O PAPEL DO TERCEIRO SETOR NA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS: SOCIEDADE CIVIL, ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS EM PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202510081351


José Pinheiro Barbosa Neto¹
Erica Verícia Canuto De Oliveira Veras²


RESUMO

A Constituição Federal de 1988 consagrou um marco paradigmático ao reconhecer os direitos sociais como fundamentais, vinculando-os ao princípio da dignidade da pessoa humana. Contudo, diante da fragilidade estrutural do Estado brasileiro, marcada por restrições orçamentárias e ineficiência na execução de políticas públicas, emerge o Terceiro Setor como ator estratégico na promoção da cidadania e no enfrentamento das desigualdades. Este artigo tem por objetivo analisar, sob perspectiva jurídico-dedutiva, o papel das organizações da sociedade civil na efetivação dos direitos sociais. Com base em revisão bibliográfica e análise normativa da Constituição e da Lei nº 13.019/2014, investigam-se os contornos legais, as experiências exitosas e os limites da atuação do Terceiro Setor no Brasil. A partir de casos concretos nas áreas de saúde, educação e assistência social, evidenciam-se contribuições significativas à universalização de direitos, especialmente onde a presença estatal é insuficiente. Contudo, também se reconhecem desafios como a dependência de financiamento, fragilidades na prestação de contas e o risco de substituição indevida da responsabilidade estatal. O estudo conclui que o Terceiro Setor deve atuar como agente complementar ao Estado, e não como seu substituto, reafirmando a centralidade do poder público na garantia dos direitos sociais, ao mesmo tempo em que valoriza a sociedade civil como instância legítima de participação democrática, inovação institucional e controle social.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos Sociais. Terceiro Setor. Sociedade Civil. Constituição de 1988. Políticas Públicas.

1. INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 representou um marco civilizatório ao consolidar os direitos sociais como fundamentais, elevando-os à condição de cláusulas pétreas, inalienáveis e indispensáveis à dignidade da pessoa humana (BRASIL, 1988). Essa transformação constitucional não apenas reconheceu formalmente os direitos sociais — como saúde, educação, moradia, assistência social e trabalho —, mas impôs ao Estado o dever de sua efetivação concreta, dentro dos limites da legalidade e da justiça distributiva. Como pontua Piovesan (2020, p. 48), “a positivação dos direitos sociais na Constituição de 1988 simboliza um compromisso político-jurídico com a igualdade substancial, condição sem a qual a liberdade permanece mera ficção formal”.

Todavia, à medida que o Estado brasileiro se viu diante das limitações orçamentárias, da crise fiscal crônica e da incapacidade de prover universalmente tais direitos, emergiu um novo ator institucional: o Terceiro Setor. Esse conjunto de entidades privadas sem fins lucrativos, voltadas à promoção do bem comum, ganhou protagonismo no cenário das políticas públicas, funcionando muitas vezes como instrumento complementar — e por vezes substitutivo — à atuação estatal (FISCHER, 2022). Segundo Schommer (2021, p. 24), “a atuação do Terceiro Setor deve ser compreendida como uma resposta histórica à retração do Estado e à crescente demanda por participação cidadã na construção de soluções sociais”.

A crise do Estado-providência, especialmente após a década de 1990, catalisou processos de descentralização administrativa e de privatização parcial da gestão de políticas sociais, ampliando o espaço para parcerias entre o poder público e as organizações da sociedade civil. Conforme apontam Couto e Abrucio (2019, p. 13), “o esgotamento da capacidade estatal de prover serviços universais impulsionou a delegação de funções sociais a entidades não estatais, o que redefiniu os contornos do público e do privado na esfera dos direitos sociais”.

Nesse contexto, o presente artigo se propõe a investigar a seguinte questão-problema: de que forma o Terceiro Setor contribui para a promoção dos direitos sociais no Brasil contemporâneo? Para tanto, a abordagem se pauta em uma revisão bibliográfica de autores clássicos e contemporâneos do Direito, da Administração Pública e da Sociologia, buscando interpretar criticamente os limites e as potencialidades do Terceiro Setor como mecanismo de efetivação dos direitos fundamentais sociais.

