O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE COMO FUNDAMENTO DO CONSTITUCIONALISMO TRANSNACIONAL

THE PRINCIPLE OF SOLIDARITY AS FOUNDATION OF TRANSNATIONAL CONSTITUTIONALISM

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10700622


Alexandre Martins Kunrath1
Adrianne Sanches Soares da Silva2


Resumo: O presente artigo busca analisar as bases do movimento Constitucionalista, a evolução social e a necessidade de ser analisada com maior profundidade as idéias do constitucionalismo transnacional, principalmente em questões ambientais que assolam o mundo inteiro, comprometem o bem-estar social e, em efeito cascata, prejudicam incontáveis outros direitos previstos em nosso ordenamento jurídico, como a vida com dignidade e o respeito às gerações humanas. Com isso, percebeu-se que a proteção dos valores constitucionais no cenário atual exige uma releitura dos sistemas adotados, com a quebra de barreiras, sejam elas geográficas ou políticas, com o foco de fazer surgir uma nova forma de exercício da soberania.

Palavras Chaves: Constitucionalismo, Meio Ambiente, Constitucionalismo Transnacional.

Abstract: This article seeks to analyze the foundations of the Constitutionalist movement, the social evolution and the need to leave the ideas of transnational constitutionalism in greater depth, especially in environmental issues that plague the entire world, compromise social well-being and, in a cascading effect , harm countless other rights provided for in our legal system, such as life with conquered and respect for human generations. With this, it is clear that the protection of constitutional values ​​in the current scenario requires a re-reading of the adopted systems, with the breaking down of barriers, whether geographic or political, with the focus of bringing about a new form of exercising sovereignty.

Keywords: Constitutionalism, Environment, Transnational Constitutionalism.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O homem é um ser social que, desde o nascimento, interage com outros homens, o que torna necessária a realização de controle local para garantir o equilíbrio, principalmente no que tange ao meio ambiente, na medida em que a solução para problemas de cunho social advém da intervenção do poder público.

Embora a sociedade contemporânea esteja composta por bases preponderantemente individualistas, o homem goza, constantemente, de bens difusos, ou seja, cuja titularidade é indeterminável, constituindo bem de todos, independente de grupos ou fatos jurídico-sociais, a exemplo do meio ambiente. 

Em matéria ambiental, a missão precípua das normas é integrar os homens às suas necessidades, de forma harmoniosa, com o fim de que seja proporcionado o meio ambiente equilibrado, cujo postulado está expresso na Constituição Federal.

Contudo, o Estado moderno, que surgiu como absolutista e evoluiu para um Estado constitucional, vem se deparando com a necessidade de reformular o manejo das ações humanas em relação aos recursos ambientais, tendo em vista que, a era pós-industrial promoveu um descontrole na forma de se relacionar com esses recursos, desconsiderando totalmente o fato de que são bens limitados e finitos.

Em 1992, as Nações Unidas, no evento que ficou conhecido como Rio-92, abordou-se o conceito de sustentabilidade, que busca o elo entre o desenvolvimento econômico e a sobrevivência das gerações futuras, estudo cujo tema segue atual e revela, cada dia mais, sua importância.

Para fins didáticos, o meio ambiente é dividido em quatro principais categorias de abordagem, quais sejam: natural, cultural, artificial e do trabalho. Com isso, situa-se o leitor de que o presente artigo se desenvolve em relação ao meio ambiente natural. Portanto, é pensado em relação ao todo do qual essa classificação se ocupa: elementos integradores do meio ambiente, visando evitar o isolamento de águas, solo, atmosfera, ser humano e demais componentes naturais.

O método utilizado para o presente estudo foi o indutivo, acionadas as técnicas do referente e pesquisa bibliográfica, considerando as lições de Pasold.3

2. CONSTITUCIONALISMO

O Estado de Direito tem suas nuances definidas a partir do final do século XVIII, quando a história remonta o declínio das monarquias absolutistas na Europa e o ganho de força das revoluções sociais cujo objetivo era a limitação do poder do governante.

Assim, o Constitucionalismo é resultado de movimentos político-sociais que surgiram com o intuito de limitar o poder arbitrário do Estado, propiciar a defesa à obrigatoriedade de criação de leis escritas para assegurar os direitos de cada cidadão, propor a formação de propósitos voltados à posição das constituições nas diversas sociedades e acompanhar a evolução histórico-constitucional do Estado.

