REINTERPRETANDO O CONCEITO JURÍDICO DE FAMÍLIA: AVANÇOS E RETROCESSOS NA LUTA INSTITUCIONAL PELO RECONHECIMENTO DE DIREITOS DE CASAIS HOMOSSEXUAIS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11372282


Anderton Jordan Sardinha Claudino¹;
Sophia Moreira Engelhard²;
Bruno Brasil de Carvalho³.


RESUMO: O presente trabalho busca discutir os avanços e percalços na luta pelo reconhecimento de direitos de homossexuais no Brasil, notadamente a partir do paradigma inaugurado pela Constituição Cidadã de 1988, em face dos padrões sociais hegemônicos associados à tradicional noção privatista de entidade familiar. Para isso, discute-se precedentes judiciais paradigmáticos no avanço da pauta LGBTQIA+, bem como a contraofensiva conservadora assistida no Congresso Nacional nos últimos anos. Conclui-se que, para construir uma sociedade democrática e plural, onde as relações humanas interpessoais sejam respeitadas e protegidas juridicamente, faz-se necessário a reconfiguração do conceito tradicional de família, para que este incorpore a pluralidade de formas de vida existentes na comunidade política.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos sexuais; Família; Precedentes judiciais; PL 5167/09; Constituição.

I. INTRODUÇÃO.

A luta histórica por direitos de lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais e de todas e todos aqueles que não se identificam com a heterossexualidade é marcada por inúmeros avanços e retrocessos. O preconceito enraizado na sociedade, que ganha contornos violentos no Brasil, acompanha a realidade desses sujeitos, privados de direitos básicos e de garantias fundamentais. 

Esse contexto de violações e privações se reflete na produção das normas jurídicas e na interpretação do direito, que ora silencia em relação às demandas de homossexuais, noutras assume entendimento restritivo e conservador, denegando direitos àqueles que fogem ao “padrão”. 

A família, como instituição milenar que é, reflete o contexto histórico e social em que está inserida. Sua configuração não é imutável e determinada pela natureza, ao contrário, é produto das relações humanas, podendo assumir diferentes formas e composições. Nessa lógica, diante da hegemonia do modelo heteronormativo, com o estabelecimento de padrões rígidos de comportamento, inspirados em valores religiosos, a família formada por homem, mulher e filhos foi naturalizada, e todos os demais arranjos de relações interpessoais existentes passaram ao largo do conceito de entidade familiar. 

Esse processo de padronização atinge as instituições políticas, que entronizam e reproduzem a noção de que, para ser considerada legítima, a entidade familiar deve se enquadrar no padrão tradicional heterossexual. Do mesmo modo, o ordenamento jurídico, criado por tais instituições políticas, também incorpora esses valores, na medida em que as normas protegem apenas as organizações familiares compostas por homem e mulher, resguardando a tradição e regulando questões patrimoniais e assistenciais, por exemplo. 

Na atual quadra histórica, sob a égide do Estado Democrático de Direito e à luz dos direitos e garantias fundamentais, faz-se necessário romper com essa lógica, para que àqueles indivíduos silenciados e reprimidos pelos padrões socialmente impostos possam ter liberdade para escolher qual existência viver e com quem desejam se relacionar. 

O presente trabalho busca jogar luz sobre essa problemática, para entender em que medida o conceito tradicional de família heterossexual contribui para a violação de direitos de casais homossexuais, e de que modo uma reinterpretação jurídica de “entidade familiar” pode contribuir para a construção de uma sociedade plural, democrática e igualitária. 

Para isso, a primeira parte do trabalho dedica-se a discutir os avanços institucionais importantes no reconhecimento de direitos de homossexuais, a partir de decisões paradigmáticas do Poder Judiciário, notadamente do Supremo Tribunal Federal, que versam sobre o conceito de família. Aborda-se a crítica à fundamentação jurídica desses precedentes, que, mesmo sendo considerados conquistas, estão lastreados em argumentos familistas e assimilacionistas. 

Em um segundo momento, discute-se a reação conservadora no Poder Legislativo, por meio do Projeto de Lei 5167/19 em tramitação na Câmara dos Deputados, que objetiva inserir no ordenamento jurídico a proibição de que relações entre pessoas do mesmo sexo sejam equiparados ao casamento ou a entidade familiar, o que representa verdadeiro retrocesso aos direitos declarados judicialmente. 

Por fim, a terceira parte do trabalho problematiza o conceito tradicional de família, identificada como uma instituição social milenar, fechada e permanente no tempo, independente da mutação de seus integrantes individualmente considerados. Demonstra-se como o paradigma inaugurado pela Constituição de 1988 abriu margem para uma interpretação extensiva do conceito de família, indo além daquela formada através do casamento entre homem e mulher.

Conclui-se que, para a edificação de uma sociedade plural e democrática, onde gays, lésbicas, bissexuais, transsexuais e simpatizantes tenham voz e vez, é necessário reformular o conceito jurídico de família, para que este incorpore a pluralidade de relações interpessoais existentes no mundo real, garantindo, de forma isonômica, a proteção normativa da dignidade destas pessoas. 

II. O AVANÇO CONTRADITÓRIO DA LUTA POR DIREITOS DE HOMESSEXUAIS, NA ARENA JUDICIAL.

No decorrer das últimas décadas, a sociedade brasileira sofreu transformações significativas, com os debates sobre homossexualidade ganhando visibilidade e cobertura atenta dos meios de comunicação de massa (Mello, 2006, p.497). Na esteira do processo de redemocratização e com uma maior organização dos movimentos sociais de base, pautas de grupos historicamente oprimidos passaram a ganhar espaço no debate público. 

O início do movimento em prol da igualdade de direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais ocorreu em meados da década de 70. A partir de então, há um avanço significativo na atuação coletiva organizada, diante do surgimento de grupos atuantes na luta por direitos de homossexuais (Reis, 2012, p.370).

A promulgação da “Constituição Cidadã” de 1988, sem equivalente democrático na história do Brasil, abriu maior espaço de participação à sociedade civil. Assim, diante do novo desenho das instituições políticas, indivíduos e grupos voltam-se ao Poder Judiciário, enxergando neste uma possível via institucional de reconhecimento de direitos (Rios, 2013, p.663). No Brasil, de fato, grande parte dos avanços na pauta do movimento LGBTQIA+ partiram de decisões de tribunais pátrios, em favor do reconhecimento de direitos civis para gays e lésbicas.

