O SISTEMA PENITENCIÁRIO À LUZ DA ADPF 347: O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8015713


Dayani Carla Araújo Costa1
Guilherme Soares Vieira2


RESUMO

Este trabalho analisou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 2015, momento em que se declarou o Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) no país, em razão da constatação de um quadro de violação massiva e crônica de direitos fundamentais nos presídios brasileiros. Assim, no decorrer do texto buscando trazer contexto a temática, foi apresentada a evolução histórica dos presídios e da pena, tendo em vista a importância de entender a função da pena no sistema atual, que é a ressocialização. Posteriormente passou-se ao estudo do ECI, com foco em compreender as origens do instituto, seus pressupostos e como se deu a aplicação dele no Brasil devido a realidade carcerária precária. A partir disso foi possível analisar a ADPF nº 347 e como se desenvolveu o ECI diante da realidade brasileira, buscando demonstrar o posicionamento do STF e as medidas que foram implementadas para tentar superar o cenário caótico dos presídios. 

PALAVRAS-CHAVE: ADPF nº 347. Estado de Coisas Inconstitucional. Realidade Carcerária. Direitos dos Presos.

ABSTRACT

This paper analyzed the Argumentation of Non-compliance with a Fundamental Precept nº 347, judged by the Federal Supreme Court in 2015, when the State of Things was declared Unconstitutional (ECI) in the country, due to the finding of a massive and chronic violation of fundamental rights in Brazilian prisons. Thus, in the course of the text, seeking to bring the theme into context, the historical evolution of prisons and the penalty was presented, in view of the importance of understanding the function of the penalty in the current system, which is resocialization. Subsequently, the study of the ECI was carried out, focusing on understanding the origins of the institute, its assumptions and how it was applied in Brazil due to the precarious prison reality. From this, it was possible to analyze the ADPF nº 347 and how the ECI was developed in the face of Brazilian reality, seeking to demonstrate the position of the STF and the measures that were implemented to try to overcome the chaotic scenario of the prisons.

KEYWORDS: ADPF nº 347. Unconstitutional State of Affairs. Prison Reality. Rights of Prisoners.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca entender e analisar o Estado de Coisas Inconstitucional na jurisdição brasileira no contexto enfrentado pelo sistema prisional brasileiro, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF nº 347. A partir do julgamento da ADPF 347, o Supremo Tribunal Federal, liminarmente, reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional nos presídios brasileiros no que tange ao sistema penitenciário brasileiro, bem como também determinou a adoção de providências que visam estruturar e modificar a realidade de lesões a preceitos fundamentais dos presos, propondo que o Supremo Tribunal Federal realize o papel de fiscalizador das medidas implementadas juntamente ao Conselho Nacional de Justiça.

O reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional no sistema carcerário é marcado pela interdependência entre os Poderes, a partir de um Estado Democrático de Direito caracterizado pela supremacia dos direitos fundamentais trazidos na Constituição Federal vigente. A luz do Estado e da tutela aos direitos fundamentais, todos os poderes devem procurar assegurar as garantias individuais de cada cidadão, dentro ou fora das prisões, buscando soluções e políticas públicas para proteger estes indivíduos da submissão a tratamentos degradantes. 

Logo, o sistema carcerário brasileiro apresenta um quadro de violação massiva e crônica de direitos fundamentais, cuja modificação depende de uma reestruturação total, configurando um cenário fático incompatível com a Constituição Federal. Essa incompatibilidade se dá ante a ausência de políticas públicas, de atos comissivos e omissivos dos Poderes Públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal sendo de natureza administrativa, normativa e judicial?

