REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11115800
Luma Frem De Araujo;
Orientadora: Profa. Me. Bárbara Penteado Cabral.
RESUMO
O presente trabalho pretende abarcar uma reflexão acerca do trabalho e experiência no contemporâneo ao partir da concepção de Byung-Chul Han sobre sociedade de desempenho, ou sociedade do trabalho. Através de uma revisão bibliográfica, objetiva encontrar um possível diálogo entre o estudo do autor e a abordagem clínica Gestalt terapia. Para tal, busca compreender se o trabalho sempre ocupou um espaço tão significativo na vida das pessoas. Introduz o sujeito de desempenho, e como sua liberdade paradoxal o captura, levando a uma pressão por desempenho que resulta em uma autoexploração e hiperatividade. A partir dos conceitos de campo organismo/ambiente, experiência, contato e introjeção, pudemos estabelecer alguns vínculos necessários para abordar as ideias de Han apoiando-se numa perspectiva gestáltica.
Palavras-chave: Gestalt-terapia. Contato. Experiência. Sociedade de desempenho. Trabalho.
ABSTRACT
This paper intends to comprehend Byung-Chul Han’s notion of achievement society, or work society. Through a bibliographic review, it aims to find a possible dialogue between the author’s field of study and the clinical specialty Gestalt-therapy. To this end, it seeks to understand whether work has always occupied such a significant space in people’s lives. It introduces the achievement-subject, and how its paradoxical freedom captures it, leading to a performance pressure that results in self-exploration and hyperactivity. From the notions of organism/environment field, experience, contact and introjection, we were able to establish some necessary links to approach Han’s ideas based on a gestalt perspective.
Keywords: Gestalt-therapy. Contact. Experience. Achievement society. Work.
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa pretende discutir como o trabalho ocupou um espaço tão norteador na vida do sujeito contemporâneo, que, impulsionado pelo discurso de liberdade neoliberal, parte em busca de seus sonhos, esforçando-se a ponto de sua hiperatividade acabar com qualquer possibilidade de experiência por parte dele.
O interesse pelo tema pesquisado surgiu no final da minha formação em Psicologia, mais precisamente ao ter contato com a Gestalt-terapia, abordagem que apresenta um compromisso com a experiência. Sua visão de pessoa e mundo como um campo unificado, uma totalidade indissociável, alterou a minha compreensão de sociedade e sujeito, fazendo eu me interessar cada vez mais pelo estudo do campo organismo/ambiente. Principalmente em como era possível imprimir no organismo, a partir de discursos sociais, ideias, desejos e formas de ser que podem ser colocadas como certas ou erradas.
Nas discussões realizadas em sala de aula, acabei conhecendo o livro “Sociedade do Cansaço”, do autor coreano Byung-Chul Han. Han entende o sujeito contemporâneo como um sujeito movido por um ideal de desempenho e produtividade constante, de modo que os momentos de não-produtividade evocam um sentimento de culpa e autoagressividade por parte dele. As características da Sociedade do Trabalho apontadas por Han, foram tão facilmente identificadas no meu dia a dia, que naturalmente passei a tentar articular seus estudos com a abordagem gestáltica. Escolhi destacar este livro pois, apesar de muito se falar durante a formação em Psicologia sobre Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, síndrome de burnout e, ainda mais, depressão como doenças do século, muito pouco se ouve, ainda, sobre o que há na relação que o sujeito estabelece com a experiência nesse século que desencadeia tais doenças.
No momento em que iniciei a pesquisa (2019), por mais que Sociedade do Cansaço já fosse minimamente conhecido, poucos eram os trabalhos acadêmicos que o discutiam, e, dentro do núcleo gestáltico, eles eram inexistentes. Dessa forma, a partir de uma pesquisa bibliográfica me propus a usar conceitos de ambos para tentar traçar uma possível relação entre eles que colaborassem com uma problematização da relação trabalho e experiência no mundo contemporâneo.
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Ao abordar o tema do trabalho e do ócio no primeiro capítulo nossa intenção será compreender se a atividade laboral sempre ocupou esse lugar de grande importância que possui em nossa vida atualmente, e, se não, quais fatores são possíveis de identificar no decorrer dos séculos que o colocaram como um norte para muitas das escolhas “decisivas” que fazemos durante nossa existência.
No segundo capítulo pretendemos apresentar um estudo de Byung-Chul Han, seu paradigma patológico acerca da sociedade industrial e da sociedade pós industrial. Abordaremos algumas das principais características da sociedade e do sujeito de desempenho, e como sua liberdade paradoxal inviabiliza as possibilidades de experiência. Neste capítulo será possível reconhecer, dentro da construção teórica de Han, importantes autores que o influenciaram. Contudo, não o abordaremos por entendermos que em nossa proposta não cabe tamanho aprofundamento.
Após entendermos alguns dos conteúdos discutidos por Han, no terceiro e último capítulo deste trabalho, introduziremos a Gestalt-terapia. Partindo de ideias e conceitos dessa abordagem, buscaremos criar um diálogo entre ela e as obras de Byung-Chul Han acerca da contemporaneidade. Será possível compreender, a partir da ideia de que contato é experiência, como a hiperatividade do sujeito de desempenho o impede de definir melhor o contorno do seu desejo
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2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRABALHO E O ÓCIO DESDE A ANTIGUIDADE ATÉ A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL
Ao observarmos a sociedade tal como se apresenta hoje – no que diz respeito à forma como utilizamos nosso tempo – podemos perceber que a grande maioria das pessoas está preocupada em se desenvolver profissionalmente e pessoalmente. Isso faz com que muitas delas, ao olhar para sua “agenda pessoal”, perceba que boa parte desse tempo é investido em atividades e afazeres, muitas vezes relacionados ao trabalho e/ou carreira, e quase nada em contemplação, reflexão, ócio, em dedicar um tempo para si, se conhecer e se questionar. Neste primeiro capítulo, nossa intenção é fazer uma breve análise da valorização do trabalho em alguns contextos do ocidente desde a antiguidade até os tempos atuais, e como isso influencia na utilização do nosso tempo, na cultura e na desvalorização do ócio. Nosso principal objetivo é mostrar como nossa relação com o trabalho, como conhecemos hoje, vem sendo construída ao longo da história.
Ao olharmos para trás, podemos perceber que, até um certo ponto na história, o ócio era um modo de vida muito estimado pela sociedade. O termo ócio, que em sua origem grega (skolé) quer dizer escola, vem cada vez mais perdendo o status de nobreza e liberdade a ele conferido na Antiguidade, e sendo cada vez mais relacionado à vadiagem e à preguiça. Em contrapartida, o trabalho vem tomando mais espaço em nossas vidas, quebrando a barreira geográfica do local de trabalho e sendo talvez o maior norteador da vida do indivíduo pós-moderno (SOUZA, 2014). Possivelmente uma das razões pelas quais, em meio a pandemia que está matando milhares pessoas, muitas delas ainda se questionam se pararmos é o melhor caminho (KRENAK, 2020).
Para fazermos a análise da valorização do trabalho e desvalorização do ócio, teremos como norteadora a dissertação de Ricardo Oliveira de Souza, mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Souza (2014) escolhe como ponto de partida dos seus estudos a Grécia Antiga por ser o berço da cultura ocidental, além do Império Romano, por ser considerado precursor na relação entre trabalho e Direito, e do cristianismo, por se tratar de uma religião que norteia até hoje muitas das nossas práticas e moral.
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2.1 Trabalho e ócio na cultura grega da Antiguidade
Na Grécia Antiga, o ócio era tido como um momento de descanso, contemplação, atividade prazerosa e educacional. Em sua cultura, os gregos acreditavam que o ócio era crucial para a boa formação de caráter no homem, utilizando esse tempo “livre” para a prática de atividades esportivas, artísticas e filosóficas (contemplativas). A educação grega era voltada para o aprimoramento físico e humanístico de seus jovens. Não sendo uma surpresa o fato de ter sido na Grécia a realização da primeira olimpíada em 776 a.C., e de lá terem vindo os maiores filósofos da antiguidade (SOUZA, 2014).
Para Souza (2014) foi graças a esse tempo dispendido em atividades físicas, intelectuais e militares que fez com que os gregos se destacassem tanto em tão pouco tempo:
Na Grécia Antiga e Clássica, o ócio era a condição desejável do homem livre e essa condição pode ser entendida como um dos fatores que favoreceram tamanha efervescência cultural num espaço de tempo consideravelmente curto. […] Por certo, os gregos se utilizaram de conhecimentos desenvolvidos por outros povos, como o cálculo dos egípcios e a astronomia dos babilônios, todavia, foi na Grécia que a ciência propriamente dita foi criada e aprimorada em suas diversas especialidades. (SOUZA, 2014, p. 25).