O objetivo geral desta investigação é analisar o papel do Terceiro Setor como agente colaborador do Estado na promoção e na realização dos direitos sociais previstos na Constituição Federal de 1988. Como objetivos específicos, propõe-se: (a) discutir o conceito jurídico-político de Terceiro Setor e sua inserção no ordenamento jurídico brasileiro; (b) examinar os instrumentos legais que regulam as parcerias entre o Estado e as organizações da sociedade civil, com destaque para a Lei nº 13.019/2014, conhecida como Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil; (c) identificar experiências práticas em que o Terceiro Setor tenha atuado de forma efetiva na promoção de direitos sociais; e (d) problematizar os desafios estruturais e éticos da atuação dessas entidades, sobretudo no que diz respeito à transparência, accountability e controle social.

A relevância jurídica e social do tema reside no fato de que, apesar do avanço normativo proporcionado pela Constituição de 1988, os direitos sociais permanecem como promessas não integralmente cumpridas, sobretudo nas periferias urbanas e em zonas rurais de difícil acesso. Nesse sentido, o Terceiro Setor surge como um ator estratégico para preencher lacunas, articular ações locais, mobilizar capital social e inovar em soluções para antigos problemas públicos (CUNHA, 2021). Como destaca George Salomão Leite (2023, p. 72), “a efetividade dos direitos sociais exige não apenas a ação do Estado, mas uma construção colaborativa entre os diversos sujeitos da sociedade civil organizada”.

Ademais, a relevância científica desta pesquisa se justifica pela necessidade de compreender criticamente os contornos jurídicos que regulam essa atuação, evitando tanto a idealização ingênua do Terceiro Setor quanto a sua demonização como instrumento de terceirização do dever estatal. Em outras palavras, trata-se de examinar os limites normativos e os desafios ético-jurídicos desse modelo de governança compartilhada. Para Santos (2022, p. 91), “é preciso reconhecer a importância da ação coletiva e solidária das organizações sociais, sem perder de vista os riscos da captura privada do interesse público sob a lógica do mercado ou do clientelismo político”.

Não se trata de defender a substituição do Estado pelo Terceiro Setor, mas sim de reconhecer que, no modelo de Estado Democrático de Direito consagrado na Carta de 1988, a sociedade civil possui papel ativo na construção de políticas públicas, principalmente naquelas que visam reduzir desigualdades e promover a justiça social. Tal concepção exige um novo paradigma de participação social, mais horizontal e mais corresponsável. Como afirma Flávia Piovesan (2020, p. 51), “a democratização do Estado pressupõe a valorização da sociedade civil como sujeito de direitos e parceira na implementação de políticas públicas”.

Por fim, o artigo pretende contribuir com o debate contemporâneo sobre a efetivação dos direitos fundamentais em contextos de escassez de recursos, fragmentação institucional e crise de legitimidade dos poderes públicos. A análise proposta visa, portanto, não apenas mapear juridicamente o papel do Terceiro Setor, mas também provocar reflexões sobre sua legitimidade, eficácia e limites no processo de concretização dos direitos sociais no Brasil.

2. REFERENCIAL TEÓRICO

2.1. Direitos Sociais na Constituição Federal

A Constituição Federal de 1988 instituiu um novo paradigma jurídico ao consolidar o Estado Democrático de Direito como modelo de organização política comprometida com a dignidade da pessoa humana e com a promoção da justiça social (BRASIL, 1988). Nesse escopo, os direitos sociais, elencados no artigo 6º da Carta Magna, são elevados à categoria de direitos fundamentais, compondo o núcleo duro da cidadania substantiva. Como ensina Sarlet (2023, p. 119), “os direitos sociais deixam de ser apenas programas ou metas estatais e assumem o estatuto de obrigações jurídicas com pretensão de exigibilidade”.

A inclusão de direitos como educação, saúde, alimentação, moradia, trabalho, lazer, segurança e previdência social no texto constitucional reflete uma concepção ampliada de cidadania, na qual o mero reconhecimento formal não é suficiente, sendo imprescindível a sua concretização material. Conforme aponta Comparato (2019, p. 97), “o ordenamento jurídico brasileiro acolheu uma noção ética da justiça, vinculada ao ideal de igualdade substantiva, que exige políticas públicas de inclusão social e superação das desigualdades históricas”.