Canotilho apud Lenza identificou em seus estudos a ocorrência de vários constitucionalismos, ao que ele denominou movimentos constitucionais e lecionou ser uma ideologia que “ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade”4.

Nesse sentido, é importante frisar que, sociólogos e cientistas políticos defendem que o homem é um ser político, motivo pelo qual desde o nascimento necessita viver em grupo. Logo, há apontamentos da história que revelam que antes de Cristo já existiam regras sociais. Com isso, pode-se afirmar que a Revolução Francesa representa um aperfeiçoamento organizacional, sendo um dos marcos teóricos para o surgimento do Constitucionalismo Contemporâneo e do Estado de Direito.

Evidencia-se ainda que, paralelo ao ciclo de revoluções que ocorriam na França, outros Estados também viviam movimentos voltados a assegurar maior participação social, a exemplo do que ocorreu em 1787, quando foi elaborada a Constituição Norte Americana, reconhecida como o berço do Estado Constitucional de Direito.

Na mesma linha, o período que engloba os anos de 1789 e 1799 foi marcado por movimentos revolucionários que objetivaram o fim dos privilégios da nobreza, com a queda da monarquia e a criação de um governo republicano, pautado nos ideais “liberté, égalité, fraternité”, com a obrigação de que toda a sociedade obedecesse a regras previamente estabelecidas.

Reale entende o Estado de Direito como aquele constituído e regulado com base na lei e, nesse sentido, preferencialmente a regulação deve ser através da lei positivada, capaz de assegurar em abstrato direitos e deveres que serão aplicados aos casos concretos independentemente da vontade particular dos seres envolvidos.5

Contudo, a instituição do Estado de Direito por si só não garantia que os ideais buscados pela sociedade tivessem força e proporcionassem o mínimo de pacificação social, posto que se estava diante de um cenário preocupado pura e simplesmente com a legalidade imposta pela lei, sem a máxima dos valores supremos que regem e orientam o comportamento social.

Por isso a formação de um Estado de Direito Constitucional se fez importante, alcançando o resultado da luta filosófica materializada em movimentos que traduziam a ideologia e a política do agrupamento social, contra a arbitrariedade do Estado e sendo a salvaguarda dos direitos conquistados.

Direitos esses que também demonstram o marco evolutivo da sociedade e, por conseguinte, do Constitucionalismo, já que cada nova conquista jurídica faz referência a uma nova fase desse movimento, tido como inacabado, perpétuo e instrumento de cooperação para a – constante – limitação do Estado.

A racionalização dos interesses dos indivíduos fora do Estado foi inicialmente vivenciada na busca humana pela liberdade – fase liberal –, até que se percebeu que apenas essa conquista não seria suficiente para materializar os anseios da sociedade, principalmente pela constatação de que a neutralidade estatal não protege o vulnerável do arbítrio do Estado e menos ainda dos seus pares, corroborando para a concentração de renda em grupos seletos e aprofundando a exclusão social.

As práticas desse estágio de reconhecimento tornaram necessário fazer com que o Estado atuasse contra abusos e ausência de limite de poder econômico, como forma a resguardar os direitos sociais, também chamados direitos de segunda dimensão, até se chegar à fase do constitucionalismo contemporâneo, centrado na ideia de que os textos constitucionais e os decorrentes destes devem ter conteúdo social, estabelecendo regras programáticas.

Ainda em relação à contemporaneidade, essa fase do movimento Constitucional é a que mais se assemelha a uma das acepções mencionadas nos estudos de Tavares6, da qual se extrai que o constitucionalismo indica os propósitos latentes e atuais da função e posição das constituições nas diversas sociedades.

Os estudos sobre Karl Loewenstein, abordados por Bittar apresentam que o filósofo aproximava o constitucionalismo ao que se poderia chamar “ideia-força”, de forma que o homem enquanto ser político buscaria limitações ao poder absoluto exercido pelos detentores de autoridade7.

O movimento, inicialmente difundido para questões internas a cada Estado Nacional, visando a limitação do poder político e tutela de direitos fundamentais, representou, em cada uma de suas fases, a ruptura social e jurídica de preceitos que fundamentavam a dinâmica social local.