Dentre as atividades relativas ao ócio citadas acima, os gregos davam uma importância especial ao ócio contemplativo (SOUZA, 2014, p. 43). Para eles a vida contemplativa era tida como uma vida superior, com um quê de nobreza, e o verdadeiro caminho para a felicidade. Aristóteles, considerado um dos grandes filósofos da Grécia Antiga, defende e dissemina esta visão. Segundo ele, a felicidade se encontra na Bíos Theoretikós, isto é, na vida destinada ao pensamento. Em seu escrito Ética a Nicômaco, mais precisamente no Livro X, ele se dedica a falar sobre que tipo de vida levaria à felicidade: a vida dos gozos, a vida política ou a vida contemplativa. Segundo ele, a mais verdadeira e pura felicidade só poderia ser encontrada através da vida contemplativa.
Isto se dava porque a atividade contemplativa não necessita de meios para chegar ao seu fim – como seria, por exemplo, o caso da vida política, que ao buscar honra, precisa que alguém a confira àquele que a busca. Segundo Aristóteles (1991, p.234), “essa atividade parece ser a única que é amada por si mesma, pois dela nada decorre além da própria”. Além de possuir um fim em si mesma, a vida (capacidade)
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contemplativa é o que nos distingue dos demais animais e nos aproxima dos deuses, já que, para ele, a contemplação é a única atividade que seria digna de ser chamada divina, e “os que estão na mais plena posse desta […] são os mais genuinamente felizes”. (ARISTÓTELES, 1991, p. 237) Dessa forma, podemos ver que a contemplação tem um papel muito importante na filosofia de Aristóteles e história grega. Como se, ao refletir/contemplar, o homem estaria fazendo aquilo que mais o caracterizaria como homem.
Em contraposição à toda essa importância dada ao ócio, o trabalho braçal era considerado uma atividade inferior, fatigante, uma prisão do homem, já que a partir do momento que o homem trabalha, ele se priva de poder exercer o ócio e a atividade contemplativa. O trabalho não era considerado uma tarefa para homens livres. E os homens livres que a exerciam a faziam de forma autônoma, sem a necessidade de prestar contas a um superior. Dessa forma, para que a sociedade pudesse se manter (o serviço braçal era inferior, mas alguém precisava realizá-lo), os gregos dispunham de escravos – geralmente frutos de povos tomados em conquistas militares – para cuidar da construção de edifícios, da agricultura e pecuária, tecelagem de vestes, e outras atividades necessárias para a subsistência da sociedade.
Mesmo sendo unânime a concordância de que o trabalho era uma atribuição inferior em comparação com as atividades relativas ao ócio, dentro da própria concepção de trabalho grega existia uma hierarquia entre o serviço braçal (ponein, do grego ponos relativo à dor, trabalho penoso) e o trabalho criativo (ergazomai, do grego ergon relativo a criar), sendo o último superior ao primeiro. Souza (2014, p. 31) relata ser possível encontrar essa diferença de valores até os dias atuais, onde “[ao criativo] foi atribuído o status de condição admirável per si. Já o trabalho braçal, mesmo quando exaltado […] traz consigo a lembrança do sofrimento físico.”
2.2 Trabalho e ócio no Império Romano
O Império Romano foi considerado um dos maiores da Antiguidade no que diz respeito à cultura, política e militarismo, e teve um papel fundamental para o desenvolvimento da civilização ocidental, graças à sua rápida expansão e dominação dos povos ao seu redor. Foi em Roma que o trabalho passou a ter uma maior formalização e ganhou mais atenção dos governantes.
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A cultura romana recebeu grande influência do povo grego em relação ao trabalho, sendo também considerado uma atividade carregada de sofrimento. Em Roma, igualmente, havia uma antipatia dos cidadãos com as ocupações braçais, e apesar de haverem lavradores livres e artesãos exercendo tais atividades, a subsistência do império dependia do trabalho escravo para o preenchimento destas funções. Este cenário começou a mudar na medida em que o império romano caía, e junto com ele, despencava o número de escravos disponíveis.
Dentre as razões para a queda do império, Souza (2014) cita o desenvolvimento e propagação do pensamento estoico, que passou a defender a igualdade entre os homens quando antes os escravos não eram considerados homens; o crescimento do cristianismo – ambos passaram a defender uma igualdade entre os homens, o primeiro em termos biológicos, e o outro perante Deus – o que contribuiu para que aos poucos a escravidão passasse a ser condenada e cartas de alforria cedidas; a conquista dos romanos do território grego no mediterrâneo, o que lhes garantiu a hegemonia comercial, fazendo com que mais homens livres se dedicassem à essa atividade – além de uma mudança na agricultura romana, que de atividade familiar de subsistência, passou para as mãos da aristocracia e suas grandes terras.
Todas essas mudanças contextuais fizeram com que, em Roma, diferentemente da Grécia, os trabalhadores livres aparecessem cada vez mais e em mais atividades, ganhando importância e isto abriu espaço para novas formas de trabalho, como o arrendamento de serviços (SOUZA, 2014) que funcionava de forma contratual e poderia ser remotamente comparado ao contrato de trabalho que temos atualmente.
2.3 Influências da cultura judaico-cristã sobre trabalho e ócio
É impossível não reconhecer que a cultura judaico-cristã teve um impacto gigantesco no mundo, sendo literalmente um divisor temporal. Sua influência vai de expressões simples do nosso vocabulário, feriados mundialmente reconhecidos (com poucas exceções) até costumes e rituais que muitos de nós nem nos damos conta. Da mesma forma, ela também exerceu uma grande influência sobre o ideal de trabalho que vimos experenciando ao longo do tempo, e cumpriu um papel importante na positivação desta atividade.
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É importante citar que abordaremos três momentos dessa religião: o judaísmo antes de Cristo, os primeiros séculos do cristianismo, e a Reforma Protestante e seus frutos. Cada qual terá sua ideia de trabalho perpassada por um contexto histórico e social. Ao longo desse trecho será possível encontrar menções de histórias tiradas do livro que para os cristãos é entendido como a palavra de deus, a Bíblia Sagrada. Essas menções têm como objetivo apenas ilustrar a sua influência na construção histórico cultural que marca a produção de subjetividade no trabalho ocidental, utilizada, portanto, como dados de realidade de uma cultura que é ampla e diretamente influenciada pelo que nele está escrito.
Na história bíblica do Antigo Testamento, Adão e Eva são punidos por desobedecer à ordem divina de não comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Eles, que até então viviam em completa harmonia com a criação e em estado de contemplação com Deus, como consequência dessa desobediência, precisariam trabalhar para seu sustento na terra:
E ao homem declarou: “Visto que você deu ouvidos à sua mulher e comeu do fruto da árvore da qual eu lhe ordenara que não comesse, maldita é a terra por sua causa; com sofrimento você se alimentará dela todos os dias da sua vida. Ela lhe dará espinhos e ervas daninhas, e você terá que alimentar-se das plantas do campo. Com o suor do seu rosto você comerá o seu pão”. (BÍBLIA, Gênesis, 3: 17-19, on-line)
Contudo, apesar de claramente o trabalho ser colocado por Deus como uma punição, também é possível perceber, no Antigo Testamento, que existe uma ambiguidade referente a esta atividade. Visto que, ora ela é abordada como um castigo dado por Deus – como citado acima – e ora como uma forma de trazer frutos e justificação à pessoa que a pratica: “todo trabalho árduo traz proveito, mas o só falar leva à pobreza.” (Provérbios 14:23) O ócio, por outro lado, é frequentemente relacionado à vida no paraíso divino. Seria este o estado de vida perfeito de Adão e Eva antes de desobedecerem a Deus, e de todos aqueles que seriam redimidos de seus pecados a partir de então.
No Novo Testamento, já com a figura de Jesus de Nazaré presente, e ainda sob uma forte influência do Império Romano, nota-se que essa ambiguidade permanece. O ócio pode ser entendido como uma dádiva de Deus para aqueles que possuem riquezas (aristocratas romanos), porém tem uma conotação negativa para aqueles que de fato precisam trabalhar – não dispõem de escravos – para o seu sustento. Dessa forma, entendemos que é possível inferir que é preferível uma vida
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dedicada ao ócio1, desde que a pessoa em questão seja responsável pelo próprio sustento, como está escrito na carta do apóstolo Paulo aos Tessalonicenses:
Irmãos, em nome do nosso Senhor Jesus Cristo nós lhes ordenamos que se afastem de todo irmão que vive ociosamente e não conforme a tradição que receberam de nós. Pois vocês mesmos sabem como devem seguir o nosso exemplo, porque não vivemos ociosamente quando estivemos entre vocês nem comemos coisa alguma à custa de ninguém. Pelo contrário, trabalhamos arduamente e com fadiga, dia e noite, para não sermos pesados a nenhum de vocês” (BÍBLIA, 2 Tessalonicenses 3: 6-8)
Souza (2014) nos chama a atenção para o contexto da exortação ao trabalho de Paulo. Neste momento, Paulo estava escrevendo aos primeiros cristãos que, de acordo com o autor, eram majoritariamente de classes mais pobres e escravos, ou seja, não teriam outra forma de garantir seu sustento senão trabalhando.
