voltadas às mulheres e, no caso do Brasil, o fim da Ditadura e a redemocratização. Hooks (2018, p. 13) define o feminismo como “movimento para acabar com o sexismo, exploração sexista e opressão”, ou seja, contra o patriarcado e sua institucionalização da opressão das mulheres. Logo, o feminismo não é anti-homem, mas anti-sexismo. 

Davis (2016) trabalha a exclusão das mulheres negras em todo esse movimento de emancipação e luta por direitos. Enquanto as brancas passavam a ter acesso à educação, ao trabalho remunerado, as negras continuavam restritas às casas, assim, a autora destaca as mulheres negras como, mutuamente, violentadas por seu gênero, sua raça e sua classe. As mulheres negras que participaram ativamente dos movimentos feministas, defenderam as demandas das mulheres brancas burguesas e quando questionaram sobre as suas demandas, sobre a urgência da inserção do antirracismo nas pautas, ainda foram acusadas de dividir o momento, então criaram o seu próprio, o Feminismo Negro.

Sobre a relação gênero-raça-classe, Safioti (p. 33) traça a hierarquia da modernidade: “na ordem patriarcal de gênero, o branco encontra sua segunda vantagem”, se for rico, encontra a terceira, “o que mostra que o poder é macho, branco e, de preferência heterossexual”. Portanto, o patriarcado, como forma de domínio histórico, cultural, econômico e político, é o que sustenta a violação e apropriação dos corpos femininos pelos homens. Defender o corpo-território das mulheres é, assim, uma luta contra hegemônica, é refutar um poder assumido e reproduzido por séculos; é romper as paredes do privado e colocar as mulheres na esfera pública, enquanto reconstrói os limites do seu corpo-território, reapropriando-o, reafirmando que o corpo da mulher não é público.

Assim, com base na urgência na proteção das mulheres, está estabelecido no Art. 226 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), que a “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” e reiterado no § 8º que o “Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. Dezoito anos depois dessa determinação constitucional, após a aparição de inúmeros outros casos de violência doméstica e da total ausência de proteção do Estado, a luta em defesa das mulheres (dos seus próprios familiares) começou a se concretizar, ancorada no § 8º do Art. 226 e na resistência de Maria da Penha Maia Fernandes, que passou a nomear a então aprovada Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (BRASIL, 2006). Maria da Penha sofreu diversas agressões e tentativas de homicídio do marido, que deixaram-na paraplégica e, desde então, se empenha fortemente na proteção de outras tantas Marias, para o que o Estado cumpra sua função em defesa das mesmas, antes que o patriarcado, a territorialização e a objetificação de corpos as matem.

Assim, a Lei Maria da Penha, visando criar “mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher”, estabelece, em seu Art. 2, que:

Toda mulher, independente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade, religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social (BRASIL, 2015, n.p.).

É importante ressaltar que, para além da violência física, essa lei assume e coíbe outras formas de violência, como a violência psicológica, a violência sexual, a violência patrimonial e a violência moral. Essas formas de violências foram, por séculos, invisibilizadas, não questionadas tendo em vista as relações de poder entre os gêneros, impostas pelo patriarcado. O processo de reconhecimento perpassou a violência física, visível e mais facilmente testemunhável, comprovável, às demais formas com as quais as mulheres eram e são violadas, constantemente. No entanto, dado a falta de campanhas mais efetivas, de medidas protetivas, de não se invalidar as denúncias dessas mulheres, alguns casos continuavam resultando em mortes. Mulheres ainda eram assassinadas por seus companheiros, pais, por desconhecidos, dentro e fora de casa, por misoginias expressas das mais diferentes formas. Ainda não havia uma legislação que tipificasse os casos de assassinatos de mulheres baseados na única condição de serem mulheres e é nesse contexto, que, na década de 70, cunhou-se o termo feminicídio (aqui, também incluindo transfeminicídio na conceituação e nos dados) e, posteriormente, no século XX, a lei:

O feminicídio é a instância última de controle da mulher pelo homem: o controle da vida e da morte. Ele se expressa como afirmação irrestrita de posse, igualando a mulher a um objeto, quando cometido por parceiro ou ex-parceiro; como subjugação da intimidade e da sexualidade da mulher, por meio da violência sexual associada ao assassinato; como destruição da identidade da mulher, pela mutilação ou desfiguração de seu corpo; como aviltamento da dignidade da mulher, submetendo-a a tortura ou a tratamento cruel ou degradante (CPMI, 2013, p. 1004).

