O NARRAR EM FOCO: UMA ANÁLISE DO NARRADOR NA OBRA SEIS VEZES LUCAS, DE LYGIA BOUNGA NUNES

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11402906


Gabriele de Oliveira Souza1
Prof. Dr. José Helder Pinheiro Alves2


Nas obras de Lygia Bojunga Nunes, o narrador sempre foi um elemento que chamou bastante atenção. Ele não se dedica apenas a narrar e descrever o que acontece com os personagens, visto que traça um itinerário de percepções que são expostas para o leitor, mas que não são claras para o protagonista. Ao fazer isso, ocorre uma espécie de encenação que põe o leitor na trama, tornando-o capaz de visualizar os movimentos da narrativa e compreender a cadência psicológica dos participantes da história. Em Seis vezes Lucas (1995), o narrador, categoria narrativa eleita como objeto de investigação neste artigo, é essencial para construir a percepção do leitor sobre os personagens, e a sua voz chega a ser tão importante quanto a do protagonista. Além disso, também é feito nessa pesquisa uma análise desse elemento narrativo no contexto escolar, através de uma experiência em sala de aula. O estudo contará com o apoio teórico de nomes como Chiappini (1987), Genette (1982) e Booth (1980), que fundamentam a pesquisa com o conceito de narrador, foco narrativo e outras considerações. No âmbito da reflexão sobre as temáticas do enredo, conta-se com Coelho (2000). No que se refere à fortuna crítica da escritora, Sandroni (1987), Silva (1994), e Santini e Rocha (2014) que se dedicaram ao fazer estético de Lygia Bojunga, tornando-se fundamentais para uma maior compreensão de sua obra.

Palavras-chave: Lygia Bojunga. Narrador. Seis vezes Lucas.

ABSTRACT

In the works of Lygia Bojunga Nunes, the narrator has always been a prominent element. The narrator doesn’t merely focus on narrating and describing what happens to the characters; instead, they trace a path of perceptions that are revealed to the reader but not necessarily clear to the protagonist. By doing so, a kind of performance takes place, immersing the reader in the plot, enabling them to visualize the narrative’s movements and understand the psychological rhythm of the characters in the story. In Seis vezes Lucas (1995), the narrator is essential in shaping the reader’s perception of the characters, and their voice becomes as important as the protagonist’s. This study will be supported by theoretical concepts from scholars such as Chiappini (1987), Genette (1982), and Booth (1980), which form the basis for the research, focusing on the concepts of the narrator and narrative perspective, among others. Regarding the thematic analysis of the plot, Coelho (2000) is considered. In terms of the critical reception of the writer, Sandroni (1987), Silva (1994), and Santini and Rocha (2014), who focus on Lygia Bojunga’s aesthetic and critical work, become essential for the analytical process.

Keywords: Lygia Bojunga. Narrator. Seis vezes Lucas.

INTRODUÇÃO

A escrita de Lygia Bojunga[1] é marcada pela variada gama de recursos estilísticos, como a intertextualidade, com uma considerável riqueza e originalidade de metáforas que traçam um caminho simbiótico entre a realidade e a ficção. A sua produção costuma se destacar pela fluência que o enredo tem a partir dos diálogos e monólogos travados pelos personagens no decorrer das histórias, passeando pelos horizontes da imaginação e da realidade, acarretando, através disso, uma significativa interação com o leitor. 

Um ponto que merece destaque são as temáticas contempladas pela autora. Com um total de 22 obras publicadas, Lygia Bojunga passeia por temas que, por muito tempo, foram tolhidos no âmbito do público infantil e juvenil, dentre eles: conflitos familiares, suicídio, abuso sexual, tipos de família, prostituição, violência, abandono de animais, desigualdade social e política. São pontos que permeiam as suas narrativas e apresentam vários caminhos que o leitor pode percorrer para atingir maior perspectiva de sentidos sobre a história.