Além disso, o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição, opera como fundamento axiológico e hermenêutico de todo o sistema normativo. Esse princípio impõe ao Estado a obrigação de assegurar condições mínimas de existência digna para todos os cidadãos, o que somente se realiza por meio da efetivação concreta dos direitos sociais (PIOVESAN, 2020, p. 55). Assim, não há efetiva dignidade sem direitos sociais implementados, e não há justiça social sem o comprometimento institucional com a redução das desigualdades estruturais que marcam a realidade brasileira.

2.2. O Estado e a Efetividade dos Direitos Sociais

Apesar do avanço normativo representado pela Constituição de 1988, a implementação dos direitos sociais enfrenta severos obstáculos estruturais. O Estado brasileiro, atravessado por crises fiscais recorrentes, enfrenta limitações orçamentárias que comprometem a alocação adequada de recursos para políticas sociais universais (GIACOMONI, 2021, p. 66). Tal cenário é agravado por uma burocracia ineficiente, marcada por rigidez institucional e lentidão administrativa, que por vezes inviabiliza respostas ágeis às demandas sociais.

A partir da década de 1990, o ideário neoliberal passa a influenciar decisivamente as reformas estatais, promovendo a redução do papel do Estado como provedor direto de serviços e incentivando modelos de gestão baseados em eficiência, privatização e terceirização (SANTOS, 2022, p. 104). Essa mudança de paradigma impacta diretamente a efetividade dos direitos sociais, ao deslocar parte da responsabilidade pela sua execução para entes privados e organizações da sociedade civil. Como pontua Bresser-Pereira (2020, p. 41), “a reforma do Estado no Brasil incorporou a lógica da subsidiariedade, segundo a qual o Estado apenas interviria quando os demais agentes sociais se mostrassem incapazes de agir”.

Contudo, essa descentralização da prestação de serviços sociais, se por um lado busca aproximar a gestão das necessidades locais, por outro levanta questionamentos quanto à universalidade, equidade e controle democrático das políticas públicas. Segundo Abrucio (2019, p. 23), “a descentralização não pode ser confundida com desresponsabilização; é preciso que o Estado continue como garantidor último dos direitos sociais, mesmo que a execução seja compartilhada”. Assim, a tensão entre escassez de recursos, pressões neoliberais e o dever constitucional de efetivar direitos exige novas formas de governança pública e articulação entre os diversos setores sociais.

2.3. O Terceiro Setor e Sua Função Social

É nesse cenário de insuficiência estatal e crescente complexidade social que emerge o chamado Terceiro Setor, um campo de atuação formado por organizações privadas, sem fins lucrativos, que visam a promoção do bem público. Do ponto de vista jurídico, essas entidades são caracterizadas pela autonomia administrativa, ausência de distribuição de lucros e finalidade social, atuando de forma complementar ao Estado (LEITE, 2023, p. 82). Sociologicamente, o Terceiro Setor é compreendido como um espaço híbrido entre o público e o privado, onde a solidariedade e a participação comunitária se articulam com a racionalidade institucional (FISCHER, 2022, p. 56).

A função social do Terceiro Setor ganha relevo quando observamos sua capacidade de capilarização territorial, inovação na gestão de projetos sociais e mobilização de capital social. Essas características o tornam um agente relevante para a execução de políticas públicas voltadas à efetivação dos direitos sociais, especialmente em áreas de difícil alcance estatal. Como destaca Schommer (2021, p. 28), “o Terceiro Setor não apenas executa ações sociais, mas também exerce pressão política e participa da formulação de políticas, sendo vetor de democratização e participação cidadã”.

A atuação das organizações da sociedade civil foi regulamentada pela Lei nº 13.019/2014, conhecida como Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC), que estabeleceu critérios de parceria com o poder público, reforçando os princípios da legalidade, eficiência, transparência e controle social. Essa norma fortalece o vínculo jurídico entre o Estado e o Terceiro Setor, ao mesmo tempo em que responsabiliza ambas as partes pela boa gestão dos recursos e pelos resultados sociais pactuados (BRASIL, 2014). Conforme Cunha (2021, p. 111), “o MROSC representa um avanço na institucionalização das parcerias entre Estado e sociedade civil, ao delimitar os papéis e os deveres de cada ator no processo de promoção dos direitos sociais”.

