PLANO DE CONTRATAÇÃO ANUAL COMO INSTRUMENTO DE GOVERNANÇA NAS CONTRATAÇÕES: UM DILEMA INTERPRETATIVO ACERCA DE SUA OBRIGATORIEDADE

ANNUAL HIRING PLAN AS A GOVERNANCE INSTRUMENT IN HIRING: AN INTERPRETATIVE DILEMMA REGARDING ITS OBLIGATION

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11212476


José Rosman Varjão A. de Albuquerque
Vanessa Reis Seixas Resende
Priscila Cavalcanti Albuquerque Varjão
Wendel Cordeiro Marques


Resumo

O presente trabalho objetiva mostrar a Lei 14.133/2021 como instrumento garantidor da governança nas contratações, principalmente, sobre o ponto de vista do planejamento, juntamente com a existência de uma celeuma interpretativa acerca da discricionariedade da implementação do Plano de Contratação Anual. Para tanto, fora realizada uma pesquisa qualitativa de cunho bibliográfico, buscando entender o real sentido da Lei 14.133/2021, em específico, no que se refere a suposta discricionariedade de Implementação do Plano Anual de Contratações. Os resultados alcançados indicam que no momento da atividade interpretativa da norma, deve-se levar em consideração todo um contexto normativo e lógico em que a lei se aplica, se utilizando do método de interpretação sistemática, sob pena de gerar um falso senso de discricionariedade. Por fim, o presente estudo contribui para implementação da governança nas contratações, que como consequência, tornará a administração pública mais efetiva, haja vista que, se valendo da interpretação sistemática, deve o gestor, entender o Plano de Contratação Anual como um importante instrumento de governança, devendo assim, a sua implementação ser obrigatória.  

Palavras-chave: Lei 14.133/2021. Contratações públicas. Governança Pública. Plano Anual de ContrataçõesPCA.

Abstract

The present work aims to show Law 14,133/2021 as an instrument guaranteeing governance in contracting, mainly from a planning point of view, together with the existence of an interpretative debate regarding the discretion in the implementation of the Annual Contracting Plan. To this end, qualitative bibliographical research was carried out, seeking to understand the real meaning of Law 14,133/2021, specifically, with regard to the supposed discretion in the Implementation of the Annual Hiring Plan. The results achieved indicate that when interpreting the norm, one must take into account the entire normative and logical context in which the law applies, using the systematic interpretation method, under penalty of generating a false sense of discretion. Finally, this study contributes to the implementation of governance in contracting, which, as a consequence, will make public administration more effective, considering that, using systematic interpretation, the manager must understand the Annual Contracting Plan as an important instrument of governance, and its implementation must therefore be mandatory.

Keywords: Law 14,133/2021. Public procurement. Public Governance. Annual Contracting Plan-PCA.

1.    INTRODUÇÃO

Responsável por movimentar mais de 19 bilhões[1] de reais só até maio de 2024 apenas no Governo Federal, cada dia que passa as contratações públicas vem adquirindo maior importância no cenário econômico e social do país. E com isso, a necessidade de melhor implementação do gerencialismo na administração pública brasileira, desde 1995, em específico por meio do Plano de Reforma do Aparelho do Estado – PDRAE proposto por Bresse Pereira, sendo implementado anos após anos, em uma evolução constante. 

Entretanto, não basta apenas a criação de normativas, mas também uma mudança de paradigma em uma administração pública eivada de vícios patrimonialistas. Entende-se por gerencialismo modelo administrativo pós-burocrático, cujo objetivo é a estruturação da gestão pública com finalidade de se obter uma administração pública baseada na eficiência, eficácia e competitividade (Secchi, 2009). 

O principal instrumento de efetivação do modelo gerencial é a implementação de instrumentos de governança, cuja conceituação é variável e deve ser entendida a depender do contexto pela qual é aplicada, sob pena de gerar certa ambiguidade. A Lei 14.133/2021 apesar não ser considerada por muitos uma grande inovação nas contratações, deve ser vista como um forte instrumento normativo de implementação dos instrumentos de governança, objetivando uma máquina pública mais efetiva. Nesse ínterim, nasce a problemática do presente trabalho. O Plano de Contratação Anual como instrumento de efetivação de governança nas contratações, a sua implementação seria um dever ou uma faculdade do gestor público? 