A partir disso, no decorrer do texto foi objetivado compreender o objeto da ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), analisar o conceito fundamental de ação com o objetivo de identificar o real sentido constitucional da ADPF e relatar o Estado de Coisas Inconstitucionais no sistema carcerário brasileiro

2. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADPF:  CONCEITO E CARACTERÍSTICAS 

Todas as normas que constituem o ordenamento jurídico brasileiro, sem exceções, precisam estar em consonância com o que determina a Constituição Federal vigente. Uma vez que a Carta Magna guarda hierarquia sobre todas as outras normas, sendo superior, logo todas as legislações encontram tanto fundamento como validade na Constituição Federal (SOUZA, 2017).

Neste mesmo sentido, a característica que distingue uma norma constitucional das demais é justamente a superioridade jurídica. Assim tem-se a supremacia constitucional que determina que não há como existir e ser válida nenhuma norma que seja incompatível a Constituição, e para garantir esta supremacia que foi criado o controle de constitucionalidade das leis. “Análise essa feita através do controle de constitucionalidade, que nada mais é do que o juízo de adequação entre as normas infraconstitucionais e a Constituição” (SOUZA, 2017, p. 04).

A Constituição Federal de 1988 traz alguns mecanismos institucionais voltados a combater as inconstitucionalidades que podem surgir na realidade jurídica brasileira. Sendo assim, dentre estes mecanismos é possível citar o mandado de injunção previsto no artigo 5º, inciso LXXI da CF/88 utilizado para dar efetividade a direitos assegurados constitucionalmente, mas que para serem exercidos carecem de lei uma norma específica regulamentadora (EGGER, 2017).

Há também o recurso extraordinário, que é ferramenta utilizada para levar ao Supremo Tribunal Federal a análise de questões constitucionais. É recurso cabível nas hipóteses apresentadas pelo artigo 102, inciso III da Constituição Federal sendo necessário também o reconhecimento de repercussão geral e efeito erga omnes (EGGER, 2017).

Neste contexto, é importante compreender que o controle de constitucionalidade das normas se trata da verificação, que deve ser feita por órgão competente, da adequação ou compatibilidade de lei ou ato normativo em relação à constituição. O controle de constitucionalidade pode ser preventivo, aquele feito no curso do processo legislativo ou até mesmo antes do projeto de lei ser proposto, ou repressivo, quando feito após o término do processo legislativo e já sobre a lei (PAULO, ALEXANDRINO, 2017).

Segundo Paulo e Alexandrino (2017) no que se refere ao controle de constitucionalidade repressivo existem duas formas. O primeiro é o controle difuso, concreto ou de via de exceção, e o segundo se trata do controle concentrado, abstrato ou de via de ação. O controle difuso consiste naquele que pode ser exercido por qualquer juiz/tribunal em análise ao caso concreto para verificar a constitucionalidade de lei ou ato normativo, ficando a atuação restrita a aquele caso. Essa declaração de inconstitucionalidade é necessária para a resolução do caso, mas não é o objeto principal da ação.

Por outro lado, divergindo do controle difuso o controle concentrado não tem vinculação com caso concreto, neste caso a declaração da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo é o objeto da ação. “O controle é exercido em uma ação cuja finalidade é unicamente o exame da validade da lei em si; a aferição da constitucionalidade da lei não ocorre incidentalmente, em um processo comum” (PAULO, ALEXANDRINO, 2017, p. 827).

Sendo assim, existem algumas espécies de controle de concentrado de constitucionalidade que são previstas na Constituição Federal, sendo essas: Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI ou ADIn), Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADc), Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) (ANDRADE; TEIXEIRA, 2016).

A partir disso, tem-se a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) que é tida como o principal mecanismo que objetiva superar inconstitucionalidades. Segundo Andrade e Teixeira (2016) a ADPF é uma forma de controle de constitucionalidade que foi criada ainda na Constituição Império, sendo tempos depois incluída através da EC 03/1993 a Constituição Federal, artigo 102, § 1º: “a arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei” (BRASIL, 1988).