De forma diversa, surge o constitucionalismo transnacional, que não se origina em uma ruptura com as fases anteriores, mas com o rompimento de barreiras geopolíticas, conjugando todos os fundamentos que originaram cada um dos momentos históricos, principalmente os vinculados aos direitos de terceira geração, com os novos anseios sociais.

A intensificação do diálogo social e político, no cenário globalizado, coopera para o surgimento de um sistema judicial amparado no conceito de mundo globalmente ordenado, promovendo a intensificação de diálogo entre as Cortes de Justiça, de forma que jurisdicionados e aplicadores da lei tendem a apresentar entendimentos estrangeiros que acabam por influenciar nas tomadas de decisões internas.

Kant, na obra “Paz Perpétua”, já sugeria a formação de uma liga de povos resultante de um contrato entre Estados aliados por objetivos e compromissos comuns8. O filósofo não propôs a submissão Estatal a um superestado, mas a criação de compromissos que respeitassem a soberania, a individualidade e liberdade de cada um, sem esquecer dos ideais transformadores, necessários para o alcance da paz mundial e perpétua.

É importante reconhecer que, a passagem do Estado Liberal para o Estado Social exigiu atitudes que garantissem a prática dos direitos por intermédio do Estado, o qual passou a ser protagonista de políticas voltadas a saúde, educação, segurança pública, ao meio ambiente e, hoje, vivencia a missão de gerir o Estado Nacional na órbita interna e como ente inserido em um cenário de globalização.

O enfrentamento dos problemas vivenciados a nível global exige uma atuação sistêmica, com enfoque interdisciplinar, solidez de debate, instrumentos efetivos, fortalecimento de profissionalização, intercâmbio de informações, características que ainda são pouco aplicadas, apesar da humanidade clamar por soluções efetivas.

É por isso que há quem defenda a criação de novos limites geopolíticos para a governança de recursos naturais, os quais precisarão se basear em um sistema de cooperação, conforme se extrai das lições de Jaquenod9, o que acarreta o reconhecimento de que assiste razão à defesa de Kahn10 por um constitucionalismo orientado a evitar a aplicação de diversas estratégias, por dois ou mais sistemas jurídico-constitucionais, para a resolução de problemáticas similares.

3. O CARÁTER TRANSNACIONAL DO MEIO AMBIENTE

Com o cenário formado através da consolidação do Estado de Direito e o surgimento dos direitos fundamentais, a partir de diversas transformações históricas, o meio ambiente passou a ser considerado um bem difuso, ou seja, pertencente a toda a coletividade, com abrangência maior que os direitos coletivos.

Os bens difusos e coletivos são transindividuais e indivisíveis, e se distinguem no que concerne à titularidade, pois os difusos pertencem a pessoas indeterminadas, cujo elo são circunstâncias de fato, ao passo que os coletivos são pertencentes a um grupo, cuja ligação se dá por intermédio de uma relação jurídica.

O Supremo Tribunal Federal, ao abordar o tema, tratou do direito à integridade do meio ambiente como oriundo da terceira geração de direitos, e reconheceu que “constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, (…) à própria coletividade social”11.

Da mesma forma, no artigo 225 da Constituição Federal é abordado de forma expressa que o meio ambiente como bem voltado ao bem-estar da coletividade, de uso comum e essencial à sadia qualidade de vida, impondo aos particulares e pessoas de direito público o dever de defendê-lo e preservá-lo de forma sustentável, ou seja, para as presentes e futuras gerações.12

Assim, a formação do meio ambiente compreende um agrupamento de componentes que lhe confere o status de bem de titularidade difusa, de forma que sua defesa não está ligada a um indivíduo, destinando-se à proteção de grupos humanos.

Por isso, a visão organicista do Estado tem se direcionado a questões ambientais, na medida em que a todos interessam a manutenção de formas que permitam que a espécie humana não seja extinta, garantindo os direitos de gerações futuras, e a isso se dá o reconhecimento de que o debate voltado ao meio ambiente possui vocação transnacional.

A obtenção de conhecimento, a revolução tecnológica, as mudanças climáticas, o reconhecimento de que os acontecimentos ambientais promovem alterações mundiais, são incentivadores para a criação de pactos cooperativos, resultando no surgimento de uma civilidade global. 