As principais formas institucionais do Terceiro Setor incluem organizações não governamentais (ONGs), fundações privadas, associações civis, institutos e cooperativas sociais, todas legalmente constituídas e voltadas à atuação em áreas como educação, saúde, cultura, assistência social e meio ambiente. Entretanto, sua atuação exige monitoramento contínuo para evitar desvios de finalidade e para assegurar que o interesse público prevaleça sobre interesses privados disfarçados de filantropia (BOBBIO, 2020, p. 138). Portanto, a função social do Terceiro Setor está diretamente ligada à sua legitimidade, que se sustenta na confiança pública, na transparência de sua atuação e no compromisso com a justiça social.

3. METODOLOGIA

A construção teórico-analítica deste artigo apoia-se no método dedutivo, escolhido por sua pertinência à investigação jurídico-normativa, em que se parte de premissas gerais sobre o ordenamento constitucional e infraconstitucional para compreender, de modo progressivo, a atuação do Terceiro Setor na efetivação dos direitos sociais. O método dedutivo, segundo Marconi e Lakatos (2017, p. 85), “permite raciocinar logicamente a partir de princípios gerais, estabelecendo conexões racionais entre normas, doutrinas e fenômenos jurídicos observados”. A escolha desse método coaduna-se com a própria estrutura dogmática do Direito, que demanda consistência lógica na articulação entre normas e princípios.

A técnica de pesquisa adotada foi a revisão bibliográfica sistemática, o que possibilitou o mapeamento, seleção e análise crítica de uma gama representativa de obras doutrinárias, artigos acadêmicos e documentos institucionais sobre o tema em pauta. Conforme afirmam Gil (2019, p. 42) e Lakatos (2017, p. 99), a revisão bibliográfica não apenas fundamenta teoricamente o objeto de estudo, mas também permite identificar os principais debates, lacunas e perspectivas de análise existentes na literatura. Essa abordagem assegura à pesquisa um diálogo interdisciplinar, com ênfase em autores do campo jurídico, político e sociológico, como Flávia Piovesan, Rosa Maria Fischer, George Salomão Leite, Norberto Bobbio, Boaventura de Sousa Santos, entre outros.

No plano dos instrumentos de análise, optou-se pela investigação normativa e doutrinária. A análise normativa compreendeu o exame detalhado da Constituição Federal de 1988, notadamente seus dispositivos relacionados aos direitos fundamentais sociais (art. 6º, art. 196, art. 203, art. 205) e ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Também foram exploradas leis infraconstitucionais, com destaque para a Lei nº 13.019/2014, que institui o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC), disciplinando as relações jurídicas entre o Estado e as entidades do Terceiro Setor. Como observa Leite (2023, p. 72), o estudo da legislação é indispensável para compreender os limites jurídicos e operacionais da atuação das organizações civis na esfera pública.

Em complemento, a análise doutrinária serviu como instrumento de interpretação crítica da normatividade, permitindo examinar a jurisprudência, os princípios constitucionais e os elementos sociopolíticos subjacentes às relações entre Estado, sociedade civil e Terceiro Setor. A produção científica analisada compreende tanto a doutrina clássica quanto autores contemporâneos que contribuem para o debate sobre direitos sociais, participação social e governança pública. Piovesan (2020, p. 59), por exemplo, fornece arcabouço teórico robusto para entender o papel da sociedade civil na efetivação de direitos fundamentais em contextos de desigualdade estrutural.

A abordagem metodológica adotada também considera as contribuições da sociologia jurídica, sobretudo no que se refere à interface entre direito e transformação social. A escolha por incluir autores como Boaventura de Sousa Santos (2022, p. 101), que propõe uma crítica à razão legal formalista e uma valorização dos saberes e práticas sociais, amplia a compreensão do Terceiro Setor não apenas como executor técnico, mas como ator político com potencial transformador. Tal perspectiva fortalece o argumento de que a atuação das organizações da sociedade civil deve ser interpretada dentro de uma lógica de corresponsabilidade democrática, e não meramente subsidiária ou instrumental.

