O PENSAMENTO POLÍTICO-PEDAGÓGICO DE PAULO FREIRE E A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch10202506101248


Valdir Sodré dos Santos1


RESUMO

Este artigo tem como objetivo vincular o pensamento político-pedagógico de Paulo Freire aos aspectos que fundamentam a Educação Matemática. Para tal investigação tomou-se como base as obras Educação como Prática de Liberdade, a Pedagogia do Oprimido e a Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire, em contraste com os pressupostos da Educação Matemática, a Educação Matemática Crítica, a Etnomatemática e pesquisas contemporâneas que tratam sobre a formação de professores de matemática sob o enfoque do pensamento de Paulo Freire e a Educação Matemática. A riqueza da temática proposta ressoa como uma contribuição à discussão emergente e necessária ao debate teórico entre o pensamento freiriano e a Educação Matemática, a partir do entrelaçamento de suas historicidades.

Palavras-chave: Paulo Freire; Educação Matemática; Formação de professores de matemática.

ABSTRACT

This article aims to link Paulo Freire’s political-pedagogical thinking to the aspects that underlie Mathematics Education. For this investigation, Paulo Freire’s Education as a Practice of Freedom, the Pedagogy of the Oppressed, and the Pedagogy of Autonomy were used as a basis, in contrast to the assumptions of Mathematics Education, Critical Mathematics Education, Ethnomathematics, and contemporary research that deal with the training of mathematics teachers under the thinking of Paulo Freire and Mathematics Education. The richness of the proposed theme resonates as a contribution to the emerging and necessary discussion of the theoretical debate between Freirean thought and Mathematical Education, based on the interweaving of its historicities.

Keywords: Paulo Freire; Mathematics Education; formation of mathematics teachers.

1 INTRODUÇÃO

Estreitar uma relação de afinidades entre o pensamento político-pedagógico de Paulo Freire e a Educação Matemática traz substancialmente a tônica fundamental de uma preocupação latente com os excluídos. Segundo Freire (2002), educar é intervir no mundo e, portanto, um ato eminentemente político, além de ser uma experiência exclusiva dos seres humanos. O ato educativo deve ser fundamentalmente uma prática-ação de recriação, de ressignificação de significados.

O espaço de sala de aula deve oportunizar condições para o aprendizado e para o exercício da reflexão e da crítica e fazer da escola um lugar de aprender, considerando a participação ativa e criativa dos alunos nas diversas atividades, na busca da construção do pensamento autônomo.

A pedagogia do oprimido alerta contundentemente ao reconhecimento da desumanização, não apenas como viabilidade ontológica, mas como realidade histórica. Tal realidade não se configura como um destino dado, mas sim como resultado de uma “ordem” injusta que gera violência dos opressores. A pedagogia do oprimido é aquela que faz da opressão e de suas causas o objeto de reflexão dos oprimidos, a qual se revela como sendo um dos instrumentos para a descoberta crítica (FREIRE, 2000).

A historicidade do pensamento de Paulo Freire se entrelaça com o surgimento da Educação Matemática. Freire publicou quarenta obras entre 1959 e 2003, dentre as quais destacamos nesse trabalho as obras: Educação como Prática de Liberdade (1ª publicação em 1967); Pedagogia do Oprimido (1ª publicação em 1974); e Pedagogia da Autonomia (1ª publicação em 1996). Concomitantemente, até a década de 1960, encontravam-se ainda nos ambientes escolares práticas pedagógicas de uma Matemática Tradicional, caracterizada pela transmissão de ferramentas matemáticas, cujo objetivo era a preparação para a produção no mundo do trabalho. A memorização, a prática mecânica alicerçada na exatidão, a formalização precoce e a algoritmização são marcas do ensino tradicional, que ainda são práticas vivenciadas em parte significativa de nossas escolas nos dias de hoje. O movimento da Educação Matemática surgiu na década dos anos de 1980, como movimento de reação à Matemática Tradicional e à Matemática Moderna, esta última marcada pela reestruturação e reformulação norte-americana nos currículos e nos ensinos de Ciências e de Matemática, ocorridas ao longo dos anos de 1960 e 1970, cujo objetivo era a formação de futuros cientistas, ao sofisticar os conteúdos programáticos desde o início da vida escolar dos estudantes, em face à guerra fria entre a União Soviética e os Estados Unidos, cujo pivô central fora o lançamento do primeiro satélite artificial soviético, o Sputinik I, em 1957.

Nessa perspectiva, a Educação Matemática, como proposta de renovação pedagógica e área de conhecimento contemporâneo das ciências sociais e humanas, se alinha à quebra de diversos paradigmas que moldam os sistemas escolares, os modelos matemáticos tradicionais, as posturas e as formas de mediação do conhecimento matemático nos cotidianos escolares.

A Educação Matemática Crítica, preconizada por Ole Skovsmose2, ressalta que

pensar criticamente é examinar cuidadosamente argumentos e opiniões analisando até que ponto são credíveis, é construir argumentos consistentes que fundamentem a opinião que defendemos, é evitar que sejamos manipulados por informações falaciosas, confusas ou contraditórias com que contactamos todos os dias. O interesse da educação matemática crítica pela comunicação na sala de aula passa pela consciencialização de que o pensamento crítico não pode ser imposto aos alunos, pelo que deverá encontrar uma base na prática comunicativa da aula de matemática (ALVES & MATOS, 2006, p. 4-5).