As intensas mudanças vivenciadas quanto ao comportamento humano em relação à degradação ambiental seguem ocorrendo progressivamente, ao contrário de práticas voltadas ao combate de danos ambientais, as quais caminham a passos lentos, contribuindo para o agravamento dos problemas sociais e ambientais, e acarretando resultados complexos que clamam por instrumentos de governança transnacional, comprometida com o alcance da dignidade humana e da sustentabilidade.

Nos últimos anos a humanidade despertou para os problemas ambientais, entendendo que qualquer prática, seja ela benéfica ou maléfica, é sentida por todos os países, por isso a colaboração e solidariedade entre nações são elementos primordiais para a sustentabilidade.

Ao analisar a sociedade contemporânea, Ayala explana que se vivencia uma “sociedade de risco”, na medida em que é difícil apresentar soluções adequadas para o conflito entre o desenvolvimento e o estabelecimento de limites à intervenção sobre o meio ambiente.13

Realidade que ganhou força com a era pós-industrial, na qual a degradação ambiental, a poluição e o desmatamento nitidamente se tornaram descontrolados e passaram a refletir um cenário de extrema dificuldade de alcance de manejo dos bens naturais de forma sustentável. 

Destaca-se que, essa realidade é reflexo da demora em reconhecer a importância do meio ambiente e regular as ações humanas na esfera ambiental, conclusão que se extrai das análises das legislações brasileira internacional correlata ao meio ambiente e o fato de que, somente com a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento e Meio Ambiente Humano, realizada em junho de 1972, em Estocolmo, a problemática ambiental passou a ser apresentada como problema global.

Além disso, Trennepohl leciona que a Constituição brasileira, conhecida por ser Cidadã, superou as Constituições estrangeiras mais recentes, como a da Bulgária, de Portugal e da Espanha, no que concerne à proteção ambiental, erigindo ao patamar constitucional um tema ainda pouco difundido na doutrina e jurisprudência nacional.14

Atenta-se aos fatos de que a globalização não é um fenômeno novo e representa a expansão de uma determinada cultura para fora de suas limitações territoriais, com o contato entre povos diferentes, pelos mais variados motivos. Reconhecer as questões negativas do meio ambiente promove estímulos para que esse processo seja vivenciado com a inserção de novas práticas pela humanidade, visando assegurar a melhoria contínua das relações entre seres humanos e natureza na esfera global.

Ferrajoli defende que o modelo de Estado soberano tende a sucumbir, deixando de existir a hierarquia piramidal, passando a ser negociador e integrador de sua comunidade no contexto transnacional, pois a crescente interdependência econômica, política, ecológica, transformam o mundo e a maneira como o ser humano se comporta diante da complexidade dos conflitos vivenciados na aldeia global.15

Cruz e Real Ferrer defendem um Estado que tenha como paradigma a sustentabilidade, encaixado em uma rede de compartilhamento de funções públicas, com interação com as organizações transnacionais16. Com isso, os Estados seriam soberanos para questões internas e partes componentes de uma ordem política internacional mais ampla e complexa em matérias de interesse global.

Sucede-se que as propostas para amenizar os problemas ambientais devem abranger aspectos físicos e políticos, o que tornará possível compatibilizar o contínuo desenvolvimento humano com o alcance de práticas sustentáveis, cujas propostas surgiram no Rio de Janeiro, por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento e Meio Ambiente Humano de 1992, também conhecida como Rio-92, na qual se reuniram representantes de 179 países.

Contudo, reafirma-se que, antes do Brasil sediar a Conferência, em 1988, o constituinte originário já havia inovado ao inserir na Constituição Republicana promulgada em outubro daquele ano, normas voltadas ao meio ambiente.

Embora seja sabido que o fundamento de toda ordem federal reside no reconhecimento de que a autonomia das partes constituintes é, de alguma maneira, sua razão de ser sem esquecer a soberania do todo que forma o Estado, como asseverou Regis17, deve-se reconhecer que os muros que separam o mundo não alcançam os recursos naturais, de forma que, ainda que se possa estabelecer jurisdições políticas e jurídicas, os efeitos ambientais ultrapassam qualquer limite natural ou artificial e são sentidos em todo o globo, o que, nas lições de Mazzuoli18, é uma constatação óbvia que, porém, não foi antevista antes do século XX.