O artigo 102, §1º representa dispositivo legal de eficácia limitada, ou seja, dependente de uma regulamentação para que comece a produzir efeitos. Neste contexto entrou em vigor a Lei nº 9.882/99 que trouxe a regulamentação acerca do processo e do julgamento da ADPF. Assim, dispõe o artigo 1º da Lei nº 9.882/99: 

A arguição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. Parágrafo único. Caberá também arguição de descumprimento de preceito fundamental: I – quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição (BRASIL, 1999).

Segundo esclarece Lenza (2019) a ADPF é cabível conforme disciplina a lei, sendo possível identificar duas modalidades de arguição autônoma e também de arguição acidental. O caput do artigo 1° da Lei nº 9.882/99 se trata de arguição autônoma, em que se tem um caráter preventivo ao objetivar evitar que a lesão a preceito fundamental aconteça, e também repressivo pois visa ainda reparar qualquer lesão a preceito derivada de ato do Poder Público. 

Conforme ainda Lenza (2019) é preciso ressaltar que é necessário existir um nexo de causalidade entre a lesão contra o preceito fundamental e o ato do Poder Público em questão. Neste contexto, podendo o ato ser proveniente de qualquer esfera, sejam atos normativos, atos administrativos ou até mesmo decretos regulamentares. 

Já a hipótese de arguição incidental é a que está disposta no parágrafo único, inciso I, do artigo 1° da Lei nº 9.882/99. Neste tipo de arguição é necessário que se demonstre a controvérsia judicial que seja relevante ao aplicar o ato normativo que viola preceito fundamental. Ou seja, essa arguição está restrita ao ato normativo e a comprovação de que há uma divergência jurisdicional, de modo que se deduz ser preciso existir uma demanda concreta (EGGER, 2017).

Apesar de a Lei nº 9.882/99 trazer regulamentação para a propositura e procedimento da ADPF, nem ela e nem a Constituição Federal abordaram o conceito de preceito neste caso. Neste sentido, optar por usar preceito em vez de princípio talvez tenha sido a intenção do legislador para que o conceito não se restringisse aos princípios dispostos do Título I da Constituição Federal. 

Da mesma forma, ao utilizar de uma expressão mais genérica como preceito isso possibilita que se abranja não só os princípios, mas também regras ou quaisquer outras normas que possam ser tidas como fundamentais. Ainda, a lei ao afirmar que são preceitos fundamentais decorrentes da Constituição também dá espaço para entender que se tratam não só de normas expressas, mas também aquelas implícitas.  No mais: 

O Supremo Tribunal Federal deixou claro que compete a ele próprio identificar as normas que devem ser consideradas preceitos fundamentais decorrentes da Constituição Federal para o fim de conhecimento das arguições de descumprimento de preceito fundamental que perante a Corte sejam ajuizadas (PAULO, ALEXANDRINO, 2017, p. 858).

Portanto para finalizar, no que diz respeito a competência a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental é de competência originária do Supremo Tribunal Federal, que deverá apreciá-la. Os legitimados que podem propor a ADPF estão elencados no artigo 103, incisos I até IX, levando em consideração a pertinência temática quando necessário. Importa por fim informar que a ADPF só poderá ser proposta quando não houver mais nenhum outro meio eficaz para sanar a lesividade, em razão do princípio da subsidiariedade (LENZA, 2019).

3. ANÁLISE A ADPF 347/DF

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347/DF foi proposta pelo partido político Socialismo e Liberdade (PSOL) para apreciação do Supremo Tribunal Federal em 2015. O seu objetivo foi o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional no sistema penitenciário do Brasil e requer que providências e medida fossem tomadas pelo Poder Judiciário visando reparar todos os danos sofridos em razão da violação massiva de direitos fundamentais da população presa, situação que desencadeou devido a inércia da União, dos estados e do Distrito Federal (NUNES, 2017).