O diálogo crítico e libertador supõe ação e deve ser feito com os oprimidos, com os excluídos, e a ação política junto a eles tem de ser “ação cultural” para a liberdade. Contrariamente, a concepção “bancária” de educação propõe que a tarefa do educador seja a de “encher” os educandos dos conteúdos de sua narração, reforçando uma das características primordiais desta educação dissertadora: a “sonoridade” da palavra, o diálogo uníssono, e não sua força transformadora. Torna-se, assim, um ato de depositar através de uma memorização mecânica do conteúdo narrado. Nessa perspectiva, não há criatividade, não há transformação, não há saber construído (FREIRE, 2000).

Analisando o ensino atual de Matemática em grande parte de nossas escolas, evidencia-se uma prática de poder nas mãos do professor, principalmente presente na avaliação, que se torna um instrumento basicamente de seleção, de classificação, de rotulação e de controle. Evidencia-se assim, no ensino da Matemática, uma concepção “bancária” de educação.

Ao tomarmos consciência de que a Matemática foi e é a única ciência que se universalizou, D’Ambrosio3 (1998) apresenta e define a “Etnomatemática como uma matemática antropológica, como um programa de pesquisa partindo da realidade cultural, e chegando, através da psicologia cognitiva, e com um sólido fundamento cultural, à ação pedagógica” (MUNIZ, 2000, p. 21). Esse movimento, cujo objetivo é desvelar a matemática escondida em cada cultura, comunga-se com a Sociomatemática, a qual valoriza a matemática espontânea, a matemática informal, a matemática oprimida, a matemática não estandardizada, a matemática congelada ou ainda a matemática popular ou do povo (MUNIZ, 2000).

A educação problematizadora proposta por Freire, assim como a Educação Matemática, “rompe com esquemas verticais da educação ‘bancária’, superando a contradição educador-educandos. O educador enquanto educa é educado, em diálogo com o educando, que ao ser educado, também educa” (FREIRE, 2000, p. 68).

Definitivamente, várias correntes que se alinham à Educação Matemática, como área contemporânea de pesquisa a tudo aquilo que se refere a aprender e a ensinar matemática, justapõem-se ao pensamento político-pedagógico de Paulo Freire, ao propor o resgate do ‘ser matemático’ daqueles que de alguma forma foram excluídos pela rigidez impiedosa da Matemática Tradicional. Nessa atmosfera crítica e de inauguração de novas formas de representação social da Matemática fica evidente a necessidade do repensar do papel do professor, seja na atuação cotidiana em sala de aula seja em sua formação. Assumir o papel de mediador do conhecimento ou de educador problematizador se torna uma necessidade premente para proporcionar, com os educandos, condições em que se dê a superação do conhecimento no nível da doxa pelo verdadeiro conhecimento, que se dá no nível do logos (FREIRE, 2000). Ademais, pensar matematicamente é fazer uso da lógica e da intuição. “Simplesmente, não posso pensar pelos outros nem para os outros, nem sem os outros. A investigação do pensar do povo não pode ser feita sem o povo, mas com ele, como sujeito de seu pensar, na ação, que ele mesmo se superará” (FREIRE, 2000, p. 101). A superação se faz no ato de produzir ideias e de transformá-las na ação e na dialogicidade.

O objetivo desse trabalho é vincular o pensamento político-pedagógico de Paulo Freire aos aspectos que fundamentam a Educação Matemática, como área de pesquisa e em suas diferentes correntes e/ou programas, tomando como referência a Educação como Prática de Liberdade, a Pedagogia do Oprimido e a Pedagogia da Autonomia, obras de Paulo Freire, em contraste com a Educação Matemática Crítica, a Etnomatemática e pesquisas sobre a formação de professores de Matemática. Para o alcance de tal objetivo, emergiram as seguintes questões norteadoras para essa investigação: (a) Em que aspectos a Educação Matemática Crítica, de Ole Skovsmose, correlaciona-se com a Educação Emancipadora e Crítica de Paulo Freire? (b) Quais os vínculos que podem ser destacados entre o programa de pesquisa de Etnomatemática, de Ubiratan D’Ambrosio, com a “ação cultural” proposta por Paulo Freire em a Pedagogia do Oprimido? (c) Que aspectos podem ser elencados sobre a formação de professores de Matemática, tomando como base pesquisas atuais que contrastem o pensamento de Paulo Freire e os pressupostos da Educação Matemática?

Assim sendo, este trabalho está dividido em três partes. Inicialmente serão apresentados os conceitos que fundamentam a Educação Matemática Crítica e a Educação Crítica de Freire, interligando-os. A segunda parte é composta pelo vínculo conceitual e prático da Etnomatemática e a “ação cultural” proposta por Freire. Na última parte, traçar-se-á um olhar crítico sobre a formação do professor de Matemática, tomando como base pesquisas contemporâneas que apresentem a temática sob o contraste do pensamento de Paulo Freire e a Educação Matemática. Por fim, nas considerações finais serão discutidas as contribuições para área da educação e alternativas que ora serão propostas.