Ao tratar de temáticas tão pertinentes, Bojunga colabora para com a possibilidade de uma reflexão sobre cada uma delas, não com um teor didático e moralista, pelo contrário, o leitor tem a oportunidade de refletir as múltiplas facetas dos conflitos existentes e também de questionar os seus impactos. Colabora, inclusive, como observa Coelho (2000, p.19), para com a formação de uma “nova mentalidade futura” da sociedade. 

Sandroni (1987) defende que a autora gaúcha desloca-se para a perspectiva da própria criança ou adolescente, assumindo as angústias existenciais da infância diante do adulto, contrapondo a ideia de detentor da “verdade”, possibilitando o surgimento de novos olhares sobre o lúdico, a fantasia e os caminhos de liberdade entre o conhecimento e o mundo infantil. A escrita de Lygia vai passeando pelas várias possibilidades do sentir, unindo a realidade com o imaginário e mantendo o interesse literário do seu leitor pela narrativa.

  A presença da voz da autora no enredo parte também de um viés da ficção, do qual torna-se também um personagem. A exemplo disso, em narrativas comoRetratos de Carolina(2002), a voz de Lygia Bojunga surge como um contraponto para os questionamentos da personagem e também da autora durante o seu processo de escrita. Desse modo, Lygia Bojunga articula, de acordo com a história, o envolvimento existente entre os elementos da narrativa com o enredo, que, de um modo muito sutil, expõe a voz de narrador e mostra para o leitor uma construção narrativa.

Há livros, como Seis vezes Lucas (1995)[2], em que a voz do narrador torna-se tão importante quando a do protagonista e tece, sobre quem lê, um horizonte mais amplo sobre a trama, visto que, o leitor deduz considerações sobre os sujeitos do enredo diante dos conflitos de cada parte do livro. 

A partir dessa percepção, torna-se pertinente traçar o seguinte questionamento: de que modo a voz do narrador em Seis vezes Lucas (2009) auxilia o leitor na construção da percepção dos personagens que compõem o enredo? A fim de responder a essa questão, estabelecemos como objetivo identificar como a voz do narrador constrói junto com o leitor percepções sobre os personagens da narrativa. Entretanto, para chegarmos a essa resposta torna-se necessário apontar como se dão as construções de personagens, como: o Pai, a Mãe, o Timorato, a professora Lenor, os quais mantém relação direta com Lucas, o protagonista. Também pretendemos apresentar a cadência textual que existe na obra em relação ao modo como o narrador descreve esses sujeitos do enredo e, através disso, detectar como se procede a dualidade de percepções sobre os personagens da narrativa – a visão do protagonista versus a visão implícita do narrador.

A narrativa Seis vezes Lucas (2009) não é muito contemplada nos estudos sobre a autora. Deste modo, é uma oportunidade de aprofundar a análise sobre o romance e seus elementos narrativos, além de poder contribuir para com a fortuna crítica da área de literatura, bem como de estudos sobre Lygia Bojunga Nunes.  

O NARRADOR: A VOZ E O PERCURSO NARRATIVO

O narrador é o elemento que compõe a construção da narrativa e cumpre a função de contar uma história, executando a responsabilidade de ser uma das vozes do enredo. Segundo Chiappini (1987), ele “é a voz que narra os acontecimentos, na ficção. Às vezes é personagem, às vezes não.” (p.86).  Esse elemento, por sua vez, pode ser considerado o agente da focalização que afeta a história a ser narrada.

No âmbito dos estudos teóricos da narratologia, Genette (1982) defende que o narrador pode apresentar características e, consequentemente, classificações específicas, como: autodiegético, que consiste em ser a voz que conta a própria história; homodiegético, que é o narrador que vive a história, mas não o protagoniza; heterodiegético, que trata-se daquele que não participa da história que está narrando.

Ainda nesse contexto da imagem do narrador, Lukács (1965), na obra Ensaios sobre a leitura: narrar ou descrever?, argumentou que, no romance, o narrador dito onisciente desempenha um papel crucial. Esse narrador, muitas vezes chamado de narrador de terceira pessoa, tem acesso aos pensamentos e sentimentos dos personagens e pode analisar a sociedade e a condição humana de maneira mais ampla. Isso permite que o romance explore, de certa forma, as profundezas psicológicas dos personagens e a interação deles com o ambiente social.

