REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11361279
Lúcio Jaimes Acosta Junior1
RESUMO
O Regime Disciplinar Diferenciado – RDD, é uma modalidade de sanção disciplinar, em alguns aspectos é tratado como medida cautelar, introduzido no ordenamento jurídico brasileiro em 2003 por meio da lei 10.792, trouxe um novo universo para o sistema carcerário nacional. Este recurso visa coibir a possibilidade de subversão da ordem ou disciplina interna, bem como se aplica àquele que de alguma forma demonstre alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade, e também àquele sob o qual recai fundadas suspeitas de envolvimento ou participação a qualquer título em organização criminosa, associação criminosa ou milícia privada, independentemente da prática de falta grave. A Lei 13.964/2019 trouxe mais rigor ao RDD e sobre estas mudanças e o próprio regime se debruçam as linhas que formam este trabalho.
Palavras-chave: Regime Disciplinar Diferenciado. Sistema carcerário. Direitos Humanos.
ABSTRACT
The Differentiated Disciplinary Regime – RDD, is a type of disciplinary sanction, in some aspects it is treated as a precautionary measure, introduced into the Brazilian legal system in 2003 through law 10,792, bringing a new universe to the national prison system. This resource aims to curb the possibility of subversion of internal order or discipline, as well as applying to those who in any way demonstrate a high risk to the order and security of the penal establishment or society, and also to those who are well-founded to be suspected of involvement. or participation in any capacity in a criminal organization, criminal association or private militia, regardless of serious misconduct. Law 13,964/2019 brought more rigor to the RDD and the lines that form this work focus on these changes and the regime itself.
Keywords: Differentiated Disciplinary Regime. Prison system. Human rights
1. INTRODUÇÃO
O Regime Disciplinar Diferenciado – RDD é uma ferramenta no sistema carcerário nacional, que diminui, entre outras coisas, o contato do presidiário com o mundo exterior, sob a justificativa de que neste referido contato, alguns presidiários têm dado continuidade aos crimes que cometiam antes, especialmente aqueles detentos integrantes de quadrilhas ou organizações criminosas.
É indiscutível a importância do controle sobre a comunicação do detento com o externo, ainda mais quando se trata de evitar a manutenção da operacionalidade de certos grupos criminosos (AFONSO, 2009), entretanto, quais seriam os limites do Estado para reprimir essa logística?
A inclusão do detento no RDD é possível através de decisão administrativa. Considerando a forma agressiva como essa medida atinge o detento, há que se considerar se é plausível o veredito da administração carcerária, ser o suficiente para impingir tamanha sanção.
Para muitos, a inserção do preso neste regime é uma medida extrema que agride diretamente direitos fundamentais. Para outros é uma medida necessária para manutenção da ordem social e combate ao crime organizado. O tema afeta diretamente a estrutura carcerária e a relação do Estado com seus detentos, e traz à tona problemas penitenciários como a superpopulação dos presídios, o tratamento dos presos, direitos humanos e, de forma mais sensível, os limites para se alcançar a almejada segurança.
Assim como a Lei de Responsabilidade Civil reestruturou a Administração Pública, a Lei nº. 10.792/03 deu nova definição ao universo dos presídios nacionais, que passaram a ter uma ferramenta a mais para adequar-se à realidade dos criminosos.
O surgimento, na legislação brasileira, de um regime mais rigoroso que visa limitar o contato do preso com o mundo externo, mostra que o Estado está aberto à mudanças, inclusive as que passam pelo crivo constitucional e internacional. Na busca de soluções, o Poder Público dá sinais à sociedade de que não está inerte na batalha contra o crime (PALU, 2010).
O Regime Disciplinar Diferenciado enfrenta a resistência dos defensores mais assíduos dos direitos humanos, e é duramente avaliado no âmbito do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas e pela própria Ordem dos Advogados do Brasil. Sua aceitação ainda não é unânime, mas seus resultados em países como a Itália demonstram que a despeito de seus atritos com outras normas, sua eficácia é algo que no mínimo deve ser analisada sob vários prismas.
Dois são os valores a serem contemplados para a adoção de uma posição diante das mudanças trazidas pela Lei nº. 10.792/03. O primeiro é seu valor social e prático e o segundo, o seu valor legal e individual com relação ao preso.