2 A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA CRÍTICA E A PEDAGOGIA EMANCIPADORA

O ponto central da Educação Matemática Crítica, proposta por Skovsmose (2006), é a questão de como a democracia se apresenta no ambiente de sala de aula, a qual necessariamente deve ser compreendida como espaço de exercício do diálogo, no sentido de ação dialógica, estabelecendo-se como forma de comunicação entre os atores-participantes do processo educativo. Fundam-se na concepção de ideias entendidas e discutidas de tal forma que os atores-participantes problematizem sua extensão para o contexto social.

A “Pedagogia Emancipadora” proposta por Freire (2000) preconiza que professores e estudantes sejam atores na trama educativa em igualdade de condições e de trabalho

O pilar essencial para concretizar as reais e necessárias interações é a garantia da existência de um contrato didático4, em que os sujeitos ativos, e não somente o professor, negociam e renegociam cotidianamente as regras. Tal contrato baseia-se em relações menos unilaterais e mais democráticas, que possibilite resgatar a criatividade do fazer pedagógico.

A principal preocupação da Educação Matemática Crítica reside no desenvolvimento da matemacia5, que é entendida como uma extensão, para a Matemática, da concepção problematizadora e libertadora de educação proposta por Freire (ARAÚJO, 2009).

Freire (1972a, p.53, apud Skovsmose, 2006, p. 17), ao apontar os principais pontos que fundamentam a Educação Crítica, elucida uma conexão ao que chamamos de “Pedagogia Emancipadora”, ao afirmar que

através do diálogo, o professor-dos-estudantes e os estudantes-do-professor se desfazem e um novo termo emerge: professor-estudante com estudantes-professores. O professor não é mais meramente o o-que-ensina, mas alguém a quem também se ensina no diálogo com os estudantes, os quais, por sua vez, enquanto estão ensinando, também aprendem. Eles se tornam conjuntamente responsáveis por um processo no qual todos crescem.

Há de reconhecer-se que vivemos numa sociedade matematizada, mesmo que de uma maneira pouco visível, ressaltando ainda que a base da Ciência Moderna é a Matemática. Essa atmosfera agregada às novas formas modernas de comunicação e de apreensão de informações indubitavelmente repercute na escola. Portanto, hoje o ensino da Matemática não pode reduzir-se a uma mera transmissão de técnicas de memorização, de uma prática mecânica alicerçada na exatidão, de formalização precoce e de algoritmização. É preciso que os estudantes adquiram competências e habilidades para resolução de problemas e/ou situações-problema, que estejam mais próximos da realidade sociocultural do estudante. Ademais,

é necessário incluir outras perspectivas no ensino da Matemática que permitam aos alunos reconhecer os modelos matemáticos presentes nos fenómenos sociais e que os ajude a obter ferramentas que lhes possibilitem desocultá-los, analisá-los, compreendê-los, criticá-los e até reformulá-los. Estamos perante uma perspectiva de educação matemática crítica (ALVES; MATOS, 2006, s/p).

Freire (2002) indica que a pedagogia da autonomia imprime que ensinar exige reflexão crítica sobre a prática. A prática docente crítica é um exercício dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer.

A metacognição, que é o pensar sobre o pensar, implica na tomada de consciência do processo de aprendizagem e “deve capacitar o sujeito a organizar seus atos, segundo suas intenções iniciais e a realizar antecipação dos resultados” (MUNIZ, 2000, p. 42). Segundo Bruner (1999, apud MUNIZ, 2000), a tomada de consciência é parte essencial do próprio desenvolvimento cognitivo e a mediação do conhecimento assume o papel central nesse processo. Para favorecer a metacognição, o professor pode assumir duas funções: ser o mediador que facilite a utilização de estratégias para a resolução de problemas ou oportunize aos alunos uma análise das diferenças ou semelhanças dentre os diferentes processos de resolução por diversos sujeitos, diversas culturas ou diversas fases históricas.

Skovsmose (2006) distingue três tipos de conhecer que possam orientar a educação matemática: (a) o conhecer matemático, que se refere às habilidades matemáticas presentes na educação Matemática Tradicional, como reprodução de teoremas e provas e domínio de uma variedade de algoritmos; (b) o conhecer tecnológico, que se relaciona com a capacidade de buscar uma determinada aplicação à matemática e de construir modelos; e (c) o conhecer reflexivo, que se refere à competência de refletir sobre a utilização da Matemática avaliando-a. Portanto, segundo o autor, para a concretização de uma educação matemática promotora do desenvolvimento de competências que consolidem a compreensão e o questionamento de decisões de cunho social e político, necessariamente passa pelo desenvolvimento do conhecer reflexivo, transformando a matemacia numa dimensão crítica.

A Educação Matemática, assim sendo, tem como objetivo criar condições que desocultem a Matemática presente nas mais diferentes situações de aprendizagem em diferentes ambientes escolares, contribuindo na formação de cidadãos participativos, críticos e confiantes nos diferentes modos do fazer matemático. Alves e Matos (2006, s/p) ampliam essa perspectiva ao afirmarem que

pretende-se, portanto que ao invés de adquirir conhecimentos matemáticos, os alunos desenvolvam competências matemáticas que contribuam para a sua formação pessoal e social, o que clarifica a necessidade de dar uma dimensão crítica à Educação Matemática, procurando o desenvolvimento da matemacia (crítica), que constitui um suporte para uma educação democrática e uma base para o cidadão crítico e participativo.