Por muito tempo, um narrador objetivo foi visto com muito valor. Distante do que discorre o crítico e pesquisador estadunidense Wayne E. Booth, em A retórica da ficção (1980), ao tratar do romance moderno, em que defende a ideia de que os narradores usam ferramentas linguísticas que marcam a subjetividade da narrativa, que permitem toques de envolvimento da voz do narrador na história.  Ao fazer isso, ele pontua a relação narrativa que existe entre contar versus mostrar. O ato de contar consiste em dar pistas para o leitor entender o que o personagem está sentindo. Por outro lado, o mostrar busca fazer o leitor se sentir como o personagem. Booth (1980) questiona essa dualidade e defende que a história narrada traz consigo uma retórica própria, que é construída em detrimento da realidade que existe no interior da ficção através da voz e do discurso do narrador, que independente de desempenhar ou não a função de mostrar, não se priva de apresentar os seus posicionamentos diante da narrativa, contando-os.

Desse modo, o ato de contar deixa de ser uma “ação primitiva”, como defendem alguns teóricos, para ser uma outra atuação de prosseguir uma narrativa.  Entretanto, o narrador, nesse caso, que demonstra o direcionamento de seu olhar, o que Booth (1980) chama de “ponto de vista”, marca o seu lugar na narrativa por meio da seleção de detalhes narráveis. É pertinente pontuar que essas foram críticas feitas ao estruturalismo no final do século XX, logo, determinadas percepções e predominâncias que envolvem a habilidade narrativa são algo que também perpassam por um diálogo temporal da estrutura de um enredo.

No âmbito da Literatura Infantil e Juvenil, chamou-se muita atenção para o modo de narrar de Monteiro Lobato. Por muito tempo, a Literatura para crianças e jovens era composta por um sujeito narrador adulto, com uma posição autoritária, que buscava transpassar lições para o seu leitor a partir das vivências dos personagens no enredo. Com o advento de Monteiro Lobato, percebeu-se que as narrativas apresentadas têm em sua estrutura um narrador mais dialógico, que, ao longo das histórias, narra os acontecimentos, bem como descreve em detalhes o cenário existente em cada um dos textos. Esse narrador, passa a envolver o leitor na história e o desloca para um contato mais íntimo para a trama narrativa do livro.

A partir do final da década de 70 do século XX, surge, no cenário da literatura infantil e juvenil brasileira, uma diversidade de obras que, retomando a linha lobatiana, apresentam características marcadamente emancipatórias. Autores como Ana Maria Machado, Ruth Rocha, João Carlos Marinho, Marina Colasanti, Ziraldo e outros tantos compuseram essa inversão de temáticas mais típicas da literatura infantil e juvenil da época e a sua organização ficcional. Lygia Bojunga situa-se nesse mesmo grupo de escritores que tematizam os problemas da sociedade brasileira contemporânea.

Esse grande número se deu em decorrência da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação Nacional. Por conta dessa lei, tornou-se obrigatória a adoção de livros de autores brasileiros nas escolas, o que gerou o aumento do público leitor e, consequentemente, o aumento de autores com escritos voltados para esse público.

Nesse contexto, que atrela literatura ao ensino, surgem diversas obras com características didáticas, mas também outras tantas com grande capacidade inventiva e transformadora, cujos narradores partem de um teor heterodiegético, como é defendido por Genette (1982), ao passo que também demonstram o direcionamento de seu olhar, o que Booth (1980) chama de “ponto de vista”, que mostram o enredo para o leitor ao passo que também tratam de temas atraentes aos jovens, com linguagem muito próxima do cotidiano e uma considerável carga coloquial. A exemplo disso, tem-se Lygia Bojunga, cujos narradores mantém essa característica inventiva, e corrobora para uma linhagem estilística em suas obras, das quais “o didatismo, o moralismo, a submissão, marca dos textos passadistas, não têm lugar na obra dessa autora.” (SILVA, 1994, p.86).