Ao traçar uma linha de medidas importantes tomadas pelo Judiciário em torno da proteção e garantia dos direitos sexuais4, tendo como destinatários, na presente análise, indivíduos homossexuais, torna-se imprescindível discutir dois processos judiciais que tramitaram no Supremo Tribunal Federal, sendo reconhecidos e louvados por terem culminado em uma decisão paradigmática da Corte, em matéria de direitos fundamentais. Aqui, faz-se menção à ADPF 132 e a ADI 4277, que versaram sobre o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo gênero como entidade familiar.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132 foi protocolada em 2008 pelo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, tendo como relator o Min. Carlos Ayres Britto. 

Em síntese, o pedido demandou do STF a aplicação isonômica do regime jurídico das uniões estáveis, previsto no artigo 1723 do Código Civil, às uniões entre casais de homossexuais, atingindo os funcionários públicos civis do Estado. Isso porque a interpretação do artigo 19, inc. II e V, do Estatuto dos Servidores Públicos Civis do Estado do Rio de Janeiro5, bem como o art. 33 do referido estatuto, ao restringir direitos de certos indivíduos em razão da orientação sexual, violaria uma série de preceitos fundamentais, especificamente a dignidade da pessoa humana, a igualdade e o direito à liberdade. O autor alegou, também, que a situação atingiria o princípio da segurança jurídica, diante das manifestações díspares do Poder Judiciário sobre o tema (Brasil, 2011, p.11).

No mesmo período em que tramitava a ADPF 132, a Procuradoria-Geral da República protocolou perante o Supremo a ADPF 178, com pedido semelhante ao da ação ingressada pelo governador do Rio de Janeiro. O propósito era levar a Corte a declarar obrigatório o reconhecimento, no Brasil, da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, desde que atendidos os requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher. Ademais, pleiteou que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis fossem estendidos aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo (STF, 2009).

Ao analisar o conteúdo da ADPF 178, o Min. Gilmar Mendes, no exercício da presidência do STF, entendeu pela indeterminação do objeto da causa, para conhecer o processo como ação direta de inconstitucionalidade, recebendo a identificação de ADI 4.277. Para o ministro, a ação tinha por objeto a “interpretação conforme a Constituição” do art. 1723 do Código Civil, sendo necessário seguir o rito do art. 12 da Lei 9.868/19996 (STF, 2009). 

Desse modo, por versarem sobre o mesmo tema – o reconhecimento das “uniões homoafetivas” como entidade familiar – a ADPF 132 e a ADI 4.277 foram julgadas conjuntamente. Iniciado em maio de 2011, o julgamento das ações mobilizou diferentes parcelas da sociedade, se espalhando para além do Plenário do Supremo (Lisboa, 2021).

Em seu voto, o relator Ayres Britto ressaltou que o art. 1.723 do Código Civil7 é quase uma cópia do parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição Federal8. Contudo, destacou que entre o dispositivo normativo previsto na Lei e o declarado na Constituição há uma diferença fundamental. Isto porque, segundo o ministro, enquanto a Constituição nos fornece elementos para eliminar uma interpretação reducionista, o Código Civil não nos dá elementos, por si só, de forma isolada, para dele eliminar uma interpretação simplista e restritiva de direitos (Brasil, 2011, p.652).

O relator argumentou ainda que, em nenhum de seus dispositivos que tratam da família, a Constituição Federal proíbe a formação da entidade familiar entre homossexuais. Além disso, na contramão do que dispunha a Constituição de 1967, segundo a qual a família se constituía somente pelo casamento, a Constituição de 1988 teria evoluído para dar ênfase à instituição da família, independentemente da preferência sexual de seus integrantes (Brasil, 2011, p. 635).

O ministro ressaltou, também, que o art. 3º, inc. IV, da CF veda qualquer discriminação em virtude de sexo, raça ou cor, e que, desse modo, ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função de sua preferência sexual9 (STF, 2011, p. 633).

Por fim, concluiu o Min. Ayres Brito que o artigo 1723 do Código Civil deve ser interpretado conforme a constituição, para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de “família” (STF, 2011, p.656).

Em linhas gerais, todos os ministros acompanharam o entendimento do relator. Os ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso suscitaram uma divergência quanto à fundamentação do acórdão, pois entendiam que as uniões homoafetivas não se enquadravam nas espécies de família previstas no texto constitucional. Ainda assim, as duas ações foram julgadas procedentes, sendo realizada, ao fim, uma “interpretação conforme a Constituição” do art. 1.723 do Código Civil, permitindo, então, que as uniões contínuas, duradouras e públicas de casais de homossexuais passassem a ser consideradas como uniões estáveis, formando “laços de família” (Brasil, 2011).

Conforme análise de Roger Raupp Rios (2013, p.12-13), o voto do relator é preciso e enfático na relação entre o direito geral de liberdade e o direito fundamental de liberdade sexual, apontando como diversos desdobramentos da liberdade constitucional promovem a proteção do exercício igual deste direito por todos, sem depender de orientação sexual. O entendimento firmado na Corte também salienta o dever estatal de prover o exercício destes direitos com medidas de proteção, em decorrência do conteúdo dos direitos fundamentais, sendo mencionado o fato de que a inexistência de qualquer instituto jurídico produz uma situação em que não há proteção minimamente adequada, perpetuando a discriminação. 

Contudo, o supracitado jurista não deixa de tecer críticas aos fundamentos da decisão proferida no âmbito da ADI 4.277, por entender que a moldura limitadora do debate centrado no direito de família incorre no risco de, numa leitura mais apressada ou conservadora, condicionar a compreensão do conteúdo jurídico dos direitos sexuais à convivência familiar (Rios, 2013, p.9).

Nesse viés, a fundamentação do julgado que reconheceu a união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar se ancorou em duas ideologias complementares que caracterizam a argumentação jurídica sobre a matéria: o assimilacionismo, onde membros de grupos subordinados ou tidos como inferiores adotam padrões oriundos de grupos dominantes, em prejuízo próprio; e o familismo, aqui entendido como tendência a subordinar o reconhecimento de direitos sexuais à adaptação a padrões familiares e conjugais institucionalizados pela heterossexualidade compulsória (Rios, 2013, p.10).  

Um exemplo dessas ideologias está na formulação de expressões como “homoafetividade”, que, ainda que bem intencionada, carrega mentalidade conservadora e discriminatória. Conservadora, posto que subordina os princípios de liberdade, igualdade e nãodiscriminação, centrais para o desenvolvimento dos direitos sexuais, a uma lógica assimilacionista. Discriminatória, pois, na prática, distingue uma condição sexual “normal”, palatável e “natural” de outra assimilável e tolerável, desde que bem comportada e “higienizada”. Com efeito, a sexualidade característica da heterossexualidade não só é proclamada, como também é ostentada para indicar aquele que é “naturalmente” sujeito de direitos, ao passo que a sexualidade homossexual é submetida ao efeito purgante da “afetividade” (Rios, 2022, p.8).

