PRETOS E PARDOS NA SOCIEDADE BRASILEIRA: UMA BREVE REFLEXÃO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7241932


Gisele Ferreira da Silva2


“Muitas fugiam ao me ver pensando que eu não percebia 

Outras pediam para ler. 

Os versos que eu escrevia 

Era papel que eu catava para custear o meu viver. 

E no lixo eu encontrava livros para eu lêr 

Quantas coisas eu quiz fazer 

Fui tolhida pelo preconçêito 

Se eu extinguir quero renascêr 

Num país que predomina o preto. 

Adeus! Adeus, eu vou morrer! 

E dêixo êstes versos ao meu país se e que temos o direito de renascer Quero um lugar, onde o preto é feliz.” 3

(Carolina Maria de Jesus)

RESUMO:

Este trabalho objetiva realizar uma breve reflexão acerca da questão do lugar de pretos, pardos e a população negra do Brasil. Para tanto recorre-se a contribuições teóricas e dados numéricos sobre o tema, além de um breve relato acerca do assunto entre alunos da Educação de Jovens e Adultos. 

Palavras-chave: pretos, pardos, educação. 

1) Introdução 

Este estudo objetiva, de forma breve, realizar uma reflexão acerca das impressões sobre si mesmos (as) de alunos (as) negros (as) da Educação de Jovens e Adultos. A origem deste pequeno artigo se deve aos trabalhos realizados nas aulas, pois os alunos apresentaram muitas dúvidas e questionamentos sobre o que seriam as classificações por cor/raça utilizadas na sociedade. Para alguns deles, nomenclaturas como, moreno, moreninho, escurinho, etc poderiam ser usadas oficialmente para se referir ao quesito cor/raça. No cotidiano das aulas, sempre fazemos rodas de debate e leituras sobre os temas trabalhados. Deste modo, surgiu a possibilidade, dentro da proposta de trabalho, com oito alunos que responderam voluntariamente a um pequeno conjunto de 3 questões. Naquele momento, o objetivo era pontuar como eles se autodeclaram e por quê. 

Desta forma, o tema abrange dois pontos presentes em nossa sociedade de uma forma bastante complexa.  Traz a questão do preconceito sofrido historicamente pela população negra e traz à tona visão de um grupo (alunos da Educação de Jovens e Adultos) que, de certa maneira, em alguns momentos de seu percurso, se viu excluído do atendimento de determinadas políticas públicas de educação, seja por dificuldades dentro e fora da escola, evasão, questões de trabalho etc. 

Tal discussão tem em seu bojo a questão do preconceito e do racismo, por isso, torna-se relevante elucidar que a compreensão acerca dos termos raça ou racismo, neste trabalho, não caminha pelo entendimento através do campo biológico, mas sim considera fatores sociais, culturais, ideológicos. 

Conforme complementa Munanga: 

O conceito de raça tal como o empregamos hoje nada tem de biológico. É um conceito carregado de ideologia, pois como todas as ideologias, ele esconde uma coisa não proclamada, a relação de poder e de dominação. (MUNANGA, 2010, p. 04). 

Deste modo, se o conceito ampliado de raça está ligado a aspectos ideológicos e sociais, mais uma vez confirma-se a ideia de que a autodeclaração de cor perpassa questões de identificação: como, em que lugar e em que grupo cada cidadão se vê. Assim, analisar e compreender a estrutura social que implementa políticas públicas e vem passando por estas transformações é tarefa necessária. 

 O Estatuto de Igualdade Racial, ao definir população negra, afirma ser esta o grupo de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas ou que adotam definição análoga.  

Assim, para auxiliar as reflexões, o estudo traz breves contribuições de Agamben (2004) como aporte para discussão sobre este lugar da população negra, dados estatísticos do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) sobre a realidade educacional brasileira, recorre-se também aos conceitos de Munanga (1999) para nos ajudar a entender a questão da raça na sociedade brasileira, além de outros estudiosos que possam auxiliar com contribuições referentes ao tema. Dentro dos limites deste breve estudo, reitera-se que este é um olhar inicial para se começar a pensar uma questão tão complexa. 

