REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.11315585
Gustavo Caires Silva1
Maria Fernanda Menezes Cabral2
Bianca Oliveira Silva3
Professora Orientadora: Bianca Oliveira Silva
RESUMO:
Este artigo, inserido no âmbito do estudo em Direito de Família, tem como propósito explorar a responsabilização civil por abandono afetivo visando à garantia dos direitos de crianças e adolescentes, mediante uma análise jurisprudencial. A pesquisa foi desenvolvida em quatro capítulos. Inicialmente, revisita-se o percurso histórico do princípio da afetividade no Brasil, destacando sua evolução ao longo do tempo e sua consolidação como um elemento essencial nas relações familiares contemporâneas. Em seguida, examina-se o princípio da socioafetividade e sua relevância no âmbito do Direito Civil, analisando como as relações embasadas em afeto são reconhecidas e protegidas juridicamente, independentemente dos vínculos biológicos. Adicionalmente, o trabalho enfatiza a importância do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e da doutrina de proteção integral na salvaguarda dos direitos desses grupos etários, e a necessidade de uma abordagem compartilhada e solidária para garantir seu pleno desenvolvimento e bem-estar. Por fim, investiga-se a responsabilização civil por abandono afetivo, utilizando uma abordagem jurisprudencial para analisar casos reais em que indivíduos foram judicialmente demandados por descuido emocional e negligência afetiva em contextos familiares. A metodologia empregada neste artigo consistiu em uma pesquisa de natureza qualitativa de cunho exploratório, no qual foram aplicadas técnicas de coleta, organização e análise de dados provenientes das fontes mencionadas, visando a obtenção de informações relevantes para a discussão e fundamentação do tema abordado, utilizando-se de pesquisas bibliográficas e análise documental de jurisprudências sobre a temática, no qual foi realizado um levantamento e uma revisão da literatura pertinente ao tema, incluindo artigos científicos, obras de autores relevantes como Ricardo Calderon e Flávio Tartuce bem como dissertações de doutorado e mestrado, doutrinas, legislação específica relacionada ao Direito de Família e responsabilidade civil. Esta pesquisa contribui para uma compreensão mais aprofundada do abandono afetivo no contexto jurídico brasileiro, evidenciando sua importância nas relações familiares contemporâneas e as implicações legais e sociais associadas a essa temática.
Palavras-chaves: abandono, afetividade, responsabilização civil, jurisprudência.
ABSTRACT:
This article, situated within the scope of Family Law studies, aims to explore civil liability for affective abandonment with the purpose of guaranteeing the rights of children and adolescents through a jurisprudential analysis. The research was developed within four chapters. Initially, the historical path of the principle of affection in Brazil is revisited, highlighting its evolution over time and its consolidation as an essential element in contemporary family relationships. After this, the principle of socio-affectivity and its relevance within Civil Law is examined, analyzing how relationships based on affection are legally recognized and protected, regardless of biological ties. Additionally, the work emphasizes the importance of the Statute of the Child and Adolescent (ECA) and the doctrine of full protection in safeguarding the rights of these age groups, and the necessity of a shared and supportive approach to ensure their full development and well-being. Finally, civil liability for affective abandonment is investigated, using a jurisprudential approach to analyze real cases where individuals were judicially charged for emotional neglect and affective negligence in family contexts. The methodology employed in this article consisted of qualitative exploratory research, applying techniques of data collection, organization, and analysis from the mentioned sources, aiming to obtain relevant information for the discussion and foundation of the addressed topic, utilizing bibliographical research and document analysis of jurisprudence on the subject. A survey and review of the pertinent literature on the topic, including scientific articles, works by relevant authors such as Ricardo Calderon and Flávio Tartuce, as well as doctoral and master’s dissertations, doctrines, specific legislation related to Family Law and civil liability, were conducted. This research contributes to a deeper understanding of affective abandonment in the Brazilian legal context, highlighting its importance in contemporary family relationships and the legal and social implications associated with this issue.
Keywords: abandonment, affection, civil liability, jurisprudence.
1- INTRODUÇÃO
A afetividade emerge como um princípio fundamental que orienta o campo do direito de família, assegurando às crianças e adolescentes o direito ao cuidado, carinho, atenção e zelo necessários para o seu desenvolvimento saudável e bem-estar. É crucial ressaltar a importância desse princípio nas relações familiares, uma vez que o afeto desempenha um papel essencial na formação psicológica, emocional e social da criança, contribuindo para sua autoestima, segurança e estabilidade emocional ao longo da vida.
É amplamente reconhecido que cabe aos pais o dever legal e moral de prover educação, assistência física e emocional, e cuidado adequado aos seus filhos, sobretudo durante os períodos críticos de infância e adolescência. No entanto, quando um genitor falha em cumprir com suas responsabilidades parentais, negligenciando o afeto, a atenção e o cuidado necessários, ocorre o que é conhecido como abandono afetivo. Esse fenômeno pode ter sérias consequências para o desenvolvimento psicológico e emocional da criança, afetando sua autoestima, saúde mental e relacionamentos interpessoais. Portanto, o abandono afetivo não apenas viola os direitos fundamentais da criança, mas também implica em uma forma de negligência emocional que pode deixar cicatrizes emocionais duradouras.