A decisão paradigmática do Supremo repercutiu no aparelho do Judiciário. O Conselho Nacional de Justiça10, no exercício fiscalizatório e disciplinar das atividades cartorárias no país, publicou a Resolução n. 175, de 14 de maio de 2013, que dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo, em que determina aos cartórios extrajudiciais brasileiros que pratiquem os atos jurídicos com essa finalidade, sendo terminantemente proibido causar qualquer embaraço a quem deseje legitimar tais vínculos, sob pena de responsabilização (Brasil, 2013).

Interessante observar que, na fase de votação para aprovação da resolução, houve divergências dentro do próprio colegiado do CNJ. A conselheira Maria Cristina Peduzzi, que votou contra a aprovação da norma regulamentadora, sustentou que, primeiro, caberia ao Congresso Nacional aprovar projeto de lei sobre o assunto antes da regulamentação pelo Conselho (Silva; Pezzetti, 2013, p.121).

Nessa mesma linha de raciocínio se manifestou o Subprocurador-Geral da República atuante perante o Conselho Nacional de Justiça, Francisco Sanseverino, argumentando que o texto extrapolava as competências deste órgão administrativo da justiça, posto que disciplinava matéria de competência legislativa, além de estender legitimidade ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, sendo que o Supremo, em controle abstrato, teria se manifestado exclusivamente em relação à união estável, por ocasião do julgamento da ADI 4.277 e ADPF 132 (Silva; Pezzetti, 2013, p.121-122).

Em sentido contrário seguiu o pronunciamento do presidente do CNJ e autor da proposta de resolução, Min. Joaquim Barbosa, que ressaltou o contrassenso da hipótese de se esperar do Congresso Nacional a análise e decisão sobre o tema, para só então dar efetividade à decisão do Supremo Tribunal Federal.  Uma vez que o STF se posicionou pela possibilidade jurídica de reconhecimento de união estável entre parceiros homossexuais, tal interpretação se estenderia ao casamento, a partir de um tratamento isonômico, tendo em vista que o texto constitucional veda qualquer forma de discriminação (Silva; Pezzetti, 2013, p.122).

Diversas dúvidas surgiram com a aprovação e publicação da Res. 175 do CNJ, assim como muitos debates jurídicos a respeito do reflexo e alcance da norma regulamentadora, que dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo11

O texto normativo proíbe às autoridades competentes de recusarem à habilitação, celebração de casamento civil ou conversão de União Estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo, e ainda dispõe que a eventual recusa ao cumprimento da respectiva norma importará em responsabilização do servidor faltoso. Desse modo, em termos práticos, a Resolução autoriza a habilitação e realização do casamento homoafetivo ou até mesmo conversão de União Estável em casamento, passando a dispor dos direitos inerentes ao matrimônio convencional.

Ao analisar as decisões tomadas pelo Poder Judiciário, seja exercendo a jurisdição, como também em âmbito administrativo, depreende-se que ocorreram avanços nas reivindicações do movimento LGBTQIA+. O reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, bem como a possibilidade de conversão desta em casamento, além de significar uma vitória num contexto de luta pelo reconhecimento, também produz impactos concretos no cotidiano dessas pessoas, que passam a ter o poder de reivindicar prestações positivas do Estado. 

Contudo, nenhum direito conquistado torna-se eterno. A luta pelo reconhecimento e por um lugar de fala é contínua, principalmente para aqueles que fogem aos padrões socialmente construídos. A marcha pela conquista de direitos de homossexuais, ao mesmo tempo que avança, está sujeita à ataque de forças opositoras conservadoras e reacionárias, que atuam em diferentes camadas da sociedade, desde os movimentos de base, até a arena políticoinstitucional.

As decisões progressistas do Judiciário brasileiro, no tocante às pautas de LGBT’s, provocaram reações opostas de parcela do estamento político, resultando em medidas regressivas de direitos, dentre essas o Projeto de Lei 5167/2009, objeto de análise do capítulo seguinte.

II. O PL 5167/2009 E O RETROCESSO DE DIREITOS: A REAÇÃO CONSERVADORA NA ARENA POLÍTICA.

Ao analisar o surgimento e o conteúdo do Projeto de Lei 5167/2009, se conclui que este surge como uma reação conservadora ao progressivo avanço no reconhecimento de direitos de homossexuais.  

Em um cenário de luta por direitos de grupos LGBTQIA+, agora organizados coletivamente e com maior voz e representação nas instituições políticas, foi apresentado, em março de 2007, o PL 580/2007 na Câmara dos Deputados, de autoria do deputado Clodovil Hernandes12, filiado ao Partido Trabalhista Cristão.

Mesmo propondo uma mudança tímida, o projeto objetivou alterar o Código Civil de 2002, acrescentando à lei o capítulo XVIII-A, intitulado Do contrato de união homoafetiva, para tratar do contrato civil de união homoafetiva. Conforme a proposta, duas pessoas do mesmo sexo poderiam constituir união homoafetiva por meio de contrato em que se dispusesse sobre suas relações patrimoniais, sendo assegurado, no juízo cível, o segredo de justiça em processos relativos às cláusulas deste contrato (Brasil, 2007).

Além disso, o PL previa o acréscimo de um parágrafo único ao art. 1790 do CC, que trata do direito sucessório em relações formadas por união estável, passando a prever que as disposições do referido artigo teriam aplicação aos casais formados por pessoas do mesmo sexo (Brasil, 2007).

O PL 580/2007 trazia como justificação atender a reivindicações dos grupos homossexuais com vistas a integrá-los no ordenamento jurídico e caminhar para a eliminação de preconceitos em razão da orientação sexual, seguindo uma tendência mundial de tolerância em relação às diferenças (Câmara, 2007).

Desde o seu recebimento na Comissão de Seguridade Social e Família, o projeto sofreu uma série de reveses, e a tímida proposta inicial de expansão de direitos dos casais homossexuais foi transfigurada no decorrer dos debates, na Câmara dos Deputados. 

Ao longo de 17 anos, foram apensados13 ao PL 580/2007 oito projetos de lei14 com conteúdo semelhante, dispondo acerca da união entre pessoas do mesmo sexo. Em sua maioria, buscavam expandir os direitos dessa parcela social historicamente discriminada, avançando demasiadamente em relação ao texto original, contudo, com base em fundamentos frágeis. Havia propostas que previam a aplicação à união estável de pessoas do mesmo sexo os dispositivos do Código Civil referentes à união estável entre homem e mulher, como no caso do PL 4914/2009, assim como a iniciativa de conversão da união estável em casamento civil, no PL 1865/2011 (Brasil, 2023b).