A ADPF nº 347/DF foi realizada com pedido de medida cautelar para algumas medidas urgentes e necessárias para trazer melhorias ao quadro gravíssimo das condições dos presídios. Dentre elas, e buscando reverter a superlotação do sistema carcerário foi requerida a obrigatoriedade da realização da audiência de custódia, ou seja, a apresentação do preso em até 24 horas ao magistrado para que ele analise as condições do procedimento realizado e, se for o caso relaxar a prisão com medidas alternativas, este instituto atualmente é fundamental e eficaz para evitar prisões provisórias desnecessárias ou ilegais (SOUZA, 2017).

No mesmo sentido, foi também requerido como pedido cautelar na inicial da ADPF nº 347/DF que as decisões proferidas pelos magistrados no sentido de negar a aplicação de medidas cautelares alternativas à prisão devem apresentar uma fundamentação expressa. Sendo necessário também considerar a realidade do sistema carcerário e o princípio da proporcionalidade no processo penal (EGGER, 2017).

Dentre os pedidos constantes na inicial, foi também pleiteado que o Supremo Tribunal Federal determinasse ao Conselho Nacional de Justiça que organizasse um mutirão carcerário visando revisar os processos de execução da pena. Foi requerido também o descontingenciamento de verbas do Fundo Penitenciário Nacional ou FUNPEN para fornecer recursos para implementar programas voltados à humanização do sistema prisional no país (SOUZA, 2017).

Por fim, além de todos estes pedidos e da declaração de ECI, a ADPF nº 347/DF também pleiteou que fosse elaborado um plano nacional, em no máximo até três anos, devendo depois este ser submetido ao Supremo Tribunal Federal. Dentre os objetivos deste plano tem-se a redução da população carcerária e de presos provisórios, a readequação das estruturas dos presídios ao que é recomendado pela legislação, a capacitação dos profissionais que atuam nas penitenciárias e a extinção de torturas e maus tratos, bem como “a garantia de assistência material, médica e educacional; alimentação adequada; acesso à justiça” (EGGER, 2017, p. 30).

No julgamento da ADPF nº 347/DF todos os ministros do Supremo Tribunal Federal no Plenário decidiram no sentido de reconhecer a violação massiva de direitos fundamentais em todos os presídios brasileiros, bem como a inércia e omissão estatal em todas as esferas (União, Estados e Distrito Federal) e também dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Assim, os pedidos cautelares foram atendidos em parte no que tange a realização das audiências de custódia e a liberação das verbas do FUNPEN para dar início aos projetos e programas, também vedando novos contingenciamentos (NUNES, 2017).

Importante ressaltar também que o próprio texto da ADPF nº 347/DF destacou que a vedação legal de penas cruéis e torturas não devem ser compreendidas apenas as modalidades em abstração do que se considera uma pena cruel. Deste modo, é dever do Poder Judiciário fazer uma análise da aplicação e principalmente na execução das penas, pois na grande maioria dos presídios brasileiros as condições são absolutamente desumanas e indignas, ou seja, a crueldade pode se fazer presente de várias formas (BRASIL, 2015).

4. A APLICAÇÃO DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL À REALIDADE DO BRASIL.

Após analisar as particularidades e cabimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, e a própria ADPF nº 347/DF, é preciso compreender porque esta ação foi utilizada para provocar o judiciário para declarar estado de coisas inconstitucional, sendo necessário compreender a abrangência do termo ato do Poder Público, utilizado no texto da legislação. Nesse sentido, entende-se que essa expressão abarca não só os atos (normativos, administrativos, concretos, de execução, materiais), mas também as omissões do Poder Público que causem lesão ou ameaça de lesão a preceito fundamental constitucional (PAULO, ALEXANDRINO, 2017).

A partir disso, entende-se que, comprovada a lesão a preceito fundamental (ou a existência de relevante controvérsia constitucional quando for o caso), a ADPF poderá ser utilizada tanto para reconhecer a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da norma. Logo, a lesão ou ameaça a preceito pode ser proveniente tanto da aplicação de uma lei inconstitucional como da omissão e não aplicação de uma lei constitucional (PAULO, ALEXANDRINO, 2017).