Apesar de já ser possível encontrar algum tipo de dignificação no trabalho pelos cristãos da igreja primitiva, é na Reforma Protestante que o trabalho vai encontrar o solo e contexto necessário para ganhar ainda mais importância e espaço na vida das pessoas. A Reforma, por sua vez, encontrou no século XVI, o solo e contexto necessários para que seus ideais se espalhassem rapidamente pela Europa Ocidental (ALVES; LEMOS, 2013).
Para Alves e Lemos (2013), diferentemente do que acontecia na Idade Média, a sociedade europeia estava cada vez mais sedenta por respostas científicas para as superstições e demonizações presentes em muitas das respostas dadas pela Igreja Católica Romana. Junto a isso, os camponeses e comerciantes – grupo em ascensão no período – mostravam-se cada vez mais incomodados com os altos impostos cobrados pela Igreja, os quais os impediam de ficar com os lucros de seu trabalho; os próprios religiosos estavam insatisfeitos com as diversas modificações que vinham sendo feitas nos dogmas e doutrinas da Igreja, que em muito já se distanciava da igreja primitiva, como em seu clérigo corrompido pela busca insaciável de riqueza e poder, o culto celebrado com elementos estranhos e contrários ao fundamento bíblico e o distanciamento imposto pelo uso obrigatório do latim nas missas. Muitos príncipes também começaram a ficar incomodados com a soberania que a figura do papa vinha
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ganhando, levando-os a ficar contra a Igreja romana e suscetíveis às ideias da Reforma Protestante.
Martinho Lutero foi um monge alemão considerado um dos maiores reformistas e peça chave na expansão do pensamento reformado. Apesar de não ser o primeiro a acusar os comportamentos da Igreja Romana de serem incompatíveis com a palavra bíblica, Lutero teve a coragem e audácia necessárias para bater de frente com as lideranças religiosas de seu tempo e pregar contra seus costumes, chegando ao ponto de chamar uma das bulas papais emitidas pela Igreja Católica de “palavra de Satã, na boca de seu anticristo”. (ALVES; LEMOS, 2013)
De acordo com Souza (2014), uma das mudanças que foi fruto da reforma protestante, e que teve forte influência sobre a valoração do trabalho foi a ideia de vocação. O trabalho que anteriormente era um mero meio de subsistência, passou a ter uma conotação de chamado divino, um fim em si mesmo e, caso a pessoa atendesse a este chamado/vocação, ela estaria tanto cumprindo seu papel secular – como se fosse uma expiação do pecado original – quanto poderia aproveitar as bençãos materiais que seriam consequência de seu esforço. Essas bençãos passariam inclusive a ser interpretadas como uma recompensa divina dada à pessoa por seu trabalho. Dessa forma, como descreve Souza (2014, p. 72): “O trabalho seria uma forma de se caminhar em direção à salvação, além de proporcionar bençãos materiais por meio do acúmulo.” Se anteriormente existia um discurso de que o acúmulo de bens materiais seria pecado, com a ideia de trabalho por vocação, esse discurso não só caiu por terra, como ganhou um selo de aprovação das igrejas reformadas.
A partir do protestantismo surge também um desinteresse por tudo que possa ser considerado terreno (secular) ou carnal, principalmente pelos protestantes considerados puritanos. Para estes, o trabalho era também uma forma de não dar prosseguimento a seus pensamentos “impuros” e desejos carnais/sexuais (“Mente vazia, oficina do diabo”), e caminhar em direção àquilo que seria a vontade de Deus, sua vocação, sua redenção. Com isto, qualquer atividade relativa ao ócio, passou a ser amplamente desvalorizada, interpretada como uma falta de zelo pelas coisas divinas, e começou-se a valorizar cada vez mais o tempo dispendido em atividade laboral, já que essa agora tinha também um cunho religioso. Um novo valor passou a entrar em vigor. A contemplação que até então tinha um valor positivo, deu lugar ao
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cansaço/fadiga, que passou a ser uma demonstração do empenho pessoal de cada um em seguir sua vocação (SOUZA, 2014).
2.4 Consequências da Revolução Industrial na vida laboral
Apesar de todos os fatos mencionados anteriormente exercerem grande influência na dicotomia ócio x trabalho, a Revolução Industrial talvez tenha sido o que causou as transformações mais marcantes nas vidas das pessoas em relação às suas rotinas laborais e privadas. Como se Reforma Protestante fosse a grande responsável por mudar a conotação do trabalho, seu sentido para as pessoas, e a Revolução foi a consequência dessa mudança de sentido. A revolução teve seu pontapé inicial na Inglaterra, no século XVIII, com a criação e aperfeiçoamento da máquina a vapor (OLIVEIRA, 2004), mas continuou se expandindo por outros países da Europa ao longo do século XIX – sendo dessa forma dividida entre primeira e segunda revoluções industriais. Existem ainda alguns historiadores que consideram as grandes inovações tecnológicas ocorridas nos séculos XX e XXI como uma terceira revolução industrial.
Com as novas invenções criadas no decorrer da revolução, a percepção de espaço e tempo mudou drasticamente. As máquinas de tear movidas com energia a vapor produziam 20 vezes mais tecidos que o trabalhador manual, e as máquinas movidas a energia elétrica, que viriam depois, até 200 vezes mais. A luz do dia, que antes marcava o tempo laboral, dava lugar à luz produzida a gás, fazendo com que esse tempo passasse a ser controlado não mais pelos próprios trabalhadores através da natureza, com o nascer e o pôr do sol, mas por proprietários industriais que aumentaram a carga horária dos trabalhadores a níveis extenuantes visando o acúmulo cada vez maior de capital (KENNEDY, 1993 apud NICOLACI-DA-COSTA, 2002, p. 195).
Estes trabalhadores, que antes tinham seu próprio ritmo de produtividade e conheciam todas as etapas da produção de suas mercadorias, foram expropriados de seu trabalho e passaram a ter que seguir o ritmo de funcionamento das novas máquinas e serem responsáveis por apenas uma das etapas de produção (OLIVEIRA, 2004). Além disso, pelas atividades não mais demandarem de grande força física, como era no campo, mulheres e crianças passaram a fazer parte do ambiente fabril, contribuindo para uma grande mudança nas rotinas familiares até então. Os meios de
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transportes, antes movidos pela força animal, a partir de então também começaram a utilizar a tecnologia a vapor.
Todo este processo de automação do trabalho, porém, não substituía totalmente a mão de obra humana. E os trabalhadores, antes majoritariamente alocados no campo trabalhando na terra, perceberam que sua mercadoria artesanal e seu trabalho individual (ou familiar) estavam rapidamente perdendo espaço para as fábricas – pouco mais adiante para as grandes indústrias – e logo se viram obrigados pelo novo sistema de produção a se mudar para as grandes cidades em busca de oportunidade de emprego nestas fábricas.
É possível notar, a partir das sociedades e eventos históricos trazidos acima, como a concepção de trabalho vem sofrendo alterações, ganhando valorização e espaço cada vez maiores na vida do homem. Para que as mudanças ocorridas de uma forma de produção à outra se solidifiquem, é necessário que também o trabalhador acompanhe essas mudanças e se adapte ao novo contexto em que está presente. A partir da Revolução Industrial, o novo sistema produtivo passou a demandar um alto nível de controle sobre o trabalhador, que passou a disciplinar seu modo de viver e estar no mundo, de forma que esses se tornem produtivos. O trabalhador passou a não mais comercializar seus produtos, mas ele mesmo e o seu próprio tempo se tornaram comercializáveis.
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3 SOCIEDADE DO TRABALHO E A LIBERDADE CATIVADORA DA EXPERIÊNCIA
Após discutirmos, no capítulo anterior, como o trabalho teve seu sentido transformado ao longo da história, ganhando protagonismo na vida das pessoas; nossa intenção com este capítulo é discutir aspectos na contemporaneidade da relação trabalho e experiência; apresentando, assim, a teoria de Byung Chul-Han acerca da sociedade atual, a qual ele nomeia Sociedade do Desempenho, mas que, por vezes, também chama de Sociedade do Trabalho (HAN, 2017a). Iniciaremos apresentando seu pensamento e alguns conceitos, para depois articularmos sobre como essa nova organização implica na vida do sujeito. Também faremos uso da narrativa de duas produções cinematográficas de modo a evidenciar o espírito da época retratada em cada uma delas e reproduzido por seus personagens.