Quando se diz que feminicídio é o assassinato de mulheres pela condição de gênero, de serem mulheres, refere-se aos casos em que houvera a escolha da vítima por seu gênero, ao contrário de acidentes, atropelamentos, assaltos, etc.; nestes, quem cometeu o crime não escolheu a vítima por ser mulher, ou seja, foi uma decisão aleatório. O feminicídio é essencialmente um crime de ódio, ancorado na ideia de posse e objetificação das mulheres. 

A Lei do Feminicídio, que altera o Código Penal e aprovada em 2015, estabelece como qualificador do delito se o crime foi cometido “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”, ou seja, “violência doméstica e familiar” ou “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. Por conseguinte, em seu art. 7º determina o aumento de 1/3 à metade da pena se o feminicídio ocorreu “durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto”; “contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência” ou “na presença de descendente ou de ascendente da vítima” (BRASIL, 2015).

Ainda que tardiamente cunhadas, que hajam inúmeras falhas no sistema, subnotificações, é notória a importância dessas leis na salvaguarda das mulheres, punição e, minimamente, no medo por parte desses homens quanto às penalidades. Essas mudanças legislativas ainda substituíram outras, assumidamente, discriminatórias e que atribuía penas leves aos agressores, recentemente retiradas do Código Penal. O sistema ainda é patriarcal e misógino, como boa parte da população, no entanto, existem leis cabíveis que devem ser melhor aplicadas.

Cunha (2020), aponta, ainda, para os efeitos dos discursos, das ações dos governantes, até mesmo das leis que aprovam ou não, recursos que oferta ou não a dados setores, que os fazem, de representantes da população, seus influenciadores; no caso de discursos de ódio, reiterados ataques em forma de “piadas”, ocorre, segundo o autor, a materialidade do simbólico, ou seja, pessoas que ocupam posições de poder acabam, com suas falas e ações, legitimando, permitindo, fomentando que a população os repita. Nesse sentido, efetiva-se o que o autor denomina antipolítica.

O mesmo ocorre com o atual governo brasileiro que em diversos momentos mostrou-se misógino, homofóbico, racista, capacitista, gordofóbico e contra os povos originários. O ataque constante às mulheres, principalmente políticas e jornalistas, a homenagem ao torturador da ex presidenta deposta numa ação golpista e também misógina, o retrocesso legal e assistencial às mulheres, em geral, denotam esse “fazer política” contrário à própria população. Não obstante essa antipolítica de gênero ter provocado o aumento dos casos de violência contra as mulheres e feminicídios. Portanto, para Cunha (2020, p. 57) “pode-se entender por antipolítica de gênero o conjunto de atuações, discursos e opiniões elaborados num campo político que têm por escopo deslegitimar pautas de coletivos e movimentos articulados em torno ao gênero”, bem como “conferir às discussões fomentadas um caráter de impertinência ou insolência”.