Ocorre que, dentre os projetos apresentados, apenas um seguia na contramão, ao buscar eliminar qualquer possibilidade de reconhecer juridicamente o vínculo entre casais formados por indivíduos do mesmo sexo. 

O PL 5167/2009, de autoria do Capitão Assumção, parlamentar então filiado ao PSB, foi apresentado no plenário da Câmara dos Deputados cerca de dois anos após o PL 580/2007, sendo apensado a este. A medida visava alterar a redação do art. 1521 do CC, que trata das hipóteses em que pessoas não podem casar em razão de algum vínculo pré-existente, inserindo no artigo um parágrafo único com a seguinte disposição: [n]os termos constitucionais, nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento ou a entidade familiar (Brasil, 2009).

Na justificativa do projeto, o autor destacou a defesa dos valores cristãos da sociedade brasileira, sendo necessário que os parlamentares eleitos por esse grupo majoritário mantivessem a coerência de atitude e respeito à vontade do povo que os elegeu. Ainda como justificação do PL, alegou que [o] Brasil, desde sua constituição e como nação cristã, embora obedeça o princípio da laicidade, mantém, na própria Constituição e nas leis, os valores da família, decorrentes da cultura de seu povo e do Direito Natural (Brasil, 2009, p.2). 

Reproduzindo uma série de trechos da bíblia, defendeu que a constituição mitiga a tese do Estado laico, não podendo haver outro entendimento senão no sentido de que família é a união exclusiva entre homem e mulher. Nessa lógica, qualquer texto legal que busque dar tratamento diferente à entidade familiar, reconhecendo outras formas de família além daquela formada por cisgêneros, estaria eivada de inconstitucionalidade, sendo necessário, por isso, ser “banido” do ordenamento jurídico pátrio (Brasil, 2009, p.4). 

A discussão envolvendo o reconhecimento de casais homoafetivos como entidade familiar, seja por meio da união estável ou através do casamento, se arrastou no decorrer dos anos no âmbito da Comissão de Seguridade Social e Família, encontrando muita resistência de grupos conservadores e enfrentando contingências políticas momentâneas. Após ser arquivado e desarquivado pela mesa diretora da Câmara em, ao menos, três oportunidades, foi reformulada a comissão e redistribuído o Projeto de Lei para a denominada Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família (Câmara dos deputados, 2009).

Nessa nova rodada de debates, em março de 2023, numa verdadeira vitória para a direita, foi designado como relator do PL 580/2007 o deputado Pastor Eurico, filiado ao Partido Liberal, agremiação partidária do então presidente Jair Bolsonaro. 

No parecer, o relator se manifestou pela aprovação do PL 5167/2009, ou seja, contra à equiparação do relacionamento entre casais homossexuais ao casamento ou a entidade familiar, posicionando-se pela rejeição do PL 580/2007 e dos demais apensados a este que defendiam o reconhecimento de direitos a essa parcela da sociedade (Brasil, 2023a, p.14). 

De início, o relator Pastor Eurico questionou a decisão do Supremo no âmbito da ADI 4277, em que a Corte reconheceu a união homoafetiva como um núcleo familiar, equiparando as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres. Segundo o parlamentar, o STF teria mais uma vez usurpado a competência do Congresso Nacional, exercendo atividade legiferante incompatível com suas funções típicas. A decisão teria sido pautada por propósitos ideológicos, distorcendo o “espírito da lei” e a vontade do povo brasileiro, que, segundo ele, somente se manifesta através de seus representantes regularmente eleitos (Brasil, 2023a, p.3).

Ainda segundo o relator, o casamento entre pessoas do mesmo sexo seria contrário à “verdade humana”. O matrimônio representaria uma realidade objetiva e atemporal, cujo ponto de partida e a finalidade consistiria na procriação. Nessa linha, a relação homossexual, ao não proporcionar à sociedade a eficácia especial da procriação, que justifica a regulamentação na forma de casamento e a sua consequente proteção especial pelo Estado, não mereceria o amparo legal (Brasil, 2023a, p.11).

Por meio de um “contexto histórico”, foi analisada a forma de tratamento da homossexualidade ao longo dos séculos, partindo da Grécia antiga e incorporando o texto bíblico. O relator chega a pontuar até mesmo o trabalho de uma série de psicólogos e médicos psiquiatria notáveis, dentre estes Freud, Adler e Jung, que teriam reconhecido nessa condição humana uma espécie de patologia. Tudo isso para concluir que quando as leis não legitimam o comportamento homossexual, longe de tratar injustamente a alguém, respondem a uma norma ética, de ciência, e tutelam o bem comum da sociedade (Brasil, 2023a, p.8).

Ademais, para o relator, não importa o quanto dois homossexuais compartilhem uma cama e propriedades ou ganhos, o relacionamento deles não se parece em nada com um casamento em sua essência pois falta a complementaridade corporal dos sexos, inexistindo nessa relação a eficácia social do casamento como origem da família15 (Brasil, 2023a, p.9). 

Em reação ao parecer do relator, a minoria de esquerda integrante da comissão adotou medidas para tentar obstruir o andamento da proposição, contudo, sem sucesso. Alguns parlamentares apresentaram voto em separado, divergindo e atacando o entendimento do deputado Pastor Eurico16.

Em seu voto, a deputada Erika Kokay sustentou que o objeto da proposição não trata de convicções religiosas, morais ou ideológicas, mas sim de direitos civis, que existem e devem ser garantidos a todos, sem qualquer discriminação, independente de concordância ou não de qualquer um da sociedade. Entendeu a parlamentar não restar dúvida quanto ao posicionamento discriminatório do relator, que não apenas teria disseminado discurso homofóbico, como também estaria questionando a competência e legalidade da decisão do STF, que possibilitou a união civil entre pessoas do mesmo sexo (Brasil, 2023b, p.4). 

Em sua conclusão, manifestando-se pela rejeição do PL 5167/2009 e pela aprovação dos demais apensados, a deputada Erika Kokay ressaltou que:

Nenhuma família pode ser sujeita à discriminação com base na orientação sexual ou identidade de gênero de qualquer de seus membros. E os Estados devem assegurar que leis e políticas reconheçam a diversidade de formas de família, incluindo aquelas não definidas por descendência ou casamento e tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para garantir que nenhuma família possa ser sujeita à discriminação com base na orientação sexual ou identidade de gênero de qualquer de seus membros, inclusive no que diz respeito à assistência social relacionada à família e outros benefícios públicos, emprego e imigração (BRASIL, 2023a, p. 18).

Após calorosas discussões, em 10 de outubro de 2023 o parecer do relator foi aprovado, com 12 votos a favor e 5 contrários, seguindo para análise da Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial (CDHMIR), onde permanece o projeto parado até o presente momento.