A ideia do conhecimento matemático intocável pelo desenvolvimento social e histórico, puro, abstrato e eurocentrista dá lugar a uma perspectiva de uma Matemática questionável, multicultural e dinâmica.

Freire (2003, p. 47/48) contundentemente afirma que

há uma pluralidade nas relações do homem com o mundo, na medida em que responde à ampla variedade dos seus desafios. Em que não se esgota num tipo padronizado de resposta. A sua pluralidade não é só em face dos diferentes desafios que partem do seu contexto, mas em face de um mesmo desafio. No jogo constante de suas respostas, altera-se no seu próprio ato de responder. Organiza-se. Escolhe a melhor resposta. Testa-se. Age. Faz tudo isso com a certeza de quem usa uma ferramenta com a consciência de quem está diante de algo que o desafia.

A Educação Matemática Crítica justifica-se ao apontar o reconhecimento de que a Matemática desempenha um valioso e importante papel social, influenciando nossas ações e decisões cotidianas. Preocupa-se com o desenvolvimento de cidadãos capazes de pensar, de agir e de tomar decisões autonomamente, dentro ou fora do ambiente de aulas de Matemática, a partir da valorização e da prática de um ambiente em que a comunicação em sala de aula assuma um papel preponderante. Ademais, salienta-se que nas dimensões da construção do conhecimento matemático inevitavelmente perpassa-se pela comunicação e pela argumentação para, enfim, validar ou não o conhecimento construído. É essa trama dialógica que é o eixo de interesse da Educação Matemática Crítica. Afinal, que tipo de diálogo comumente se estabelece nas aulas de Matemática? É um diálogo democrático? Como se pode construir um diálogo para a construção de um conhecimento presente no contexto sociocultural do estudante diante do conhecimento matemático milenar construído historicamente pela humanidade?

Tais questões ressoam de forma crítica, exigem respostas sólidas e práticas e se apresentam como desafios à prática docente. Exige radicalidade e comprometimento com libertação dos homens, dos excluídos, sem temer o enfrentamento, a dialogicidade, o desvelamento do mundo e o encontro revolucionário com o povo e com os aprendizes de todos os dias dos cotidianos escolares (FREIRE, 2000).

3 A ETNOMATEMÁTICA E A AÇÃO CULTURAL FREIREANA

A Etnomatemática tem suas origens ligadas aos movimentos de Educação Popular desenvolvidos na África e na América Latina a partir da década de 1960. Sua idealização e sua consolidação como um programa de pesquisa sofreram ampla influência do pensamento político-pedagógico de Paulo Freire, com o qual se afirmou na ênfase de uma politicidade à educação, pela sua não neutralidade e pelo seu papel fundamental na construção de uma sociedade mais justa e igualitária no âmbito da Educação Matemática (KNIJNIK, 2003).

D’Ambrosio (1998), pesquisador brasileiro reconhecido internacionalmente como aquele que cunhou o termo Etnomatemática, conceituou-a partindo da própria etimologia da palavra, destacando que etno refere-se ao contexto cultural, matema sendo entendida como raiz que se direciona a explicar, conhecer e entender e tica sendo proveniente do termo techne, que possui a mesma raiz de arte e de técnica. Assim, pode-se afirmar que Etnomatemática é a arte ou a técnica de explicar, de conhecer e de entender os fatos e os fenômenos matemáticos e do mundo nos diversos contextos culturais. Nessa busca de explicar, de conhecer e de entender o mundo, naturalmente a Etnomatemática mergulha-se num contexto etnográfico e numa análise histórica. É um processo que parte da realidade à ação cultural. Esse programa assemelha-se de sobremaneira com a metacognição, lidando diretamente com o processo de aprendizagem sob um enfoque fundamentalmente holístico.

D’Ambrosio (1985b, p. 47, apud GERDES, 1996, p. 3), ao contrário da Matemática Acadêmica, aquela que é ensinada e aprendida nas escolas, chama “Etnomatemática à Matemática que é praticada em grupos culturais identificáveis, tais como as sociedades nacionais-tribais, grupos de trabalho, crianças de uma determinada idade, classes profissionais, etc.”. O autor ainda salienta que previamente antes e fora da escola, quase todas as crianças do mundo tornam-se ‘matematizadas’, isto é, desenvolvem diversas capacidades como o uso de números e de quantidades, além de qualificar e de adquirirem domínio de certos padrões de inferência. O autor ainda propõe o seu programa de Etnomatemática como uma metodologia de descobertas de pistas e de análise dos processos de origem, de transmissão, de difusão e de institucionalização do conhecimento matemático em diferentes e diversos sistemas culturais (D’AMBROSIO, 1985a; 1990, apud GERDES, 1996).