Diante desse cenário, emerge o Princípio da Afetividade, que se destaca como um importante alicerce nas relações parentais. Nesse contexto, a jus-psicanalista Groeninga destaca que, no âmbito dos vínculos familiares, “o papel atribuído à subjetividade e à afetividade tem ganhado cada vez mais relevância no Direito de Família, o qual não pode mais desconsiderar a qualidade dos laços estabelecidos entre os membros de uma família”.
O propósito deste estudo é conduzir uma análise abrangente, fazendo uso de fontes bibliográficas, doutrinárias e jurisprudenciais, para investigar os requisitos e as possibilidades de configuração do abandono afetivo dentro das relações entre pais e filhos. Além disso, buscamos compreender como essa configuração impacta na responsabilização civil, de acordo com as normas do ordenamento jurídico brasileiro.
Primeiramente, faremos uma breve abordagem dos princípios que orientam as relações familiares, destacando especialmente o princípio da afetividade. Em seguida, examinaremos a responsabilização civil diante das condutas associadas ao abandono afetivo. Neste ponto, realizaremos uma análise detalhada de estudos doutrinários e jurisprudenciais pertinentes, incluindo a apresentação de decisões judiciais sobre o tema.
Este estudo apresenta uma contribuição significativa em várias frentes. Por um lado, pode servir como um alerta para os genitores que não mantêm uma relação fraternal com seus filhos, ao mesmo tempo em que pode influenciar indivíduos que enfrentaram abandono afetivo a buscar ações judiciais em busca de reparação. Assim, ao ler este trabalho, espera-se que o leitor adquira conhecimento e esclareça algumas dúvidas, contribuindo para uma maior conscientização da população sobre essa questão.
O estudo adota uma metodologia bibliográfica para examinar a responsabilização civil por abandono afetivo nas relações familiares. Isso envolve a identificação de fontes relevantes em bases de dados acadêmicas, a seleção das mais pertinentes com base em critérios específicos, a análise e síntese dos conceitos, teorias e jurisprudências encontradas, e a interpretação dos resultados à luz dos princípios jurídicos e éticos. Essa abordagem proporciona uma compreensão abrangente do tema, permitindo uma análise crítica e fundamentada no contexto do direito de família.
A metodologia empregada para elaborar este projeto consistiu na realização de um estudo de revisão bibliográfica, utilizando obras de doutrinadores brasileiros como principal fonte de informação. Além disso, foram considerados artigos relevantes sobre o tema, bem como jurisprudência e legislação vigente, para complementar e enriquecer a análise.
Por fim, discorreremos sobre as consequências do abandono afetivo para crianças e adolescentes, destacando como tais situações podem impactar negativamente no desenvolvimento e na saúde desses indivíduos, partindo do trajeto histórico no território brasileiro.
2- O PERCURSO HISTÓRICO DO PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE NO BRASIL.
Nos séculos passados a constituição da família tradicional brasileira era pautada em questões religiosas, políticas, econômicas e sociais, sendo os fatores determinantes para as uniões familiares. O fator primordial do casamento não era a propagação do sentimento, mas sim, a continuidade de um legado, ou seja, na maioria das vezes essas relações eram arranjadas e serviam para concretizar alianças e acordos no meio social.
O casamento era visto como uma instituição religiosa, regrado e tutelado pelas leis da Igreja, de modo que restava claro o respeito precípuo às orientações sacras. Também preponderavam interesses econômicos, patrimoniais e sociais, os quais balizavam as decisões acerca das conveniências das uniões matrimoniais e, de certo modo, refletiam sob a concepção de família de então (Caldeirón, 2017,p. 22).
No século XX, a subjetividade se tornou um valor, que fez com que as pessoas pudessem escolher por qual meio chegaria a sua realização, assim, fez com que reduzisse as funções que antes eram imposta e permitiram que tivessem liberdade nas escolhas pessoais, priorizando a busca da sua realização individual.
Pelo fato das relações familiares passarem a pautadas pela subjetividade, sucedeu-se a um novo olhar para o significado de núcleo familiar, tendo como prisma a afetividade. Sobre a temática, Rosa menciona (2021, p. 69):
O conceito de família para realização de fins estatais foi substituído pelas realizações de fins da pessoa humana. A pessoa constitui família para sua própria felicidade, e não para a felicidade do Estado. Os seres humanos mudam e mudam os seus anseios, suas necessidades e seus ideais, em que pese a constância valorativa da imprescindibilidade da família enquanto ninho. A maneira de organizá-lo e de fazê-lo prosperar, contudo, se altera significativamente em eras e culturas não muito distantes uma da outra.