A EMERGÊNCIA NOS DADOS: como a COVID 19 escancarou a violência

Ressalta-se, de antemão, que a evidência de dados tão alarmantes não significa, necessariamente, que os casos de violência contra as mulheres e suas consequências em mortes estão crescendo nas últimas décadas. Fato é que, desde as ondas feministas da segunda metade do século passado, a contraposição ao poder patriarcal e à submissão feminina é que, de fato, expuseram-se as realidades da vida privada e, por conseguinte, pública desses homens, até então, de condutas inquestionáveis. De forma com que foram aparecendo casos, o tema se tornou pauta de diversas obras, de encontros científicos e de segurança e saúde pública. Quanto mais se assegura a integridade dessas mulheres e fomenta as denúncias, se ampara nas delegacias e se protege, à posteriori, mais haverão denúncias, logo, haverá mais dados que endossarão pesquisas como esta. Todavia, é certo que por medo, por insegurança física, patrimonial, dos filhos, pelo preconceito que ainda há na própria segurança pública (pois o patriarcado é um sistema estrutural que se vale desse acordo simbólico de proteção entre os homens), é evidente que grande parte dos casos não chegam a ser denunciados, então, por maiores que sejam os números da violência contra a mulher, do feminicídio, ainda não contabilizam a totalidade do problema. 

Para além das legislações criadas, das Delegacias das Mulheres, dos treinamentos à agentes da Segurança Pública, da Assistência Social e da Saúde, foram criadas campanhas, nacionais e internacionais em prol da vida e manutenção da integridade física, sexual e psicológica dessas mulheres. Foi assim que a Organização das Nações Unidas (ONU), em 1999, determinou o dia 25 de novembro como o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres. 

Segundo o Mapa da Violência: Homicídios de Mulheres, entre 1980 e 2010, mais de 92 mil mulheres foram assassinadas no Brasil e quase a metade desse número, apenas entre 2000-2010 (41% mortas em casa, por parceiros ou ex-parceiros). Os valores compreendidos entre essas três décadas fizeram dobrar o número de assassinados de mulheres no país “passando de 2,3 assassinatos por 100 mil mulheres para 4,6 assassinatos por 100 mil mulheres”, de modo que tal quantitativo deixou “o Brasil na sétima colocação mundial em assassinatos de mulheres, figurando, assim, dentre os países mais violentos do mundo nesse aspecto”. Dados da ONU Mulheres apontam que entre 2004 e 2006 houveram cerca de 66 mil feminicídios em todo o mundo, fenômeno este que se manifesta por questões sócio culturais diferentes, mas compartilham a misoginia e a impunidade como norma (CPMI, 2014, p. 1003).

Mais de uma década depois, em 2020, ano que inicia a Pandemia do Coronavírus e que, dentre as medidas de proteção, estava o confinamento das pessoas em casa, o país teve 3.913 homicídios de mulheres, dos quais, 1.350 foram registrados como feminicídios (MUGNATO, 2021, n.p.). É importante apontar que, desse valor, como em qualquer outro dado acerca de violência e homicídio de mulheres, sua maioria se trata de mulheres negras e periféricas.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública informa que, de março de 2020 a dezembro de 2021 houveram “2.451 feminicídios e 100.398 casos de estupro e estupro de vulnerável de vítimas do gênero feminino”. Apenas em 2021, foram “1.319 mulheres vítimas de feminicídio”, com “decréscimo de 2,4% no número de vítimas; e 56.098 estupros (incluindo vulneráveis), apenas do gênero feminino, crescimento de 3,7% em relação ao ano anterior” (FÓRUM, 2022, p. 2).

Tendo em vista o grande aumento do número de casos de violência contra mulheres durante a pandemia, ainda em 2021, Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, afirmou que:

A violência contra as mulheres é endêmica em todos os países e culturas, causando danos a milhões de mulheres e suas famílias, e foi agravada pela pandemia de Covid-19. Mas, ao contrário da Covid-19, a violência contra as mulheres não pode ser interrompida com uma vacina. Só podemos lutar contra isso com esforços sustentados e enraizados – por governos, comunidades e indivíduos – para mudar atitudes prejudiciais, melhorar o acesso a oportunidades e serviços para mulheres e meninas e promover relacionamentos saudáveis e mutuamente respeitosos (LIMA, 2021, n.p.).

Em 2022, até o final do primeiro semestre, a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH) “registrou 31.398 denúncias e 169.676 violações envolvendo a violência doméstica contra as mulheres”. Reitera-se que a quantidade de violações é maior que as denúncias, porque uma denúncia, normalmente, contém mais de uma violação. A importância das denúncias está no acompanhamento dos casos e na proteção das vítimas, portanto, aponta-se que 70% dos casos de feminicídio não chegaram a passar pela rede de proteção (BRASIL, 2022b, n.p.).