Conforme explica Andrade e Teixeira (2016) a Constituição Federal é referência em todo o mundo pela quantidade de direitos, garantias e princípios fundamentais explícitos e implícitos. E, muito além disso, a Constituição recepciona diversos dispositivos de tratados internacionais sobre direitos humanos, de forma que o ordenamento pátrio é formado para garantir a todos os cidadãos uma existência digna e vivida em plenitude de seus direitos. 

Em vista disso, a omissão de órgãos públicos é capaz de prejudicar de diversas formas a sociedade em geral, mas principalmente atinge com mais intensidade os cidadãos que já são menos favorecidos. Para quem realmente necessita do Estado, ou seja, as classes mais pobres, e os próprios presidiários que estão mais vulneráveis e restritos em liberdade, a mercê do Estado, a deficiência na gestão deste e de suas instituições geram desconfortos, violações a direitos e a sensação de abandono estatal (ANDRADE; TEIXEIRA, 2016).

A garantia de vida digna e vedação a tratamento desumano assegurada constitucionalmente não se cumpre quando se encontra encarcerado em uma cela que está abrigando mais que o dobro de sua capacidade de lotação, frente a falta de espaço, de higiene e toda a insalubridade, se faz impossível fornecer as condições mínimas existenciais para qualquer ser humano estatal (ANDRADE; TEIXEIRA, 2016).

Considerando todo este contexto é possível afirmar que a declaração de Estado de Coisas Inconstitucional demonstra que “uma pena abstratamente proporcional pode se tornar manifestamente desproporcional quando cumprida em condições muito mais gravosas do que aquelas estabelecidas pelo ordenamento” (EGGER, 2017, p. 31). Deste modo, com este grau na crise carcerária se torna necessário a atuação da jurisdição constitucional. 

Para Pereira (2017) no que tange a função jurídica e política do Estado de Coisas Inconstitucional a maior característica deste instituto é justamente sua orientação pragmática e prática. Sendo assim, o ECI tem uma finalidade prática fundamental e busca estimular o aparato estatal a criar, por em funcionamento, financiar e avaliar as políticas públicas que são necessárias para impedir que a violação massiva de direitos que deu causa ao ECI seja cessada. 

Isso quer dizer que esta finalidade pragmática compreende em buscar a solução rápida e imediata de determinado problema concreto. Entretanto, cumpre informar que o reconhecimento e aplicação do Estado de Coisas Inconstitucional é uma intervenção importante do Poder Judiciário aos procedimentos do Legislativo e Executivo no que tange a elaboração e aplicação de políticas públicas, desta forma o ECI deve ser medida utilizada excepcionalmente e com muita prudência para não ofender a democracia e o princípio de separação dos poderes (PEREIRA, 2017).

5. FUNÇÃO DO STF DIANTE DO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO E DA ADPF Nº 347

Em todo o mundo tem sido alvo de discussões sobre a atuação dos tribunais e cortes constitucionais, estes consistindo nos órgãos responsáveis por zelar pela interpretação adequada e aplicação da Constituição de um Estado. Este órgão pode ser judiciário ou não, e é sua função julgar se certo tema é ou não inconstitucional, no Brasil este papel é atribuído ao Supremo Tribunal Federal, cuja competência principal é guardar a Constituição (SILVA, 2019).

Sendo assim, o Supremo Tribunal Federal exerce um controle de constitucionalidade em que ele aprecia e julga se as normas infraconstitucionais estão adequadamente em consonância com a Constituição Federal, detendo assim fundamento constitucional para serem válidas, preservando a hierarquia e supremacia constitucional (SILVA, 2019).

Em vista disso, a ADPF nº 347/DF julgada pelo Supremo Tribunal Federal momento em que se reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro fomentou as discussões relacionadas a aplicabilidade do ECI no país, tendo em vista a importância da preservação do equilíbrio entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, bem como os limites do ativismo judicial (SOUZA, 2017).