4. A SOLIDARIEDADE COMO BASE DO CONSTITUCIONALISMO TRANSNACIONAL

Em suas pesquisas, Bodnar19 demonstra que a crise vivenciada ao longo dos últimos séculos não é apenas ecológica, mas também de valores e vínculos, dado o distanciamento humano da natureza e a cultura obstinada do desenvolvimento a qualquer custo, por essa razão analisa a solidariedade por meio da jurisdição ambiental.

A ideia de solidariedade teve sua origem nos intelectuais do estoicismo e do cristianismo primitivo, além dos juristas romanos, os quais utilizavam o termo para designar o laço que unia devedores a credores. Do pensamento ciceroniano20, extrai-se a lição de que o homo ethicus respeita o universo, suas leis e pratica o autorrespeito.

Nesse sentido, “A ética estoica caminha no sentido de postular a independência do homem com relação a tudo que o cerca, mas, ao mesmo tempo, no sentido de afirmar seu profundo atrelamento com causas e regularidades universais”21.

Também, os ideais de solidariedade eram defendidos por ocasião da Revolução Francesa, tanto que, como herança do século das luzes restou a já mencionada trilogia “liberdade, igualdade e fraternidade”, hoje tida como legado instituidor de princípios éticos fundamentais. A solidariedade representa um “atuar humano, de origem no sentimento de semelhança, cuja finalidade objetiva é possibilitar a vida em sociedade, mediante o respeito aos terceiros”22.

Contudo, sob a ótica secular do mundo moderno, o qual rompeu com a teologia e está cada dia mais desvinculado do Direito Natural, se forma uma sociedade mais individualista, que além de enaltecer as habilidades pessoais, fez com que tudo se tornasse fugaz, em detrimento do bem-estar coletivo e manutenção das presentes e futuras gerações.

No entanto, sendo o meio ambiente um dos precursores para o alcance da dignidade humana, o direito do ambiente se revela expressão de solidariedade, cuja prática resulta em um grande desafio para o Direito na atualidade.

Diversos são os doutrinadores que vinculam justiça ambiental e social. À vista disso, Quirós apud Bodnar23 aborda que a solidariedade é um princípio estruturante do direito ambiental, peça que permite o cumprimento de exigências da sociedade globalizada e da sustentabilidade.

Isso porque, ao lado dos problemas de soberania e da relação direito e Estado, os processos de transnacionalização sofrem a interferência das diferentes culturas entre os diferentes povos, o que indubitavelmente promove o surgimento de indagações sobre a possibilidade de implementação de uma teoria universal, o que é superado com a fraternidade, o que torna o princípio da solidariedade um marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito.

Existem temáticas que possibilitam a fácil visualização de consenso sobre o que deve ser adotado pelo sistema jurídico, proporcionando forte interação entre os Estados soberanos, a exemplo do que acontece em relação às discussões ambientais, dada a capacidade cognitiva das diversas sociedades reconhecerem que o Estado Liberal e o Estado Social, sozinhos ou entrelaçados, não contemplam vida digna e saudável a todos os integrantes da comunidade humana.

Importa frisar que as normas são elaboradas pelos homens e para os homens e, se um ser vivencia conflitos internos, é inequívoco que diferentes agrupamentos vivenciam discordâncias, que dirá quando conjugados os indivíduos de diferentes culturas, ainda mais se separadas por larga distância territorial, cultural, política, econômica e, até mesmo, jurídica.

Tratar da solidariedade enquanto fundamento do constitucionalismo transnacional não representa romper com o pluralismo entre os povos, nem partir para o cabal relativismo, e sim procurar o reconhecimento dos benefícios que o cuidado entre os povos poderá proporcionar para todos os seres vivos.

Não se trata de imposição, mas de entendimento reconhecido e em vista de implementação desde a segunda metade do século XX, impulsionado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos24 e, no cenário interno, pela Constituição Brasileira de 198825.

O alcance de um comportamento solidário entre as nações ultimaria a possibilidade de se justificar danos ambientais e a ausência de sanções eficazes sob o argumento de que as normas de um lugar são diferentes de outros, além de impossibilitar a ocorrência de paradoxos que criem gradações entre as normas coexistentes nos diversos ordenamentos jurídicos.