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021) traz, sobre a violência contra as mulheres na pandemia, a expressão “visível e invisível”, tanto para os dados quantificados, quanto para as novas realidades adversas que a pandemia impôs às mulheres. A quantificação dos dados foi subnotificada pela quarentena, afastando as mulheres das redes de apoio, fomentada pelo medo e manipulação já que viviam mais tempo com o agressor, pela dificuldade de deslocamento e acesso às redes de apoio (até porque, devido ao isolamento, houve diminuição de pessoal, horários de funcionamento). A quarentena transformou a vida das mulheres em todas as instâncias: socialmente, a isola das outras pessoas; na vida em família, com total presença dos filhos e cônjuge, aumenta o trabalho doméstico, o tempo de cuidado com os filhos e a convivência; economicamente, há inúmeros cortes salariais, demissões ou home office o que dificultava o trabalho da mulher empregada e sobrecarregou as que apenas o cônjuge estava empregado. Somado a essas intempéries, pode-se citar como outro implicador do aumento da violência doméstica, o estresse do confinamento e da diminuição da renda familiar e o aumento do consumo de álcool.

Enfim, as pesquisas afirmam que, durante a pandemia, as mulheres foram mais violentadas em casa que na rua, e seus agressores eram pessoas conhecidas. Por serem de convivência, dificultou a ação de enfrentamento á violência de gênero, prevenção e punição dos agressores. Logo, a análise que se segue, acerca da objetificação das mulheres, da defesa do corpo-território, perpassa uma breve descrição da Fenomenologia de Merleau-Ponty, para ressaltar as violências, o patriarcado e o corpo como fenômenos. 

O FENÔMENO E A CORPOREIDADE VIOLADA

A Fenomenologia é tida pelo francês Merleau-Ponty como o estudo das essências, da percepção e da consciência. Ainda que, inicialmente cunhada por Husserl, é em Merleau-Ponty que se buscou uma filosofia ontológica, que superasse o intelectualismo e o empirismo, bem como o idealismo e o materialismo. Esses paradigmas se defrontaram por séculos, ou seja, a noção de que o método para alcançar o conhecimento da realidade partia, respectivamente, ou do mundo das ideias ou do mundo material. Tendo como exemplo o sugerido pelo autor, sobre uma pintura, têm-se que os idealistas focariam na ideia que o pintor teve antes de produzir o quadro e nas percepções que as pessoas teriam após ver o quadro; os materialistas focariam na imagem, nos fatores que a constituíram, como a tinta, o tecido, a madeira, como eles se relacionam à época, ao espaço, ao tempo. A fenomenologia defende que a pintura é, em si, um artefato cognoscente, passível de infinitas análises; mas a existência ou não das análises não mudarão o fato da existência da essência da pintura. Ela é ela, antes de qualquer coisa, mas também é as ideias, consciências, percepções que fazem dela, é a materialidade da obra e é a relação dela com o mundo. Essa totalidade, por conseguinte, é antes do “como”, do “quem” e do “por quê” (MERLEAU-PONTY, 1999).

Se a reflexão idealista acredita que os objetos de conhecimento podem ser absorvidos, possuídos, a reflexão fenomenológica defende que a compreensão passa pela imersão no objeto. Nesse sentido, também não há como recortar o objeto, ou seja, procurar compreender apenas parte do mesmo; a imersão só é possível na totalidade, logo, o objeto é indivisível, ele é a ideia e a matéria, o espírito e a natureza, o subjetivismo e o objetivismo. Portanto, a fenomenologia pontyana defende uma filosofia da gênese, mas não um retorno á uma consciência transcendental, como em Husserl em que o mundo pode se desdobrar de forma transparente e absoluta, se atendo às subjetividades que dele possam emanar. É gênese no sentido de partir do desconhecido, ignorando qualquer conhecimento dado como acabado, completo (MERLEAU-PONTY, 1999).