Trabalhos como de Marilyn Frankenstein (1989), de Sharan-Jeet Shane e Peter Bailey (1991) e Sérgio Nobre (1989), apresentam propostas de integração do desenho curricular no momento sociocultural do sistema escolar, que são importantes trabalhos que ressoam e se interagem, através da matemática, com o pensamento de Paulo Freire, ao propor

uma educação crítica e não-alienante; em essência, ver a educação como um ato político, reconhecido e assumido. Na verdade, a postura de Paulo Freire com relação à alfabetização e a ideologia reconhecida por Michel Apple ao introduzir o conceito de currículo oculto trazem, em simbiose, um componente que toca ainda mais de perto o interesse do mundo desenvolvido, que é a crítica ao consumismo implícito. Naturalmente é aí que se manifestam as grandes distorções culturais da Educação Matemática e que nos levam a reconhecer a sua dimensão política (D’AMBROSIO, 1993, p. 13).

Para Freire (2000), o diálogo crítico e libertador supõe ação e o exercício da práxis, na qual ação e reflexão constituem-se uma unidade que fundamentalmente não deve ser dicotomizada. A ação política junto aos oprimidos, aos excluídos, necessariamente deve ser uma “ação cultural” para a liberdade. Na prática problematizadora, vão os educandos desenvolvendo o seu poder de captação e de compreensão do mundo que lhes aparece, não mais como uma realidade estática, mas como uma realidade em transformação, em processo. Ademais,

para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da educação não é uma doação ou uma imposição – um conjunto de informes a ser depositado nos educandos -, mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada (FREIRE, 2000, p. 83-84).

D’Ambrosio (1998, p. 19) elabora alguns pontos de reflexão e focaliza esses pontos a partir de uma questão básica: “Por que se ensina Matemática nas escolas com tal universalidade e intensidade?”. As respostas apontam para uma multiplicidade de razões, que se justificam por uma associação a uma quina de valores: (1) o valor utilitário; (2) o valor cultural; (3) o valor formativo (do raciocínio); (4) o valor sociológico; e (5) o valor estético. A escola valoriza potencialmente o valor formativo, aquele que se associa ao raciocínio e que se apresenta como mais um fator que justifica um ensino pautado numa prática tradicional. Muniz (2000, p. 20) amplia esse panorama ao afirmar que

infelizmente, a escola tem valorizado exclusivamente o valor formativo em detrimento dos demais valores da matemática. Quando o currículo nega os demais valores, ele cria uma disfunção no processo educativo, fazendo com que a matemática seja vista como uma disciplina estritamente escolar, pois o seu ensino nega que o conhecimento seja parte integrante da vida sociocultural do sujeito.

A eleição de tais valores no processo educativo implica na necessidade de uma vasta revisão curricular, com a adesão de novas disciplinas. O currículo se apresenta como uma estratégia da ação pedagógica. A reorganização dos sistemas escolares visa: (1) instrumentar o aluno; (2) facilitar sua socialização; e (3) dar-lhe conhecimento. Essas considerações apontam para as implicações pedagógicas da proposta do programa de investigação em Etnomatemática, na necessidade do reconhecimento e incorporação do programa no currículo escolar. (D’AMBROSIO, 1998; GERDES, 1996).

Para Freire (2000, p. 86),

será a partir da situação presente, existencial, concreta, refletindo o conjunto de aspirações do povo, que poderemos organizar o conteúdo programático da educação ou da ação política. O que temos a fazer, na verdade, é propor ao povo, através de certas contradições básicas, sua situação existencial, concreta, presente, como problema que, por sua vez, o desafia e, assim, lhe exige resposta, não só no nível intelectual, mas no nível da ação.

Knijnik (2003) descreve e analisa um estudo realizado em um assentamento do Movimento Sem-Terra (MST) do Rio Grande do Sul em 1998, cujo foco principal fora as conexões entre a Educação Popular e a Etnomatemática. A autora focalizou as repercussões de um projeto pedagógico, que teve como base as atividades produtivas da comunidade (especificamente o cultivo de alface), examinando as inter-relações estabelecidas pelos atores sociais envolvidos no processo: uma professora de Matemática e alunos da 7ª série da escola do assentamento, famílias assentadas e o agrônomo que realiza o acompanhamento técnico. Um dos principais fundamentos existentes entre o trabalho em Etnomatemática desenvolvido no projeto e a Educação do MST foi tecido através do pensamento freiriano, sobretudo a respeito à valorização da cultura popular. Conforme Freire apontara em seus primeiros trabalhos de Educação Popular, a forma como as pessoas produzem significados, passam a compreender o mundo, vivendo sua vida cotidiana, abarcando elementos essenciais e centrais do processo educativo. Buscou-se construir um projeto pedagógico centrado numa “negociação cultural” sustentada por uma “criação de nexos entre as formas do conhecimento formalizado e as do saber comum e as atuações derivadas deles” (Mejia, 1998a, p. 29, apud KNIJNIK, 2003, p. 106).

Toda ação cultural tem suas raízes teóricas, determinando seus fins e delimitando seus métodos. A ação cultural ou está a serviço da dominação ou a serviço da libertação dos homens. Pretende-se com a ação cultural dialógica transformar radicalmente a realidade (FREIRE, 2000). A busca natural de explicar, de conhecer e de entender a realidade na qual os sujeitos se encontram mergulhados leva-os a sede compulsiva do saber, para esclarecer a ordem cósmica e natural, impactando-os em direção a uma ação incessante. É em torno dessa tríade de componentes essenciais – realidade, indivíduo e ação – que se encontram as nossas reflexões e onde se assentam subsídios teóricos e práticos que convergem a Etnomatemática e a “ação cultural” proposta por Freire (D’AMBROSIO, 1998).