2) Para o início das reflexões: Sociedade Brasileira e Estado de Exceção 

 Iniciarei este tópico trazendo à tona a visão de Agamben (2004), seus estudos tem representado contribuições para diferentes campos do conhecimento. Um dos conceitos principais refere-se ao estado de exceção, que nos é extremante útil para analisar características presentes em nossa sociedade. Agamben traz sua obra Estado de Exceção dentro de um Projeto de estudos amplo, chamado Homo Sacer. Tais trabalhos se referem a um conjunto de livros que trazem à tona esta retomada e reconstrução do conceito de Estado de exceção. Agamben retoma Carl Schmitt e Walter Benjamin em suas construções conceituais. Seu trabalho, portanto, vai questionar o direito, as políticas, as garantias de segurança, as formas de violência, do poder, entre outros aspectos. Agamben (2004) nos remonta à questão do estado de sítio presente em guerras e ditaduras, configurando este um estado de exceção devido àquele momento preciso. Contudo, posteriormente, esse dispositivo passa a ser utilizado mesmo fora de estados oficiais de guerras e ditaduras, sendo configurado, também, mesmo contraditoriamente, como um estado de exceção.  

Podemos definir o estado de exceção (…) como o lugar em que a oposição entre a norma e a sua realização atinge a máxima intensidade. Tem-se aí um campo de tensões jurídicas em que o mínimo de vigência formal coincide com o máximo de aplicação real e vice-versa. (AGAMBEN, 2004, p. 58)  

 Assim, pelo estado de exceção é possível fazer valer na prática real mecanismos e dispositivos como força de lei. Contudo, a tensão contraditória citada acima é que não se cumpre a lei por uma força de lei, ou seja, a dicotomia entre a norma e a sua (ou não) realização. Assim: 

(…) a “força de lei” flutua como um elemento indeterminado, que pode ser reivindicado tanto pela autoridade estatal (…) quanto por uma organização revolucionária (….). O estado de exceção é um estado anômico onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei (que deveria, portanto, ser escrita força de lei. Tal força de lei, em que potência e ato estão separados de modo radical, é certamente algo como um elemento místico, ou melhor, uma fictio por meio do qual o direito busca se atribuir sua própria anomia. (AGAMBEN, 2004, p. 61)  

 Diante do exposto, podemos perceber porque na existência do estado de exceção se faz presente força, dominação e poder, tanto, que para Agamben, se risca o vocábulo lei, permanecendo a força. O mais agravante ainda, é o que Agambem (2004) nos traz quando afirma que, em diversos casos, o estado de exceção se tornou regra. Como é possível identificarmos em nossa estrutura social dispositivos e mecanismos que vão ao encontro desta visão de Agamben? Simplesmente pelo fato de que a maior parte da população brasileira não goza plenamente de seus direitos, e mais, há um perfil específico desta usurpação durante anos de nossa história, conforme nos coloca Paiva:  

“O Brasil se encontra em um estado de exceção histórico. Afinal de contas, a maior parte da população (do negro pobre favelado ao caboclo sertanejo não goza de seus plenos direitos, ou, pior, são inimigos do Estado, que sistematicamente os extermina, os deixa morrer ou os encarcera.” (PAIVA, 2018, p. 04) 

Ou seja, o cotidiano vivido nos revela situações que permitem analisar quem é ou quem são frequentemente expostos a vulnerabilidades, excluídos, estigmatizados, vemos estados de exceção na materialidade. Resgatando a posição de Foucault (1977), na qual ele se opunha a continuísmos, partilho desta visão, que longe de continuísmos, mas perto dos deslizamentos históricos, o estado de exceção no Brasil, pode mudar a forma de operar, mas o perfil da população excluída de direitos permanece o mesmo.  