Portanto, pretende-se sanar e esclarecer tal lacuna interpretativa existente no que se refere à obrigatoriedade ou não do Plano de Contratação Anual, prezando por uma interpretação sistemática, a fim de entender o supracitado instrumento, como instrumento de governança.

2.    REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 Governança Pública

Com a evolução administração pública, foi-se criando mecanismo para acabar com o sistema patrimonialista e aprimorar o sistema burocrático, indo até o modelo gerencial, na tentativa de cessar desorganização do modelo patrimonialista e conter o formalismo excessivo do modelo burocrático, iniciando-se então, o processo de profissionalização da administração pública.

No Brasil, o pontapé inicial para o estudo propriamente dito da governança pública, se deu a partir de 1995, quando por meio do Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado – PDRAE fora diagnosticado a real problemática da administração pública brasileira, mostrando que o problema que causava o engessamento e inefetividade da máquina pública brasileira, era a falta de implementação de instrumentos de governança e não governabilidade, como se pensava. A crise na administração pública brasileira já vinha se arrastando pelos anos 70, se acentuando em meados dos anos 80, quando em 1995, após diagnostico dado pelo PDRAE, tornou-se impreterível a reforma administrativa brasileira. (Palludo, 2021).

Dado diagnóstico, surgiu a necessidade de implementação dos instrumentos de governança, que passaram a ser implementados por meio da reforma gerencial, na qual previa antes de tudo, uma mudança de paradigma, uma forma de pensar que contrariasse o patrimonialismo e o excesso burocrático, buscando uma administração públicas eficiente. (PDRAE, 1995).

A governança decorreu da teoria do agente, idealizada por Alchian e Demsetz (1972) e Jansen e Mackling (1976), consistindo no vínculo entre um principal e um agente, este denominado de relação de agência, consistindo em uma espécie de vínculo obrigacional pelo qual um terceiro, este denominado agente, terá o poder decisão sobre um patrimônio ou serviço do principal, buscando efetivação dos seus interesses, mediante prestação de contas (Fenilli, 2018).Nessa perspectiva, adequando a teoria da agência ao setor público, o principal é todo povo brasileiro, devido ao princípio republicano, e o agente, seria os representantes eleitos pelo povo, nos quais, terão que prestar contas por suas decisões envolvendo o patrimônio público, prestação de constas esta, que será efetivada por meio do accountability[2].

O termo governança é polissêmico, inclusive podendo variar de acordo com o objetivo e natureza da relação, ou seja, a governança pública que fora espelhada na corporativa, deverá respeitar os princípios de direito público, fato este, que pode modificar a sua conceituação.

Assim, entende-se por governança a capacidade de administrar o patrimônio público de forma efetiva e eficaz, buscando sempre o interesse coletivo por meio de instrumentos de liderança, estratégia e controle para melhor salvaguardar o interesse público. Não se pode confundir governança com desenvolvimento econômico, enquanto este visa acumulação individual de capital, aquela busca o desenvolvimento coletivo, externo a mera obtenção de acumulação do capital de forma individual. (Dias e Cairo, 2014). 

Quando determinado poder público se torna organizado ao ponto de conseguir implementar e efetivar políticas públicas, mantendo-se em constante busca pelo equilíbrio dos interesses da administração da coletividade, diz que esse poder implementou instrumentos de governança. (Paludo, 2022). Dessa maneira, para que resultados sejam mensurados e devidamente alcançados, deve-se implementar mecanismos de governança. Conclui-se assim, que a finalidade da governança é a persecução contínua dos resultados. (IFAC, 2014).

Portanto, pode-se conceituar governança pública pela autocapacidade de organização pela qual determinada administração pública é detentora, se valendo de instrumentos de liderança, estratégia e controle, objetivando sempre, a busca incessante pelo interesse coletivo por meio de implementação e efetivação de políticas públicas. 