Para alcançar o objetivo do trabalho será necessário compreender a balança entre a inclusão social e as medidas restritivas de liberdade e comunicação na modalidade prevista pelo RDD. A pesquisa quantitativa (OLIVEIRA, 2011), buscou na doutrina, jurisprudência e nos dados do Governo Federal, elementos para as considerações finais.
No tocante à sociedade, apesar de não tão bem esclarecida a respeito dessa modalidade de sanção disciplinar, segue sem grandes discussões, pois não se preocupa com o que não vê, e o RDD elimina um problema imediato, trazendo a esperança de uma paz que não atenta para o preço que esta diminuição da violência pode trazer.
Este estudo tem como objetivo, avaliar a legalidade, os efeitos e a coerência das modificações introduzidas na Lei de Execuções Penais, em relação aos Direitos Humanos e a Constituição Federal.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO
A necessidade de criar um regime prisional adequado para coibir a ação de líderes criminosos se fazia urgente, ainda mais com o advento da prisão de Fernandinho Beira Mar em meados de 2002.
A exemplo do que ocorreu na Itália 10 anos antes, por ocasião da prisão de Salvatore “Totto Riina”, “capo dei capi” (chefe de todos os chefes) da máfia italiana Cosa Nostra, o sistema penitenciário brasileiro para alcançar a amplitude criminosa de determinados presos precisou fazer adaptações rápidas às suas regras.
No Brasil, receosos de arcar com o ônus político de prováveis rebeliões, que provavelmente ocorreriam em seus presídios com a presença do líder brasileiro do tráfico, os governadores passaram a travar um verdadeiro jogo de empurra para decidir quem deveria custodiá-lo em seu estado durante o cumprimento da pena.
Inicialmente, a dificuldade residia na estrutura prisional nacional que não dispunha de equipamentos, funcionários e sistemas de vigilância suficientemente eficientes para implementar um maior rigor e garantir o cabal cumprimento da pena para presos perigosos. Depois de uma pesquisa por presídios em todo território brasileiro, descobriu-se no interior de São Paulo, em Presidente Prudente, o que parecia ser a solução para a celeuma; o presídio de segurança máxima de Presidente Bernardes2.
Inaugurado, com celas individuais, vidros que isolavam o preso do contato com visitantes e sistemas de câmera em todos os ambientes, o presídio fora criado para viabilizar um regime de cumprimento de pena mais severa. Contudo, esse novo sistema, que à época já era chamado de RDD (Regime Disciplinar Diferenciado), não tinha amparo legal. Foi assim que teve início o enfrentamento do segundo problema, definir a melhor maneira de superar os princípios da legalidade (ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; art. 5.º, II CF/88) e da irretroatividade da lei penal (a lei penal não retroagirá salvo para beneficiar o réu; art. 5.º, XL, CF/88) de forma a propiciar a imediata inserção de Fernandinho Beira Mar no Regime Disciplinar Diferenciado.
O Secretário de Justiça de São Paulo, baixou portaria explicitando os direitos e deveres do preso dentro do novo sistema prisional, avalizado por figuras políticas importantes, inclusive do Governo Federal, que se sentiam responsáveis por nunca terem direcionado verbas para a construção de presídios federais, exigência esta que data de 1990, com o advento da Lei de Crimes Hediondos (artigo 3.º da Lei n.º 8072/90).
Criou-se um consenso institucional, ao arrepio do Direito Penal, que levou Fernandinho Beira Mar a ver negado inúmeros pedidos de habeas corpus.e outros remédios jurídicos que se debatiam pelo reconhecimento de direitos em sede de execução penal.3
Ressalte-se que, muito embora seja evidente a periculosidade do paciente, não é dado a quem quer que seja negar vigência à Constituição Federal, de forma a criar um ordenamento de exceção e ferir de morte a ideia básica de Estado de Direito.4
O sistema jurídico é guiado por princípios e teorias de sorte a edificar um arcabouço normativo seguro e de aplicação cogente, não importando o destinatário de seus ditames. Esse princípio é chamado de segurança jurídica, o qual, entre outras atribuições, repele e impede qualquer governante de criar, a seu desejo, regras e tribunais específicos para avaliar condutas individualizadas.5
Sob a régua da Constituição é possível medir o quão despropositado foi o trato jurídico na situação concreta que se inseria Fernandinho Beira Mar. A despeito disso, em boa hora foi publicada a Lei n.º10.792 de 1.º de dezembro de 2003 que trouxe, legitimidade à previsão do RDD, conferindo ares de legalidade às arbitrariedades perpetradas até então. Referida lei trouxe nova redação ao artigo 52 da Lei de Execuções Penais (Lei n.º 7210/84), estabelecendo o Regime Disciplinar Diferenciado.