O estado de exceção é, nesse sentido, a abertura de um espaço em que aplicação e norma mostram sua separação e em que uma pura força de lei realiza (isto é, aplica desaplicando) uma norma cuja aplicação foi suspensa. Desse modo, a união impossível entre norma e realidade, e a consequente constituição do âmbito da norma, é operada sob a forma de exceção, isto é, pelo pressuposto de sua relação.   Isto significa que para aplicar uma norma, é necessário, em última análise, suspender sua aplicação, produzir uma exceção. Em todos os casos, o estado de exceção marca um patamar onde lógica e práxis se indeterminam e onde uma pura violência sem logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real. (AGAMBEN, 2004, p. 63)  

 Conforme já explicado neste trabalho, meu estudo abrange alunos (as) da Educação de Jovens e Adultos, alunos (as) que já tem ou já tiveram em sua história percursos de entradas e saídas do ensino formal, anos de escolarizações anteriores sem sucesso, mercado de trabalho mais restrito devido à baixa escolarização, logo estão  na parte da população com rendas informais e intermitentes, geralmente moram em áreas da cidade com comunidades extremamente conflagradas pela violência e entre muitos outros fatores. Ou seja, exatamente, esta parcela da população usurpada historicamente em muitos direitos e que sofre diferentes formas de exclusão nesta sociedade atual, onde a exceção de fato se tornou regra. 

2.1 Muito anterior a um estado de exceção… 

Ter a pele clara, provir do “sangue” europeu, não ter mescla com as raças “inferiores”, principalmente a negra, constituía, segundo as ideias da época, o distintivo da nobreza, da superioridade social e moral.” (MUNANGA, 1999, p. 145) 

A discussão trazida por Agamben (2004) nos faz pensar sobre o lugar da população negra no cenário atual e o lugar onde esta população esteve, ao longo da história do Brasil. Cabe nos perguntar o que há no bojo destas diferenças ocorridas diariamente entre negros e brancos, em diferentes situações. Num país, onde muitos afirmam não haver racismo (resultado de uma suposta existente democracia racial), na prática o que vemos é um abismo separando a população negra de muitos de seus direitos. Ou como nos traz Schwartz: “Demonstrar — mais uma vez — as falácias do mito da democracia racial (que é de fato um mito) talvez seja menos importante do que refletir sobre sua eficácia e permanência.” (2012, p. 94) 

Os dados abaixo nos fornecem importantíssimas considerações acerca de determinadas condições da população negra no Brasil. As informações foram extraídas do Documento Austeridade e Retrocesso (2018)4. Tal documento se configura em um material que trata da gestão orçamentária e da agenda dos direitos sociais e assim, procura “analisar os impactos sociais da política fiscal” (2018, p. 06) que vem sofrendo retração em muitos programas sociais. Deste modo, a partir dos dados expostos no documento, foi possível montar a tabela abaixo representando, portanto, uma síntese que apresenta situações sociais vividas cotidianamente pela população negra.  

DADOS IDENTIFICADOS 
Situação Índice 
Vitimização população negra em 2003 71,7% maior em relação aos brancos 
Vitimização população negra em 2013 173,6% maior em relação aos brancos. 
Situação de extrema pobreza da população negra em 2012 4,9% 
Situação de extrema pobreza da população branca em 2012 2,2% 
Trabalhadores negros ocupados de 16 anos de idade ou mais, em 2014 com vínculos informais. * 48,4% 
Trabalhadores brancos ocupados de 16 anos de idade ou mais, em 2014 com vínculos informais.35,3% 
Taxa de homicídios entre jovens negros entre 2015-2016. 40,2%
Taxa de homicídios entre jovens não negros entre 2015-2016. 16% 
Crescimento do desemprego entre as mulheres brancas  73% 
Crescimento do desemprego entre as mulheres negras 96% 
*Segundo os dados do documento, tais índices refletem em menores salários para as pessoas negras e piores condições de trabalho, que são ainda piores para as mulheres negras.