A solidariedade indica o fundamento de coexistência do ser humano em um corpo social que, no plano jurídico-normativo coopera para a construção de um Estado de Direito pautado na proteção e promoção de direitos fundamentais. Outrossim, o uso de ferramentas conectivas entre os Estados para acontecimentos/resultados equivalentes está de acordo com a nova sistemática social de condição de validade das leis.

Se antes eram consideradas válidas as leis que passavam pelo crivo do procedimento adotado para suas criações, estipulados nas cartas de cada soberania, hoje os indivíduos desejam a aplicação de regras que façam sentido. A ciência jurídica, assim como outras ciências e áreas de estudo, já não se exerce por um seleto grupo que destina seus dias aos estudos jurídicos, na medida em que os indivíduos possuem amplo acesso à informação e diversas possibilidades de se expressarem.

Dessa feita, se experimenta um processo de tomada de consciência, com significativa virada de chave: hoje os cidadãos se posicionam de forma crítica à produção legislativa, o que exige uma nova atuação jurisdicional. De nada adianta uma lei ter vigência se, no plano fático, é inválida; há uma transcendência nos campos moral e jurídico.

A aplicação do princípio da solidariedade atende à tendência global de adoção a um novo modelo de constitucionalismo, que rompe barreiras geográficas e políticas, que se movimenta sob a influência de pessoas conectadas no mundo inteiro, influenciadas pelo que há de positivo nos Estados que já praticam as ideologias buscadas – ainda que de forma tímida – pela sociedade, com ressignificação do que efetivamente importa para o pleno desenvolvimento.

Peters tratou o constitucionalismo como uma agenda acadêmica e política, na qual se insere o movimento na órbita (do direito) internacional, dada a tendência que a globalização possui de alterar o constitucionalismo interno26, com a influência provocada por pressões não estatais, ao que relacionamos às pressões midiáticas.

Trata-se de verdadeira convergência entre os Estados constitucionais, com a globalização dos sistemas jurídicos como forma de expandir os mecanismos de proteção aos direitos fundamentais, principalmente dos direitos difusos, nos quais está alocado o direito ao meio ambiente.

Tal mobilidade relaciona-se com a releitura do movimento do constitucionalismo: inicialmente criado para os Estados territorialmente delimitados e, agora, se desenvolvendo para além do Estado nacional, principalmente em reconhecimento à conexão ecológica mundial e aos efeitos para além das fronteiras em casos de ações danosas ao meio ambiente.

5. CONCLUSÃO

Diante da perpétua conexão entre todos os ecossistemas mundiais, o ser humano é refém das condições ambientais, motivo pelo qual deve ser aceito que a proteção do meio ambiente é questão de sobrevivência mundial que clama por um olhar atencioso do Estado.

A percepção dos acontecimentos ambientais independente do lugar físico no qual o dano foi praticado. Com isso, a crise ecológica e a dimensão transnacional dos desafios ligados à proteção ambiental fazem com que o modelo clássico de soberania nacional esteja caminhando para um enfraquecimento que poderá acarretar sua ruptura.

Acontecimentos ambientais se apresentam cada vez mais relevantes, tendo em vista os interesses transfronteiriços envolvidos e pela ideia de que tocam de forma direta em um patrimônio comum da humanidade, acarretando que o princípio da solidariedade incida nas relações além-fronteiras para coibir práticas predatórias e permitir o desenvolvimento sustentável mundial.

Não se trata de uma tentativa de extinguir a figura do Estado nação, mas reconhecer que, em um mundo transnacionalizado, há espaço para interação jurídica entre as diferentes soberanias, a qual pode/deve ser pautada no princípio da solidariedade e interesse mútuo de cuidar do que é fundamental às pessoas.

Considera-se que a presente pesquisa alcançou o objetivo de mostrar à comunidade em geral elementos que promovem uma reflexão de grande alcance, apta a enquadrar a realidade contemporânea das nossas comunidades políticas, cujo reconhecimento nos coloca a par de forma alternativa de construção do Estado Constitucional.