O Regime Disciplinar Diferenciado, ora instituído por lei, descende daquele criado no âmbito da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo6. O Governo Federal ensaiava um meio de “legalizar” o RDD por meio da Medida Provisória nº 28 de 04.02.2002, que foi encerrada7 e deu azo à lei 10.792/03.
Embora esta lei resulte das experiências anteriores e com elas guarde semelhança, é fruto de amplo debate parlamentar e em seu socorro vieram diversos setores da sociedade civil, tendo a Comissão de Constituição e Justiça promovido várias audiências públicas para este fim, nas quais o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP se fez representar.
Do ponto de vista formal o novo instituto não padece de vício, posto que passou por todas as fases legais exigidas para a criação da lei ordinária, cabendo verificar, porém, se suas previsões esbarram nos direitos e garantias individuais consagrados pela Constituição Federal ou em tratados internacionais sobre Direitos Humanos, que o Brasil faça parte, falta então, verificar se possui a então nova lei padece de vício material.
2.2 SISTEMÁTICA
A Lei n. 10.792, de 1º de dezembro de 2003, ao alterar o art. 52 e seus parágrafos da Lei de Execuções Penais dispôs que estão sujeitos ao Regime Disciplinar Diferenciado todos os maiores de dezoito anos, privados legalmente da liberdade em razão de prática criminal, sendo indiferente tratar-se de preso provisório ou definitivo, nacional ou estrangeiro, com exceção dos recolhidos em razão de medida de segurança.
São três as hipóteses de aplicação do Regime Disciplinar Diferenciado: 1) Quando o preso comete crime doloso que ocasione subversão da ordem ou disciplina internas; 2) Quando oferece alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade ou; 3) Quando recair sobre o preso fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando. O abstrativismo apresentado nos dois últimos quesitos torna questionável a individualização da pena. 8
A sanção prevista sofreu alteração em 2019, a redação da lei 10.792/03 ditava que era cabível o recolhimento, em cela individual, por até 360 (trezentos e sessenta) dias, com direito a visita semanal de dois adultos e número indeterminado de crianças, por duas horas e igual período diário de banho de sol.
Com o advento da lei 13.964/19 a aplicação da medida pode chegar a dois anos e as visitas que eram semanais passaram a ser quinzenais e a saída de 2 horas para banho de sol ficou limitada a ocorrer com no máximo 4 presos. Outro ponto sensível que foi alterado é o que previa o prazo de 1/6 da pena com limite de duração da aplicação do RDD. A nova lei extinguiu esse prazo, sendo possível que a pena seja cumprida integralmente no Regime Diferenciado 9.
Em ambas as leis há a previsão do RDD como medida cautelar, quando a lei afirma que a sua aplicação pode se dar baseada em fundadas suspeitas de participação em organização criminosa ou quando o detento põe em risco a ordem ou segurança penal. Acrescenta ainda que a determinação de colocação neste regime disciplinar mais grave pode ocorrer por decisão administrativa se o período for menor que dez dias. 10
2.3 ATRIBUIÇÃO DO JUIZ NA APLICAÇÃO DA LEI Nº 10.792/03
O legislador atribui a tarefa de mensuração do cabimento ou não do RDD à apreciação casuística do juiz, ensejando a concepção de um verdadeiro conceito jurídico indeterminado que nada mais é do que a permissão legal, baseada num conceito vago, de que o juiz utilize o seu critério de experiência pessoal e conhecimento jurídico para aferir, no caso concreto, eventual existência do alto risco do preso para aplicação a que a norma se refere.
A atividade jurisdicional está cercada de limites, reconhecendo a doutrina tradicional tratar-se de uma atividade muito mais vinculada do que discricionária, uma vez que o magistrado está obrigado a fundamentar suas decisões (art.93, IX CF/88), vis-à-vis com a visão tradicional de Montesquieu de onde se extrai que o juiz é a boca da lei11.