Destaca-se, assim, que não se pode perder de vista que o racismo é um fenômeno social imbricado por fatores econômicos, políticos, sociais, culturais, ideológicos. Além disso, devemos nos atentar para o fato de que a justificativa para a implantação de políticas de ações afirmativas é o reconhecimento de que determinado grupo social foi ou está sendo prejudicado. Contudo, o próprio retrocesso acerca das mesmas políticas também revela uma outra face do fenômeno do racismo, conforme dados expostos na tabela acima. Ou seja: 

Os censos brasileiros vêm sistematicamente derrubando a tese que alia inclusão cultural com social. Na verdade, convivemos com os dois processos: inclusão e exclusão. Os dados numéricos mostram processos longínquos de discriminação no trabalho, no lazer, na saúde, no nascimento e na morte, e na educação. (SCHWARCZ p. 95, 2012) 

Isto nos traz uma reflexão que pode perpassar pelas questões identitárias, de fazer, de pertencer, se autodeclarar parte de uma população estigmatizada ao longo do tempo.   Munanga (1999) nos traz grandes contribuições, e para este estudioso, a autodefinição é o ponto de partida para novos movimentos identitários. Para ele, a autoidentificação de um grupo acontece em contraposição a um grupo alheio, na perspectiva de se realizar questionamentos sobre esta identificação. Ou seja: 

Uma tal identificação (“quem somos nós?” – “de onde viemos e aonde vamos?” – “qual é a nossa posição na sociedade?”; “quem são eles?” – “de onde vieram e aonde vão?” – “qual é a posição deles na sociedade?”) – vai permitir o desencadeamento de um processo de construção de sua identidade ou personalidade coletiva, que serve de plataforma mobilizadora. Essa identidade, que é sempre um processo e nunca um produto acabado, não será construída no vazio, pois seus constitutivos são escolhidos entre os elementos comuns aos membros do grupo: língua, história, território, cultura, religião, situação social etc. (MUNANGA,1999, p, 14) 

 Esta visão se mostra interessante a partir de dois aspectos: Primeiro, no campo da educação, onde muitas vezes, nas atividades escolares, almeja-se realizar trabalhos em prol de uma educação antirracista, esta educação é para todos, no enfrentamento de questões sociais que se fazem presentes no dia a dia da escola. Contudo, em muitos momentos, se deixa de lado a questão mais basilar: Como estes discentes e docentes se identificam? Pois eu apenas se pode partilhar da identificação com um grupo, conforme citado por Munanga, quando se vir como participante dele. No cotidiano de trabalho e pesquisa, pude perceber que esta de fato é uma questão de partida, pois como posso afirmar, por exemplo, que tal trabalho será interessante para um determinado grupo de alunos se não sei como e com que este aluno se identifica? Lembremos que temos o critério da autodeclaração, ou seja, cada cidadão em seu percurso se declara de acordo como desejar, como preto, pardo, branco, indígena ou amarelo, segundo critérios do IBGE, utilizado nos mais diversos setores, entre eles, nas fichas de matrículas escolares. Um fato interessante é que, muitas vezes, o outro quer nos dizer quem somos, e nós o que dizemos de nós mesmos? 

 A partir dos questionamentos dos(as) alunos(as) com os(as) quais trabalho e partindo também deste meu questionamento, a prática pedagógica é sempre permeada por muitos diálogos e debates. Assim, após tantos trabalhos realizados, surgiu a possiblidade de realizar um mini bloco com duas ou três questões que serviram de reflexão a este presente estudo. A atividade, bem pequena em extensão, foi muito rica em conteúdo, representando uma parte do que experenciamos diariamente, a partir destes pequenos trechos. Reitera-se, conforme já afirmado no início deste trabalho, que o tema surgiu a partir de dúvidas dos próprios alunos sobre estas categorias raça/cor utilizadas cotidianamente. Percebi um interesse grande no assunto, uma vez que é falar de si. 

3) A Atividade Prática 

Os alunos se mostraram receptivos e à vontade em responder ao pequeno quadro de questões. Os estudantes que apresentam autonomia em leitura e escrita realizaram o processo sozinhos. O aluno P., em processo de alfabetização, realiza leitura e escrita com mediação das letras e palavras, tendo recebido auxílio apenas para a escrita do conteúdo, tendo suas repostas preservadas. 