É percebido que, dentro de uma época e um lugar, sempre haverá uma forma de se pensar as coisas que será a forma vigente, a forma dominante […]. Ou seja, quando não temos clareza sobre o paradigma no qual estamos inseridos, o empregaremos sem ter consciência disso, o que imputa dizer que estamos arcando com as soluções, mas também os problemas dessa linha de pensamento, sem sequer notarmos isso… (RODRIGUES, 2011, p. 35)
Byung-Chul Han é um autor contemporâneo nascido na Coreia do Sul em 1959. Apesar da origem asiática, foi na Alemanha que ele iniciou e aprofundou seus estudos no campo da Filosofia, Literatura e Teologia. Autor de mais de uma dúzia de livros, ele é conhecido por ser cirúrgico em seu estudo e interpretação da sociedade em que vivemos e dos males nela produzidos. “Sociedade do Cansaço” é o livro do autor que instigou este trabalho. Neste capítulo será possível reconhecer, dentro da construção teórica de Han, a influência de importantes pensadores como Foucault, Nietzsche, Deleuze, Marx, Heidegger, entre outros. Entendemos que a contribuição desses autores é de suma importância para as obras de Han, contudo optaremos por não abarcar nestas, entendendo que este empreendimento não cabe à proposta de nossa pesquisa, mas que seria mais apropriado em uma dissertação ou tese. Além das ideias discutidas por Han (2017a; 2017b; 2018), apresentaremos a compreensão de outros autores, tais como Jorge Larrosa Bondía, Monica Alvim, Marcus César Belmino, acerca do lugar ocupado pelo trabalho e suas consequências na experiência (BONDÍA, 2002) e na saúde mental do sujeito na atualidade. Partimos de uma perspectiva gestáltica, que será melhor discutida no próximo capítulo, de que homem
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e mundo não indissociáveis e, portanto, seria impróprio compreendê-los isoladamente.
Han (2017a) parte de um paradigma patológico para fazer uma comparação entre a sociedade industrial (séc. XVIII à XIX) e a atual, que aqui, nesse primeiro momento, chamaremos de pós-industrial. Segundo ele, as doenças que ameaçavam a sociedade industrial eram as doenças bacteriológicas e virais que atuam de acordo com uma lógica pautada na imunologia. Essa lógica, todavia, segundo Han (2017a), diz muito mais sobre a organização da sociedade naquele momento do que apenas sobre uma questão biológica e científica. Ele entende que há uma influência mútua entre os discursos sociais e biológicos, dessa forma não seria uma coincidência que a ação imunológica seja caracterizada como ataque e defesa, quando o século XX foi marcado por grandes guerras desde o seu início até seu fim (HAN, 2017a). A doença, nesse caso, seria um ataque do qual o corpo precisa se defender.
Mesmo a Guerra Fria seguia esse esquema imunológico. O próprio paradigma imunológico do século passado foi integralmente dominado pelo vocabulário dessa guerra, por um dispositivo francamente militar. A ação imunológica é definida como ataque e defesa. Nesse dispositivo imunológico, que ultrapassou o campo biológico adentrando no campo e em todo o âmbito social, ali foi inscrita uma cegueira: Pela defesa, afasta-se tudo que é estranho. O objeto da defesa imunológica é a estranheza como tal. (HAN, 2017a, p. 8)
De acordo com Han (2017a), esse paradigma imunológico (ataque x defesa) só tem sentido em uma sociedade na qual a alteridade se faz presente nas mais diversas formas. O esquema defesa/ataque só ocorre quando o imunologicamente outro, carregado de uma negatividade que provém de sua alteridade, ultrapassa a barreira que separa o próprio do estranho (eu x não-eu). O século XX foi um período onde a estranheza de um modo geral causava uma reação de defesa. Seja no contexto político-geográfico (com guerras, xenofobia e afins), seja no contexto biológico (doenças virais e bacteriológicas).
A dialética da negatividade é o traço fundamental da imunidade. O imunologicamente outro é o negativo, que penetra no próprio e procura negá lo. Nessa negatividade do outro o próprio sucumbe, quando não consegue, de seu lado negar àquele. A autoafirmação imunológica do próprio, portanto, se realiza como negação da negação. O próprio afirma-se no outro, negando a negatividade do outro. (…) O desaparecimento da alteridade significa que vivemos numa época pobre de negatividades. (HAN, 2017a, p.13-14)
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A mudança no paradigma patológico, de bacteriológico-viral à neuronal, se deu ao longo de todo o processo de transformação também no trabalho e suas condições, e paralelamente, nos modos de vida de cada sujeito. Como abordado no capítulo anterior, após a revolução industrial o trabalhador precisou se reorganizar para buscar novas possibilidades de emprego, que, nesse primeiro momento (séc. XVII à XIV), se encontravam majoritariamente nas fábricas.
A jornada de trabalho fabril tinha como umas de suas características mais marcantes o tempo determinado que o trabalhador precisava se fazer presente e produtivo na fábrica, e a tarefa específica a qual ele precisava executar. O objetivo destas características era maximizar a exploração da mão-de-obra como um meio para aumentar a produção e, consequentemente, o lucro obtido (MIRANDA, 2012).
Em “Tempos Modernos”, filme produzido em 1936, dirigido e atuado por Charlie Chaplin, é possível visualizar claramente essas fortes características do trabalho fabril. Carlitos, como é conhecido o personagem principal do filme, tem como sua única tarefa na linha de produção fabril apertar dois parafusos. Essa tarefa é constantemente supervisionada, tanto por seus colegas – que têm seus ritmos afetados pelo jeito atrapalhado dele – quanto pelo “gerente” da fábrica que ordena constantemente que o ritmo de produção seja cada vez mais rápido. Em nenhum momento o filme deixa claro qual era o produto final que Carlitos estava construindo, nos fazendo questionar se ele próprio sabia. Nesse modelo de produção, como disse Alvim (2015, p. 57) “O corpo só executa, submetido à vontade externa e à exigência de sobrecarga”. Demonstrando o que foi abordado no capítulo anterior: o operário perde a detenção do conhecimento sobre o produto que o artesão tinha.
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Figura 1 – Carlitos é engolido pelas engrenagens
Carlitos é regulado pela velocidade da linha de produção e das máquinas, e, em um determinado momento – como ilustra a Figura 1 – ele é literalmente levado por suas engrenagens. Carlitos e as engrenagens se tornam uma só parte da mesma máquina. Nessa cena do filme, a música de fundo, que poucos segundos antes era acelerada, praticamente caótica, torna-se calma, como uma canção de ninar. Carlitos flui como a máquina, em harmonia com ela. É interessante notar também que, além do ambiente da fábrica, ao longo do filme, Carlitos tem contato com alguns dos principais dispositivos de dominação dos corpos, característicos desse momento do capitalismo (BELMINO, 2020). Ele vai da fábrica para o hospital, do hospital para a prisão, na prisão ele recebe a visita de um pastor e sua mulher (Igreja), e, ao sair de lá, ele conhece a mulher órfã com quem compartilha a imaginação de como seriam suas vidas como uma família. Segundo Belmino (2020), esses dispositivos são ferramentas do capitalismo padronizar os corpos dentro de um ideal que sirva ao sistema de produção dentro e fora do ambiente de trabalho.
Desde crianças passamos por diversos desses dispositivos nos ensinando desde cedo a negar nossos impulsos sexuais e criativos para nos encaixarmos no perfil de pessoa e trabalhador produtivo. Esses dispositivos, ao padronizarem esses corpos, fazem com que a alteridade de que Han (2017a) falava desapareça, empobrecendo a sociedade das negatividades antes presentes.
Atualmente, vivemos numa sociedade onde essas formas de dominação são muito mais refinadas e sutis (BELMINO, 2020). Segundo Han (2017a), no lugar da negatividade do não-poder da sociedade industrial, na atual fase do capitalismo
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somos levados a acreditar que somos livres para fazer e ser o que quisermos. Vivemos a ilusão de que todas as coisas estão ao nosso alcance, desde que nos dediquemos e nos esforcemos por elas. Se anteriormente – como no caso de Carlitos em Tempos Modernos – éramos coagidos por alguém externo a nós para atingir um nível de produtividade desejado por essa pessoa, hoje nós mesmos nos coagimos a um ideal de constante desempenho e otimização pessoal (HAN, 2018). Um esquema positivo do poder eleva o nível de produtividade e é muito mais eficiente que a negatividade do dever, conforme aponta a teoria de Han (2017a). O sujeito que deve fazer algo rapidamente encontra o seu limite de produtividade; a partir do momento que cumpre com o seu dever, ele está satisfeito. Carlitos e os demais operários, por exemplo, não faziam nada além do que era a sua tarefa. Enquanto no esquema positivo do poder, o sujeito pode sempre melhorar e ultrapassar suas metas e limites. A partir do momento que cumpre seu objetivo, ele entende que pode fazer mais e melhor e, portanto, nunca está realmente satisfeito.
O trabalho, hoje, ocupa um lugar célebre na vida do sujeito pós-industrial. Segundo Alvim (2015) o trabalho faz parte da nossa identidade, e o nosso sentimento de realização depende, em grande parte, dele. Ele é o meio que nos ajudará a conquistar todas essas coisas que podemos. O neoliberalismo deixa de ser apenas um modelo político-econômico e inaugura uma nova forma de subjetivação do sujeito, como afirma Belmino (2020, p. 160):
[…] o neoliberalismo estabeleceu uma nova racionalidade, que tem como fundamento a competitividade, a redução da vida ao lucro e ao trabalho e ao individualismo exacerbado. Essa lógica deixa de ser uma forma de pensar a economia para se tornar o modo de regulação social, e todas as instituições vão buscar a manutenção desse modo de vida.