A proposta acarreta a releitura de bases constitutivas da composição do Estado, que leva em consideração uma interpretação moderna no que se refere à estrutura da organização estatal e o arcabouço conceitual em que se firmou o constitucionalismo, a partir da utilização de uma nova lógica pluralista que permita encarar o direito de forma a fomentar as conquistas sociais.

O aparato soberano dominante até os dias atuais se demonstra incapaz de lidar com a complexidade da sociedade mundial globalizada, principalmente em relação aos temas ligados ao meio ambiente. Para essa realidade, a alternativa plausível visa a instituição de modelo do constitucionalismo transnacional, com abordagem policêntrica que permite que vários ordenamentos jurídicos reconheçam a necessidade de aprendizado com os demais e alinhamento de demandas e resoluções destas.


3PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 14ª edição. Florianópolis: EMais, 2018, p. 89.
4LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. Coleção esquematizado. 24ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 65.
5REALE, Miguel. Teoria do direito e do estado. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000.
6TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 18ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
7BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 15ª edição, São Paulo: Atlas, 2021.
8KANT, Immanuel. À paz perpétua. Tradução de Marco Zingano. Rio Grande do Sul: L&PM, 2008.
9JAQUENOD, Silvia. Derecho ambiental. 2. ed. Madrid: Dykinson, 2008.
10KAHN, Paul W. Interpretation and authority in state constitucionalism. Harvard Law Review, n. 106, 1993, p. 1147-1163.
11BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Mandado de Segurança nº 22.164-0 SP. Impetrante: Antônio de Andrade Ribeiro Junqueira. Impetrado: Presidente da República. Relator: Ministro Celo de Mello, 30 de outubro de 1995, Ementário nº 1809-05. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stf/14703003/inteiro-teor-103095299>. Acesso em 09 dez. 2023.
12BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 08 dez. 2023.
13AYALA, Patryck de Araújo. A proteção jurídica das futuras gerações na sociedade de risco global: o direito ao futuro na ordem constitucional brasileira. IN: FERREIRA, Heline Sivini; LEITE, José Rubens Morato (Orgs.). Estado de Direito Ambiental: tendências, aspectos constitucionais e diagnósticos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
14TRENNEPOHL, Terence. Manual de direito ambiental. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2022. E-book.
15FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do estado nacional. Tradução Carlo Cocciolo e Márcio Lauria Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
16CRUZ, Paulo Márcio; REAL FERRER, Gabriel. Direito, sustentabilidade e a premissa tecnológica como ampliação de seus fundamentos. Sequência (UFSC), Florianópolis, v. 36, n. 71, p. 239-278, dezembro 2015.
17REGIS, André. O novo federalismo brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
18MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
19BODNAR, Zenildo. A solidariedade por meio da jurisdição ambiental. Revista Espaço Acadêmico, v. 11, n. 125, p. 51-58, 20 jun. 2011.
20Marcus Tullius Cícero (106-43 a.C.) foi um filósofo do estoicismo.
21BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. 15ª edição, São Paulo: Atlas, 2021, p. 161.
22AVELINO, Pedro Buck. Princípio da solidariedade: imbricações históricas e sua inserção na Constituição de 1998. Revista de Direito Constitucional Internacional nº 53. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 250.
23BODNAR, Zenildo. A solidariedade por meio da jurisdição ambiental. Revista Espaço Acadêmico, v. 11, n. 125, p. 51-58, 20 jun. 2011.
24ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em <https://www.unicef.org>. Acesso em: 08 dez. 2023.
25BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 08 dez. 2023.
26PETERS, Anne. The merits of global constitutionalism. Indiana Journal of Global Legal Studies: Vol. 16: 2009. Disponível em: <https://www.repository.law.indiana.edu/ijgls/vol16/iss2/2>. Acesso em: 15 dez. 2023.

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1Bacharel em Direito graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Pós Graduado em Direito Processual Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Mestrando pela Faculdade Autônoma de Direito – FADISP.
2Mestranda em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI); Especialista em Direito Registral Imobiliário com Ênfase em Direito Notarial pela Faculdade Verbo Educacional; Especialista em Direito Civil e Processo Civil pelo Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas – CIESA; Graduada em Direito pelo Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas – CIESA; Graduada em Administração pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM. Endereço eletrônico: adriannesanches@hotmail.com.