SEIS VEZES LUCAS: Narrador e personagens

O narrador em Lygia Bojunga executa uma função importante em todas as suas obras, visto que, ele não se dedica apenas ao ato de narrar o que acontece com os personagens, mas busca mostrar para o leitor, com riqueza de detalhes, o que se passa na vida dos sujeitos do enredo. Ao fazer isso, ocorre uma espécie de encenação que põe o leitor na trama, tornando-o capaz de visualizar os movimentos da narrativa e compreender a percepção psicológica dos personagens.

O narrador descreve situações que nem sempre são nítidas para os personagens, isso faz com que o leitor compreenda as camadas da história e se sinta parte, envolvido com o que está sendo lido. Como uma espécie de portal, em Seis vezes Lucas(2009), o narrador transporta o seu leitor para passos à frente do protagonista, e por estar tão próximo da narrativa espera pelo momento em que Lucas conseguirá enxergar o que ele já sabe. Para Santini e Rocha (2024), o narrador de Lygia Bojunga não reconstrói uma história passada porque precisa, antes, vivenciá-la, compreendê-la e, por fim, a compor. Composição e compreensão da realidade são, nesse sentido, atos simultâneos a que se lança o personagem.

               Conforme as classificações para esse elemento, com base nos estudos da narrativa de Genette (1982), o narrador em Seis Vezes Lucas (2009) se classificaria como heterodiegétic. Entretanto, nesse romance, embora não participe da narrativa, ele se aproxima do leitor de modo indireto, costurando um jogo narrativo envolvente na construção de cada capítulo. A exemplo da descrição do momento em que o Pai encontra a professora Lenor pela primeira vez. É perceptível a articulação entre os movimentos do pai e a conversa existente entre os dois personagens:

O Pai não estava com pressa nenhuma de ir embora. Sentou numa carteira e puxou conversa com a Lenor. Quis saber se o Lucas se comportava bem, se tinha talento pras artes plásticas, se o Lucas isso, se o Lucas aquilo. E depois contou pra Lenor que no tempo que ele era criança ele gostava muito de desenhar, mas não tinha tido a sorte de encontrar uma professora feito ela, será que ainda era possível aprender a pintar? (NUNES, 2009, p.68).

Há também uma relação interessante entre a forma que o narrador descreve os familiares do garoto não é a mesma que Lucas enxerga seus pais, a qual diverge do modo como Lucas enxerga seus pais. Há uma idealização por parte do protagonista quando envolve a imagem, sobretudo, paterna do garoto. Isso é perceptível no seguintes trechos da narrativa:

Lucas entrou no quarto e viu o Pai se olhando no espelho. Parou; ficou olhando o Pai se olhar. O Pai pegou a escova e passou ela devagar no cabelo; pegou o pente e penteou o bigode. Alisou o rosto, sentindo na palma da mão a barba bem feita; a mão foi e voltou, foi e voltou na pele lisinha. O Pai então endireitou mais o corpo; puxou o ombro pra trás, pegou a gravata que rodeava o pescoço e sem pressa nenhuma deu o nó. Enforcado assim de seda, ele ficou se olhando comprido. E o Lucas pensou, que bonito que é o meu pai. (NUNES, 2009, p.9)

Para Lucas, a figura paterna era uma referência de beleza, um ideal do que ele queria ser, tanto que, momentos depois, ele busca repetir as mesmas ações do pai ao se arrumar, algo justificado pelo seguinte trecho: O Lucas chegou junto do espelho e ficou olhando. Pegou a escova e alisou o cabelo; abotoou o primeiro botão da camisa e se olhou de perfil. Virou a cabeça pra cá e pra lá, o canto do olho querendo ver de que lado ele se parecia mais com o Pai. (NUNES, 2009, p.13).