 Um fato curioso é que na maior parte dos alunos havia a preocupação recorrente se o que eles escreveram estava correto e se “era a resposta certa”. No meu cotidiano docente, realizo trabalhos entre os estudantes, tanto na oralidade como na escrita, onde exponho que há questões que são opiniões e que estejam livres para colocá-las. Percebe-se como existe um determinado paradigma do não errar e responder ao esperado dentro do cânone da educação escolar. Destaca-se inclusive, que a professora de Língua Portuguesa, afirmou em reuniões pedagógicas que os alunos tem chegado ao ginásio com a escrita mais desenvolvida, autônoma e mais interpretativa, que percebia que o trabalho desenvolvido nas turmas anteriores, era mais ligado a listas e escritas ortográficas sem interpretação. 

 Outro destaque refere-se ao fato de que os alunos ao entregar as suas respostas espontaneamente já iam explicando tudo ou lendo seus pontos de vista. 

  A seguir, encontramos as questões propostas. 

Questões: 1) Para o IBGE, temos 5 categorias de classificação por cor/raça, sendo:  a) Branco (a) Preto (a) Pardo (a) Amarelo (a) Indígena Lembrando que preto e pardo são considerados sendo da população negra. Em qual das categorias, você se declara? Por quê? 2) Se não existisse a opção pardo, você se declararia preto ou branco? Por quê? * 
3) Você já sofreu alguma forma de racismo? Em que situação? Conte como foi. 
*esta opção se referiu apenas aos alunos que se declararam como pardo(a).  Ao responder tais questões, os alunos já haviam debatido o assunto, sendo compreendido o que cada uma destas categorias abrange. Inclusive, alguns alunos “clarinhos” (como eles diziam) ou pardos, entenderam que não são amarelos, como se apresentavam até então. 

Abaixo, encontramos as respostas dos alunos, seguidos dos seus dados breves. Além disso, verificou-se na ficha de matrícula a convergência de alguns destes dados e como estava marcado o item raça/cor, verificando se convergia com a resposta do questionário. Procurouse também a existência de documentos com alguma alusão a cor/raça, encontrou-se para alguns alunos o Certificado de Reservista. Na ficha de matrícula dos alunos existe o item raça/cor declarado pelo aluno ou seu responsável, em caso do estudante menor de idade. 

  Deste modo, vamos aos dados relatados pelos alunos: 

F., 58 anos, de Santo Amaro (Bahia). Na ficha: Pardo  

 “Eu me declaro como negro, mas na minha Carteira de Reservista, na época do Quartel, declararam pardo. Eu me declaro negro porque meus avós são descendentes de africanos.” 

 Sobre racismo: “Eu ainda não sofri preconceito racial, se já sofri não me lembro, ainda assim, tudo pode acontecer.” 

H., 72 anos, do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro). Na ficha: Preta 

Escolheu a opção preta. “Porque recebi a cor preta na Certidão.” 

Sobre racismo: “Não sofri nenhum, graças a Deus.” 

L., 57 anos, de Areia, Paraíba. Na ficha: Branca 

Marcou a opção Branca. “Porque meus pais são brancos. Nunca sofri preconceito.” 

M.L., 21 anos, do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro). Na ficha: Parda 

Marcou a opção Parda. “Porque minha mãe é branca e meu pai é negro. Se não existisse a opção pardo, me declararia branca por conta da minha cor.  

Sobre racismo: “Eu nunca sofri preconceito, na verdade recebi elogios racistas por ser a filha “clara” dos meus pais”. 

M.N., 57 anos, Ceará. Na ficha: Branca 

Marcou a opção parda. “Porque minha pele é morena. “Se não existisse a opção pardo declararia preta por minha pele ser morena. Não sofri preconceito.” 

J., 42 anos, Pernambuco. Na ficha: Pardo. 

 Marcou a opção pardo. “O meu Certificado de alistamento militar é pardo. Se não existisse a opção pardo, declararia preto porque o meu falecido pai, a sua cor era preto. A cor da minha mãe é parda.” 

  Sobre racismo: “Pelo que me lembro, não sofri nenhum.” 

M., 16 anos, do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro). Na ficha: Preto 

Marcou a opção preto, e expressou, através de gestos, que não precisava explicar por quê. Acrescentou que toda sua família é negra. 