Ao tecer críticas ao Cogito cartesiano, aponta que este se limita no possível, ou seja, parte de uma inteligibilidade anteposta pelos conhecimentos já apropriados e os têm como limite de análise; no entanto, o conhecimento está para além do possível, porque o real o transcende; é no terreno do impossível, do invisível, nas lacunas que se deve habitar (MERLEAU-PONTY, 1999). 

Ao reconciliar a ideia e o objeto, a subjetividade à objetividade, o autor reitera a importância da busca da gênese, da essência das coisas, recolocando a essência na própria existência. Para tanto, requer-se um retorno às origens da própria reflexão (refletir sobre o irrefletido), ao mundo sensível; à uma filosofia de “novo tipo”, uma não filosofia, que não se basta em conceito, respostas predeterminadas e finalizadas, mas que foque na dúvida, na pergunta, em tudo que não é; que saiba que saber é não-saber, que pensar não é ter, mas não ter (MERLEAU-PONTY, 1999).

Os métodos científicos de então se inspiravam nas ciências exatas, em que devia ter procedimento de pesquisa e análise de dados bem precisos e imutáveis, respaldados numa realidade objetiva, empírica, passiva e de consciência predeterminada. No entanto, Merleau-Ponty traz a ineficácia da empiria e da objetividade, afirmando que o conhecimento não é nem o real nem o abstrato, mas ambos, que é ambíguo, sensível, é o visível e o invisível, como a própria existência o é. Assim, a reflexão só é completa se estiver consciente se sua incomletude, de saber que não sabe, aceitando o negativo (MERLEAU-PONTY, 1999).

Desta forma, na inexistência de uma compreensão que separa a ideia do material, o mesmo ocorre em relação aos sujeitos: não há consciência, idealização, imenêscia que se sobreponha à sua materialidade, ou seja, os seres humanos são toda a historicidade, organicidade e consciência corporificadas; o fenômeno corporal está no corpo em si, em sua expressividade, movimento, gestualidade e linguagem. É por essa corporeidade, para além de meramente ter o corpo, sendo o corpo e suas transformações, apreendendo a existência e a essência corporal dos outros que homens e mulheres se interrelacionam com o mundo. O corpo é fundamento, essência e linguagem. Não se tem corpo, mas se é corpo (MERLEAU-PONTY, 1999). Logo,

O corpo é nosso meio geral de ter um mundo. Ora ele se limita aos gestos necessários à conservação da vida e, correlativamente, põe em torno de nós um mundo biológico; ora, brincando com seus primeiros gestos e passando de seu sentido próprio a um sentido figurado, ele manifesta através deles um novo núcleo de significação: é o caso dos hábitos motores como a dança. Ora enfim a significação visada não pode ser alcançada pelos meios naturais do corpo; é preciso então que ele se construa um instrumento, e ele projeta em torno de si um mundo cultural. Em todos os planos ele exerce a mesma função, que é a de emprestar aos movimentos instantâneos da espontaneidade “um pouco de ação renovável e de existência independente”. O hábito é apenas um modo desse poder fundamental. Diz-se que o corpo compreendeu e o hábito está adquirido quando ele se deixou penetrar por uma significação nova, quando assimilou a si um novo núcleo significativo (MERLEAU-PONTY, 1999, 203).

Para tanto, a compreensão da realidade transcende a consciência objetiva e avança para a ontologia do corpo, superando as dicotomias entre corpo material e mente; ao contrário, conhecimento só será possível se partir da indivisibilidade do sujeito; ele é o todo. Tampouco se basta nas compreensões que se fazem dele, aliás, como a origem de toda descoberta cognitiva, o objeto de conhecimento o é independente da interpretação que se faz dele; ele é em sua plenitude, grande, completude e só nessa perspectiva se pode alcançar sua essência (MERLEAU-PONTY, 1999). 