Em vista disso, as relações decorrentes dos vínculos afetivos alcançaram um espaço na sociedade, a partir da Constituição Federal de 1988 são reconhecidas diversas entidades familiares, se adequando, dessa forma, às transformações que ocorreram na sociedade ao longo do tempo. Nessa nova fase, a afetividade assume relevante papel nas relações, substituindo a antiga tradição, como aborda Lôbo (2008, p.15)
A realização pessoal da afetividade, no ambiente de convivência e solidariedade, é a função básica da família de nossa época. Suas antigas funções econômica, política, religiosa e procracional feneceram, desapareceram ou desempenham papel secundário. Até mesmo a função procracional, com a secularização crescente do direito de família e a primazia atribuída ao afeto, deixou de ser finalidade precípua.
A Carta Magna atual trouxe uma nova realidade, acolhendo a afetividade no ordenamento jurídico brasileiro, como aponta Calderón ( 2017, p. 52)
Os valores acolhidos pelo texto constitucional permitiram perceber a afetividade implícita em suas disposições, uma vez que muitas delas visaram, em última ratio, tutelar situações subjetivas afetivas tidas como merecedoras de reconhecimento e proteção. A partir de 1988, é possível sustentar o reconhecimento jurídico da afetividade, implicitamente, no tecido constitucional brasileiro.
No entanto, mesmo que a Constituição Federal de 1988 tenha iniciado o reconhecimento legal da afetividade, somente o código civil de 2002, abordou sobre o tema de forma precisa. Atualmente, o tema não aparece presente de forma expressa nos textos de lei, sendo muitas vezes a jurisprudências o meio de concretização desse princípio.
Assim, para Calderón (2009), o Direito Civil passou a construir respostas com base na unidade do ordenamento, partindo de uma visão aberta das fontes do Direito. Uma delas certamente foi a que envolveu a percepção da afetividade nos relacionamentos familiares, o que passou a ser objeto da doutrina e jurisprudência pátrias de modo crescente, mesmo sem sua positivação expressa.
O Direito de Família contemporâneo é fundamentado conforme o princípio da afetividade possuindo no ordenamento vigente status de valor jurídico. No saber de Rolf Madaleno (2023, p. 110) “O afeto é a mola propulsora dos laços familiares e das relações interpessoais movidas pelo sentimento e pelo amor, para ao fim e ao cabo dar sentido e dignidade à existência humana”. Nesse sentido, entende-se que o afeto é um dos pilares da relação familiar e a sobrevivência humana baseia-se nessa interação afetiva.
Segundo Vencelau (2004, pg. 231) “a afetividade passa a ser elemento presente em diversas relações familiares contemporâneas, sendo cada vez mais percebida tanto pelo Direito como pelas outras ciências humanas”
Em vista disso, o Direito Civil, não só concretizou esse princípio no ordenamento, como também impõe a socioafetividade como pilar para uma relação familiar.
3. O PRINCÍPIO DA SOCIOAFETIVIDADE E SUA RELAÇÃO COM O DIREITO CIVIL.
Nos dias atuais, o debate sobre a função social da família e sua influência direta na busca pelos nossos objetivos é cada vez mais relevante. A base do apoio familiar é essencial para orientar nossas escolhas e alcançar nossas metas. Diante desse contexto, torna-se fundamental analisar todas as relações afetivas entre parentes sob uma perspectiva social, levando em consideração as particularidades e diversidades presentes em cada região e contexto sociocultural.
E desse modo, comenta Tartuce ilustrando sobre a paternidade socioafetiva e sua relação no Direito Civil
A socialidade deve ser aplicada aos institutos de Direito de Família, assim como ocorre com outros ramos do Direito Civil. A título de exemplo, a socialidade pode servir para fundamentar o parentesco civil decorrente da paternidade socioafetiva. Pode servir também para a conclusão de que há outras entidades familiares, caso da união homoafetiva. Isso tudo porque a sociedade muda, a família se altera e o Direito deve acompanhar essas transformações’’ (Tartuce, 2015, pág. 871)
Na sociedade contemporânea o vínculo socioafetivo é capaz de ser reconhecido juridicamente como uma filiação, na qual ocorre o reconhecimento da paternidade e/ou maternidade utilizando como base o afeto, não sendo necessário que entre as partes existam vínculos biológicos. Utilizando desse procedimento jurídico, a figura paterna ou a materna preenchendo os requisitos legais e comprovando a existência de vínculo afetivo consegue a filiação socioafetiva.
Em uma relação comum na qual uma esposa que venha acolher o filho do seu marido, e diante de uma relação cotidiana ao longo do tempo promovendo assim um vínculo afetivo, e sendo assim, após o estabelecimento da relação socioafetiva, não poderá romper o vínculo. De modo que a prática do afeto gera valores jurídicos.
Anote-se que, segundo Villela (1979, pág 400), em sua obra Desbiologização da Paternidade, tenta transmitir em seu texto que diante do surgimento do vínculo familiar a relação afetiva possui relação igual ou superior ao vínculo sanguíneo:
A paternidade em si mesma não é um fato da natureza, mas um fato cultural. Embora a coabitação sexual, da qual pode resultar gravidez, seja fonte de responsabilidade civil, a paternidade, enquanto tal, só nasce de uma decisão espontânea. Tanto no registro histórico como no tendencial, a paternidade reside antes no serviço e no amor que na procriação. As transformações mais recentes por que passou a família, deixando de ser unidade de caráter econômico, social e religioso, para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, imprimiram considerável esforço ao esvaziamento biológico da paternidade. Na adoção, pelo seu caráter afetivo, tem-se a prefigura da paternidade do futuro, que radica essencialmente a ideia de liberdade.