Um ponto de muita importância devido ao alto índice de confusão entre os dois termos, é a diferenciação entre governança e gestão. Enquanto a alta administração será responsável pela governança, na qual irá avaliar, direcionar e monitorar, traçando uma estratégia. A gestão irá por meio das ações e estratégias traçadas pela alta administração, planejar, executar e controlar, mediante prestação de contas para a alta administração por meio do accountability. Para melhor ilustrar:

Fonte: TCU, 2020.

Por fim, a governança tem como objetivo incorporar ao setor público definições que busquem o equilíbrio entre a administração pública e a sociedade, prezando pelos princípios da legalidade, transparência, controle e ética. (Carvalho, Almeida e Arenas, 2022).

2.2 Governança nas contratações públicas

Como já fora dito anteriormente, a conceituação de governança é polissêmica, variando sempre variando conforme contexto pela qual será aplicada. Da mesma maneira funciona nas contratações públicas. Diferentemente da Lei 8.666/1993, a nova lei de licitações, a Lei 14.133/2021, regulou a obrigatoriedade da implementação instrumentos de governança nas contratações públicas, observa-se:

Art. 11. O processo licitatório tem por objetivos:

  1. -Assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto;
  2. Assegurar tratamento isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição;
  3. – evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos;
  4. – Incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável.

Parágrafo único. A alta administração do órgão ou entidade é responsável pela governança das contratações e deve implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de alcançar os objetivos estabelecidos no caput deste artigo, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações.(grifo nosso).

Após leitura do supracitado dispositivo, percebe-se que a governança nas contratações além de normatizada de forma obrigatória, e não discricionária como se pensa, pode ser conceituada como o processo pelo qual a alta administração criará estruturas e implementará processos e instrumentos para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e seus respectivos contratos, buscando a maior efetividade e racionalidade dos recursos públicos.

Na APF[3] além da Lei 14.133/2021 tem a Instrução Normativa Seges/ME nº 8.678 de 19 de julho de 2021, na qual regulamenta a governança nas contratações públicas. Além da definição da governança nas contratações públicas, a supracitada instrução normativa traz em seu bojo os instrumentos implementadores da governança nas contratações, sendo eles: Plano de logística sustentável, Plano de Contratações anual, Política de gestão de estoques, Políticas de compras compartilhadas, Gestão por competências, Políticas de interação com mercado, Gestão de riscos e controle preventivo, diretrizes para gestão de contratos  e definição de estrutura de contratações públicas. Por não se tratar do objetivo do presente trabalho, os instrumentos de governança supracitados serão melhor explanado em oportunidade futura.

À vista disso, o caput do artigo 11 da Lei 14.133/21, no qual aduz sobre os objetivos do processo licitatório, deve-se entender que estes, só serão efetivados por meio da implementação de processos e estruturas de governanças no macroprocesso de contratação, para que assim, a administração pública possa se tornar eficiente e efetiva na persecução do interesse coletivo se valendo do processo de contratações. A normatização dos instrumentos de governança não é suficiente por si só, devendo haver significativa mudança na forma de ver a coisa pública. 

Identificando tal dificuldade o Tribunal de Contas da União, realizou um levantamento, no qual foram aplicados questionários em 376 organizações da APF buscando investigar a atual situação dos instrumentos de governança, que fora externado por meio do Acórdão 2.622/2015-TCU, chegando à conclusão que a situação de governança é inadequada, gerando recomendações para a melhoria dos índices. A Corte de Contas da União aplicou novamente em 2017, outro instrumento de avaliação em 581 órgão para saber o nível de governança, bem como, saber se de fato as recomendações anteriores foram devidamente cumpridas, sendo o resultado publicizado por meio do Acórdão 588/2018 – TCU, e que teve como resultado: 

Os resultados obtidos neste acompanhamento sugerem deficiências de Governança e Gestão em grande parte das organizações da Administração Pública Federal (APF). A maioria delas ainda apresenta baixa capacidade nos temas avaliados, em que pese tenha-se verificado sinais de evolução. Se é ocasional ou uma tendência, só os próximos acompanhamentos dirão. (Acórdão 588/2018 – TCU, p. 3).