Assim como fizemos com o filme Tempos Modernos para abordar o tema do trabalho e suas implicações no sujeito na sociedade industrial, para entendermos de forma mais prática como o discurso da positividade e do desempenho chegam e podem atuar em nós, vamos abordar outro longa-metragem.
À procura da felicidade é uma produção de 2006, dirigida por Gabriele Muccino, roteirizada por Steve Conrad e estrelada por Will Smith, que conta a história de Christopher Gardner. A trama se desenvolve nos anos 1980, e é focada principalmente nos momentos árduos que Gardner e seu filho passam, ao passo que ele luta para conciliar um trabalho autônomo como vendedor de equipamentos hospitalares, as obrigações de um pai solteiro sem dinheiro, e um estágio não-
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remunerado que pode ser sua porta de entrada para o mercado financeiro – sua esperança de poder garantir uma vida melhor para sua família. O filme se inicia com a família de Gardner lutando para se manter em dia com as despesas devido à grande dificuldade que ele tem para vender seu produto, enquanto sua esposa trabalha fazendo plantões duplos no que parece ser uma lavanderia de um grande hotel ou algo parecido.
Ao passar por um homem com um carro de luxo, Chris o questiona sobre seu trabalho, enquanto o mesmo lhe diz que para atuar no mercado de ações só é necessário ser bom com números e com pessoas, não precisando de um diploma universitário. Motivado por sua habilidade matemática, Gardner começa a buscar uma oportunidade de trabalhar em uma corretora de valores. Nesse meio tempo, sua esposa parte para Nova Iorque, e Chris e seu filho são despejados de seu apartamento, tendo que dormir em ônibus, metrôs, estações de metrô e abrigos públicos. A história a todo momento destaca as desvantagens de Gardner em relação aos outros estagiários que concorrem à vaga remunerada na corretora. Chris era um homem mais velho que eles, pobre, negro, que precisava cuidar de deu filho sem a ajuda de mais ninguém. Enquanto os demais trabalhavam por nove horas, ele precisava fazer a mesma atividade, de forma mais eficiente, em seis horas, para poder sair mais cedo e buscar seu filho na creche. Mesmo frente à toda essa desigualdade perante seus concorrentes, Chris assegura sua vaga de emprego.
Esse filme é baseado na história real de Christopher Gardner, um empreendedor e palestrante motivacional estado unidense. Apesar de algumas mudanças feitas a favor da narrativa do filme, a essência da história é a mesma e muitos dos fatos relatados realmente aconteceram. O que queremos enfatizar aqui é a sutileza com a qual o discurso da positividade pode chegar até nós. Uma produção cinematográfica, que não passa de entretenimento para muitas pessoas, nos passa o sentimento de que, assim como Chris, se nos esforçarmos podemos alcançar qualquer sonho, independente de quaisquer desvantagens sociais que soframos. O filme é idealizado para ser inspirador e de fato, é considerado emocionante por muitos que o assistem. O fato de ser baseado em uma história de sucesso verdadeira é a cereja do bolo do discurso neoliberal. Esse sentimento de que tudo é possível mediante o esforço próprio é o que leva o sujeito de desempenho a esgotar-se na medida em que explora a si mesmo ao acreditar que, dessa forma, irá alcançar o que lhe é prometido por esse discurso (HAN, 2018).
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É difícil pensar em alguma prática hoje que escape a esse imperativo de desempenho e produtividade. Nunca se viu tantos livros e cursos com a temática do desenvolvimento pessoal, nunca se teve acesso tão fácil e rápido à informação e ao conhecimento como temos hoje. Voltando à perspectiva patológica de Han, o século XXI não mais se enquadra como um século viral ou bacteriológico, e sim como um período marcado pela violência neuronal. Por sua característica livre de negatividades, a violência da positividade não acarreta nenhuma defesa imunológica, ela é imanente ao sistema. Segundo Han (2017a, p. 20) “A violência da positividade não é privativa, mas saturante; não é excludente, mas exaustiva. Por isso é inacessível a uma percepção direta”. O corpo não apresenta uma resistência direta a ela, como acontece com vírus e bactérias (carregados com a negatividade da alteridade). Dessa forma, não existe quaisquer tipos de resistência impedindo que ela se “espalhe” e tome conta do corpo. Essa violência da positividade é provocada pelos excessos, ela advém da superprodução, do superdesempenho e da supercomunicação. Para Han (2017a), as doenças neuronais, como o TDAH, a depressão e a síndrome de Burnout, são resultado da rejeição do corpo frente a esses excessos.
Nós fomos completamente capturados pelo imperativo de desempenho e produtividade da sociedade neoliberal. Fomos convencidos de que podemos estar a todo momento em estado de constante desenvolvimento, de que podemos alcançar nossos sonhos e desejos independentemente de quais sejam eles, e independentemente de qual seja nossa realidade social, econômica e política.
Estamos tão ocupados correndo atrás de sonhos e metas impossíveis que não temos tempo – ou se temos, tratamos logo de preenchê-lo com alguma atividade “produtiva” – de parar para nos questionar se esses sonhos e metas são realmente nossos ou uma se são uma grande “superposição midiática puramente introjetada (BELMINO, 2020, p. 162)”.
Jorge Larrosa Bondía (2002), em seu artigo “Notas sobre a experiência e o saber da experiência”, vai tratar justamente desse imperativo de estar sempre em rápido movimento em direção a algo. Para Bondía (2002) nunca soubemos tanta coisa, nunca tivemos tanto acesso à informação, nunca pudemos fazer tantas coisas, e justamente por isso, somos mais pobres de experiência do que nunca. Isso acontece por quatro motivos: excesso de informação, excesso de opinião, falta de tempo e excesso de trabalho. Antes de falarmos sobre esses motivos, é importante
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entendermos que a experiência para ele nada tem a ver com a experiência muito estimada atualmente; aquela que diz respeito a nossa trajetória laboral, e, portanto, que nos qualificaria como bons profissionais. Experiência, segundo Bondía (2002, p. 21) “é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, o que acontece ou o que toca.”
Segundo Bondía (2002), os quatro motivos citados anteriormente têm em comum a falta de uma passividade do sujeito em relação ao que vem ao encontro dele. O sujeito da informação está sempre consumindo notícias, quase como o sujeito de desempenho elaborado por Han (2017a) está sempre ávido por mais. Vive uma busca incessante por informação, e teme não ser suficientemente informado. Da mesma forma, numa confusão que coloca informação, conhecimento e aprendizagem como diretamente relacionados, “como se o conhecimento se desse sob a forma de informação, e como se aprender não fosse outra coisa senão adquirir e processar informação” (BONDÍA, 2002, p. 22), o foco dos aparatos educacionais é fornecer informação para que cada um seja capaz de opinar sobre tudo de forma pessoal.
A falta de tempo é outro fator que culmina na raridade da experiência. Assim como Han (2017a), Bondía (2002) também entende o momento atual tendo como uma de suas características o alto índice de informação e de estímulos momentâneos. Segundo este, somos tão obcecados pela novidade que somos incapazes de nos demorarmos suficientemente nos acontecimentos a ponto de estabelecermos uma conexão entre eles. Para Han (2017b) essa falta de conexão, não só entre os acontecimentos, mas também nossas com eles, causa essa sensação de que tudo acontece e passa demasiadamente depressa.
Esse sujeito da formação permanente e acelerada, da constante atualização, da reciclagem sem fim, é um sujeito que usa o tempo como um valor ou como uma mercadoria, um sujeito que não pode perder tempo, que tem sempre de aproveitar o tempo, que não pode protelar qualquer coisa, que tem de seguir o passo veloz do que se passa, que não pode ficar para trás, por isso mesmo, por essa obsessão por seguir o curso acelerado do tempo, este sujeito já não tem tempo. (BONDÍA, 2002, p. 23)
O quarto elemento colocado por Bondía (2002) como dificultador da experiência é o excesso de trabalho. Poderíamos ir além e dizer que os outros elementos todos têm relação direta ou indireta com o trabalho. Han busca entender, em “Sociedade do Cansaço”, por qual motivo “todas as atividades humanas na Pós-modernidade decaem para o nível do trabalho” (HAN, 2017a, p. 44). Segundo ele, a perda moderna da fé, a obsolescência das religiões, o isolamento/individualismo do sujeito pós-
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moderno, a desnarrativização do mundo de uma forma geral, geram um sentimento de transitoriedade. A falta de duração e subsistência, essa perda da referencialidade, faz surgir no homem inquietações e nervosismos. Para Han, o trabalho é a atividade desnuda que corresponde ao desnudamento da vida do homem. Ao nos depararmos com essa fragilização da vida, reagimos com hiperatividade, histeria do trabalho e produção. Não nos tornamos livres, ao contrário, somos levados
[…] a uma sociedade do trabalho, na qual o próprio senhor se transformou num escravo do trabalho. Nessa sociedade coercitiva, cada um carrega consigo seu campo de trabalho. A especificidade desse campo de trabalho é que somos ao mesmo tempo prisioneiro e vigia, vítima e agressor. Assim acabamos explorando a nós mesmos. Com isso, a exploração é possível mesmo sem senhorio. (HAN 2017a, p.47).