A aprovação do PL 5167/2009 causou espanto e preocupação nos movimentos sociais progressistas e defensores das pautas de direitos de LGBT´s17. Muito embora o trâmite no Congresso seja longo até uma eventual aprovação da lei, que ainda precisa passar pelo crivo da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ), cogitar a existência de um texto legal que declara que nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento ou a entidade familiar enseja atenção e demanda respostas.

O potencial de regressão e eliminação assistido nos últimos tempos, em relação aos direitos historicamente conquistados pela luta de homossexuais em prol da igualdade, abre um novo flanco de discussão e análises, tanto no campo político quanto jurídico, cabendo questionar se medidas com este teor, isto é, semelhantes ao PL 5167/2009, podem ser levadas adiante à luz dos direitos e garantias fundamentais declarados no texto constitucional. 

Para grupos religiosos fundamentalistas, que ocupam parcela considerável dos assentos no Congresso Nacional, o apoio institucional à conjugalidade homossexual deve ser terminantemente negado, por colidir com uma concepção de família fundada na heterossexualidade monogâmica aberta à reprodução, que se pretende universal e absoluta (Mello, 2006, p.13)

A onda conservadora se espalhou pela política institucional brasileira e, ainda que seja resultado de processos sociais desiguais, assimétricos e com temporalidades distintas, na conjuntura atual, organiza-se politicamente em torno do ataque a inimigos comuns. Ao se considerar que os um dos artifícios mais potentes do neoconservadorismo e do extremismo de direita é a deflagração de pânico moral frente à diversidade sexual, esse fenômeno alcança dimensão única no atual cenário de erosão das garantias constitucionais e decomposição do sistema político democrático (Rios, 2022).

A figura do ex-presidente Jair Bolsonaro é o ícone deste movimento conservador reacionário atual, que se opõe ao reconhecimento e proteção dos direitos de homossexuais, com base em um discurso reprodutor de padrões sociais hegemônicos, fundados em uma visão essencialista e biologizante dos sexos, conforme o paradigma da heteronormatividade, acrescido de uma moral supostamente religiosa e de práticas discriminatórias.

Diante da constatação de que direitos adquiridos podem sofrer revezes, notadamente quando a arena político-institucional assume postura conservadora e reacionária, faz-se necessário pensar em formas de defesa aos seus ataques. Para manter as conquistas e continuar avançando no reconhecimento de novos direitos, a Constituição mostra-se como um locus fundamental de disputa. O conceito jurídico de família aberto, aberto à interpretações, deve ser reformulado, para ser pautado numa leitura progressista do texto constitucional.

III. UMA RELEITURA DA INSTITUIÇÃO “FAMÍLIA” À LUZ DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS: O RECONHECIMENTO JURÍDICO DA PLURALIDADE SOCIAL.

O sujeito imerso na sociedade contemporânea não pode ser interpretado a partir das essencialidades identitárias, pois tal leitura é insuficiente, sendo superada a ideia de identidade singular pela concepção de identidades plurais e multifacetadas, nas diversas características construídas através das vivências e das historicidades que tornam as pessoas únicas (Gimenez; Martins; Anelin, 2018, p.4).

A sexualidade é uma das características que individualizam os sujeitos, tornando a sociedade plural e diversa, diante das múltiplas possibilidades de interações existentes. Contudo, a diversidade de expressões das sexualidades humanas tem sido consideradas, por parcela considerável sociedade e dos poderes constituídos, como uma transgressão do padrão heteronormativo, o que afeta diretamente os direitos humanos dessas pessoas (Gimenez; Martins; Anelin, 2018, p.5). 

O conceito de tradicional de família incorpora o padrão heteronormativo, tendo aversão ao pluralismo sexual. Cabe esclarecer que a família é uma instituição social, resultante de um acordo entre distintos atores políticos acerca de quais agrupamentos conjugais e parentais devem contar com a proteção do Estado e a legitimidade da sociedade (Mello, 2006, p.498). Para compreender melhor a instituição família, notadamente na acepção corrente na sociedade brasileira, cabe tratar da influência da Civil Law, em que o código civil napoleônico é um dos principais exemplos desse modelo.

No código civil napoleônico, há uma relação de estreita conexão entre a configuração jurídica da família e o modelo de Estado, em que a família assume relevância política de formação dos futuros cidadãos e proprietários. Nessa lógica, a ordem pública funda-se sobre a ordem privada e a ordem social sobre a ordem doméstica. Em tal cenário de conformação social, percebe-se um reforço drástico do poder marital, a supremacia absoluta da família legítima, a condição jurídica submissa da mulher e a criminalização do adultério feminino, no que a hierarquia familiar repousava em uma disciplina machista do pátrio poder, reforçada por seu controle público (Rios, 2022, p.2).

De acordo com Roger Raupp Rios (2022, p.2), como características desse modelo institucional tradicional de família, cabe ressaltar a percepção da família como uma entidade fechada e permanente no tempo, independente da mutação de seus integrantes individualmente considerados. Destaca o jurista que, nesse contexto, a família é considerada em si mesma, voltada para a consecução de objetivos econômicos e afetivos internos e para a realização de finalidades externas e superiores, relacionadas com a manutenção e o progresso da sociedade.

Em vista disso, num cenário político e ideológico no qual os gêneros estão rigidamente definidos e orientados para necessidades de produção e para o fortalecimento de certos padrões morais confirmatórios desta cosmovisão, não resta espaço para a aceitação de qualquer espécie de relacionamento destoante do padrão da família institucional. Não há espaço para as uniões de pessoas do mesmo sexo, pois estas contrariam a lógica conformadora da família enquanto figura jurídica e, além disso, a homossexualidade atinge e confronta também ditames religiosos dominantes e informadores da legislação civil (Rios, 2022, p.667)

As resistências à aceitação de famílias formadas por homossexuais relacionam-se ao fato de que a luta por direitos ao reconhecimento de gays e lésbicas desafia as estruturas milenares sobre as quais sociedades humanas foram construídas, como a repressão sexual e a heterossexualidade compulsória, por exemplo.

Em geral, as demandas do movimento LGBTQIA+ pelo reconhecimento de seus vínculos afetivo-sexuais não negam a diferença sexual entre o masculino e o feminino, mas sua determinação como o único fundamento do desejo, da sexualidade e da constituição da família (Mello, 2006 p.499). Por isso, constata-se que a família não está em xeque como instituição base da vida social, o que o debate atual exige é, tão somente, reconhecer a diversidade de formas que a família pode assumir, a partir de diferenciados sistemas de poder (Mello, 2006, p.503)

Esse modelo tradicional de família institucional, baseada na hierarquia e no controle patriarcal, declina na segunda metade do século XX (Rios, 2013, p.5). Se a concepção jurídica tradicional do conceito de família não deixava margem para a aceitação das uniões de pessoas do mesmo sexo, abrem-se novas perspectivas a partir de então.