Todavia, a lei que criou o Regime Disciplinar Diferenciado – RDD resolveu afrouxar as amarras legais que tolhiam a atividade jurisdicional para que, dentro de um critério de razoabilidade, o aplicador do direito pudesse preencher o conceito abstrato da lei, utilizando-se de elementos extraídos do caso concreto, aptos a convencê-lo da adequação da medida, sempre com a indeclinável necessidade de motivação de suas decisões.
2.4 RELAÇÃO COM OS DIREITOS HUMANOS E AS REGRAS MÍNIMAS PARA O TRATAMENTO DE PRISIONEIRO DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS
As eventuais incompatibilidades do RDD com a Constituição Federal devem ser analisadas também à luz do que dizem os tratados internacionais de direitos humanos, notadamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos12, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, no âmbito das Nações Unidas, assim como a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, além destes, também servem para o mesmo propósito as Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros da Organização das Nações Unidas, que, embora não possam ser denominadas de “tratado internacional” no sentido estrito do termo, vêm sendo reconhecidas como meio de interpretação daqueles.13
As Regras Mínimas devem ser observadas não só pela boa vontade dos Estados de seguirem orientações da ONU, bem como porque vêm elas servindo de inspiração para a apreciação de denúncias de violação dos Direitos Humanos pelos órgãos do sistema internacional de proteção da pessoa.
Assim levantada a questão sobre a constitucionalidade das normas contidas no Regime Disciplinar Diferenciado, esta deve ser analisada em face dos dispositivos da Constituição Federal de 1988 e daqueles que os complementam.
2.5 INCOMPATIBILIDADE COM AS NORMAS CONSTITUCIONAIS E DE DIREITOS INTERNACIONAIS
2.5.1 TRATAMENTO CRUEL, DESUMANO OU DEGRADANTE
Preocupação de todos os que lidam com o sistema carcerário é ou deveria ser a saúde física e mental das pessoas confinadas, que, por configurar situação antinatural, pode agredir a personalidade do ser humano preso, o que contraria a finalidade da punição, hodiernamente tida como a associação entre a repressão ante o mal causado e a reintegração social do condenado, afastando o mal futuro e quiçá produzindo benefícios à sociedade.
Tal postulado tem como ideais subjacentes a noção de que toda ação estatal deve convergir para o bem comum, o que repele qualquer medida que venha a configurar a apropriação da vingança privada pelo ente público. A supressão, pelo Estado, da liberdade natural do ser humano deve ser ordenada a fim de “aproveitar” o período em que a pessoa é afastada da sociedade para buscar dotá-la de meios tendentes a produzir sua ulterior incorporação social harmônica.14
A Lei de Execução Penal, logo em seu artigo primeiro, enfatiza que “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.
Há, portanto evidente inter-relação entre a preservação da dignidade da pessoa presa e a finalidade ressocializadora da pena. Logo, o emprego de penas cruéis, desumanas ou degradantes, ou, pior, o emprego de tortura, viola, a um só tempo, o direito individual do preso e o direito difuso de toda a sociedade de ver a atividade estatal empregada em algo que contribua para o bem comum.
Daí porque a legislação universal proíbe o emprego de métodos que pendam à degradação do ser humano, pois eles não ressocializam .
Caminhando na mesma direção, e inegavelmente inspirada pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, a Constituição Federal de 1988, dispõe que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. (art. 5º, inciso III).
Curiosamente, nenhum tratado internacional clarifica o que seriam “tratamentos desumanos ou degradantes”. Mas as definições que empregam para a tortura permitem afirmar que, sendo esta um extremo, aqueles seriam uma versão mitigada daquela, dada sua menor intensidade.
A respeito deste assunto, Rodley pontua que:
“a definição de tortura na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura bem pode ser pensada como abarcadora da maioria de atos que noutros lugares poderiam ser tratados como tratamentos cruéis proibidos (“prohibited ill treatment”) que não chegam a ser tortura.15”
Indo adiante, Rodley destaca que não se chegou a uma definição precisa de tratamento desumano ou degradante, nem mesmo quais seriam os paradigmas para avaliação, caso a caso, de sua ocorrência.16
Neste ponto reside grave entrave à adoção do RDD, uma vez que as Regras Mínimas restringem grandemente o emprego do isolamento como forma de castigo e, mesmo que se obedeça à previsão de acompanhamento diuturno do estado de saúde do preso, permanece vigente a regra geral de vedação da aplicação de castigo cruel, desumano ou degradante.