Cabe ressaltar que, por se tratar de uma pesquisa jurídica de cunho teórico-reflexivo, não foram utilizados instrumentos de natureza empírica ou quantitativa. A ausência de entrevistas, questionários ou análise estatística justifica-se pelo objetivo central do trabalho: desenvolver uma fundamentação crítica, normativa e conceitual sobre o papel jurídico e político do Terceiro Setor na promoção dos direitos sociais. Conforme destaca Dworkin (2020, p. 39), “o Direito não se limita à aplicação de regras, mas envolve a interpretação de princípios, valores e estruturas institucionais que compõem o ethos de uma sociedade democrática”.

A delimitação temporal da pesquisa concentra-se no período pós-Constituição de 1988 até os anos recentes, com ênfase nos marcos legais e institucionais consolidados nas últimas duas décadas. Essa delimitação permite avaliar tanto a evolução jurídica do Terceiro Setor quanto as transformações na relação entre Estado e sociedade civil, especialmente após a promulgação da Lei nº 13.019/2014. Como observam Couto e Abrucio (2019, p. 17), os novos instrumentos jurídicos de parceria e controle social representam um avanço na formalização do papel das organizações civis na esfera pública, ainda que persistam desafios na sua implementação prática.

Além disso, a metodologia adotada observa os princípios da ética na pesquisa, ainda que sem envolver sujeitos humanos. O respeito à produção intelectual, a correta citação das fontes e a verificação da originalidade textual constituem compromissos fundamentais deste trabalho. Em consonância com as diretrizes da CAPES (2022) e com os critérios de integridade científica exigidos pelas revistas jurídicas de alto fator de impacto, a metodologia prioriza o rigor analítico, a clareza argumentativa e a consistência teórica.

Importa destacar, por fim, que a análise foi orientada por uma perspectiva crítica e propositiva, visando não apenas descrever a atuação do Terceiro Setor, mas também identificar seus potenciais normativos, seus limites jurídicos e seus riscos político-institucionais. Essa dimensão crítica é essencial para que o Direito cumpra sua função emancipadora, conforme preconizado por Bobbio (2020, p. 144), ao defender que “os direitos humanos — entre eles os direitos sociais — não são apenas normas postas, mas exigências morais que desafiam a concretude da história”.

Assim, o uso combinado do método dedutivo, da revisão bibliográfica e da análise normativa-doutrinária permite à pesquisa atingir um elevado grau de profundidade teórica e coerência interna. Ao privilegiar fontes consagradas, leis vigentes e autores de relevância nacional e internacional, o estudo assegura sua validade acadêmica e sua potencial contribuição ao campo jurídico-científico.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

4.1. Casos de Sucesso: Experiências de ONGs na área de educação, saúde e assistência

A partir da revisão normativa e bibliográfica conduzida nesta pesquisa, observa-se que o Terceiro Setor tem desempenhado um papel estratégico e crescente na execução de políticas públicas, especialmente em áreas essenciais como educação, saúde e assistência social. Em diversos contextos, organizações não governamentais (ONGs) têm suprido lacunas deixadas pelo Estado, oferecendo serviços com capilaridade territorial, sensibilidade local e capacidade de inovação social. Essa atuação é frequentemente citada como exemplo de “cidadania ativa” e de “governança colaborativa”, conceitos que deslocam o eixo da responsabilidade social do Estado para um modelo compartilhado com a sociedade civil (FISCHER, 2022, p. 89).

Na área da educação, destaca-se o trabalho da Fundação Bradesco, que mantém unidades escolares gratuitas em todo o país, priorizando populações em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Com mais de 40 escolas distribuídas em 24 estados, a instituição atende anualmente cerca de 30 mil estudantes com ensino gratuito de qualidade, contribuindo diretamente para a efetivação do direito à educação, conforme previsto no artigo 205 da Constituição Federal (BRASIL, 1988). De acordo com Cunha (2021, p. 93), “a atuação educacional de organizações da sociedade civil revela um duplo movimento: a democratização do acesso e a experimentação de práticas pedagógicas inovadoras”.