No Brasil, em especial com a promulgação da Constituição de 1988, essas transformações provocaram a inserção de diversas normas a respeito da família no texto constitucional, que separa todo um capítulo na Ordem Social para tratar do tema. A Constituição carrega a visão de superação da dinâmica familiar que subordina a consecução de determinados fins sociais e estatais a determinada cosmovisão estatal. O regime jurídico da família constitucionalmente vigente rompe com o paradigma institucional, à luz do reconhecimento da dignidade constitucional de outras formas de vida diversas da tradicional família legítima, até a declaração de igualdade de direitos e de deveres entre homem e mulher na sociedade conjugal (Rios, 2013, p.5).

A Constituição Federal de 1988 fundou uma nova base jurídica para auferir o respeito aos princípios constitucionais, tais como a igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana. Tais princípios foram transportados para o ramo do Direito de Família e, a partir deles, foi transformado o conceito de família, que passou a ser considerada uma união pelo amor recíproco (Barreto, 2012, p.211). 

Antes da análise da compatibilidade das uniões homossexuais às espécies de organizações familiares expressamente enumeradas pela Constituição, faz-se necessário questionar o próprio caráter enumerativo. Nessa toada, há juristas que sustentam que a Constituição, ao enumerar tais e quais espécies de comunidade familiar, não admite o reconhecimento de outras formas de família. Entretanto, colocar o problema nestes termos não contribui para a elucidação do problema de entender o espaço das uniões entre homossexuais, em termos jurídicos. Isso porque indagar a natureza taxativa ou enumerativa das comunidades familiares previstas no texto constitucional seria conceber a Constituição de acordo com o dogma da completude, como se a constituição já tivesse definido de antemão a resposta para este problema (Rios, 2013, p.10). 

Na contramão desta tese, na interpretação constitucional, a Constituição se caracteriza por sua abertura e amplitude, afastando a ideia de ausência de lacunas no ordenamento jurídico. A partir disso, a interpretação constitucional possui um elemento criador, pois o conteúdo da norma interpretada só pode ser concluído pela própria interpretação, sem abandonar, contudo, a vinculação do teor da própria norma. Assim, ao invés de se questionar se a Constituição, no capítulo da Ordem Social que trata da família, encarta um rol exemplificativo ou taxativo de espécies de comunidades familiares, cabe se perguntar quais os princípios diretivos presentes no texto constitucional que podem fornecer uma resposta para o problema da legitimidade jurídica de famílias formadas por homossexuais (Rios, 2013, p.10-11). 

A Constituição de 1988 traz em seu texto, de forma explícita, três espécies de família, sendo àquela derivada do casamento, a família decorrente da união estável e a família monoparental. Em face da literalidade do texto constitucional, questiona-se se haveria espaço para outras formas de família além daquelas expressamente declaradas na Constituição, como no caso das entidades familiares formadas por homossexuais. 

Cabe, neste ponto, tecer algumas considerações sobre as espécies de família textualmente previstas na Constituição. Adriana Maluf (2010, p.126) conceitua o casamento18 como um ato solene, com forma prevista em lei, que tem como objetivo a formação de um grupo social, que visa o amparo mútuo de seus integrantes em todas as esferas da vida, baseado em afeição genuína, com finalidade de desenvolvimento das potencialidades e visando o bem estar e a felicidade do ser humano.

A supracitada autora, quanto à natureza jurídica do matrimônio, se filia à tese de que consiste em um contrato especial de direito de família, no qual o principal elemento constitutivo é o consentimento das partes, de onde derivam os efeitos decorrentes do ato matrimonial, regulado por normas impositivas impostas pela sociedade, sem deixar de relegar um espaço para a efetivação da autonomia da vontade pessoal, em especial no tocante ao regime de bens e à duração do casamento (Maluf, 2010, p.126).

Muito embora se tenha apresentado a crítica ao termo “homoafetividade” quando buscase referir a relação entre pessoas do mesmo sexo, dando ênfase a “afetividade”, que, na verdade, pode camuflar uma leitura conservadora, que tenta purgar a relação entre homossexuais com base no afeto, não se está afirmando que o novo paradigma constitucional é alheio ao vínculo afetivo. Ao contrário, o legislador constituinte institucionalizou a relação baseada no afeto, quando previu a possibilidade da formação da família através da união estável19 (Mousnier, 2002, p.246). 

Com base no comando constitucional, a doutrina majoritária conceitua união estável como a entidade familiar estabelecida entre o homem e a mulher, de forma pública, contínua e duradoura, com o intuito de constituir família, distinguindo-se do concubinato, que refere-se às relações entre pessoas impedidas de casar (Maluf, 2010, p.127). 

Em vista disso, Conceição Mousnier (2002, p.246) explica que, na união estável, o conteúdo comportamental entre os companheiros prevalece sobre o conteúdo formal, sendo possível encontrar na discussão doutrinária a expressão “casamento por comportamento”, como referência à união estável. São variadas as consequências jurídicas decorrentes do reconhecimento da união estável como entidade familiar, cabendo destacar a possibilidade recíproca, entre os conviventes, de pleitear alimentos, e a participação conjunta nos bens adquiridos no curso da convivência (Mounsier, 2002, p.246).

Além da família formada pelo casamento e pela união estável, a Constituição dispôs expressamente acerca da família monoparental20, que trata-se daquela formada por apenas um dos adultos, pai ou mãe, que encontra-se desacompanhado, sem o cônjuge ou companheiro, vivendo apenas com os filhos. Existem diferentes causas para a monoparentalidade, no que vale mencionar: a maternidade solteira, a viuvez, o divórcio, a adoção, a negativa de paternidade com anulação de registro, dentre outras (Mounsier, 2002, p.254-255).

Essa configuração de família formada por apenas um dois pais, no geral a mãe, possui caráter eminentemente contemporâneo, pois foi superada a concepção de que tal formação familiar, composta por uma mulher solteira e filhos, seria uma vergonha à família. Tal transformação recebeu respaldo moral pela ideologia social dominante e foi contemplada na Constituição de 1988, deixando de ser um tabu (Maluf, 2010, p.127). 

Roger Raupp Rios (2013, p.10) ressalta que a pesquisa sobre as uniões homossexuais no direito de família, em regra, orienta a pergunta a respeito da qualificação destas uniões em uma das três espécies familiares dispostas no texto constitucional descritas acima. Ou seja, não se considera a hipótese da configuração de uma outra espécie de comunidade familiar, ainda que não prevista explicitamente na Constituição (Rios, 2013, p.10).