Segundo Barroso (2012, p. 25) “o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance”. Esse ativismo pode ser manifestado a partir de algumas condutas como a interpretação e aplicação da Constituição a casos em que ela não se manifesta expressamente, em declaração de inconstitucionalidades e imposição ou abstenção de condutas ao Poder Público no que se refere às políticas públicas

De forma geral o ativismo judicial ocorre principalmente quando, em razão das leis e atuação dos outros poderes, surge um distanciamento entre a classe política e a sociedade, o que cria obstáculos para que as demandas sociais sejam ouvidas e atendidas efetivamente. Assim, o ativismo judicial se relaciona a uma maior participação do Poder Judiciário para materializar e efetivar as previsões e valores constitucionais, de forma que ele passa a interferir no espaço dos Poderes Legislativo e Executivo (BARROSO, 2012).

Para Andrade e Teixeira (2016) quando acontece uma ausência de respaldo institucional aos cidadãos, estes tendem sempre a recorrer ao Poder Judiciário para tentar buscar ou suprir as garantias e direitos expressos constitucionalmente e que não estão sendo observados. Desta forma, foi desde modo que surgiu o ativismo judicial, que em situações em que se observa omissões legislativas o Judiciário acaba por exercer o papel institucional do legislador com o objetivo de evitar ofensas à Constituição e a separação dos poderes. 

Portanto, quando acontece uma omissão prática pela Administração Pública é possível uma intervenção direta do Poder Judiciário, atuação decorrente do ato ou da atividade que deveria ter sido realizada pelo Poder Público, que foi omisso, seja no todo ou em parte. Todavia, nos casos de ofensa direta ou indireta à constituição, e também nas omissões, para que o Poder Judiciário possa atuar ele deve ser provocado por ações de controle de constitucionalidade propostas pelos legitimados pela Constituição estatal (ANDRADE; TEIXEIRA, 2016).

Deste modo, o julgamento da ADPF nº 347/DF foi um bom exemplo de atuação do Supremo Tribunal Federal com foco em concretizar o disposto no texto constitucional acerca dos direitos fundamentais dos presos. Sendo assim, é possível perceber que a atuação do Poder Judiciário quando ocorrem casos de violação massiva e sistemática de direitos e garantias fundamentais é fundamental para reverter o quadro (SOUZA, 2017).

Para Egger (2017) a intervenção do Supremo Tribunal Federal se justificou pela forte violação de direitos fundamentais e também do descumprimento ao princípio da dignidade humana e do fornecimento mínimo existencial para o indivíduo. Portanto, a intervenção do judiciário se mostra legítima em razão do alto padrão e grau de omissão estatal em todas as esferas, o que foi comprovado no texto da inicial da ADPF nº 347/DF e dos documentos anexados.

 Segundo Campos (2015) quando verificado os pressupostos e declarado o Estado de Coisas Inconstitucionais existem algumas intervenções possíveis a serem feitas também pelo Supremo Tribunal Federal. Como, por exemplo, o STF pode interferir sobre a formulação, implementação e o monitoramento de políticas públicas, o que define propriamente o ativismo judicial, dentre outras medidas: 

A Corte também pode mudar a opinião pública sobre o tema, despertar a atenção da sociedade sobre o quadro, colocando o problema na agenda política brasileira. Assim, o Supremo poderá promover ou aumentar a deliberação sobre o sistema carcerário (CAMPOS, 2015, p. 221).

Portanto, através de medidas estruturadas o Supremo Tribunal Federal pode buscar vencer os bloqueios, sejam políticos ou institucionais, que acabam por piorar toda a situação de violação massiva e reiterada de direitos fundamentais da população presa. Assim, é possível que haja o ativismo judicial sem que se torne supremacia judicial do STF, atuando de modo a criar ordens mais flexíveis, apenas fixando parâmetros e objetivos a serem seguidos pelos demais órgão do Executivo e Judiciário, deixando que estes definam seus próprios meio e medidas de atuação (CAMPOS, 2015).