Diante disso, quando se analisa por meio de jurisprudência, a implementação da chamada parentalidade socioafetiva vem sendo encontrada com uma maior frequência nas decisões judiciais do STJ (STJ, REsp 1.088.157/PB, Rel. Min. Massami Uyeda, 3.ª Turma, j. 23.06.2009, DJe 04.08.2009 e REsp 234.833/MG, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, 4.ª Turma, j. 25.09.2007, DJ 22.10.2007, p. 276), tais decisões ocorrem sobre os casos em que a “adoção à brasileira” é realizada, o jurista Calderón afirma que ‘a afetividade é princípio jurídico, gerando consequências concretas para o Direito Privado, ao contrário do que muitos podem pensar.’’ (Calderón, 2015, pág. 872)
Seguindo acerca das análises jurisprudenciais, Tartuce (2016) traz em seu texto sobre um julgamento do Supremo Tribunal Federal uma tese de repercussão geral sobre a paternidade socioafetiva, a qual considerou ser a tese como um avanço no âmbito do Direito Civil. Um dos pontos destacados por ele é que:
A multiparentalidade passou a ser admitida pelo Direito Brasileiro, mesmo que contra a vontade do pai biológico. Ficou claro, pelo julgamento, que o reconhecimento do vínculo concomitante é para todos os fins, inclusive alimentares e sucessórios. Teremos grandes desafios com essa premissa, mas é tarefa da doutrina, da jurisprudência e dos aplicadores do Direito resolver os problemas que surgem, de acordo com o caso concreto. (Tartuce, 2016)
Durante a votação, o Ministro Toffoli apresentou uma tese alternativa, defendendo que o reconhecimento posterior do parentesco biológico não invalida o registro baseado no parentesco socioafetivo. Em certos casos, isso permite até mesmo o reconhecimento da dupla paternidade, inclusive em questões relacionadas à sucessão. Este tema emergente promete gerar novas discussões no âmbito do Direito das Famílias e das sucessões no Brasil.
A conexão entre o princípio da socioafetividade e a doutrina de proteção integral das crianças e adolescentes é fundamental para compreendermos a abordagem contemporânea do direito de família e dos direitos da criança. O princípio da socioafetividade reconhece a importância dos laços emocionais e afetivos estabelecidos dentro do núcleo familiar, valorizando as relações construídas com base no afeto, cuidado e convivência, independentemente dos laços biológicos.
Por outro lado, a doutrina de proteção integral das crianças e adolescentes, consagrada pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e pela legislação nacional, reconhece os menores como sujeitos de direitos, dotados de dignidade e autonomia, e estabelece que o Estado, a família e a sociedade têm o dever compartilhado de garantir o pleno desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social das crianças, em todas as fases da vida.
Ao conectar esses dois princípios, compreendemos que a socioafetividade não apenas complementa, mas também enriquece a doutrina de proteção integral das crianças e adolescentes. Ela reconhece que o afeto e o vínculo emocional são elementos essenciais para o desenvolvimento saudável e o bem-estar das crianças, proporcionando-lhes um ambiente familiar seguro, estável e amoroso, independentemente da origem biológica dos pais.
Assim, ao promover e proteger as relações socioafetivas dentro do contexto familiar, estamos não apenas respeitando os direitos às crianças, mas também fortalecendo os alicerces de uma sociedade mais justa, inclusiva e solidária, que valoriza o amor, a empatia e o cuidado como pilares fundamentais da convivência humana.
4- A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL E OS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado em 1990, visa consolidar todas as normas da Constituição Federal e os princípios dos tratados internacionais. Em comparação com o antigo Código de Menores de 1979, é evidente uma grande discrepância entre os dois. Enquanto o Código anterior não previa a intervenção do Estado para auxiliar na solução de conflitos, o ECA atual estabelece essa participação como fundamental, pois o Estado interviria em situações na qual o jovem não pertencesse a um núcleo familiar ou eram privados de terem acesso à saúde ou educação por exemplo.
Desse modo, os jovens, segundo a antiga doutrina, eram caracterizados como objeto de tutela e intervenção e não como elementos do direito. Sendo assim, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, houveram mudanças significativas, deixando para trás a Doutrina de “Situação Irregular” e adotando a “Doutrina de Proteção Integral” sobre os direitos das crianças e dos adolescentes.
Quando se aborda a doutrina de proteção integral, presente no artigo 1º do ECA, ressalta-se o conceito central de que as crianças e os adolescentes estão em processo de desenvolvimento, sendo classificados por essa doutrina como sujeitos de direito, não apenas suscetíveis à intervenção dos adultos, mas merecedores de respeito aos seus direitos fundamentais, equiparando-se aos demais cidadãos. No entanto, devido à sua maior vulnerabilidade, requerem atenção especial. Nesse sentido, é imperativo que o Estado, a sociedade e a família do menor atuem de forma conjunta, fornecendo o amparo necessário.