Diante dessa constatação, necessário se faz propor a reflexão acerca da necessidade de se reformular o conceito tradicional de família, buscando no texto constitucional elementos explícitos e implícitos que sirvam de fundamento à uma interpretação progressista de entidade familiar. Para construir uma sociedade democrática e plural, onde as relações humanas interpessoais sejam respeitadas e protegidas juridicamente, faz-se necessária reestruturar o conceito de família fundado na hegemonia da heteronormatividade, para que este passe a incorporar a pluralidade de formas de vida existentes na comunidade política.

O estabelecimento de relações homossexuais, fundadas no afeto e na sexualidade, de forma livre e autônoma, tem relação direta com a proteção da dignidade humana, da mesma forma que os vínculos entre heterossexuais (Rios, 2013, p.7). Independentemente do sexo ou do gênero, o ser humano merece respeito, consideração e igual proteção, política e jurídica, em razão da própria condição humana.

Quando se trata de questões relacionadas à identidade sexual e seu reconhecimento social, se está tratando da viabilidade de garantir e de reconhecer direitos humanos, que são constantemente violados e ameaçados pela lógica repressiva do sistema. Conceber direitos humanos importa em falar de alteridade, que vai além da ideia de se colocar no lugar do outro. Alteridade, nessa lógica, remete à responsabilidade de se colocar ao lado destes sujeitos historicamente oprimidos e, a partir disso, exercer uma convivência respeitosa com essas pessoas e suas diferenças (Gimenez; Martins; Angelin, 2018, p.116).

Na contemporaneidade, ainda que exista resistência às mudanças da estrutura social, foram superados antigos dogmas relativos às finalidades meramente reprodutivas da família, antes apresentados como condições necessárias para o seu reconhecimento. Ademais, foram flexibilizadas as exigências formais, antes satisfeitas unicamente pela celebração do casamento civil ou religioso (Rios, 2013, p.7).

O princípio da sociabilidade e o respeito ao pluralismo, que integram a noção contemporânea de Estado de Direito, estando intimamente relacionados com a proteção da dignidade humana, atuam em favor do reconhecimento das uniões homossexuais como entidade familiar. Em vista disso, a compreensão de Estado Democrático de Direito reclama não só a ausência de ingerências ilegítimas à individualidade das pessoas, mas também exige a promoção positiva da liberdade, destinada a criar as condições de desenvolvimento da liberdade e da personalidade (Rios, 2013, p.8).

Nessa linha, o respeito ao pluralismo é fundamental para a preservação da dignidade humana e para o desenvolvimento pessoal dos sujeitos, posto que, sem o respeito às diferenças individuais, desaparece a possibilidade da construção de um mundo onde haja espaço para a subjetividade e para a constituição das identidades pessoais (Rios, 2013, p.8).

Em suma. Faz-se necessário o reconhecimento de novas modalidades de entidade familiar, além daquelas previstas expressamente no texto constitucional, quais sejam: o casamento, união estável e a família monoparental. Mostra-se fundamental, em especial no atual contexto da sociedade brasileira, delinear conceitualmente novos modelos de família que, de fato, já existem na realidade concreta, mas que passam ao largo da conceituação política e jurídica, resvalando na mera discussão acadêmica.

Concordamos com Roger Raupp Rios (2013, p.21) quando afirma que, “mais que repetir os esquemas tradicionais dos modelos institucionais de família, hoje em constante tensão com o idealismo ingênuo da ‘família fusional’ ou com o risco da reprodução da família institucional, abre-se a possibilidade de transformar o direito de família”.

O referido autor propõe como modelo alternativo os “pactos de solidariedade”, que consiste em legislação que estabeleça liberdade, independente de orientação sexual, para que parceiros determinem por conta própria a dinâmica de suas vidas afetivas e sexuais, fornecendolhes um instrumento pelo qual o valor de tal união é reconhecido e respeitado juridicamente. Além do reconhecimento e proteção estatal, tal pacto de solidariedade evita a estigmatização decorrente de uma regulação daquilo que se considera a “exceção” na sociedade (casamento entre homossexuais), uma espécie de “casamento de segunda classe” (Rios, 2013, p.20).

A regulamentação pelo direito, através de leis específicas protetivas de direitos, bem como por meio de uma jurisprudência garantidora, poderá ajudar a promover as mudanças e a remover as injustiças historicamente consolidadas para com esses grupos estigmatizados. Se a mudança se concretizar e o conceito de família se amoldar aos ditames da Constituição Cidadão, homossexuais poderão exercer plenamente sua cidadania e sentir-se pertencentes a uma sociedade que valoriza a diversidade e a pluralidade e não que simplesmente as tolera (Matta, 2008, p.75). 

Em síntese, o direito deve incorporar as múltiplas formas de relações familiares existentes concretamente na sociedade, traduzindo para linguagem jurídica esse fenômeno social. Essa mudança passa pela atuação positiva das instituições do Estado, que devem agir unissonamente objetivando reconhecer, declarar e concretizar os direitos daqueles que fogem ao padrão heteronormativo. A Constituição de 1988 possui mecanismos para se construir uma interpretação progressista do direito de família, que permita expandir o conceito de entidade familiar, para que este comporte a pluralidade de formas de vida existentes no corpo político.

IV. CONCLUSÃO.

O presente trabalho buscou discutir as contradições, ou melhor, os avanços e retrocessos que atravessam a luta pelo reconhecimento de direitos de homossexuais, notadamente na arena política e judicial.

Nessa linha, a família, como intuição perene na história da humanidade, transforma-se em um objeto de estudo interessante para analisar a forma como a sociedade enxerga e trata a questão envolvendo os direitos sexuais, no que se refere à homossexualidade.

Em um contexto social de hegemonia do sexo masculino e da heteronormatividade, o conceito tradicional de família naturalizou o arranjo entre homem e mulher, unidos através do matrimônio, com o propósito de procriação. Assim, as diversas outras formas de interações interpessoais entre os sujeitos, com vínculos de afeto e constantes no tempo, deixaram de ser reconhecidos como entidade familiar, padecendo de proteção jurídica.

Na realidade brasileira, esse debate atinge as instituições políticas, que, contudo, assumem posições distintas quanto ao problema. Por um lado, o Judiciário promoveu avanços importantes no sentido de garantir direitos de homossexuais, a partir de decisões judiciais e administrativas que reconheceram a união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar e, por isso, suscetíveis de contrair o matrimônio. Em contrapartida, o Legislativo, como reação ao avanço na pauta LGBTQIA+, passou a discutir medidas legislativas regressivas em direitos, propondo que nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento ou a entidade familiar.