Sobre preconceito escreveu: “Eu já sofri um preconceito por causa da minha cor. Às vezes, mandam eu parar para falar que sou negro. Falam que sou favelado. Também na praia. Vou na loja, segurança fica me seguindo na loja.” 

P., 17 anos, de Rio de Janeiro (Rio de Janeiro). Na ficha: Pardo 

Marcou a opção indígena. “Acho bonito e acho que tenho essa cor, meu irmão é índio. 

Meus pais são normais, meu pai branco e minha mãe morena.”  Escreveu que nunca sofreu preconceito. 

3.1 Alguns Destaques 

Chamou-me a atenção o fato de o aluno F. escrever a palavra “ainda” e confirmar isso em sua resposta quando diz que “tudo pode acontecer”. Se declarando como negro, tendo consciência de sua ascendência africana, pareceu demonstrar receio de como pode a qualquer momento estar exposto e/ou envolvido em um lugar que sofra discriminação. Outro ponto importante, é a questão documental, ele se declara negro, mas o Certificado de Reservista tem peso oficial e “diz” que ele é pardo. Isto aparece em outro depoimento. Salienta-se que há alguns anos, o item cor aparecia nas Certidões de Nascimento (conforme uma das alunas afirma), porém, alguns anos mais tarde, este item foi excluído.  

 A aluna H. resgata o fator da informação cor vir na Certidão de Nascimento, levando em conta sua data de nascimento, de fato, houve um período que este item era declarado nas certidões. Contudo, tal fato não pôde ser encontrado no documento, pois a aluna é casada e utiliza Certidão de Casamento atual averbada, que não contém mais a informação. Contudo, a resposta objetiva da aluna diz que a cor preta está na Certidão, portanto, assim, ela se declara. 

  A aluna M.L. trouxe um dado extremamente relevante que ela denominou como “elogios racistas”, ela define que na sua família tendo pai negro e mãe branca, ela é a filha clara, elogiada. Esta aluna, inclusive, tem uma irmã que estudou na mesma escola, e não é “clara” como a irmã. A aluna traz a impressão do que se espera socialmente, uma expectativa de cor entre a união de casais brancos/negros, a perspectiva de um branqueamento social.  Fato a ser destacado é que as alunas M.L., L. e M.N. apresentam “tons de pele praticamente os mesmos” segundo seus colegas de turma (indicado no dia em que houve um debate sobre o tema), levando-nos a pensar sobre a razão pela qual cada uma se declarara de um determinado grupo e não de outro. Caímos na histórica questão: O que as pessoas levam em conta, fenótipos, origens, histórias de vida? A aluna L. disse ser branca devido aos pais brancos, a aluna M.L. se declara parda devido ao pai negro e mãe branca, mas se fosse pela pele se declararia branca, caso não existisse a opção parda. A aluna M.N. disse que percebe sua pele como morena.  

Durante as reuniões pedagógicas, em que estava comentando sobre os diferentes trabalhos da turma, o assunto suscitou também debates e grandes dúvidas entre os professores. Um deles, inclusive, me perguntou: “Para você, o que eu sou?” Contudo, voltase às questões apontadas por Munanga sobre a autoidentificação.  

A escrita do aluno J. se aproxima a de F. no que se refere ao documento de alistamento que os declara como pardos. Ele afirma que se declararia preto, caso não existisse a opção pardo, pois a cor do seu pai era preta. Destaca-se que este aluno ao me entregar os trabalhos sempre gosta de ler suas respostas. Quando me entregou suas questões, sua leitura foi feita com cuidado e em tom mais baixo ao explicar que o pai “tinha essa cor, preta”. Tal fato revela um certo temor no uso de alguns termos. Inclusive, durante os trabalhos, esta foi uma grande dúvida entre os alunos, que queriam saber qual palavra pode dizer para se referir a alguém sem ser racismo. 

Os alunos M. e P., menores de idade, contribuíram para pensar sobre o que dizem sobre si e o que o seu responsável declarou na matrícula.  