A questão da sanidade mental e física do preso mostra-se absolutamente relevante e, neste aspecto, a lei que criou e a que modificou o RDD andou mal em não prever qualquer amparo médico ao preso submetido a este regime.17.
Em análise preliminar conclui-se que a falta de previsão legal que garanta ao preso em Regime Disciplinar Diferenciado constante amparo médico, seja quanto a aspectos clínicos, seja quanto aos de ordem psiquiátrica, configura grave incongruência com as prescrições do Direito Internacional dos Direitos Humanos e, portanto, confronta-se com a própria vedação constitucional ao emprego de tratamento desumano ou degradante.
2.5.2 DURAÇÃO, FINALIDADE E NECESSIDADE
É fundamental observar a relação entre a duração da medida e sua finalidade18. Em que pese a boa intenção da lei, há que se verificar se sua finalidade está sendo alcançada.
A necessidade e a proporcionalidade da aplicação do isolamento constituem o divisor de águas entre o permitido e o proibido. Assim é que a questão fundamental deste aspecto é saber se a aplicação do RDD é a única saída possível, ou se há outras formas menos gravosas e prejudiciais ao preso de lidar com a questão.
Atendo-se ao caso brasileiro, o RDD foi instituído pela Resolução n. 26/01, da Secretaria de Administração Penitenciária, para fazer frente à sublevação simultânea de 28 unidades prisionais no Estado de São Paulo, por ordem do Primeiro Comando da Capital. Tal ato demonstrou o fortalecimento de organizações criminosas como o Primeiro Comando da Capital – PCC, o Comando Vermelho, o Terceiro Comando, sem dúvida uma situação grave a demandar atitudes compatíveis por parte do Estado.
O modus operandi de tais grupos se funda na facilidade de comunicação com o mundo exterior, seja para comandar operações criminosas de dentro do presídio, seja para criar uma rede de poder paralela dentro do próprio sistema carcerário.19
Neste contexto, isolar os presos que lideram tais facções parece ser a solução mais natural e plausível, de modo a interromper a cadeia de comando e desarticular o movimento. No entanto, o modo pelo qual isso foi feito, dadas as regras do RDD, seja pela sua longa duração, seja pela forma de execução, pode ter ido além do necessário para contornar a situação.
Com relação ao tema: o que fazer com presos difíceis e que causam transtorno, a obra “Administração penitenciária: Uma abordagem de Direitos Humanos – Manual para Servidores Penitenciários”, patrocinada pelo Ministério da Justiça, destaca:
Isolamento não é boa prática. Existem pelo menos dois modelos de gestão de presos violentos e presos que causam transtornos. O primeiro consiste em colocá-los em condições de isolamento, seja por si sós, seja com um ou dois outros presos. Nessa situação os presos passam todo o dia e toda a noite em sua cela. Nas condições mais extremas, eles não têm acesso a qualquer atividade ou estímulo externo e têm absolutamente nada para fazer. Esses presos poderão ter permissão para uma hora de recreação solitária em uma espécie de ‘gaiola’ vazia ao ar livre. Eles passam por uma revista íntima e são acorrentados cada vez que saem de sua cela. Em algumas jurisdições, os presos podem passar anos nesse tipo de regime. Esse método de lidar com os presos, por mais perigosos que sejam, não constitui boa prática e muitas vezes decorre da ausência de técnicas de administração penitenciária apropriadas.20
Analisando a legislação brasileira, nota-se que a Lei de Execução Penal diz que os presos deverão ser classificados, para orientar a individualização da execução de suas penas, daí decorrendo que nada impede o Estado de separá los conforme seus antecedentes e periculosidade.
2.5.3 PERCALÇOS
A separação de líderes de facções criminosas do restante da população carcerária e sua colocação em estabelecimentos de segurança compatível com sua periculosidade, mais que poder, é um dever do Estado. No entanto essa decisão não pode se afastar da consequência primordial do cumprimento da pena, que é a reintegração social harmônica do condenado, como estabelece o artigo 1º da Lei de Execução Penal.
Entretanto, mesmo que o isolamento de presos de alta periculosidade fosse permitido pela lei vigente à época, a norma que instituiu o RDD o fez como sanção pela prática de infração disciplinar grave, não como regime de cumprimento de pena, contrariando, aliás, sua própria denominação.