Todavia, a proposta elaborada por uma comissão de juristas, presidida pelo ministro do STF Luis Felipe Salomão corre em tramitação no Parlamento sob o novo projeto de Código Civil de 2024 fazendo menções significativas nas áreas de família e herança com a nova reforma, amplia-se o conceito de família, multiparentalidade, socioafetividade e o da União homoafetiva nesses âmbitos. Legitimando a união homoafetiva, reconhecida em 2011 pelo STF, como já citado, substituindo as alusões a “homem e mulher” para “duas pessoas” ao referenciarse aos casais e a família, como inscrito nas novas redações dos artigos 1.514 e o 1.564-A.   

Diante de tais incertezas, tomando como premissa que direitos conquistados são passíveis de regressão, conclui-se que é necessário reformular o conceito tradicional de família, para que este passe a incorporar a pluralidade de formas de vida existentes no corpo político, reconhecendo e protegendo outros arranjos familiares além daqueles formados por homem, mulher e filhos.

Para construir uma sociedade plural e democrática, concretizando o ideal de Estado de Direito, à luz dos princípios e valores constitucionais, este é o único caminho.


4“Os direitos sexuais são compreendidos por um conjunto de direitos relacionados à sexualidade que emanam dos direitos à liberdade, igualdade, privacidade, autonomia, integridade e dignidade de todas as pessoas (GOMES, 2021). Conforme os arts 5, 7 e 10 da Declaração sobre Direitos Sexuais da World Association for Sexual Health, tais direitos possuem repercussões específicas, abrangendo a proteção ao] estupro, abuso ou, perseguição sexual, “bullying”, exploração sexual e escravidão, tráfico com propósito de exploração sexual, teste de virgindade ou violência cometida devido à prática sexual real ou presumida, orientação sexual, identidade e expressão de gênero ou qualquer característica física; o direito ao mais alto padrão de saúde atingível, inclusive de saúde sexual; com a possibilidade de experiências sexuais prazerosas, satisfatórias e seguras; e o direito à educação sexual esclarecedora. Todas as pessoas são titulares de direitos sexuais, contudo, o presente trabalho tem como foco a relação desses direitos com pessoas que não se identificam com o padrão heteronormativo, e que, por isso, são alvos preferenciais de estigmas sociais.
5Art. 19 – Conceder-se-á licença: II – por motivo de doença em pessoa da família, com vencimento e vantagens integrais nos primeiros 12 (doze) meses; e, com dois terços, por outros 12 (doze) meses, no máximo; V – sem vencimento, para acompanhar o cônjuge eleito para o Congresso Nacional ou mandado servir em outras localidades se militar, servidor público ou com vínculo empregatício em empresa estadual ou particular; 
Art. 33 – O Poder Executivo disciplinará a previdência e a assistência ao funcionário e à sua família, compreendendo: I – salário-família; II – auxílio-doença; III – assistência médica, farmacêutica, dentária e hospitalar; IV – financiamento imobiliário; V – auxílio-moradia; VI – auxílio para a educação dos dependentes; VII – tratamento por acidente em serviço, doença profissional ou internação compulsória para tratamento psiquiátrico; VIII – auxílio-funeral, com base no vencimento, remuneração ou provento; IX – pensão em caso de morte por acidente em serviço ou doença profissional; X – plano de seguro compulsório para complementação de proventos e pensões. Parágrafo único – A família do funcionário constitui-se dos dependentes que, necessária e comprovadamente, vivam a suas expensas.
6Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. […] Art. 12. Havendo pedido de medida cautelar, o relator, em face da relevância da matéria e de seu especial significado para a ordem social e a segurança jurídica, poderá, após a prestação das informações, no prazo de dez dias, e a manifestação do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República, sucessivamente, no prazo de cinco dias, submeter o processo diretamente ao Tribunal, que terá a faculdade de julgar definitivamente a ação.  
7Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
8Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [..]
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. […]
9“[O] sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. É como dizer: o que se tem no dispositivo constitucional aqui reproduzido […] é a explícita vedação de tratamento discriminatório ou preconceituoso em razão do sexo dos seres humanos. Tratamento discriminatório ou desigualitário sem causa que, se intentado pelo comum das pessoas ou pelo próprio Estado, passa a colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos”.
10Órgão administrativo do Poder Judiciário criado pela Emenda Constitucional n. 45/2004.
11“Órgão Administrativo não tem o poder de legislar”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-mai22/luiz-carvalho-orgao-administrativo-nao-poder-legislar/. 
12O parlamentar assumido publicamente homossexual teve uma formação cristã e posições conservadoras, o que atraiu críticas por parte de movimentos da causa LGBT, por ter sido contra o casamento gay, embora fosse a favor da união civil de pessoas do mesmo sexo.
13A apensação é um instrumento que permite a tramitação conjunta de proposições que tratam de assuntos iguais ou semelhantes. Quando uma proposta apresentada é semelhante a outra que já está tramitando, a Mesa da Câmara determina que a mais recente seja apensada à mais antiga.
14PL 4914/2009, PL 5167/2009, PL 1865/2011, PL 3537/2015, PL 5962/2016, PL 8928/2017, PL 5120/2013, PL 4004/2021.
15Além desses argumentos e outros apresentados pelo Relator, este elencou que não seria correto pretender legalizar as relações homossexuais por três motivos: a) não haveria perda de direitos: a homossexualidade não é ilegal no Brasil e os homossexuais podem concordar com plena eficácia legal em compartilhar propriedades ou lucros e direitos de herança; b) as relações homossexuais não proporcionam o ganho social que implica exclusivamente o casamento como origem da família pela sua abertura à vida, própria da complementariedade biológica do masculino com o feminino; c) as crianças que crescem sob a proteção de um casal homossexual são privadas do valor pedagógico e socializador da complementariedade natural dos sexos no seio da família.
16 referenciar
17“Movimento LGBTI+ alerta sobre ameaça à união homoafetiva. Projeto inativo volta a debate com desvantagem em Comissão para a população LGBT+. Entidades propõem mobilização na Câmara”.
Disponível:https://vermelho.org.br/2023/09/04/movimento-lgbti-alerta-sobre-ameaca-a-uniao-homoafetiva/.
18CF/88. Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. […]
19CF/88. Art. 226. […] § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. 
20CF/88. Art. 226. […] § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

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¹Graduando do curso de direito pelo Centro Universitário do Estado Pará (CESUPA)
²Graduando do curso de direito pelo Centro Universitário do Estado Pará (CESUPA)
³Graduado, mestrado e Doutorado em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e Coordenador adjunto da pós Graduação em Direito Civil do Centro Universitário do Estado do Pará.