M., pareceu muito firme sobre seu lugar e com isso perceptível dos possíveis preconceitos como relatou, que ele percebe olhares, seja na praia ou na loja, e a abordagem pela qual está sujeito. 

O aluno P. disse que se identifica como indígena, acha bonito e que acha que tem essa cor. Chama atenção a afirmação dele quando diz: “acho que tenho essa cor”. Na ficha, contudo, sua cor declarada pelo responsável é pardo. 

A partir destes breves destaques, volta-se a imbricada questão do processo racial brasileiro. Diante do exposto, precisamos levar em conta que o processo histórico do Brasil perpassou por: “(…) fundamentos da ideologia racial elaborada a partir do fim do século XIX a meados do século XX pela elite brasileira. Essa ideologia, caracterizada entre outros pelo ideário do branqueamento, (…) (Munanga, 1999, p. 15) 

Munanga em seus estudos sobre a ideologia racial ocorrida no Brasil nos lembra que nossa população nos mostrou ao longo do tempo e ainda nos mostra, a necessidade de se discutir a questão racial no Brasil, a partir de um enfoque crítico dos processos pelos quais passamos. 

As complexidades raciais/sociais vistas neste estudo nos levam a questionamentos, como: O que a instituição de ensino espera destes alunos? Quais as demandas dentro e fora da escola destes alunos? Qual é o lugar da educação formal na prática de vida destes alunos? Quais são as diferentes formas de exclusão ou inclusão? Há formas operantes de preconceitos raciais e/ou sociais na educação, uma vez que a escola é parte do corpo social? Entre muitas outras. Tais questionamentos nos fazem pensar no arcabouço teórico de Foucault (1977) que identifica processos de sujeição pelos quais muitos cidadãos passam e os colocam em determinados lugares. Tais sujeições incluem profundas formas de exclusões/diferenciações através de inúmeras práticas divisórias. Ele afirma que tudo isso “faz sobressair o fato da dominação no seu íntimo e na sua brutalidade” (Foucault, 1977, p. 181). Foucault sempre nos faz analisar “um passo atrás”, nos fazendo perguntar: como se instituíram estas relações para estes sujeitos, no caso, para estes alunos(as)? 

 Assim sendo, para colaborar com as reflexões traz-se à tona o levantamento com o número de matrículas no Brasil, segundo dados do INEP, levando em conta, o quesito raça/cor. 

MATRÍCULAS NA EDUCAÇÃO BÁSICA – BRASIL: TOTAL 48.455.867 MILHÕES
Feminino
Não declarada Branca Preta Parda Amarela Indígena 
  6.702.314    7.645.543     799.424     8.441.075    81.019     153.629  
Masculino
Não declarada Branca Preta Parda Amarela Indígena 
 6.961.968  7.734.773  866.697  8.826.429  82.927  160.069 

Ao se tratar dos dados referentes aos alunos(os) negros(as), o INEP trabalha a partir da autodeclaração. No entanto, o INEP também informa que eventualmente ainda é encontrada alguma resistência no preenchimento deste campo no seu Censo escolar. Por isso, no ano de 2015, foi promovida uma campanha intitulada: “10 anos do campo cor/raça no Censo Escolar”. Segundo o Instituto, “a campanha objetivou sensibilizar gestores escolares, escolas, professores e alunos para a importância do preenchimento deste item.” (INEP, 2014, p. 08).  De acordo com as instruções de preenchimento para o campo raça/cor, nas etapas Creche, Pré-escola e Ensino Fundamental, a informação se baseia na declaração do responsável do aluno. No Ensino Médio, o aluno a partir de 16 anos realiza sua autodeclaração. O responsável pelo aluno ou o próprio aluno se identificará entre brancos ou pretos ou pardos ou indígenas ou amarelos. Na Educação de Jovens e Adultos, os alunos maiores de idade realizam sua autodeclaração. Ressalta-se que o INEP se baseia nas mesmas categorias raça/cor do Censo demográfico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Assim sendo, INEP e IBGE vão ao encontro da interpretação trazida pelo Estatuto de Igualdade Racial, já evidenciado neste trabalho.  