Verificando os resultados dos estudos realizados pelo TCU chega-se à conclusão que mesmo na APF os níveis de governança estão em níveis insatisfatórios, indo além, muito embora exista estruturas de governança, como por exemplo, auditoria interna, esta não é colocada em prática, mostrando a necessidade da mudança de paradigma na administração pública em sua totalidade, entendendo que a governança é de fundamental importância para não só para ter zelo sob a coisa pública, mas também, para aumentar a confiança do cidadão, bem como efetivação dos resultados almejados.  Sobre o resultado do estudo, Renato Fenille assim assevera:

O diagnóstico delineia a anemia da Administração Pública Federal, que, no que concerne às suas contratações, revela performance incompatível com a relação de agência na qual é partícipe. É nesse bojo que o Tribunal de Contas da União propõe encaminhamentos, como modo cercear a incessante e sempre corrente tendência ao desarranjo. (Fenili, 2018);

Assim sendo, verificou-se que a APF está em níveis extremamente baixos no que concerne à governança na época que foram realizados os referidos estudos. A grande preocupação do supracitado estudo é referente aos municípios, principalmente aqueles considerados de pequeno porte, tendo em vista a necessidade urgente da implementação dos instrumentos de governança, bem como, do amadurecimento da cultura do planejamento.

2.3 Plano de contratações anual

Muito já fora dito sobre governança, inclusive elencando o rol de instrumentos que devem ser implementados para que seja efetiva a governança nas contratações. Por motivo de relevância para o presente estudo, deve-se focar no Plano de Contratação Anual, tendo em vista a existência da celeuma sobre a sua obrigatoriedade. O Plano de Contratação Anual caso executado de forma correta, trará inúmeras vantagens para o planejamento das contratações. Tendo em vista, a sua capacidade de mitigar riscos como: fracionamento de despesas, execução financeira insatisfatória, falta de padronização e etc. (Fenili, 2018).

Trata-se de instrumento de planejamento das contratações públicas, pelo qual a administração por meio dos seus órgãos realizará um levantamento de toda a demanda de contratações que o Ente realizará no exercício subsequente, servindo inclusive, de subsídio para elaboração da Lei Orçamentária Anual. No momento em que determinado órgão realiza a sua publicização efetivará a racionalização das contratações, tendo em vista que, os próprios órgãos irão saber o que se pretende contratar no próximo exercício, evitando assim, fracionamento de despesas. 

Pode-se enxergar também, a economia de escala, promovida pela centralização das demandas, que será adquiridas levando em consideração as necessidades de todos os órgão e os objetos de mesma natureza, economia de força de trabalho, devido ao fato de existir um cronograma anual pelo qual o Ente se organizará distribuindo suas equipes da melhor maneira possível, por fim, a interação com o mercado fornecedor o que também gera ao mesmo tempo, um aumento do controle social sobre as contratações, o fomento à economia local, já que, os fornecedores locais saberão o que se pretende contratar, se adequando da melhor maneira para responder as demandas da administração. 

Assim aduz o Art. 12, VII da Lei 14.133/2021:

Art. 12. No processo licitatório, observar-se-á o seguinte:

(…)
VII – a partir de documentos de formalização de demandas, os órgãos responsáveis pelo planejamento de cada ente federativo poderão, na forma de regulamento, elaborar plano de contratações anual, com o objetivo de racionalizar as contratações dos órgãos e entidades sob sua competência, garantir o alinhamento com o seu planejamento estratégico e subsidiar a elaboração das respectivas leis orçamentárias. (grifo nosso).