Vejamos o art. 227 da Constituição Federal:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
De acordo com o Artigo 4º, é responsabilidade da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público garantir, com máxima prioridade, a realização dos direitos relacionados à vida, saúde, alimentação, educação, esporte, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária.
Portanto, é importante destacar que a doutrina da Proteção Integral é o instrumento para assegurar que os direitos dos menores, reconhecidos pela sociedade, pelo Estado e pela família, não são meramente uma obrigação moral, mas sim passíveis de serem exigidos perante o Poder Judiciário caso não estejam sendo respeitados.
É fundamental notar que o Estatuto da Criança e do Adolescente é uma ferramenta interdisciplinar, pois integra, em uma única legislação, disposições do Direito Penal, Civil e Administrativo.
Posteriormente, com a promulgação do ECA, mais uma vez se evidenciou a importância de tal preceito em toda a sua base, especialmente no que concerne aos direitos essenciais desses indivíduos. O texto do artigo 227 da Constituição foi reproduzido no estatuto, porém de maneira detalhada, sendo estabelecidos os meios e instrumentos necessários para a efetivação e garantia de cada um dos direitos fundamentais dos menores.
Acerca desse princípio, Cury, Garrido & Marçura afirmam que:
A proteção integral tem como fundamento a concepção de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, frente à família, à sociedade e ao Estado. Rompe com a ideia de que sejam simples objetos de intervenção no mundo adulto, colocando-os como titulares de direitos comuns a toda e qualquer pessoa, bem como de direitos especiais decorrentes da condição peculiar de pessoas em processo de desenvolvimento (2002, p. 21).
O princípio da proteção integral, resumidamente, orienta a elaboração de todo o sistema legal destinado a proteger os direitos. Desse modo, se evidencia desde os primeiros dispositivos do Estatuto, os quais, além de assegurar aos tutelados pela legislação o respeito aos princípios fundamentais constitucionais, determinam que nenhuma criança ou adolescente deve ser alvo de tratamento discriminatório. Cury aprofunda ainda mais ao abordar o assunto em questão, ao mencionar que:
Deve-se entender a proteção integral como o conjunto de direitos que são próprios apenas dos cidadãos imaturos; estes direitos, diferentemente daqueles fundamentais reconhecidos a todos os cidadãos, concretizam-se em pretensões nem tanto em relação a um comportamento negativo (abster-se da violação daqueles direitos) quanto a um comportamento positivo por parte da autoridade pública e dos outros cidadãos, de regra dos adultos encarregados de assegurar esta proteção especial. Em força da proteção integral, crianças e adolescentes têm o direito de que os adultos façam coisas em favor deles (CURY, 2008, p. 36).
O artigo 227, fruto de intensa mobilização do movimento “Criança Prioridade Nacional” e da campanha “Criança e Constituinte”, foi elaborado com a participação de muitas pessoas, incluindo a coleta de milhares de assinaturas. Além disso, o artigo 228 foi incluído na Constituição, estabelecendo a inimputabilidade dos menores de 18 anos. Segundo Paulo Afonso de Almeida Garrido, redator do ECA, a Constituição de 1988 promove a dignidade da criança ao garantir seus direitos e equipará-la às demais pessoas.
4.1- A RESPONSABILIDADE COMPARTILHADA COMO ASPECTO DA SOLIDARIEDADE NO ÂMBITO DO DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.
Quando se aborda sobre o processo histórico da solidariedade e como ela foi implementada no sistema jurídico brasileiro, descobre-se que, durante a ditadura militar que ocorreu no Brasil por um longo tempo, a qual resultou na privação de direitos fundamentais da população e também a Segunda Guerra Mundial, que foi responsável por realizar um novo reordenamento global e diante desses relevantes episódios, a solidariedade trouxe novos preceitos jurídicos em garantir a liberdade, a paz social e a dignidade dos indivíduos, alterando a conduta de todos sobre o dever de responsabilidade social. Dentro do contexto jurídico, a criança é reconhecida como sujeito de cuidados especiais devido à sua condição singular de pessoa em desenvolvimento, o que implica no reconhecimento de seus direitos humanos.
Dentre os direitos direcionados à infância, destaca-se a ONU – Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, crucial para a consolidação permanente da Teoria da Proteção Integral.
Em sua obra de 2008, Custódio argumenta que a proteção integral à criança e ao adolescente conseguiu, em um determinado período histórico, articular uma teoria distinta, ao integrar necessidades sociais urgentes com as complexidades envolvidas na mudança de valores, princípios e regras. Além disso, destaca a importância dessa abordagem ao reconhecer os direitos fundamentais da infância e da adolescência, dentro de uma perspectiva emancipatória (p.22).