 A partir da análise das tabelas, apesar do apelo do INEP, observa-se que ainda é alto o campo de pessoas que não declaram o item raça/cor. Não é possível analisar as causas, mas é possível pensar que entre esse grupo pode haver um percentual de pessoas pretas e pardas, o que aumentaria os outros campos, caso estas autodeclarações fossem realizadas.  

O número de estudantes pardos é superior ao de alunos brancos, porém o índice de alunos autodeclarados pretos é bem menor aos pardos. Levando em conta o grupo de alunos pardos, seja sozinho ou somado ao grupo de matrículas de alunos pretos, o número é superior ao de matrículas de alunos que se autodeclaram brancos. Assim, observa-se que se tem um alto número de matrículas na Educação Básica de alunos (as) negros (as), estes alunos já participam ou irão participar do mundo das divisões do trabalho, porém, os fatos e dados mostram diferenças grandes, entre postos e salários entre a população negra e branca, o que nos leva de volta ao pensamento de Agamben sobre o Estado, suas políticas e um estado de exceção que perdura, durante muito tempo, tendo os mesmos segmentos da população com prejuízo de direitos.  

4) Considerações Finais: 

Voltando às reflexões de Munanga, sobre a autodefinição, levanto algumas hipóteses sobre quando alguém não se autodeclara negro/preto, mas não faz parte da população branca. Assim, não há motivos para sofrer discriminação, uma vez que não é negro; se sofreu algo não declarado pode não perceber nuances que o cidadão negro percebe; ou ainda se sofreu preconceito não entendeu o porquê já que não se autodeclara como tal.  

A questão do pardo para mim representa um tema muito caro, pois se para o IBGE e para muitos estudos, pretos e pardos fazem parte da população negra, precisamos levar em conta que, muitas vezes, na prática cotidiana, acontece o inverso. Muitas pessoas se declaram pardas para se distanciar ou por não se identificar como preta/negra. Por isso, o lugar ou não lugar histórico do chamado mestiço brasileiro (Munanga, 1999) apresenta muitas faces. No Brasil, temos uma virada a partir do Censo Demográfico dos anos 2.000, onde a população passa a ser de maioria negra (51%). Onde estava toda essa população (já nascida) em anos anteriores? O que faz pardos se identificarem como pretos e/ou negros? Podemos pensar como resposta: As lutas antirracistas de diferentes movimentos, as políticas de ações afirmativas, os trabalhos há muito já desenvolvidos para uma educação antirracista, as cotas raciais etc. Ou seja, é um bojo de questões complexas e imbricadas. Tanto que os dados expostos aqui, sobre o grupo de alunos na educação básica, sempre apresentam um número grande de pardos, quase equiparado aos brancos e uma expressão numérica bem menor com alunos pretos. Há que se ter atenção ao se afirmar que o Brasil tem em sua maioria população negra, mas sempre lembrando que a expressividade desta população autodeclarada parda. Cabe nos perguntar, se não existisse a categoria pardo, onde este aluno se declararia preto ou branco? 

Esta foi, portanto, uma reflexão inicial, possível dentro dos limites deste estudo, cabendo outras com mais alunos e professores. 

Referências Bibliográficas 

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. 

AUGÉ, Marc. Não-Lugares: Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade. Lisboa: 90º Editora, 2005. 

DWECK, Esther. OLIVEIRA, Ana Luíza Matos de; ROSSI, Pedro. Austeridade e retrocesso: impactos sociais da política fiscal no Brasil. São Paulo: Brasil Debate e Fundação Friedrich Ebert, agosto de 2018. 

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979. 

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*Este artigo foi apresentado no eixo comunicação oral: Educação, no IV Congresso de Diversidade Cultural e Interculturalidade de Angra dos Reis: Democracia e direitos humanos, (Universidade Federal Fluminense), realizado em novembro de 2019.

3Conforme a ortografia publicada à época

Publicação única.


2Doutoranda em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ). Regente na rede pública de educação do Rio de Janeiro, atuação na Educação de Jovens e Adultos.  Formada em Psicanálise pelo IBPC (Instituto Brasileiro de Psicanálise Clínica)