4 PAULO FREIRE E A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA: UM OLHAR CRÍTICO SOBRE A FORMAÇÃO DO PROFESSOR

Para nortear a elaboração de alguns aspectos de reflexão a essa investigação, no que tece à formação de professores de Matemática, a partir de um olhar crítico do pensamento freiriano e da Educação Matemática, toma-se como referência a pergunta de pesquisa de Forner (2005, p. 13): “quais as contribuições da teoria de Paulo Freire para a formação de professores de Matemática, segundo pesquisadores da área de Educação Matemática?”. Ampliando tal delimitação do questionamento, pergunta-se ainda: que contribuições podem ser elencadas de pesquisadores, de diferentes áreas do conhecimento e que investigam a formação de professores, que podem subsidiar as investigações em Educação Matemática contrastadas ao pensamento de Paulo Freire?

Vasconcellos (2007) desenvolve uma reflexão sobre a competência docente numa perspectiva freiriana, considerando seis eixos temáticos intrinsecamente significativos em sua obra: educação, conhecimento, liberdade, projeto/política, amor e formação.

Para Freire (1986, apud VASCONCELLOS), a educação categoricamente corresponde ao processo de humanização. Freire trata, com profunda rigorosidade, ao que ele considera como um dos pilares fundamentais e básicos da prática docente: o trabalho com o conhecimento. Na busca de uma melhor compreensão do mundo e do processo educativo, ressalta-se, ontologicamente, que os seres humanos são fundamentalmente seres de liberdade, de escolhas, além do desejo e da consciência. Não há neutralidade e a realidade em movimento exige ininterruptamente nossos posicionamentos. A liberdade é um dos maiores desejos do ser humano e a autonomia constitui-se a partir dos espaços vitais de liberdade. O papel fundamental dos educadores nos dias de hoje é de resgatar a dinâmica de projetar e de transformar e oportunizar a construção de projetos de existência por parte dos educandos, convidando-os para estarem com gosto do mundo. O amor é a base da existência do ser humano. Tal assertiva, aparentemente pouco científica, promove profundas repercussões na educação, sobretudo para aqueles que optam pela inclusão escolar e social e que assumem a tarefa humanizadora no ambiente escolar.

Analisando os cinco primeiros eixos temáticos apontados pelo autor, percebe-se que todos convergem para o sexto eixo temático: a formação. Cuidar de sua própria formação é tarefa primordial de todo educador. Vasconcellos (2007, p. 6) amplia essa perspectiva ao afirmar que

temos a convicção de que, para se mudar a educação, o professor tem um papel absolutamente fundamental, isto é, qualquer que seja a alteração a ser feita, passa necessariamente por ele.  Por isto o docente tem de ser cuidado, resgatado em seu valor e dignidade.  Este resgate implica os aspectos básicos como salário, condições de trabalho, valorização social. Um outro elemento muito relevante é a formação.   Pela assertiva logo acima de Freire, fica clara a compreensão de que a competência não é algo inato. O professor melhor formado pode desempenhar muito mais adequadamente sua atividade de mediar a aprendizagem e desenvolvimento humano de todos os seus alunos, no horizonte de um projeto libertador.

Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Matemática (BRASIL, 1998, apud FORNER, 2005), a formação do professor é um dos maiores obstáculos, relacionados ao ensino, a serem superados pelo Brasil, em função da carência de uma formação qualificada, seja ela inicial ou continuada, a fim de que permita um bom exercício da docência. Algumas distorções são elencadas nesse documento, como a desconsideração do conhecimento prévio do aluno, privando-o da riqueza de conteúdos construídos pela sua experiência sociocultural. Valorizam-se, assim, os aspectos formativos do conhecimento matemático (aqueles ligados ao raciocínio), consolidando a Matemática como uma disciplina rigidamente escolar e negando uma possível “transposição didática”6 entre o conhecimento escolar e o conhecimento cotidiano.

D’Ambrosio (1998, p. 83, apud FORNER, 2005, p. 52) realça essa análise ao afirmar que “há inúmeros pontos críticos na atuação do professor, (…) falta de capacitação para conhecer o aluno e obsolescência dos conteúdos adquiridos nas licenciaturas”. O autor apresenta quatro características que os professores devem assumir no século XXI: (1) visão do que é a Matemática; (2) visão do que constitui a atividade matemática; (3) visão do que constitui a aprendizagem matemática; e (4) visão do que constitui um ambiente propício à aprendizagem matemática.

A Pedagogia da Autonomia proposta por Freire (2002, p. 32) aponta que ensinar exige pesquisa. “Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino”. A insistência de que o professor assuma o papel de professor-pesquisador faz parte da própria natureza da prática docente, que se instrumentaliza pela indagação, pela busca e pela pesquisa. O que significa cuidar de sua formação permanente.