Tanto Bondía (2002) quanto Han (2017a) usam a palavra hiperatividade para definir uma das características do sujeito na atualidade. “Hoje, vivemos num mundo muito pobre de interrupções, pobre de entremeios e tempos intermédios” (HAN, 2017a p. 53). Estamos constantemente buscando coisas para fazer e aprender, novas metas para atingir, estamos sempre mobilizados em prol de alguma coisa. E por estarmos sempre inquietos, em movimento almejando algo diferente, somos incapazes de parar, de nos demorar. Perdemos o que Han chama de vida contemplativa e por isso, nada nos acontece. Não há experiência, não há nada de novo (BONDÍA, 2002).
Ainda conforme Bondía (2002), o sujeito da experiência é um sujeito sensível ao seu meio, afetado por ele, é “como um espaço onde têm lugar os acontecimentos” (BONDÍA, 2002, p. 24), é caracterizado por sua receptividade, sua abertura, e não por sua atividade. A passividade à qual nos referimos aqui e anteriormente não é somente àquela que se opõe à atividade, mas diz respeito à uma atenção, paciência, uma receptividade. O sujeito de desempenho, ao estar constantemente ocupado, não dá abertura ao que acontece, é minado da experiência.
Em “Psicopolítica”, Han finaliza sua argumentação fazendo uma saudação ao idiotismo, que segundo ele “torna acessível ao pensamento um campo de imanência de acontecimentos e singularidades” (HAN, 2018, p. 109). Podemos inferir, a partir daí, que o idiotismo é o que torna o sujeito capaz de experiência. Ele é o esvaziar-se de toda essa ânsia de se informar, de opinar, de estar sempre fazendo algo, a qual Bondía (2002) afirmou impossibilitar a experiência.
Han (2017a) entende o sujeito de desempenho como um empreendedor de si. Dessa maneira, o ambiente do trabalho, antes limitado por um espaço físico
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específico, hoje é carregado com o sujeito para onde quer que ele vá. O ambiente de trabalho do sujeito de desempenho é ele próprio. Ele não trabalha mais somente para um terceiro. Ao ser empreendedor de si, ele mesmo é seu principal negócio2. Ao buscar se desenvolver, correspondendo à demanda de produtividade da sociedade, ele acredita estar investindo em si mesmo. É devido a isso que o trabalho, atualmente, ocupa praticamente todas as esferas da vida do sujeito. É por essa razão que, ao nos auto-coargirmos a uma pressão de desempenho, temos a falsa sensação de que fazemos isso livremente para nós mesmos, entendendo que, assim, poderemos gozar de todas as possibilidades que o trabalho bem-feito abre para aqueles que se esforçam.
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4 UMA LEITURA GESTÁLTICA DA EXPERIÊNCIA NA SOCIEDADE DE DESEMPENHO
Nossa motivação com os capítulos anteriores foi fazer uma breve apresentação da temática relativa ao trabalho e ao ócio ao longo dos anos, e, em seguida, focarmos um pouco mais na atualidade como formadora de sujeitos de desempenho (HAN, 2017) pobres de experiência (BONDÍA, 2002). Consideramos importante abordar esses temas para, no presente capítulo, introduzir a Gestalt-terapia, alguns de seus conceitos, e como seria possível fazer uma abordagem das temáticas anteriores partindo de uma perspectiva gestáltica.
Apesar do autor Byung-Chul Han (2017a; 2017b; 2018) não ser um teórico da Psicologia, e de entendermos que nem todas as suas observações acerca da sociedade são totalmente compatíveis com a abordagem gestáltica, discutiremos alguns pontos de sua teoria que foram articulados por Gestalt-terapeutas (BELMINO, 2020) e outros que consideramos pertinentes em ampliar o diálogo com a Gestalt terapia (RIBEIRO, 2011; RODRIGUES, 2011; SILVEIRA, 2016; SILVA; BAPTISTA; ALVIM, 2015). Aqui, não nos compete fazer uma imersão nas muitas facetas da abordagem gestáltica, mas principalmente na sua visão de homem e mundo, como se dá essa relação e qual seria sua contribuição para a problemática da pressão de desempenho levantada por Han (2017a).
Para iniciarmos essa discussão, e antes de introduzirmos a Gestalt-terapia, nos pareceu importante apresentarmos, assim como fez Rodrigues (2011), o paradigma racional-mecanicista³ vigente desde a Modernidade. Segundo o autor, o grande desafio dessa forma de pensar as coisas é entender e explicar os porquês de elas serem, e acontecerem, de uma determinada forma. Essa preocupação, todavia, não seria unicamente da Ciência ou dos cientistas, mas estaria presente no dia-a-dia de cada sujeito, impregnada em sua maneira de enxergar o mundo e seus acontecimentos.
Conforme abordamos no primeiro capítulo deste trabalho, a Idade Média4 foi um período marcado por muitas afirmações de caráter mítico ou religioso. A expansão das expedições marítimas, do comércio, os descontentamentos com a Igreja Católico
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modelos que, de acordo com o autor, buscam a razão, o porquê de determinados comportamentos dos indivíduos, que, a partir dessa explicação para suas atitudes, poderiam experimentar uma melhora em seu quadro clínico.
De acordo com Belmino (2020) os últimos séculos estão repletos de eventos que também culminaram numa crise identitária do homem. Eventos que derrubaram grandes narrativas nas quais a humanidade estaria fundamentada. Essa perda fez com que a fragilidade da vida humana ficasse exposta, que ficássemos frente a frente com a nossa finitude. Uma das saídas encontradas para amenizar a angústia diante dessa constatação foi buscar formas de prever os eventos da natureza e comportamentos humanos e animais, como disse Belmino (2020, p. 148):
Assim, a ideia de prever o controlar a natureza, se tornam formas possíveis de mapear as estações do ano, os hábitos dos animais, as plantas venenosas, curativas e comestíveis e tantas outras possibilidades de entendimento da natureza. A lei e a ordem possibilitam também mapear e controlar nossos impulsos mais selvagens, e, com isso possibilitar que possamos produzir um conhecimento sobre o mundo e sobre nós mesmos. Frente a um mundo tão plural, qualquer possibilidade de regularidade precisa ser aproveitada para conseguir reduzir a profunda angústia de reconhecer-se finito em um mundo com tantas possibilidades e tão incontrolável.
Diante disso, acabamos adotando uma postura racional-mecanicista na vida, buscando entender e explicar os porquês, categorizar e separar as coisas, atomizando-as[3]para uma melhor compreensão de seu funcionamento (RODRIGUES, 2011), e nos submetendo a essas leis e ordens que aprisionam a espontaneidade e a criatividade em nome de um sentimento de segurança e da capacidade de prever os acontecimentos (BELMINO, 2020).
Perante essa problemática, a solução encontrada para a Gestalt-terapia consolidar as suas bases fundamentais e, ao mesmo tempo, não cair nesses mesmos
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compreensão de si e dele; que não isola o indivíduo com o propósito de estudá-lo longe de qualquer vínculo que possa interferir nas conclusões do estudo, mas que busca atuar justamente no campo relacional de cada pessoa, com o terapeuta incluído nesse campo; que não pretende afastar a pessoa de sua situação atual, mas se propõe a ajudá-la a fazer contato com suas emoções e confusões, com a sua forma de se relacionar com o seu mundo, para que ela mesma compreenda essa maneira e decida se gostaria de manter essa forma ou tentar algo diferente. Foi na Fenomenologia que a abordagem gestáltica encontrou essas possiblidades (RODRIGUES, 2011).
A Fenomenologia foi idealizada por Edmund Husserl (1859-1938), tendo como ponto de partida sua inquietação com as principais linhas filosóficas presentes em seu tempo. Conforme aponta Rodrigues (2011) e Rehfeld (2013), Husserl tecia críticas à ideia de que o empirismo6 e o psicologismo7 seriam as duas formas abrangentemente aceitas de se chegar à verdade sobre as coisas, e propôs que cada tipo de ciência precisaria de um método diferente para ser pensada. Dessa maneira, as ciências humanas não deveriam ser medidas pelas mesmas métricas das ciências naturais (REHFELD, 2013).
Husserl, então, desenvolve um método crítico à proposição positivista8, para buscar a verdade originária que não gerasse erro ou dúvida, a realidade tal como ela se apresenta: o fenômeno (RODRIGUES, 2011). Ele pretendia chegar a um Eu e um Objeto puros, desejava captar a essência, aquilo sobre o qual não se poderia haver dúvidas, retirando de cena tudo que lhe parecia uma qualidade circunstancial ou acidental. Contudo, nessa investigação, ele percebeu que essas características as quais ele desejava remover eram “fundamentais, ou seja, que não há Objeto sem elas,
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que não há Eu sem o Mundo ou o Mundo sem Eu, sendo, portanto, um constitutivo do outro.” (REHFELD, 2013, p. 27)
A partir disso, Husserl prescinde com o isolamento do Objeto da pesquisa, com a ideia de que há uma cisão entre o mundo do observador e o que é observado. Assim, se o objeto é objeto para um observador, então para cada observador haverá uma forma própria de apreender um mesmo objeto (RODRIGUES, 2011). Husserl consegue cindir com as leis generalistas, especulações e determinismos para entrar em contato com o que há de específico e singular a cada fenômeno que se mostra (REHFELD, 2013).