Sendo assim, para isso a atuação do Judiciário deve ser feita através de sentenças estruturadas, com a realização de consultas populares considerando as necessidades sociais, mas principalmente mantendo um bom diálogo e relação institucional com os Poderes Legislativo e Executivo para que não haja prejuízos ao equilíbrio entre os três poderes e também a democracia (SOUZA, 2017).

Destaca-se como algumas das medidas de enfrentamento adotadas, conforme o relatório de gestão do DMF (Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas), a implementação da audiência de custódia, o projeto Cidadania nos Presídios, o projeto Assistência à saúde e Assistência Social no Sistema Prisional,  a Gestão da Informação – Sistema Eletrônico de Execução Unificado (SEEU); a Capacitação e Treinamento e Magistrados e Servidores – Fortalecimento de Competências, e ainda a Reorganização das Atribuições de Fortalecimento dos Grupos de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMFs) (CNJ, 2017).

Portanto, para Campos e Dantas (2020) resta claro que ao tornar possível implementar o Estado de Coisas Inconstitucional a realidade brasileira é também essencial reajustar e melhorar institucionalmente o processo decisório do Supremo Tribunal de forma promover o diálogo entre os três Poderes. 

Por fim, quando se considera que a situação caótica do sistema prisional brasileiro se deu em decorrência da omissão e deficiências estruturais e violações atribuídas a diversas autoridades e órgão, e não apenas a um isolado, é notório que a superação do quadro exige que medidas de diferentes âmbitos sejam coordenadas e aplicadas em conjunto, sejam intervenções legislativas, executivas, de orçamento ou da própria interpretação e guarda da Constituição, competência do Supremo Tribunal Federal (CAMPOS, 2015).

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante todo o exposto, foi comprovado que os sistemas prisionais passaram por mudanças e avanços. A Lei de Execução Penal foi criada com o intuito de regular o cumprimento de pena e as questões relativas a este procedimento e aos direitos e deveres dos presos, sendo considerada um avanço por seu caráter humanitário e por trazer como fundamento e função da pena a ressocialização do condenado. 

A partir deste contexto, um dos maiores problemas enfrentados já a alguns anos pelo Brasil é o colapso do sistema penitenciário em razão da superlotação e das estruturas precárias dos estabelecimentos prisionais. Assim, em 2015 através da ADPF nº 347 foi reconhecido o Estado de Coisas Inconstitucional no país envolvendo o sistema carcerário brasileiro, em razão de falhas estruturais nos presídios e da situação caótica e alarmante em todos os estados.

O grande crescimento do número de prisões associado a falta de vagas, a política de encarceramento e a escassez de políticas públicas visando o ambiente prisional, indo em contrapartida a quantidade de direitos assegurados aos presos tanto pela legislação pátria como por tratados internacionais, tornou evidente o descompasso entre a lei e a prática, culminando no reconhecimento do ECI como alternativa viável e urgente a solução da questão. 

O reconhecimento do ECI pelo STF trouxe uma reorganização jurídica e política, pois a característica fundamental  deste instituto é sua orientação pragmática e finalidade prática fundamental, que busca estimular o aparato estatal a criar, colocar em funcionamento, financiar e avaliar as políticas públicas que são necessárias para impedir que a violação massiva de direitos que deu causa ao ECI seja cessada. 

A partir do que foi demonstrado, no texto da ADPF nº 347 alguns pedidos foram pleiteados no sentido de intervir e fornecer soluções para a crise carcerária, do mesmo modo, algumas medidas e políticas foram implementadas para concretizar as iniciativas almejadas para reestruturar o sistema prisional. Destaca-se a audiência de custódia que, conforme dados analisados, foi um instituto eficiente para diminuir a quantidade de presos provisórios.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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