É notável que o preâmbulo da Convenção enfatiza a solidariedade como um dos princípios fundamentais para a convivência em sociedade, ressaltando também a importância de que as crianças sejam educadas para estarem preparadas para viver em comunidade “[…] de acordo com os ideais proclamados na Carta das Nações Unidas, especialmente com espírito de paz, dignidade, tolerância, liberdade, igualdade e solidariedade.” (ONU, 1989). Salienta-se ainda neste significativo documento o artigo 5º, o qual aborda que:
Os Estados Partes respeitarão as responsabilidades, os direitos e os deveres dos pais ou, onde for o caso, dos membros da família ampliada ou da comunidade, conforme determinem os costumes locais, dos tutores ou de outras pessoas legalmente responsáveis, de proporcionar à criança instrução e orientação adequadas e acordes com a evolução de sua capacidade no exercício dos direitos reconhecidos na presente Convenção. (ONU, 1989).
Os pais e responsáveis têm autonomia na criação dos filhos, mas esta é limitada pelo direito e pelos direitos fundamentais das crianças. É essencial que a família respeite estes limites legais para garantir o pleno desenvolvimento das crianças em conformidade com os princípios da Convenção, permitindo-lhes gradualmente exercerem seus direitos com autonomia. De modo que a Convenção enfatiza os direitos da criança em relação à sociedade, garantindo proteção contra intervenções arbitrárias e ilegais do Estado, visando seu bem-estar. Por esta razão:
De acordo com Pereira (1996), a Convenção atua como um regulador das interações entre a criança, o Estado e a família, estabelecendo uma estrutura baseada no reconhecimento de direitos e deveres mútuos. Inspirada na tradição da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção demonstra profundo respeito pela relação criança-família, destacando a importância das políticas sociais básicas e da proteção tanto da criança quanto da família. Além disso, limita a intervenção estatal tutelar a uma última instância, presumindo que os esforços familiares e os programas sociais gerais tenham falhado (p.67).
Neste contexto, reconhece-se a responsabilidade compartilhada entre os pais e o Poder Público, com os primeiros encarregados principalmente da educação de seus filhos e os últimos a apoiá-los nessa tarefa. A solidariedade mencionada pela Convenção ganha forma no sistema legal brasileiro desde a Constituição de 1988, marcando uma mudança fundamental no tratamento dado à infância.
Com isso em vista, a Convenção prioriza a definição dos direitos da criança em relação à sociedade, garantindo-lhe o direito de ser protegida contra intervenções arbitrárias e ilegais do Estado, as quais poderiam afetar seu bem-estar.
A ruptura definitiva ocorre somente com o advento da Doutrina da Proteção Integral, pois é ela que define que crianças e adolescentes devem ser considerados sujeitos de direito que se encontram em um momento peculiar de desenvolvimento e que, em decorrência de tal condição, merecem prioridade no atendimento de seus interesses. (Vieira, Veronese, 2006, p. 37).
Portanto, a solidariedade, expressa através da responsabilidade compartilhada entre família e sociedade civil na garantia efetiva desses direitos, requer mais do que apenas as estruturas do Estado. Envolve também relações individuais e coletivas, tanto familiares quanto comunitárias, baseadas no bem comum. Portanto, a solidariedade abrange várias facetas na vida social e requer ação comprometida tanto a nível individual quanto coletivo das entidades privadas para garantir os direitos das crianças e adolescentes dentro do contexto da proteção integral.
5- RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL POR ABANDONO AFETIVO A PARTIR DE UMA ANÁLISE JURISPRUDENCIAL.
A professora Heloisa Helena Barboza analisa uma faceta relevante do cuidado em uma relação paterno-filial.
Ações concretas, atitudes e valores devem evidenciar o cuidado com os filhos, desde o que diz respeito ao seu conforto físico e psíquico, a higiene do corpo e do ambiente, o apoio emocional e espiritual, até a proteção no sentido de segurança. Aqui também estão presentes diferentes significados de cuidado, como aceitação, compaixão, envolvimento, preocupação, respeito, proteção, amor, paciência, presença, ajuda, compartilhamento. (Barbosa, pg. 96)
Segundo Telma Abrahão (2023), a ausência de uma saudável convivência familiar, com o amparo afetivo necessário ao bom desenvolvimento do cidadão, pode ser um fator responsável por gerar traumas que acompanharão a criança até a fase adulta. Sendo assim, experiências de vida que impedem um desenvolvimento afetuoso e feliz.
No contexto brasileiro, o tratamento do abandono afetivo como causa de responsabilidade civil é relativamente recente e ainda está em fase de evolução. A falta de uma legislação específica sobre o tema levou os tribunais a examinarem casos individuais, estabelecendo jurisprudência.
5.1 – DECISÕES PRECEDENTES CONDENATÓRIAS POR ABANDONO AFETIVO
Uma das primeiras decisões judiciais de destaque nesse sentido foi proferida pelo juiz Mario Romano Maggioni, em 15 de setembro de 2003, na 2ª Vara da Comarca de Capão da Canoa – RS (Processo n.º 141/1030012032-0).
Nesse caso, uma filha moveu uma ação pleiteando indenização devido ao abandono afetivo por parte de seu pai. O tribunal reconheceu o dever do pai de indenizar a filha pelos danos emocionais causados pelo abandono, mesmo na ausência de uma previsão legal específica para essa situação.