Assim, os corpos, ao mesmo tempo em que possuem a mesma constituição do mundo, permitem, a partir deles, perceber e significar o mundo, mas eles “estão adiante do mundo, no teatro do imaginário” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 5). Da mesma forma que não há separação entre subjetivo e objetivo, ideias e materialidade, há uma indivisibilidade de corpo e consciência, ao que ressalta a partir da corporeidade. Trazendo a análise para o estudo da objetificação das mulheres perpetrada pelo poder dos homens, observa-se que inseridas nessa realidade, a consciência de si e as sensações corporais, percepções que atravessam toda sua vivência às impõem esse papel de submissão, reproduzido de forma cultural e geracional. 

Se atentar às narrativas das vítimas é trazer à tona as essências dos fatos a partir da linguagem, pois através dela “as essências ainda repousam na vida antepredicativa da consciência” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 12). Ou seja, esse “olhar de fora” do pesquisador dificilmente conseguiria captar toda a percepção, a essência da violência contra as mulheres, enquanto fenômeno em si, porque dele só emanam sensações do ele compreende como realidade; as sensações, na análise pontyana, não é uma propriedade da coisa estudada, mas o reflexo de como a coisa modificou o corpo do pesquisador. 

Portanto, para além das várias sensações que esse fenômeno revela nas pessoas, o real, o mundo (consciência e matéria) não se reduz ao que dele se pensa; no máximo, os sujeitos se comunicam com o mundo, mas não o têm, não o absorve em sua completude, até porque ele é inesgotável. Ou seja, as percepções que se fazem do mundo jamais esgotarão o conhecimento que há nele, porque são apenas experiências do real e não o real em si; haverá lacunas, não-conhecidos que possibilitarão novas perspectivas de abordagem. Logo, “a racionalidade é exatamente proporcional às experiências nas quais ela se revela” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 18).

À exemplo da violência contra as mulheres, enquanto fenômeno estrutural, histórico-cultural, possui sua essência que transcende espaço e tempo, ou seja, toda a simbologia de objetificação dos corpos femininos, que sugere posse, mercantilização, apropriação, livre usufruto, permissão de violação, numa colaboração também simbólica e sensorial entre os homens, cuja percepção sobre a mulher varia de acordo com o contexto, mas sempre se estrutura nessa mesma objetificação. Em qualquer lugar, em qualquer momento, um homem que viola o copo de uma mulher, por compartilhar a experiência e o poder patriarcal, será percebido, compreendido e aprovado pelos demais homens. O patriarcado é o fator legitimador da violência contra as mulheres e é ele, ainda, que significa a interrelação de seus corpos com os corpos masculinos e com o mundo.

Assim, a percepção do mundo e do outro atravessa o corpo-consciência dos sujeitos, parte deles e das experiências e interiorização, significação do vivido. Ao passar da percepção ao pensamento, “reencontro um pensamento mais velho do que eu trabalhando em meus órgãos de percepção e do qual eles são o rastro” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 471). Se a percepção, a valoração do mundo parte do corpo e as sensações do indivíduo, os homens, num sistema patriarcal, enxergam o mundo a partir do local de poder que ocupam desde o nascimento. É justamente por isso que a violência persiste e persistirá enquanto houver o patriarcado e qualquer medida de proteção às mulheres será meramente coercitiva, ou seja, há um lugar de poder hegemônico ocupado, exercido pelo corpo masculino e qualquer exercício de alteridade ou de compreender o mundo, parte dele. Ele não abrirá mão desse corpo-poder e as mulheres continuarão como corpo-objeto. 

O CORPO TERRITÓRIO, O PATRIARDO E A VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Haesbaert (1997) aponta que o termo território (territorium) surgiu de “terra”, compreendendo a demarcação, a apropriação de determinado pedaço de terra. Silva (2015) alerta para a dimensão política do termo, que passou a ser utilizado justamente nas demarcações do espaço que compreendia cada Estado Nação, de modo que essa correlação de conceitos é tão forte que não há como entender a ideia de Estado sem a de território. Portanto,

[…] território envolve sempre, ao mesmo tempo, mas em diferentes graus de correspondência e intensidade, uma dimensão simbólica, cultural, através de uma identidade territorial atribuída pelos grupos sociais, como forma de “controle simbólico” sobre o espaço onde vivem (sendo também, portanto, uma forma de apropriação), e uma dimensão mais concreta, de caráter político-disciplinar: a apropriação e ordenação do espaço como forma de domínio e disciplinarização dos indivíduos (HAESBAERT, 1997, p. 42).