No campo da saúde, experiências como a do GRAACC (Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer) são paradigmáticas. A instituição, fundada em São Paulo, oferece tratamento oncológico gratuito e de alta complexidade, em parceria com o SUS e com financiamento proveniente do setor privado e de doações. Além de promover o direito à saúde, conforme o artigo 196 da CF/88, o GRAACC atua com padrões técnicos elevados e atendimento humanizado, superando em muitos casos a média de qualidade dos serviços públicos. Segundo Leite (2023, p. 127), “a articulação entre eficiência gerencial e sensibilidade social constitui uma das marcas mais evidentes do sucesso de determinadas ONGs”.

No eixo da assistência social, o trabalho da Pastoral da Criança merece menção especial. Atuando em mais de três mil municípios brasileiros, a organização mobiliza lideranças comunitárias voluntárias para acompanhar famílias em extrema pobreza, promovendo ações de combate à desnutrição infantil, incentivo à vacinação e acompanhamento do desenvolvimento infantil. Como afirma Piovesan (2020, p. 61), “a experiência da Pastoral da Criança é exemplo de como redes comunitárias podem reforçar a solidariedade ativa e efetivar direitos sociais sem depender exclusivamente da estrutura estatal”.

Tais exemplos demonstram que o Terceiro Setor, quando bem estruturado, pode contribuir de forma expressiva para o adensamento do tecido social e para a promoção dos direitos fundamentais, agindo como força complementar ao Estado e, ao mesmo tempo, como catalisador de inovação e proximidade com as realidades locais. Para Santos (2022, p. 117), “a sociedade civil organizada, especialmente por meio do Terceiro Setor, tem capacidade de construir novas formas de cidadania, baseadas na prática e não apenas no discurso jurídico”.

4.2. Limites e Desafios do Terceiro Setor

Apesar dos casos de sucesso analisados, a atuação do Terceiro Setor no Brasil não está isenta de desafios estruturais, éticos e jurídicos que comprometem sua legitimidade e sua capacidade de contribuir de forma duradoura e equitativa para a efetivação dos direitos sociais. Um dos principais desafios reside na dependência financeira de fontes públicas ou privadas, o que pode comprometer a autonomia das organizações e gerar instabilidade na continuidade dos projetos sociais (COUTO; ABRUCIO, 2019, p. 21). A vinculação excessiva a repasses estatais, sem garantias de longo prazo, torna muitas entidades vulneráveis a oscilações políticas e orçamentárias.

Adicionalmente, a dependência de grandes empresas e doações privadas impõe um risco de “captura ideológica”, em que os objetivos sociais podem ser redirecionados para atender agendas de marketing institucional ou interesses corporativos. Fischer (2022, p. 97) alerta que “a excessiva vinculação do Terceiro Setor a atores econômicos poderosos pode converter sua missão pública em instrumento de legitimação de práticas empresariais questionáveis”. Isso exige, portanto, um aprimoramento das estratégias de sustentabilidade financeira e uma maior diversificação das fontes de financiamento.

Outro ponto crítico refere-se à fiscalização e à prestação de contas das entidades que compõem o Terceiro Setor. Apesar dos avanços promovidos pela Lei nº 13.019/2014, ainda há um déficit significativo de transparência em diversas organizações, especialmente as de menor porte, que nem sempre possuem estrutura técnica ou jurídica para cumprir rigorosamente as exigências legais de controle e auditoria (BRASIL, 2014). Leite (2023, p. 138) argumenta que “a legitimidade do Terceiro Setor passa pela sua capacidade de demonstrar resultados, garantir accountability e evitar a corrupção ou o uso indevido de recursos públicos”.

Nesse sentido, o papel dos tribunais de contas e dos conselhos de políticas públicas torna-se essencial para assegurar o equilíbrio entre autonomia das entidades e responsabilidade social. A ausência de um sistema de fiscalização coordenado e efetivo fragiliza a confiança pública nas parcerias entre Estado e sociedade civil. Como defende Bobbio (2020, p. 153), “a efetividade do direito pressupõe não apenas a existência da norma, mas a capacidade institucional de garanti-la em face dos desvios e abusos”.

O desafio mais sensível, no entanto, talvez seja o risco de substituição da responsabilidade estatal, que se acentua quando a atuação do Terceiro Setor ultrapassa a lógica da complementaridade e passa a operar como sucedâneo das obrigações públicas. Esse processo, frequentemente justificado sob a ótica da eficiência, pode gerar o esvaziamento das políticas públicas universais, substituindo direitos por serviços condicionados à filantropia e à voluntariedade (SANTOS, 2022, p. 113). Como adverte Piovesan (2020, p. 68), “não se pode permitir que a atuação da sociedade civil sirva de álibi para a omissão estatal; o Estado continua a ser o principal responsável pela garantia dos direitos fundamentais”.