Desta feita, embora esteja elencado no Capítulo IV da Lei de Execuções Penais (Dos Deveres, dos Direitos e da Disciplina), o Regime Disciplinar Diferenciado, em princípio, não tem natureza jurídica de sanção, uma vez que não se destina a punir alguém por uma conduta específica, mas sim a afastar certos presos do meio carcerário comum. Talvez por isso reste patente o descompasso entre as circunstâncias mediante as quais um preso pode ser removido a este novo regime e os princípios que norteiam a aplicação de punições, tais como o da tipicidade estrita e proporcionalidade entre ação e sanção.
Das três hipóteses de aplicação do RDD, a primeira (prática de fato previsto como crime doloso que ocasione subversão da ordem ou disciplina internas) é a única em que, possivelmente se vislumbre uma ação, concreta e específica, capaz de ser provada e individualizada, caracterizadora de falta disciplinar grave, de modo a permitir a aplicação da punição; os demais casos (presos que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade; ou, presos sobre os quais recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando) são de uma imprecisão tal que configuram autêntica carta branca ao Estado para aplicar sanções ao arrepio da própria lei.
No caso de presos que “apresentem alto risco para a segurança do estabelecimento ou da sociedade” há evidente retorno ao Direito Penal de Autor (ou de Periculosidade), hoje inadmissível, na medida em que a aplicação da sanção decorre da realização de uma conduta típica e antijurídica, e não mais pela presumível ameaça que a pessoa representa, pelo simples fato de existir.21
Neste sentido, ilustra a lição de Zaffaroni e Pierangeli:
O sentimento de segurança jurídica não tolera que uma pessoa (isto é, um ser capaz de autodeterminar-se), seja privada de bens jurídicos, com finalidade puramente preventiva, numa medida imposta tão-somente pela sua inclinação pessoal ao delito sem levar em conta a extensão do injusto cometido e o grau de autodeterminação que foi necessário atuar. Isso não significa que com a pena nada seja retribuído, mas apenas o estabelecimento de um limite à ação preventiva especial ressocializadora que se exerce sobre uma pessoa. De outra parte, a inclinação ao delito, além de não ser demonstrável, possui o sério inconveniente de, muito freqüentemente, ser resultado da própria ação prévia do sistema penal, com o que se iria cair na absurda conclusão de que o efeito aberrante da criminalização serve para agravar as próprias conseqüências, e, em razão disso, para aprofundar ainda mais a sua aberração.22
Quanto à terceira previsão, ocorre violação ao princípio penal do non bis in idem, uma vez que se há suspeitas de participação em organização criminosa, quadrilha ou bando, sendo tal conduta, por si mesma, crime, o caso seria de noticiá-la à autoridade competente e não de aplicação de suposta sanção disciplinar.
Notadamente, se a administração penitenciária suspeita que alguém integra, ou mesmo comanda, organização criminosa, nada impede que seja o preso removido para estabelecimento de maior segurança, em regime fechado, no qual sejam dificultadas suas atividades.
O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP já se posicionou quanto à desnecessidade do RDD, relatando o tema, o Conselho reuniu-se e entendeu, na esteira da manifestação contida no MEMO/MJ/CNPCP/Nº 021/2003, que a instituição do chamado Regime Disciplinar Diferenciado, ou mesmo do Regime Disciplinar de Segurança Máxima, é desnecessária para a garantia da segurança dos estabelecimentos penitenciários nacionais e dos que ali trabalham, circulam e estão custodiados.
Tendo em vista que a caracterização legal do RDD não estabeleceu elementos capazes de indicar uma proporção entre a violação da disciplina e a sanção decorrente, nem tampouco entre a ameaça e o período de isolamento, há o permanente risco de ser sempre fixado pelo tempo máximo.23.