“O território é o lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a história do homem plenamente se realiza a partir das manifestações da sua existência” (SANTOS, 2006, p. 13). Ele é “o espaço geográfico (a natureza e os homens) em movimento” (SILVA, 2015, p. 57). Mas também pode se expressar enquanto funcional, na materialidade de como se manifesta, ou enquanto simbólico, nas ideações de como se apresenta.

Haesbaert (2008, p. 21) sustenta que “a territorialidade, além de incorporar uma dimensão estritamente política, diz respeito também às relações econômicas e culturais”, ou seja, “deve ser visto na perspectiva não apenas de um domínio ou controle politicamente estruturado, mas também de uma apropriação que incorpora uma dimensão simbólica”, identitária e afetiva (HAESBAERT, 1997, p. 41). Em virtude do capitalismo e da globalização, a territorialidade se expressa como manifestação da diferença, da identidade, logo, ela é/está presente nesses corpos, como corpos-territórios. 

Miranda (2020, p. 41), a partir da compreensão dos sujeitos afro-brasileiros e a urgência em um pensamento-ação decolonial, traz uma leitura do corpo-território que relembra a noção de corpo em Merleau-Ponty. Para o autor, é importante permitir sentir, viver, existir no corpo-território enquanto experiência única e em si, não através da compreensão, do olhar do outro. Desta forma, “confrontar e questionar as imposições são práticas habituais do corpo-território que é estimulado a utilizar o senso crítico para compreender de que forma as ações hierarquizadas rebatem na sua leitura de mundo”. 

Desta forma, o corpo-território é resultado, simbólico e concreto do poder; dadas essas relações de poder intrínsecas nele, ele é, também um campo político, de disputas, apropriações, domínios. Logo, 

… o poder não é outra coisa senão uma certa modificação, a forma com frequência diferente de uma série de conflitos que constituem o corpo social, conflitos do tipo econômico, político. Portanto, o poder é como a estratificação, a institucionalização, a definição de técnicas, de instrumentos e de armas que servem em todos esses conflitos (FOUCAULT, 1995, p. 277).

No entanto, na perspectiva de Foucault, para existir poder, deve existir resistência a ele; se não há, não é poder, é meramente coerção física; poder implica disputa. Nesse sentido, o corpo-território é um espaço de disputa, um campo político. Para além dos domínios locais, enquanto parte de uma sociedade, o corpo é constantemente tentado a ser controlado, seja consciente, ideológica ou fisicamente; é o biopoder que atravessa o corpo.

Haesbaert (2021) reitera o controle das massas e dos corpos a partir do biopoder, no que tange ao corpo feminino, aponta que revelam inúmeras escalas de opressão e resistência; para além do controle e de ser palco do poder, ele é afetado e, assim, afeta outros e os lugares que ocupa. No entanto, para o autor, é crucial manter a condição territorializadora do corpo pertencente e sob poder decisório de uma pessoa. Isso implica, por exemplo, reiterar que para além das relações que os sujeitos estabelecem, o corpo-território pertente apenas a ela/ele. Deve-se, portanto, respeitar sua inviolabilidade. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse trabalho apresentou dados estarrecedores acerca da violência de gênero no país, sobretudo na quarentena do COVID 19. Nesses dois anos, a rotina dessas mulheres mudou: a jornada de trabalho acrescida ao trabalho doméstico e aos cuidados dos filhos (e dos cônjuges) em tempo integral; a insegurança sanitária e econômica, com milhares desempregados, empresas fechando; ainda tinham que permanecer em casa, trancadas com o agressor, longe da rede de apoio, sem poder denunciar, pois estavam com os agressores ao lado. Quando essas mulheres foram obrigadas a conviver mais tempo com seus parceiros, os números de violência e feminicídio aumentaram; á medida com que a quarentena foi acabando, os números diminuíram.