A superposição entre a atuação do Terceiro Setor e as funções típicas do Estado levanta uma série de implicações jurídicas, sobretudo no que diz respeito à universalidade, à gratuidade e à igualdade de acesso aos serviços públicos. Quando organizações da sociedade civil substituem o Estado sem critérios claros e democráticos, corre-se o risco de fragmentação das políticas públicas e de desigualdade regional no acesso aos direitos sociais. Cunha (2021, p. 115) destaca que “a delegação de responsabilidades sociais deve estar ancorada em contratos transparentes, metas pactuadas e mecanismos de avaliação que preservem o interesse público”.

Dessa forma, embora o Terceiro Setor desempenhe um papel relevante na promoção dos direitos sociais, sua atuação deve estar sempre inserida em um marco jurídico claro, com fiscalização efetiva, planejamento estratégico e preservação do princípio da subsidiariedade. É necessário garantir que a atuação das organizações da sociedade civil complemente e fortaleça as políticas públicas estatais, e não que as substitua ou enfraqueça. Como conclui Schommer (2021, p. 35), “o futuro do Terceiro Setor depende de sua capacidade de equilibrar legitimidade social, capacidade técnica e compromisso ético com a justiça social”.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste artigo, ficou evidente que o Terceiro Setor desempenha um papel cada vez mais relevante na consolidação dos direitos sociais no Brasil, especialmente frente aos limites do Estado em prover políticas públicas de forma universal, eficiente e contínua. A atuação das organizações da sociedade civil, ainda que dotada de características próprias, encontra respaldo normativo e funcional no ordenamento jurídico brasileiro, desde que orientada por princípios constitucionais e submetida à lógica do interesse público (BRASIL, 1988). Como bem sintetiza Flávia Piovesan (2020, p. 54), “a construção de uma democracia substancial exige a ampliação da esfera pública mediante o reconhecimento e a valorização de múltiplos sujeitos de direitos”.

Entretanto, é imprescindível destacar que a atuação do Terceiro Setor não pode — e não deve — ser confundida com a substituição do papel constitucionalmente atribuído ao Estado. A responsabilidade pela garantia dos direitos fundamentais sociais permanece sob a tutela do poder público, sendo indelegável na sua essência, ainda que compartilhável em sua operacionalização. De acordo com Santos (2022, p. 92), “a lógica do Estado Democrático de Direito impõe ao ente estatal a função de garantidor universal de direitos, não apenas como executor, mas como formulador e coordenador das políticas públicas”.

Portanto, a relação entre Estado e Terceiro Setor deve ser compreendida como uma aliança estratégica e institucionalmente regulada, baseada na ideia de complementaridade e não de delegação irrestrita. O Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (Lei nº 13.019/2014) é, nesse sentido, uma ferramenta jurídica importante para delimitar os papéis e assegurar os princípios da legalidade, eficiência, economicidade, transparência e controle social (BRASIL, 2014). Leite (2023, p. 129) observa que “o regime jurídico das parcerias do MROSC permite segurança às organizações e previsibilidade à administração pública, ao mesmo tempo em que fortalece os mecanismos de governança democrática”.

Para que a atuação do Terceiro Setor mantenha sua legitimidade e eficácia, faz-se necessária a construção de um ambiente institucional de fomento e suporte, que inclua incentivos fiscais, capacitação técnica, redes colaborativas e financiamento estável. A dependência financeira exclusiva de repasses públicos ou de doações empresariais compromete a autonomia das organizações, dificultando sua sustentabilidade de longo prazo. Fischer (2022, p. 101) salienta que “sem políticas públicas de fomento à sociedade civil, corre-se o risco de tornar o Terceiro Setor refém de interesses privados, comprometendo sua independência crítica e sua vocação social”.