O papel do professor dialógico envolve investigação naquilo que intencionalmente propõe. Envolve investigação de seu próprio pensar (metacognição) e do próprio pensar do povo, dos educandos. Quanto mais se investiga o pensar do povo, dos educandos, com eles, tanto mais se educam em comunhão. Quanto mais se educam juntos, tanto mais se continua investigando (FREIRE, 2000). O processo educativo é um continuum, um exercício dinâmico, que exige um permanente repensar e de um reconstruir, sejam eles na prática sejam eles na reflexão. O exercício da práxis pedagógica também é fruto, sobretudo, da formação permanente docente.

Poletini (1999, apud FORNER, 2005) sugere alguns aspectos que possam contribuir nos cursos de licenciatura de Matemática: (1) oportunizar reflexões entre presente e passado; (2) oportunizar a discussão do conhecimento do conteúdo, como lecioná-los, e do conhecimento do currículo; (3) propiciar trabalhos colaborativos que envolvam discentes e docentes; (4) proporcionar experiências com escolas do Ensino Básico; e (5) incentivar a discussão sobre a Educação Matemática.

Cabe-nos refletir sobre como é realizada a formação do professor diante do conhecimento matemático construído historicamente pela humanidade, do conhecimento matemático que envolve as atividades cotidianas e dos fenômenos que o cercam, do conhecimento sobre o aprendiz diante de seus aspectos biopsicossociais e do conhecimento dos processos de aprendizagem e das práticas pedagógicas (FORNER, 2005).

Forner (2005, p. 57) aponta que

a proposta de Freire para a formação de professores resume-se em escolher os conteúdos programáticos através de uma investigação sobre as temáticas significativas e a visão de mundo do professor quanto a estas temáticas, onde a voz do aluno seja ouvida, onde prevaleça a escuta e o diálogo.

Segundo Fiorentini e Costa (2002), para consolidação do processo de formação e constituição profissional do professor tomam-se como base duas perspectivas interdependentes: uma na esfera pessoal e outra na esfera sociocultural. A primeira atende uma aspiração ou desejo de querer ser professor. A outra diz respeito aos programas e às instituições de formação do professor, os quais se constituem num conjunto de práticas e saberes como fundamentos básicos à formação profissional do professor. Não é possível existir a formação pessoal sem a concomitante formação social.

Ressalta-se ainda que a perspectiva acadêmica de formação de professores é a vertente mais comum, a qual, segundo Marcelo Garcia (1999, p. 33, apud FIORENTINI; MATOS, 2002, p. 313),

enfatiza o papel do professor como especialista numa ou em várias áreas disciplinares, sendo o objetivo fundamental na formação de professores o domínio do conteúdo. A formação de professores consiste, portanto, no processo de transmissão de conhecimentos científicos e culturais de modo a dotar os professores de uma formação especializada, centrada principalmente no domínio dos conceitos e estrutura disciplinar da matéria em que é especialista.

Sem sombras de dúvida, há de considerar como parte fundamental e essencial da formação do professor o domínio conceitual do conteúdo de ensino. O problema reside na supervalorização do domínio enciclopédico e técnico-formal da disciplina por significativa parte de formadores de professores, em detrimento da formação didático-pedagógica. Nesse sentido, tais formadores estabelecem um enfoque prático-academicista, na crença de que para ser um “bom” professor de Matemática basta “saber bem” o conhecimento matemático. Aprender a ensinar é um processo que se adquire com tempo, através da prática e da experiência (FIORENTINI; COSTA, 2002).

Vasconcellos (2007, p. 7) amplia essa análise, ao afirmar que

a formação do professor é uma demanda constante. Cada vez mais ganhamos clareza que a formação inicial não é absolutamente suficiente para dar conta dos desafios que o docente enfrenta no seu cotidiano. Se a formação ao longo da vida é uma exigência em qualquer campo profissional, o é em especial no caso do professor.

Nesse interim, a Educação Matemática, como campo científico, tem enorme importância na constituição profissional do professor de Matemática. Pautá-la no necessário debate referente à formação do professor aponta-nos como indicativo premente em sua inclusão nos currículos acadêmicos dos cursos de licenciatura de Matemática. É a Educação Matemática, a partir de organizações como a Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM), que pode contribuir de forma significativa na consolidação de um discurso e de uma prática em que o professor se identifique e se reconheça como profissional. A formação permanente do professor de Matemática passa-se pela sua gestão de sala de aula e exige a inauguração de novas formas de como lidar e de como mediar o conhecimento matemático. Essa dimensão comunga com o pensamento crítico de Freire (2000), que se apresenta fortemente alinhado aos aspectos fundantes da Educação Matemática, ao afirmar categoricamente que o ser humano é um ser inacabado, inconcluso. Assim sendo, evidencia-se que o desenvolvimento profissional docente se estabelece durante toda sua trajetória de atuação profissional, não se restringindo apenas à sua formação inicial, na exigência de uma permanente atualização que responda às diversas mudanças sociais na contemporaneidade.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desse trabalho foi vincular o pensamento político-pedagógico de Paulo Freire aos aspectos que fundamentam a Educação Matemática. A possível integração entre os dois polos dessa investigação tomou como referência três obras de Freire (Educação como Prática de Liberdade, Pedagogia do Oprimido e Pedagogia da Autonomia), em contraste com a Educação Matemática Crítica, a Etnomatemática e a partir de pesquisas que versam sobre a formação de professores, sobretudo de Matemática. Pode-se afirmar que esse objetivo foi alcançado, uma vez que foi apresentada uma forte articulação entre os aspectos que fundamentam o pensamento freireano com as concepções e programas/campos de pesquisa relacionados à Educação Matemática.