Como abordado por Rehfeld (2013, p. 28) “Fenomenologia, em seu termo literal, significa ‘estudo dos fenômenos’, isto é, daquilo que é dado à consciência.” Consciência, nesse caso, para Husserl, vai além do que um local onde se abriga o conhecido; consciência é fluxo, uma dinâmica entre Sujeito e Objeto. Sendo assim, o sentido das coisas estaria justamente nessa dinâmica, nesse fluxo, e não no Sujeito observador ou no Objeto observado (RODRIGUES, 2011).
Essa indissociação entre Eu, Objeto e Mundo será fundamental para a visão de Homem e Mundo na Gestalt-terapia, pois, como chegamos a mencionar no capítulo anterior, pensar homem e mundo separadamente não parece ser o melhor caminho para compreender nem homem, e nem mundo. De acordo com Ribeiro (2011), o termo mais apropriado para tal conjuntura seria pessoa-mundo, uma totalidade, e não pessoa e mundo, como dois objetos separados. Isso se daria por, assim como a ideia de observador e objeto observado exposta acima, entendermos que não é possível pensar a existência da pessoa sem o mundo, e nem o mundo poderia conceber sua própria existência sem uma pessoa para apreendê-lo. O autor tece uma crítica à nossa tendência de pensarmos ser, não só entidades separadas do Universo, como também superiores a ele, como se ele pertencesse a nós e não nós a ele.
Enquanto Ribeiro (2011) parece dialogar com uma esfera mais ambiental, mais abrangente dessa ideia de homem-mundo, é Belmino (2020) que vai tocar em pontos que serão mais interessantes para nossa discussão. Ele entende que organismo e ambiente precisam ser entendidos como um só, e que separações em categorias como sujeito, objeto, eu, organismo, ambiente não passam de ficções que facilitariam a descrição do mundo. É neste campo organismo/ambiente onde se dá a experiência, reforçando a definição de Bondía (2002) que experiência é um fenômeno que nos
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acontece, ou seja, no qual estamos implicados, não algo que apenas externamente passa por nós.
Segundo Ribeiro (2011), o comportamento humano pode ser compreendido como fruto dessa relação pessoa-mundo. A partir dessa relação, o eu é entendido como “um sistema de contatos, […] um processo que se desenrola no tempo, uma espontaneidade expressiva e criadora”. (SILVA; BAPTISTA; ALVIM, 2015). Essa relação – o contato – se dá por meio de uma fronteira que integra campo organismo/ambiente. É nesse “entre”, chamado fronteira de contato, onde ocorrerá as interações desse campo. Essas interações podem se dar pelos níveis do sentir, do pensar, do fazer, do falar; estão no olhar, na fala, no ouvido, no gosto, no movimento. É na fronteira de contato que acontece a experiência e a sua potencialidade transformadora (RIBEIRO, 2006; SILVEIRA, 2016).
É possível entendermos, a partir das constatações acima, que contato se faz na relação autêntica com o outro, com o diferente, o estranho que mobiliza a criação de novos sentidos. Essa fronteira não tem seus limites fixos, ela pode ser mais ou menos permeável, favorecendo, dificultando ou impedindo o contato (SILVEIRA, 2016). Também conseguimos constatar que contato é experiência, e conforme abordamos anteriormente, experiência é abertura para que algo nos aconteça, nos toque (BONDÍA, 2002).
O contato se dá em ciclo. A permeabilidade ou não da fronteira, em diferentes situações pode sugerir uma interrupção no fluxo dinâmico do ciclo. Dependendo dos diferentes estudiosos em Gestalt-terapia, é possível encontrar diferentes formas de se visualizar o ciclo de contato; aqui, conforme Rodrigues (2011), o entenderemos como constituído por seis etapas: sensação, consciência, mobilização, ação, contato e retraimento (repouso). Não pretendemos nos aprofundar em cada etapa, mas acreditamos ser importante dar ao menos uma síntese básica do que cada uma representa.
Assim como Rodrigues (2011), para exemplificarmos cada fase do ciclo, tomaremos a fome como a necessidade a ser saciada pelo organismo. A primeira etapa do ciclo de contato é a sensação. Nessa etapa, uma sensação diferente começa a emergir no corpo. A partir do momento que essa sensação recebe mais e mais atenção, novas informações sobre ela emergirão – como um incômodo no estômago ou acidez na boca – de forma que esta vá ganhando um contorno melhor, mais nítido. Com essas novas informações será possível tomar consciência (segunda etapa) de
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que a sensação diferente era fome. Após perceber sua fome, o organismo poderá mobilizar (terceira etapa) sua energia e prol de elaborar o que seria necessário fazer para saciar sua necessidade. Então, irá em direção à solução pensada anteriormente, até onde está a comida (ação – quarta etapa), assim, poderá entrar em contato (quinta etapa) com o objeto (aqui, a comida) do campo que será responsável por acabar com sua fome, levando ao retraimento da energia e equilíbrio do organismo (RODRIGUES, 2011).
No caso das interrupções do ciclo de contato, dependendo de em qual das fases apresentadas anteriormente se dá a quebra, é possível identificar de quais formas cada pessoa pode cristalizar suas maneiras de agir. Perls (1977) apresenta os principais mecanismos neuróticos: introjeção, projeção, confluência e retroflexão (para nossa discussão, vamos nos ater somente a introjeção). Segundo ele, “quando o indivíduo se torna incapaz de alterar suas técnicas de manipulação e interação é que surge a neurose.” (PERLS, 1977, p. 40) A neurose, nesse caso, é a incapacidade de o indivíduo satisfazer suas necessidades através do ciclo de contato. Vale relembrar aqui o caráter dinâmico do fluxo do contato, que requer uma fluidez e atualização constante. Sendo assim, a neurose é uma cristalização do fluxo, um problema para a conclusão do ciclo de contato (RODRIGUES, 2011).
Conforme apontamos no parágrafo anterior, neste trabalho iremos nos ater, dentro dos mecanismos neuróticos, somente à introjeção. Optamos por fazer dessa forma por entendermos que os mecanismos neuróticos não são o nosso enfoque aqui, mas a introjeção, juntamente com a ideia de campo organismo/ambiente, nos permitirá fazer o caminho da abordagem gestáltica até as teorias de Han (2017a; 2018) sobre a sociedade atual.
No primeiro capítulo de “Sociedade do Cansaço”, ao apresentar seu paradigma patológico sobre o qual falamos anteriormente, Han (2017a) coloca como uma das características da sociedade de hoje o desaparecimento da alteridade e da estranheza. Levando em consideração o que discutimos no início deste capítulo sobre o paradigma racional-mecanicista, as ciências naturais e seu método de apreensão do mundo, visando criar leis generalistas (RODRIGUES, 2011); e também o que abordamos no capítulo anterior sobre o avanço do capitalismo que nos coloca num processo de globalização9 cada vez mais forte (HAN, 2017a; 2018), não parece
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totalmente inoportuno que os modos de vida, a cultura, também tenham sido padronizadas, resultando nessa sociedade onde predomina o igual. Belmino (2020) traz uma interessante discussão sobre as políticas culturais vigentes – tais como neoliberalismo, discursos normativos – e como elas podem capturar a nossa experiência, gerando sofrimento. A leitura fenomenológica em Gestalt-terapia, ao propor um retorno à experiência primeira, pretende justamente desnaturalizar essas políticas culturais que podem trazer consigo uma falsa ideia de que há um padrão certo a ser seguido. Quando Han (2017a; 2018) propõe que o que vigora é uma sociedade do trabalho, onde a pressão por desempenho seria a norma (o padrão), o sujeito do desempenho que acredita precisar estar sempre produzindo, ao não conseguir fazê-lo, se culpa por isso, levando a uma autoacusação destrutiva e a uma autoagressão (sofrimento). Assim, a pressão de desempenho seria uma das formas de aprisionamento apontadas por Belmino (2020) como geradoras de sofrimento.
A pressão de desempenho pode também ser entendida como um introjeto da sociedade atual. De acordo com Rodrigues (2011) a introjeção acontece quando a interrupção se dá entre as fases da conscientização e da mobilização do ciclo de contato. A introjeção ocorre quando o próprio desejo do sujeito é inibido em prol do sentimento de pertencimento, de um comportamento que seria considerado “correto”. Perls, Hefferline e Goodman (1997) apontam que o desejo do sujeito, nesses casos, pode ser considerado por ele imaturo, repugnante; havendo, ainda, o sentimento de que o indesejado é bom e uma tentativa de se convencer de que é isso que ele realmente quer. Neste mecanismo neurótico, “a ‘estratégia’ é adotar, então, o desejo do outro como seu para não entrar em conflito com o ambiente.” (SCHILLINGS, 2014) Nesse contexto, ao se autocoagir ao desempenho, o sujeito estaria tanto preocupado com a aprovação dos seus pares, como também convencido de que isso seria o melhor para ele.