Com o RDD criou-se o “regime fechadíssimo”, ao qual fez alusão Alberto Silva Franco ao comentar o já referido modelo instituído pela Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, muito semelhante ao modelo adotado na Lei n. 10.792, de 1º de dezembro de 2003. Dizia o consagrado autor:
Ora, a Resolução SAP-026/01 não interfere diretamente em regras de coexistência no interior da estrutura penitenciária; institui, em verdade, uma nova formatação do isolamento em cela, de modo a convertê-lo em mais uma etapa de cumprimento da pena privativa de liberdade: o regime fechadíssimo24
Andrew Coyle, em publicação do Ministério da Justiça, propõe a construção de pequenas unidades, para, no máximo, dez presos, dotadas de todos os meios de segurança disponíveis. Parte, o autor, da premissa de que é preferível o isolamento “em grupos” ao individual. A intenção é que, dentro de um perímetro seguro, os presos possam se movimentar com relativa liberdade dentro das unidades e ter uma rotina prisional normal. Nesse tipo de ambiente, as pessoas presas somente serão colocadas em isolamento quando tudo mais fracassar e, nesse caso, somente por um curto período de tempo.25
Falta inserir no RDD a inteligência penitenciária para evitar que ordens como a execução do juiz corregedor Antonio José Machado Dias saiam do sistema, mas é inquestionável que se esse tipo de ordem saiu de dentro de uma carceragem na vigência da Lei 10.792/2003 mais fácil sairia na ausência desta.
Num Brasil cheio de conflitos de valores, a criação do Regime Disciplinar Diferenciado, surgiu como uma esperança de que, se necessário, o Estado fará as mudanças necessárias a fim de auxiliar no equilíbrio da balança da justiça, ainda que sob fogo cruzado de outras normas.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O fato de o Estado querer ressocializar pessoas que muitas vezes não tiveram sequer uma socialização anterior é algo que enseja uma longa caminhada que envolve gastos e esforços do Governo e de toda a sociedade.
O RDD certamente não é o modelo desejado pela sociedade, menos ainda pelos presos, mas o fato é que políticas e leis que visam dar oportunidades aos detentos já não surtem o efeito esperado em determinados grupos de encarcerados que evoluíram no crime.
Para este grupo minoritário a lei precisa prevê formas de impedir, já que não é possível ressocializá-los, que destruam a segurança e a paz social. Querer ressocializar um detento é e deve continuar sendo a prioridade do sistema penitenciário, mas esse desejo não deve ser buscado a qualquer preço ou ao custo de vidas inocentes.
Haverá um momento em que o peso da ressocialização será tão grande e ela estará tão distante que terá que passar a um segundo plano, tornando-se prioridade a segurança do Estado e da própria sociedade.
Diante do quadro examinado, do confronto das regras instituídas pela Lei n 10.792/03 atinentes ao Regime Disciplinar Diferenciado, com aquelas da Constituição Federal, dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos e das Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Prisioneiros, nota-se a existência de incompatibilidades da nova sistemática em diversos aspectos, como a falta de garantia para a sanidade do encarcerado e duração excessiva. Além disso a falta de tipificação clara das condutas e a ausência de correspondência entre a suposta falta disciplinar praticada e a punição decorrente, revelam que o RDD não possui natureza jurídica de sanção administrativa, sendo, antes, uma tentativa de segregar presos do restante da população carcerária, em condições não permitidas pela legislação.
É indubitável que algumas mudanças devem ser feitas para ajustar o RDD às necessidades e à realidade dos presos, bem como minimizar os choques entre ele e as normas constitucionais, de direitos humanos e as regras mínimas para tratamento de presos, mas negar sua aplicação baseado na ausência destes ajustes seria como parar todo o tráfego aéreo baseado nas duas últimas falhas ocorridas, os prejuízos seriam maiores que o risco de haver outras falhas. Lutar para diminuir a possibilidade de ações deturpadoras da segurança jurídica do preso é e sempre será a atitude esperada, e não a eliminação sumária de uma norma que tem vários e reais benefícios. Por tudo isso, o RDD é visto como uma alternativa para enfrentar o crônico problema da permeabilidade dos estabelecimentos carcerários ao mundo exterior e a incapacidade da Administração de controlar o ambiente prisional, assim como a ineficiência do sistema no que diz respeito à separação dos presos conforme seus antecedentes, sua periculosidade e características pessoais, prevenindo a formação das ditas facções criminosas.
As grandes questões a serem meditadas são: qual o limite que separa o poder de punir do excesso de punição ou dos direitos humanos; até onde vale a pena extrapolar alguns limites para que se mantenha a ordem social e a paz pública e por fim, seria a aplicação da Lei 10.792/03 a única ou a melhor solução? Essas questões são a tênue linha que definem a aplicação da norma em comento e particularmente acredito que o RDD pode ser um mal, mas inegavelmente é no momento um mal necessário, a despeito de conflitar com normas como a própria Constituição Federal, trata-se de reajusta-lo e não de revoga-lo.