Além disso, a transparência e a prestação de contas devem ser princípios estruturantes de toda e qualquer entidade do Terceiro Setor. A legitimidade social dessas organizações está diretamente vinculada à sua capacidade de demonstrar, de forma objetiva e mensurável, os resultados de sua atuação, bem como de responder publicamente por eventuais desvios ou ineficiências. A fiscalização, nesse sentido, não deve ser encarada como mera burocracia, mas como instrumento de controle democrático e garantia do uso ético dos recursos públicos. Como destaca Bobbio (2020, p. 142), “o Estado de Direito é aquele em que os poderes — estatais ou sociais — se submetem ao controle da legalidade e da moralidade pública”.

A lógica do controle social, consagrada constitucionalmente, exige ainda a participação ativa da sociedade no acompanhamento das ações desenvolvidas por organizações do Terceiro Setor que operam com recursos públicos ou que atuam em nome de demandas coletivas. A criação e o fortalecimento de conselhos paritários, fóruns intersetoriais e observatórios sociais são caminhos concretos para efetivar esse princípio, como já evidenciado por experiências exitosas em diversos municípios brasileiros (CUNHA, 2021, p. 106). Abrucio (2019, p. 24) ressalta que “a coprodução das políticas públicas não se resume à execução, mas também envolve o monitoramento e a avaliação de suas consequências sociais”.

Não se pode esquecer que o Terceiro Setor é composto por uma diversidade heterogênea de atores — ONGs, fundações, associações, institutos, cooperativas sociais — cujas práticas, agendas e competências variam significativamente. Portanto, qualquer generalização sobre sua atuação deve ser evitada, sob pena de se cometer injustiças analíticas e políticas. É fundamental que a crítica à má gestão de algumas entidades não contamine a percepção sobre o potencial transformador de tantas outras. Para Schommer (2021, p. 36), “o desafio está em diferenciar iniciativas genuínas de interesse público daquelas que instrumentalizam a filantropia para fins políticos ou corporativos”.

Nesse sentido, reafirma-se que o papel da sociedade civil organizada vai além da simples execução de serviços. Trata-se de um agente político de incidência, denúncia, proposição e transformação social, cuja força reside na mobilização de saberes locais, na escuta das demandas populares e na promoção de alternativas inovadoras para problemas históricos. Como aponta Boaventura de Sousa Santos (2022, p. 112), “as organizações sociais podem ser espaços de produção contra-hegemônica, capazes de ampliar os horizontes da democracia participativa e pluralista”.

A consolidação dos direitos sociais no Brasil não depende apenas de dispositivos legais ou da boa vontade do Estado. Exige uma cidadania ativa, engajada e informada, capaz de se organizar coletivamente, pressionar os tomadores de decisão e ocupar os espaços públicos de forma propositiva. O Terceiro Setor, nesse cenário, é um dos veículos por meio dos quais essa cidadania se expressa e se concretiza. Piovesan (2020, p. 67) argumenta que “a democratização do Estado pressupõe o reconhecimento da sociedade civil como instância legítima de participação política e de reivindicação de direitos”.

Conclui-se, portanto, que o Terceiro Setor deve continuar a desempenhar um papel essencial na estrutura democrática brasileira, desde que inserido em um ambiente institucional que garanta sua autonomia, fiscalize sua atuação, promova sua sustentabilidade e valorize sua função política. A construção de um sistema de proteção social robusto, inclusivo e equitativo passa necessariamente pela articulação entre Estado, mercado e sociedade civil, cada qual com suas responsabilidades, limites e competências.

Assim, a promoção dos direitos sociais, enquanto tarefa inacabada e permanente, só será possível por meio de uma governança plural, transparente e cooperativa. O Terceiro Setor não é a solução para todos os problemas sociais, mas tampouco pode ser ignorado como ator legítimo e necessário no pacto democrático que sustenta o Estado brasileiro. Como ensina Norberto Bobbio (2020, p. 157), “a realização dos direitos depende não apenas de sua proclamação, mas da vontade política de efetivá-los, da organização social que os exige e dos instrumentos institucionais que os sustentam”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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¹Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN;
²Pós-doutora em Democracia e Direitos Humanos. Doutora em Ciências Sociais, Mestre em Direito e em Ciências Sociais. Promotora de Justiça de Defesa da Mulher. Ex-Coordenadora da COPEVID/GNDH/CNPG.