O pai foi condenado a pagar 200 salários mínimos a título de indenização por danos morais em razão do abandono afetivo e moral da filha. A base legal utilizada foi o artigo 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), que estipula que aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos, abrangendo não apenas a escolaridade, mas também a convivência familiar e o afeto.
Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos (art. 22, da lei nº 8.069/90). A educação abrange não somente a escolaridade, mas também a convivência familiar, o afeto, amor, carinho, ir ao parque, jogar futebol, brincar, passear, visitar, estabelecer paradigmas, criar condições para que a criança se auto-afirme.
Ainda assim, em outro trecho alegou as consequências que a ausência do pai pode acarretar:
A ausência, o descaso e a rejeição do pai em relação ao filho recém-nascido ou em desenvolvimento violam a sua honra e a sua imagem. Basta atentar para os jovens drogados e ver-se-á que grande parte deles derivam de pais que não lhe dedicam amor e carinho; assim também em relação aos criminosos. De outra parte se a inclusão no SPC dá margem à indenização por danos morais pois viola a honra e a imagem, quanto mais a rejeição do pai.
Como existiam interesses de menores o Ministério Público, deu seu parecer contrário, alegando que não poderia avaliar o amor responsabilizando civilmente uma pessoa pela falta de sentimento afetivo, no entanto o Juiz proferiu sentença favorável condenando o genitor.
Outra decisão relevante ocorreu no Superior Tribunal de Justiça durante a primeira década dos anos 2000. Nesse caso, um pai foi condenado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo ao pagamento de indenização à sua filha devido ao abandono afetivo.
Apesar das argumentações em contrário apresentadas em sede de recurso especial, a Corte manteve a condenação, apenas reformando o valor da indenização. A Ministra relatora Nancy Andrighi enfatizou que o debate não se tratava de amor, mas sim do dever jurídico e biológico de cuidar, concluindo que “amar é faculdade, cuidar é dever” (RECURSO ESPECIAL Nº 1.159.242 – SP, 2009/0193701-9, STJ).
Conforme ementa da decisão a seguir:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido. (RECURSO ESPECIAL Nº 1.159.242 – SP (2009/0193701-9) RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI-STJ).
5.2- JURISPRUDÊNCIAS ADOTADAS NAS RECENTES DECISÕES DOS TRIBUNAIS ESTADUAIS NO BRASIL
A jurisprudência brasileira tem desempenhado um papel fundamental na evolução do reconhecimento do abandono afetivo como passível de indenização por danos morais. Neste segmento, serão analisadas algumas das principais decisões judiciais recentes que tratam dessa matéria, evidenciando as tendências e os critérios adotados pelos tribunais.
Uma das decisões mais recentes que corroboram a tendência de reconhecimento do abandono afetivo como passível de indenização ocorreu no Tribunal de Justiça de São Paulo, na Apelação Cível, relatada por Carlos Albertos de Salles. Nesse caso, o tribunal entendeu que o genitor que negligenciava o dever de cuidado e afeto em relação à filha desde da infância, acarretando problemas psicológicos, deveria ser responsabilizado civilmente e condenado a pagar indenização por danos morais, conforme jurisprudência:
INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS POR ABANDONO AFETIVO. Insurgência da autora em face da sentença de improcedência. Reforma. Presença dos requisitos para responsabilização civil do genitor. Caso em que ficou demonstrado o dano psicológico sofrido pela autora, indicando episódios de ansiedade, depressão, instabilidade emocional e tentativa de suicídio, atribuível ao abandono afetivo sofrido ao longo da infância e adolescência. Genitor que sustentou o afastamento da filha em virtude de condutas criadas pela genitora. Alegações que não são suficientes para afastar a sua responsabilidade. Genitor que deveria ter tido uma postura ativa, buscando manter contato com a filha, mesmo com a mudança de Estado praticada pela genitora, até 2015. Genitor que, com o retorno da filha para Mogi das Cruzes/SP, não comprovou ter adotado medidas para reaproximar-se dela. Evidente descumprimento dos deveres de assistência, convívio, educação e cuidado na criação da filha, não bastando o mero pagamento de pensão. Possibilidade de configuração do abandono afetivo em razão de omissões do genitor. Precedentes. Documentos médicos e laudo técnico produzido em juízo que confirmam o abandono afetivo alegado. Fixação da indenização nos termos do pedido inicial (R$ 28.000,00, com atualização desde o acórdão e juros desde a citação). Indenização que não se mostra elevada para fins de reparação do dano. Sentença reformada. RECURSO PROVIDO.
(TJ-SP – AC: XXXXX20218260361 Mogi das Cruzes, Relator: Carlos Alberto de Salles, 3ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 14/08/2023)
A decisão pela concessão de indenização decorreu da constatação de que o genitor se omitiu em prover cuidado, afeto, atenção e amor à sua filha, resultando em danos psicológicos significativos para a mesma. Neste contexto, aplicam-se os princípios da responsabilidade civil, notadamente o nexo de causalidade, que estabelece a relação direta entre a conduta negligente do genitor e os danos sofridos pela filha. Além disso, foram considerados outros fundamentos jurídicos, tais como a proteção dos direitos da personalidade, a dignidade da pessoa humana e o direito ao desenvolvimento integral da criança, todos essenciais para a justa e adequada compensação dos prejuízos emocionais experimentados pela filha em decorrência do abandono afetivo perpetrado pelo genitor.