Trata-se de um instrumento de planejamento e transparência das contratações de dando publicidade à toda população acerca das pretensões de contratar de determinado Ente. No que concerne aos objetivos do referido instrumento temos o Art. 5º do Decreto 10.947/2022[4], analisa-se:

Art. 5º A elaboração do plano de contratações anual pelos órgãos e pelas entidades tem como objetivos:

  1. Racionalizar as contratações das unidades administrativas de sua competência, por meio da promoção de contratações centralizadas e compartilhadas, a fim de obter economia de escala, padronização de produtos e serviços e redução de custos processuais;
  2. -Garantir o alinhamento com o planejamento estratégico, o plano diretor de logística sustentável e outros instrumentos de governança existentes;
  3. – subsidiar a elaboração das leis orçamentárias;
  4. – Evitar o fracionamento de despesas; e
  5. – Sinalizar intenções ao mercado fornecedor, de forma a aumentar o diálogo potencial com o mercado e incrementar a competitividade.

Visando a racionalização das contratações, bem como, alinhamento estratégico, interação com o mercado fornecedor, tem a função de subsidiar a lei orçamentária. Assim, inúmeros são os benefícios da implementação do PCA, mostrando-se um importantíssimo instrumento de governança nas contratações.  

3.    METODOLOGIA

A pesquisa qualitativa tem como escopo analisar fenômenos, e buscar quais significados estes têm para determinada amostragem de estudo (Creswell,2014). Assim, deve o pesquisador buscar entender como de fato determinada problemática irá influenciar a vida das pessoas, à luz do significado pelo qual estas dão ao problema.

Portanto, objetivando entender a problemática contida no presente trabalho, apresenta-se a metodologia de cunho qualitativo sobre abordagem de cunho bibliográfico, na qual fora utilizada normativas, artigos científicos e doutrinas, tendo em vista a necessidade de interpretação e entendimento da problemática, objetivando maior zelo com a coisa pública. 

4.    RESULTADOS E DISCUSSÕES      

Em que pese não trazer mudanças extraordinárias, a Lei 14.133/2021 é considerada um marco histórico no que diz respeito à ruptura das disfunções do modelo burocrático com a Administração Pública, à vista que traz em seu bojo norma principiológicas que priorizam o planejamento e a produção dos resultados, conforme preconiza o gerencialismo.

Dos variados instrumentos de governança exigido nas contratações, um dos principais instrumentos de governança é o Plano de Contratação Anual, que guarda grande celeuma interpretativa acerca de sua obrigatoriedade. Ao momento em que for realizada a leitura para posterior aplicação da Lei 14.133/2021, principalmente no seu art. 12, VII, deve-se ter muito cuidado para não interpretar de forma literal, acarretando um equívoco interpretativo. A interpretação sistemática leva em consideração todo o conjunto normativo, sempre em busca da correlação entre dispositivos, tendo em vista, que só a análise de forma geral irá trazer o verdadeiro valor normativo. (Soares, 2019).

Na seara das contratações públicas, deve-se realizar interpretação sistemática, tendo em vista ao fato de tratar de um conjunto normativo muito extenso, caso contrário poderá o agente extrair um sentimento de pseudo discricionariedade, devido ao verbo “poderão”. “Art. 12. No processo licitatório, observar-se-á o seguinte:(…) VII – a partir de documentos de formalização de demandas, os órgãos responsáveis pelo planejamento de cada ente federativo poderão, na forma de regulamento(…)”. Deste modo, ao momento que se faz a interpretação literal entende-se que ficaria a cargo da oportunidade e conveniência a implementação do referido instrumento de governança. 

Em seu contexto de deliberações e aprovação a lei 14.133/2021 nasceu com expectativa de implementação do gerencialismo e da governança nas contratações públicas. Dessa forma, não se pode deixar ao bel-prazer a implementação de um instrumento de governança de extrema importância, inclusive tratando o planejamento como norma principiológica, em seu art. 5º, verificase:

Art. 5º Na aplicação desta Lei, serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como as disposições do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).(grifo nosso).