O percurso investigativo apontou para uma significativa correspondência histórica e demonstrou surpreendentemente o quanto o pensamento político-pedagógico de Paulo Freire se relaciona com estudos e com as pesquisas que versam sobre a Educação Matemática.

Verificou-se que há uma escassez de pesquisas que relacionem e que vinculem a obra valiosa de Paulo Freire com os sólidos fundamentos da Educação Matemática. Nesse sentido, a proposta temática dessa investigação é um campo aberto e fértil para novas investigações. É salutar e importante a realização de pesquisas tanto com professores quanto com instituições de formação de professores de Matemática, de sobremaneira aos currículos que regem tais cursos, para que se possa verificar e aprofundar as percepções e as distorções que ora possam ser apresentadas na realidade do momento sociocultural dos sistemas escolares. Cabe verificar até que ponto os pressupostos da Educação Matemática ressoam nos ambientes de sala de aula e na atuação profissional dos professores de Matemática, além de como se inscreve concreta e conjuntamente o pensamento político-pedagógico de Paulo Freire em tal contexto.

Alguns elementos se destacam entre os dois polos dessa investigação de forma contundente: a importância da dialogicidade/comunicação e do oportunizar um ambiente democrático de aprendizagem; a necessidade do compartilhamento de experiências; a necessidade do rompimento com as estruturas tradicionais e a inauguração de novas formas de mediação do conhecimento matemático.

Tanto a Educação Matemática Crítica como a Etnomatemática se mostraram aliadas e fundamentadas com o pensamento político-pedagógico de Paulo Freire, no que se refere ao “desafio de nosso tempo”, que indicam as “responsabilidades sociais da comunidade científica, tanto na iniciação quanto na aplicação da pesquisa” (D’AMBROSIO, 1998, p. 24). Skovsmose (2006) enfatiza que a Educação Crítica e a Educação Matemática podem de fato ser integradas, tornando a Educação Matemática uma Educação Crítica, permitindo que a Educação Crítica seja novamente crítica. Nesse sentido, há de considerar que o pensamento político-pedagógico de Freire está cada vez mais vivo e atual.

A formação de professores de Matemática, seja inicial ou continuada, se apresenta como um grande desafio. Explicita e determinantemente ficou ressaltado, nessa investigação, que somente a formação inicial como professor não é suficiente para adquirir uma boa competência docente. É característica fundante da própria profissionalização como professor a permanente formação docente. Assim sendo, o que rege como fundamento primordial à profissão docente é o “aprender sempre”, conforme preconiza Freire. Ademais, “ninguém começa a ser educador numa certa terça-feira às quatro a tarde. Ninguém nasce educador ou marcado para ser educador. A gente se faz educador, a gente se forma, como educador, permanentemente, na prática e na reflexão sobre a prática (Freire, 1991, p. 58, apud VASCONCELLOS, 2007, p. 6).

A discussão levantada no presente estudo pode ajudar agentes educacionais a refletirem sobre as práticas rotineiras em sala de aula. A articulação entre os temas aqui tratados pode também servir de substrato para uma atuação mais direcionada ao desenvolvimento da prática docente, habilidade social fundamental que necessariamente se depara e luta com as incertezas do mundo de hoje, que se apresenta em permanente movimento.


2Mestre em Matemática e Filosofia pela Universidade de Copenhagen (1975) e doutor em Educação Matemática pela Royal Denish School of Educational Studies (1982). É diretor do Centro para a Pesquisa sobre a Aprendizagem da Matemática, professor da Universidade de Aalborg e diretor de diversos centros e programas de pesquisa voltados para Educação Matemática na Dinamarca.
3Professor titular de Matemática da Universidade de Campinas (Unicamp).
4Chama-se contrato didático o conjunto de comportamentos do professor que são esperados pelos alunos e conjunto de comportamentos dos alunos que são esperados pelo professor (…). Esse contrato é o conjunto de regras que determinam uma pequena parte explicitamente, mas sobretudo implicitamente, o que cada parceiro da relação didática deverá gerir e aquilo que, de uma maneira ou de outra, ele terá de prestar conta perante o outro (Brousseau, 1986, apud SILVA, 2002, p. 43
5Apoiado no trabalho de Paulo Freire, Skovsmose (2001, apud ALVES; MATOS, 2006) aponta a matemacia como a competência de lidar com noções matemáticas, aplicar essas noções em diferentes contextos e refletir sobre essas aplicações.
6A primeira definição de transposição didática feita por Chevallard (1991, p. 39, apud PAIS, 2002, p. 16) foi descrita como sendo “um conteúdo do conhecimento, tendo sido designado como saber a ensinar, sofre então um conjunto de transformações adaptativas que vão torná-lo apto a tomar lugar entre os ‘objetos de ensino’. O ‘trabalho’, que de um objeto do saber a ensinar faz um ‘objeto do ensino’, é chamado de transposição didática”.


6 REFERÊNCIAS

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1Doutorando e mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (FE/UnB). Professor de Matemática da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF), Brasília, Distrito Federal, Brasil. E-mail: valdirsodre@gmail.com.