No confronto entre o direito empírico, teórico e o direito prático, tangível no mundo real, a sociedade de modo geral anseia pelo direito prático, que traz resultados, que se adapte aos artifícios dos criminosos.
2 CARVALHO, Salo. Crítica à execução penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. v. 1. p.36
3 FREIRE, Christiane Russomano. A violência do sistema penitenciário brasileiro contemporâneo: o caso RDD. São Paulo: IBCCRIM, 2005, nº 35 p. 16
4 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo. Malheiros, 1999.
5 MIRABETE, Julio Fabrini Execução Penal:comentários à Lei n 7.210, de 11-7-1984 – São Paulo. 6 ed. 2004.
6 Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo – SAP/SP. Resolução n. 26 de 04.05.2001.
7 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1992.
8 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo. Malheiros, 1999.
9 FREIRE, Christiane Russomano. A violência do sistema penitenciário brasileiro contemporâneo: o caso RDD. São Paulo: IBCCRIM, 2005, nº 35 p. 16
10 FREIRE, Christiane Russomano. A violência do sistema penitenciário brasileiro contemporâneo: o caso RDD. São Paulo: IBCCRIM, 2005, nº 35 p. 16
11 WUNDERLICH, Alexandre. O suplício de Tântalo: a Lei nº 10.792/03 e a consolidação da política criminal do terror. São Paulo: Boletim IBCCRIM. v. 11. nº 134. jan. 2004. p. 6
12 WEIS, Carlos. Direitos humanos contemporâneos. São Paulo, Malheiros, 2009, p. 86.
13 RODLEY, Nigel. O tratamento de prisioneiros de acordo com a lei internacional. Disponível em:http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/dhaj-pcjp 20.html. Acesso em 25.ago.2007.
14 TUCCI, Rogeiro Lauria. Persecução penal, prisão e liberdade. São Paulo: Saraiva. 1990. p. 80.
15 ARNAUD, André-Jean. O Direito entre Modernidade e Globalização. Lições de Filosofia do Direito e do Estado, Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
16 RODLEY, Nigel. O tratamento de prisioneiros de acordo com a lei internacional. Disponível em: http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/dhaj-pcjp-20.html. Acesso em 25.ago.2007.
17 Penal Reform International. Dos princípios à prática: manual internacional para uma boa prática prisional. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Minist%C3%A9rio_da_Justi%C3%A7a_(Portugal). Ministério da Justiça de Portugal. Acesso em 26.jun.2007.
18 RODLEY, Nigel. O tratamento de prisioneiros de acordo com a lei internacional. Disponível em: http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/dhaj-pcjp-20.html. Acesso em 25.ago.2007.
19Relatório do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas. 37ª Sessão. Disponível em: http://www.gddc.pt/direitos-humanos/onu-proteccao-dh/orgaos-onu-dir-econ-soc-culturais.html. Acesso em 15.jul.2007.
20 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA DO BRASIL E EMBAIXADA BRITÂNICA. Administração penitenciária: uma abordagem de direitos humanos: Manual para servidores penitenciários. Brasília. 2004. p. 59.
21MENZES, Bruno Seligman Regime Disciplinar Diferenciado: o Direito Penal do inimigo brasileiro. São Paulo: Boletim do IBCCrim, n. 168. nov/2006. p.19.
22 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1997. pp. 117-119.
23 REGHELIN, Elisangela Melo, Regime Disciplinar Diferenciado: do canto da sereia ao pesadelo. São Paulo: Boletim do IBCCrim, n. 168, nov/2006. p.18.
24 FREIRE, Christiane Russomano. A violência do sistema penitenciário brasileiro contemporâneo: o caso RDD. São Paulo: IBCCRIM, 2005. nº 35 p. 18.
25 COYLE, Andrew. Administração penitenciária: Uma abordagem de direitos humanos – Manual para servidores penitenciários. Londres, International Centre for Prision Studies – King’s College London, Ministério da Justiça do Brasil e Embaixada Britânica – Brasília, 2004.
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1¹Professor de Direito Constitucional da Faculdade de Ciências Sociais dos Palmares, e-mail: luciojaimes@hotmail.com