Ao traçar esse itinerário comparativo e também de admiração do garoto, o narrador mostra, logo em seguida, uma outra face de Lucas: a da emoção, que é reprimida, na maioria das vezes: “Fez concha na mão, despejou loção dentro. A mão foi se desencharcando na nuca, veio pra bochecha, alisou o queixo. Ouviu a mãe fechando a porta. Ouviu o vento; ouviu a chuva. Foi dando vontade de chorar.” (NUNES, Seis Vezes Lucas, 2009, p.13)

Dentre tantos sentimentos que existiam no protagonista, o do medo e o da angústia eram sempre reprimidos. A vontade de chorar partia do garoto, mas o narrador mostra que era através da imagem do Pai que Lucas evitava o choro, numa tentativa de buscar a sua atenção e, consequentemente, admiração: O Lucas apertou a boca, ele não ia deixar sair o soluço nenhum; apertou o olho: lágrima também não saía, pronto! Ele ia ser um cara pro Pai não botar defeito; ele ia ser um herói! O Pai não tinha dito, herói é quem vence os medos que tem? (NUNES, 2009, p.13)

Ainda se tratando da descrição dos personagens, expressa em detalhes pelo narrador, é também posto à lume uma face do Pai que não é evidente para a criança: a da vaidade

Abotoou o paletó; não gostou; desabotoou; também não gostou; abotoou de novo e agora dessa vez gostou. Estendeu o braço e (sempre se olhando) destapou o vidro de loção, fez concha da mão e pingou loção dentro da concha. Chegou mais junto do espelho pra ver mesmo se era mesmo bem branco o fio de cabelo branco que ele tinha acabado de ver. A mão-concha se juntou na outra; se misturaram bem; uma saiu pra esfregar a nuca, a outra passeou devagar pela cara. Eu estou pronto, o Pai falou. Esbarrou no Lucas: – Ô meu filho, você taí? Diz pra mãe que eu fui tirar o carro da garagem; diz que é pra ela vir logo. (NUNES, 2009, p.10).

Com base no que é descrito no trecho, nota-se que o Pai era, antes de tudo, um sujeito vaidoso. Ao decorrer da narrativa é perceptível, através das descrições do narrador, o quanto esse fato também tinha relação com o seu lado conquistador, há dois momentos no enredo que mostra discussões entre a Mãe do garoto e o seu Pai por conta de seus olhares “diferentes” para outras mulheres:

Lucas acordou com a Mãe e o Pai discutindo na sala. A voz da Mãe vinha toda complicada de choro:

— Não adianta! Você não toma jeito, tá sempre de olho noutra mulher!

— Que outra mulher? A gente não falou com ninguém.

(…)

— Aquela que estava sentada do teu lado! Pensa que eu não vi? O teu braço não parava de roçar no braço dela. (NUNES, 2009, p.24)

Com uma descrição precisa, o narrador evidencia para o leitor características que servem como linhas norteadoras do enredo, que fazem com que quem lê costure uma teia de percepções sobre os personagens. Nesse caso, através das sequências de discussões entre os pais sobre o mesmo assunto fica transposto para o leitor em primeiro plano a sugestão de que o Pai poderia ser um sujeito infiel e a mãe, uma personagem ciumenta e insegura quanto à postura do seu esposo.

Lenor, a professora de Artes, é outra personagem que tem uma importância significativa para a trama, visto que Lucas tem por ela uma verdadeira paixão platônica e de modo inocente uma relação afetuosa com a Lenor: “E assim, sem tirar o olho da Lenor, o Lucas ia prestando a maior atenção no que ela fazia, no que ela dizia, no jeito que o cabelo vinha penteado, na cor que o pé tinha se calçado. E foi decorando cada gesto, cada riso, cada tintim por tintim da Lenor”. (NUNES, 2009, Seis Vezes Lucas, p.59).

 Porém, quando o protagonista descobre o caso que o seu pai tinha com a sua professora de Artes, antes da cena acontecer, o leitor se depara com uma sequência de fatos que dão a entender a existência dessa relação extraconjugal, a exemplo das discussões e do modo de agir da mãe. Dados que o garoto não percebia, mas que o leitor, sim. A descrição da descoberta mostra para Lucas uma versão da história que quem lê já a tecia, graças ao jogo que só o narrador mostra para o leitor.