Embora haja uma tendência crescente de reconhecimento do abandono afetivo como passível de indenização por danos morais, existem decisões judiciais que se posicionam de forma desfavorável a essa prática. Uma linha de argumentação comum nessas decisões é a ausência de previsão legal que obrigue os genitores a fornecerem afeto e amor aos seus filhos. Abaixo está uma Apelação cível julgada no Tribunal da Justiça de São Paulo, no qual a relatora Mary Grün julgou improcedente o pedido de indenização por abandono afetivo:
INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL DECORRENTE DE ABANDONO AFETIVO. Autor pretende indenização por danos morais que alega ter sofrido ante o abandono afetivo pelo seu genitor. Sentença de improcedência. Apelo do autor. Natureza jurídica dos deveres do pai para com o filho. Princípio jurídico da afetividade. Natureza laica do Estado de Direito. Pretensão indenizatória. Danos morais. Não configuração. Inexistência em nosso ordenamento jurídico de qualquer tipo de obrigação ou dever jurídico de amor, afeto e carinho. Afastamento da prática de ato ilícito e, consequentemente, do dever de indenizar. Precedentes. Ausência de afetividade que não traduz ato ilícito indenizável. Reparação moral que não supriria as expectativas de afeto e amparo nutridas pelo autor. Princípio da legalidade (art. 5º, inciso II, da Constituição Federal). Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer nada, senão em virtude de lei. Ausência de dispositivo legal que obrigue um pai a amar seu filho. Contato reduzido do genitor com o filho. Fatos genéricos narrados pelo autor que não comprovam a ocorrência de efetivo dano psicológico decorrente da conduta do réu. Sentença mantida. Recurso desprovido.
(TJ-SP – AC: XXXXX20188260306 SP XXXXX-36.2018.8.26.0306, Relator: Mary Grün, Data de Julgamento: 28/07/2020, 7ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 28/07/2020)
É patente que a decisão em questão adotou uma interpretação rigorosa da legislação, sustentando a inexistência de previsão expressa na legislação brasileira que imponha aos genitores a obrigação legal de prover afeto e amor a seus filhos.
No âmbito da jurisprudência brasileira, a evolução do reconhecimento do abandono afetivo como passível de indenização por danos morais tem desempenhado um papel crucial, foi possível identificar a crescente aceitação do abandono afetivo como fundamentação para a concessão de indenização, como também decisões desfavoráveis à indenização por abandono afetivo.
Em suma, o debate sobre a indenização por abandono afetivo continua em curso no sistema jurídico brasileiro. Enquanto algumas decisões refletem uma crescente sensibilidade aos direitos emocionais das crianças e à responsabilidade parental, outras enfatizam a necessidade de uma base legal clara para a imposição de obrigações afetivas. Essa complexidade jurídica demanda uma análise cuidadosa e uma reflexão contínua sobre o equilíbrio entre os direitos individuais, os princípios legais e a justiça social.
6- CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo se propôs a examinar a interpretação do Poder Judiciário acerca da possibilidade de compensação financeira por danos morais decorrentes de abandono afetivo, com o propósito de resguardar os direitos das crianças e dos adolescentes. Inicialmente, é conduzida uma análise histórica do princípio da afetividade no contexto brasileiro, cuja compreensão se revela essencial para apreender a evolução das relações familiares e sua repercussão no panorama contemporâneo do Direito de Família.
Subsequentemente, destacou a relevância dos laços afetivos na configuração das famílias modernas, especialmente a paternidade socioafetiva. Ademais, são ressaltadas a importância do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a doutrina da Proteção Integral, os quais conferem aos menores o status de sujeitos de direito, merecedores de respeito aos seus direitos fundamentais.
Posteriormente, abordou a responsabilidade civil pelo abandono afetivo. A despeito da carência de legislação específica, a jurisprudência tem reconhecido essa responsabilidade, embora se verifiquem discrepâncias nas decisões judiciais. Conclui-se, portanto, que a responsabilização civil por abandono afetivo representa um importante instrumento para assegurar os direitos das crianças e dos adolescentes, contribuindo para a proteção de sua dignidade e bem-estar. No entanto, impõe-se que essa responsabilização seja aplicada de maneira ponderada e justa, considerando as particularidades de cada caso e priorizando sempre o melhor interesse do infante e do adolescente.
Em suma, almeja-se que este artigo possa ampliar o debate e promover reflexões acerca da responsabilidade civil pelo abandono afetivo, além de subsidiar a elaboração de políticas públicas e a atuação do Poder Judiciário na promoção e proteção dos direitos infantojuvenis no Brasil.
REFERÊNCIAS
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1Graduando em Direito pela Faculdade Independente do Nordeste. email:
gucs1245@gmail.com
2Graduanda em Direito pela Faculdade Independente do Nordeste. email: nandacabral2000@hotmail.com
3Bianca Silva Oliveira
Advogada. Mestra em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Docente da Fainor.