A interpretação de forma isolada e sem critério do referido dispositivo, pode fazer com que o gestor chegue à conclusão diversa da pretendida pelo legislador, já que a palavra “poderão”, gera um falso senso discricionariedade. (Justen Filho, 2023). Assim, no momento de interpretação sobre a implementação do Plano de Contratação Anual, deve-se levar em conta além da análise em conformidade com o art. 5º, tendo em vista a carga principiológica, o parágrafo único, haja vista tratar da implementação dos instrumentos e estruturas de governança.

Parágrafo único. A alta administração do órgão ou entidade é responsável pela governança das contratações e deve implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de alcançar os objetivos estabelecidos no caput deste artigo, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e

eficácia em suas contratações.(grifo nosso).

Uma máquina pública efetiva e que tenha zelo com o dinheiro público, sempre evitando desperdícios, com base na racionalização de recursos, terá como base o planejamento (Justen Filho, 2023). Não é razoável após toda carga normativa e valorativa que é trazida na lei, simplesmente por uma interpretação literal, o gestor público deixar de implementar um instrumento de governança de tamanha importância.

É imprescindível analisar o Plano de Contratações com um olhar além de uma mera planilha que contém as contratações de uma determinado Ente para o exercício subsequente, deve-se entender como instrumento de garantia da transparência dos atos administrativos referente às contratações futuras, interação com o mercado fornecedor, racionalização de recursos públicos, tendo em vista a economia de escala.

Dessa forma, não pode o gestor se valer de suposta discricionariedade para descumprir a lei, levando em conta o fato do planejamento além de ser um dever, é um instrumento de racionalização e zelo pelo erário público. (Freitas, 2022).

Portanto, ao realizar a leitura do dispositivo em comento, não poderá o gestor público se valer de um falso senso de discricionariedade, a ponto de facultar a implementação do Plano de Contratação Anual. Deve o agente público por meio de uma interpretação sistemática, analisar todo o contexto normativo e lógico da legislação de contratações, a ponto de entender seus princípios e as suas intenções, buscando sempre a implementação de instrumentos governança. Disto isto, não seria razoável, dentro de uma lei que tanto preza pela governança e pelo planejamento, ser tão desidioso como um instrumento tão importante. 

5.    CONCLUSÃO       

Entender o Plano de Contratação Anual como um instrumento de governança, pelo qual preza pela racionalidade e planejamento das contratações, bem como, zelar pelo dinheiro público, interagir com o mercado fornecedor, dentre outros fatores importantes, principalmente sob a ótica da administração pública gerencial, é de fundamental importância para ser ter uma administração que produza resultados.

Portanto, não pode o gestor público simplesmente ler a letra fria da lei, prezando por falso senso de discricionariedade, tendo em mente que, para implementar de forma a governança, requer além de expedições de normativos, requer uma mudança de paradigma, para que assim, possa ser rompida as barreiras inseridas pelos modelos patrimonialista e o burocrático e suas disfunções. Devendo ao momento da leitura realizar uma interpretação sistemática, observando todo o contexto lógico-normativo pelo qual a lei foi inserida, e se assim realizada, chega-se à conclusão que o Plano de Contratação Anual é de fato obrigatório, e não uma mera faculdade.

O presente estudo contribui para o amadurecimento da governança, principalmente, sob o enfoque da mudança na forma se enxergar as contratações públicas, buscando uma administração pública eficiente, eficaz e efetiva. Sugere-se também que sejam realizadas futuras pesquisas sobre governança nas contratações, com foco em municípios de pequeno porte, com intuito de seja de fato efetivada a mudança de paradigma que a administração pública necessita.

6.    REFERÊNCIAS

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[1] Portal Transparência. < https://portaldatransparencia.gov.br/licitacoes> Acesso em: 02.05.2024.

[2] Trata-se de um instrumento de controle interno e externo que prever a responsabilização dos agentes que no exercício da atividade pública ou não, comete desvio de finalidade.

[3] Administração Pública Federal.

[4] Regulamenta o inciso VII do caput do art. 12 da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, para dispor sobre o plano de contratações anual e instituir o Sistema de Planejamento e Gerenciamento de Contratações no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.