Em uma sociedade na qual um padrão comportamental é erigido, onde predomina o igual, e o que escapa acaba estigmatizado pela norma, não há espaço para a experiência. No segundo capítulo deste trabalho apresentamos algumas características da sociedade vigente que, de acordo com Bondía (2002), impossibilitariam a experiência do sujeito. Essas características, de uma forma geral,
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tinham a ver com uma hiperatividade por parte dele. Aqui, já entendendo que contato é experiência, e que ele “se faz na diferença” (SILVEIRA, 2016, p. 59), é possível acrescentarmos que, a cada vez maior homogeneidade da sociedade também dificulta a experiência.
Segundo Han (2017a; 2017b) a hiperatividade do sujeito de desempenho é uma das características que o impede de perceber sua compulsão por trabalho, e libertar se desta. Sua inquietação apenas reproduz e acelera as condições vigentes. Falta a esse sujeito pós-moderno a tolerância ao tédio, um aquietar-se que permitiria reconhecer seus movimentos e a possibilidade de mudá-los. Para este autor, falta ao sujeito a capacidade de hesitar e fazer pausas, para isto, ele propõe uma revitalização do ócio como vita contemplativa.
O apenas ser ativo empobrece a experiência. Mantém-se sempre o mesmo. Aquele que não é capaz de parar e pausar não acessa o diferente. Experiência transforma. Interrompe a repetição do sempre mesmo. Não se torna mais suscetível a experiências por tornar-se mais ativo. Pelo contrário, o que é necessário é um tipo específico de passividade. (HAN, 2017b, p. 130, tradução nossa).10
Assim, podemos traçar um paralelo entre a vita contemplativa, da qual Han (2017b) fala, e a experiência como uma abertura, de Bondía (2002), a qual discutimos no capítulo anterior. Segundo Perls (1977), uma sociedade na qual muitos indivíduos são neuróticos, só poderia ser uma sociedade neurótica ela mesma. Dessa maneira, uma sociedade do trabalho, onde a maioria das pessoas foi capturada pelo discurso da produtividade e se mostra cansada, nos remete a pessoas que foram por demais influenciadas e subjugadas por suas exigências de desempenho.
A neurose, como um desequilíbrio nesse campo organismo/ambiente, indica uma desarmonia na fronteira de contato, na qual o indivíduo não consegue discernir suas próprias necessidades das necessidades da sociedade (PERLS, 1977), e, portanto, encerra o ciclo precocemente, não conseguindo estabelecer contato (SCHILLINGS, 2014). A inquietude humana não lhe permite aprofundamento contemplativo. De acordo com Han (2017b, p. 130, tradução nossa) “É pausando antes de uma ação, no momento da hesitação, que o sujeito se torna consciente d
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o imensurável espaço que há à frente da decisão de agir”.11 Esse espaço é o local das incontáveis possibilidades diante de uma situação. Silveira (2016) aponta que contato é o meio que permite à pessoa mudar e mudar também a sua experiência no mundo. Falta, ao sujeito do trabalho, essa hesitação diante da decisão de se manter produtivo. Falta-lhe questionar os discursos da produtividade e a si mesmo, para assim possibilitar que as suas necessidades fiquem mais nítidas diante das imposições da sociedade.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos dias atuais, o trabalho capturou praticamente todo o tempo de vida do sujeito, de tal maneira que até o tempo de não-trabalho, o ócio, pode apresentar vieses de produtividade por parte do indivíduo. No primeiro capítulo, buscamos entender se trabalho sempre ocupou um lugar de tamanha importância, ou, se não, quais foram os fatores que contribuíram para que atualmente ele seja tão estimado. Pudemos perceber que esse traço da sociedade atual foi sendo construído no decorrer dos últimos séculos, principalmente a partir da Reforma Protestante (séc. XVI) e da Revolução Industrial (séc. XVIII).
No segundo capítulo, introduzimos a Sociedade de Desempenho – ou Sociedade do Trabalho – e como, com sua mensagem de liberdade total do sujeito, coloca-o como o único responsável por seu sucesso no mundo, resultando numa autoexploração, e aprisionando-o numa constante pressão de produtividade. Pudemos fazer uso da narrativa do filme À procura da felicidade para exemplificar como o discurso neoliberal nos captura de maneiras sutis, nos provocando a nos esforçar cada vez mais em prol dos frutos que poderemos colher a partir deste esforço. Também pudemos constatar como a hiperatividade consequente dessa pressão por desempenho nos transforma em sujeitos pobres de experiência.
A partir do conceito de experiência foi possível construir uma ponte entre a visão de Byung-Chul Han acerca sociedade atual e a Gestalt-terapia, que, através da Fenomenologia, consegue colocar o mundo entre parênteses para tentar compreender o fenômeno. Pudemos entender também, a partir do conceito de mecanismos neuróticos, como a pressão por desempenho poderia ser abordada, na Gestalt-terapia, como um introjeto do sujeito, sinalizando uma interrupção no ciclo de contato.
Finalizando este trabalho me encontro ao mesmo tempo instigada e desconsertada pela complexidade multifatorial da subjetividade humana e sua relação no campo organismo/ambiente. Apesar de pesquisas discutindo o neoliberalismo não serem tão difíceis de se encontrar dentro do núcleo gestáltico, ainda há pouquíssimo material relacionado aos estudos de Byung-Chul Han, tendo sido essa uma das dificuldades encontradas durante a pesquisa. A maior, contudo, decai a um nível mais pessoal, onde ao iniciar a pesquisa me percebi perpassada pelas questões levantadas por Han.
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Reconhecemos, nas constatações de Han, a forte influência de grandes estudiosos como Friedrich Nietzsche, Martin Heidegger, Karl Marx, Gilles Deleuze, Sigmund Freud, Michel Foucault, entre outros. Este último talvez sendo o mais citado por ele em “Sociedade do Cansaço” e “Psicopolítica”. Nós assumimos que alguns buracos da pesquisa poderiam ter sido melhor calçados com um estudo principalmente sobre Foucault, porém entendemos que não caberia a este trabalho fazê-lo, já que nosso objetivo principal era iniciar uma discussão da teoria de Han a partir de uma abordagem gestáltica. Sendo assim, uma das possibilidades de aprofundamento da pesquisa, seria estudar o caminho percorrido por Han para chegar em suas proposições, além das leituras gestálticas de Foucault e dos demais estudiosos.
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1“Caminhando Jesus e os seus discípulos, chegaram a um povoado, onde certa mulher chamada Marta o recebeu em sua casa. Maria, sua irmã, ficou sentada aos pés do Senhor, ouvindo-lhe a palavra. Marta, porém, estava ocupada com muito serviço. E, aproximando-se dele, perguntou: ‘Senhor, não te importas que minha irmã tenha me deixado sozinha com o serviço? Dize-lhe que me ajude! ‘Respondeu o Senhor: ‘Marta! Marta! Você está preocupada e inquieta com muitas coisas; todavia apenas uma é necessária. Maria escolheu a boa parte, e esta não lhe será tirada’.” (Lucas 10:38-42)
2 Souza (2014) nos aponta para a origem etimológica da palavra negócio: do latim nec + otium, que seria negar o ócio.
³Rodrigues (2011) entende o racionalismo não só como o uso da razão, mas o abuso dela. Enquanto o mecanicismo seria a tendência de pensar a realidade das coisas a partir o modelo das máquinas, explicando-a através de leis mecânicas e cálculos físico-matemáticos.
4Aproximadamente séculos V à XV.
5Aqui estamos nos referindo ao Reducionismo, uma tendência de sempre buscar a menor parte do objeto investigado para estudá-la e entende-la separadamente (RODRIGUES, 2011).
6O Empirismo foi uma importante linha filosófica que tinha como máxima a ideia de que todo conhecimento adivinha da prática. Desta forma, o ser humano não detém nenhum conhecimento prévio, e o adquire na medida que vive (RODRIGUES, 2011).
7O Psicologismo entendia que tudo o que se conhecia poderia ser explicado através da física ou fisiologia, ou seja, o conhecimento era adquirido a partir destes mecanismos fisiológicos (RODRIGUES, 2011).
8Conforme aponta Rehfeld (2013), a ideia inicial de Husserl era chegar a um conhecimento de validade universal e inquestionável.
9Segundo o Dicionário Priberam (2022) globalização é o “fenômeno ou processo mundial de integração ou partilha de informações, de culturas e de mercados”.
10Just being active impoverishes your experience. It continues ever the same. Whoever is not capable of stopping and pausing has no access to what is altogether different. Experience transforms. It interrupts the repetition of the ever same. You do not become more susceptible to the making of experiences by becoming more active. Rather, what is needed is a particular kind of passivity. (HAN, 2017b, p. 130).
¹¹Upon pausing before an action, at the moment pf hesitation, the acting subject becomes aware of the immeasurable space that lies in front of the decision to act. (HAN, 2017b, p. 130)
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