Esses dados mostraram, à priori, a importância da empregabilidade dessas mulheres, para a segurança econômica, para não ter que permanecer em ambientes de violência; mostram a importância das redes de apoio no aconselhamento, no acolhimento e nas denúncias; evidenciaram que mesmo em um sistema que os protegem, os homens se sentem menos à vontade em violentar uma mulher quando ela tem uma rotina de sociabilidades, de convivências. O contrário os deixavam à vontade para espancá-las já que ninguém saberia, veria, como ocorreu na quarentena.

À posteriori, mostraram a ineficácia de uma legislação que é criada, executada e julgada por homens, dentro de um mesmo sistema patriarcal que os ensina, desde crianças, que o corpo da mulher é público, é violável, é objetificado. Violadas social, econômica, cultural e politicamente, na vida particular, no trabalho, na vida pública, no casamento e na maternidade (ou na ausência destes), as mulheres crescem à sombra do olhar valorativo do outro, do homem, que as vitima física, psicológica, sexualmente. A compreensão do fenômeno da violência de gênero, a partir do método pontyano, deve se respaldar tanto na objetividade dos dados, quanto na subjetividade das percepções, como o fez neste trabalho.

Acrescido à objetificação, à materialização da natureza humana nos corpos femininos, ainda há a também materialidade e mercantilização dos corpos, fomentados pelo sistema capitalista de produção. Com ele, as diferenças já existentes (como de gênero, raça e classe) são aglutinadas e convertidas em precarização do trabalho e mão-de-obra barata. Basta observar que ainda hoje, no Brasil, os trabalhos mais onerosos (normalmente de exploração física) são desempenhados pelo povo negro, enquanto os serviços voltados à cuidados (doméstica, babá, cozinheira, secretária), recaem sobre as mulheres e ambos são social e economicamente desvalorizados. Tendo o corpo-território atravessado por essas três violências, ou seja, de gênero, de raça e de classe, é previsível mulheres negras periféricas estarem no topo dos índices de violência doméstica e feminicídios. 

Portanto, qualquer compreensão, ação desse corpo-território deve ser contra-hegemônica (MIRANDA, 2020), ou seja, a fim de definir e proteger seus limites, deve questionar, defrontar os poderes que o atravessam, contra o que foi historicamente imposto como regra, ou seja, hegemônico. Se a noção pontyana de corpo é similar à noção de mundo (quanto á fusão da subjetividade e da objetividade e enquanto fenômenos em si), se a noção de território está atrelada a de Estado e á seus limites, o corpo da mulher enquanto território pertencente somente a ela, deve ser pensado quanto á sua inviolabilidade, tal como um Estado. O respeito, a preservação e a proteção do corpo-território feminino devem passar de medidas coercitivas legais para a consciência coletiva, para o hábito; como se viu em Merleau-Ponty, quando os corpos experimentam novas sensações, as transforma em pensamento e destes, em hábitos. A não naturalização da violência contra as mulheres, a não submissão só serão possíveis com uma mudança cultural, uma mudança de hábitos. 


REFERÊNCIAS

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 1“A violência doméstica e familiar é aquela que mata, agride ou lesa física, psicológica, sexual, moral ou financeiramente a mulher. É cometida por qualquer pessoa, inclusive mulher, que tenha uma relação familiar ou afetiva com a vítima, ou seja, more na mesma casa – pai, mãe, tia, filho – ou tenha algum outro tipo de relacionamento. Nem sempre é o marido ou companheiro” (BRASIL, 2022b, n.p.).

2Foi uma homenagem e uma forma de relembrar a luta e resistência das irmãs dominicanas Las Mariposas, Pátria Minerva e Maria Teresa, que foram assassinadas nesta data, em 1960, ao se oporem ao regime ditatorial de Rafael Leónidas Trujillo (LIMA, 2021).