E o pai, que já tinha ido buscar o Lucas mais três vezes na Escolinha de Arte, sempre arranjando um jeito de bater papo com a Lenor, resolveu buscar ele de novo no dia em que o Lucas levou o bilhete de amor para a escola. Mas dessa vez o pai ficou no carro, esperando a aula acabar.
(…)
Mas foi só o Lucas entrar no carro que o Pai se lembro “ih, Lucas! Eu já ia me esquecendo que tenho que pagar as tuas aulas. Me espera aqui que eu já volto.
(…) Lá pelas tantas o Lucas não aguentou mais a vontade de sair do carro. Entrou na escola, subiu a escada devagar (…) O dedo do Lucas empurrou a porta de e o coração deu logo um pulo! Que era isso! O que o Pai tava fazendo com a Lenor? (NUNES, 2009, p.71)

O narrador ao pontuar que o Pai “já tinha ido buscar o Lucas mais três vezes na Escolinha de Arte, sempre arranjando um jeito de bater papo com a Lenor” (p.71) apresenta para o leitor informações que não são tão claras para o protagonista. Há, nesse caso, a intenção de costurar, para quem lê, a cadência dos fatos da narrativa. Como o de apresentar as intenções do Pai ao ir com tanta frequência buscar o garoto na escola, uma ação que dar a entender que não costumava ser recorrente antes.

Ainda no começo do romance, é perceptível um momento que demostra a incompreensão do Pai em relação ao sentimento do garoto, como: o medo de ficar sozinho ou ao simples fato de chorar quando se sente aflito. Bem como, à aceitação da Mãe de Lucas em relação a tudo que o esposo impõe, como o fato dele não gostar de esperar. Na noite da saída para o teatro, enquanto o Pai se arruma com calma e fica pronto, rapidamente a mãe se adequa ao horário do esposo e com pressa pede ajuda ao garoto para se vestir:

— Quer me abotoar aqui atrás, meu amor? – Esperou – O que está acontecendo?

— É que não abotoa

— Por quê?

— A casa é grande e o botão é pequeno: escapa.

— Ah, não faz mal, vai assim mesmo. Se levantou…

(…)

— Eu tô com medo de ficar aqui sozinho.

— Não vamos começar outra vez com isso, não é, meu amor? Você não viu a cara do teu pai no jantar? Ele não gostou nadinha de ver você falando que tem medo.

(…)

— Escuta…

— Tchau, meu filho, você sabe que o seu pai detesta esperar (NUNES, 2009, p.12)

Em capítulos subsequentes, o garoto vai nutrindo um sentimento inverso ao da admiração que nutria pelo pai. A descrição do narrador mostra para o leitor o sentimento de mágoa que estava sendo desenvolvido por Lucas em relação aos seus pais. O lado compreensivo e dedicado da mãe do garoto ao Pai é um conflito é essencial no enredo; através dele é revelado o momento em que o menino expõe para a mãe uma faceta solitária e desacolhida que ele sentia em relação a ela, quando faz o seguinte questionamento:

— É sempre ele, não é? Vai ser sempre assim?

 A cara da mãe se espantou toda.

— Você só vê o pai na tua frente! Você só faz o que ele quer! E eu? Você nunca vai fazer o que EU quero? – Largou a mãe e saiu.

— Que é isso, Lucas! Onde é que você vai? O teu pai tá chegando! – Mas não adiantava falar mais nada: o Lucas já tinha sumido. (NUNES, 2009, p. 105)

Um outro ponto significativo no que se refere ao papel do narrador na obra em questão é que ele também é responsável por expor a percepção de Timorato, o tão desejado animal de estimação de Lucas. Isso pode ser percebido no presente trecho: A Mãe deu pra suspirar: — Coitado desse cachorro! se apegou tanto ao Lucas. (O Timorato olhava desconfiado pra Mãe.) O Pai deu pra se irritar: — Esse vira-lata tá me saindo um bom neurótico. (O Timorato olhava de olho meio fechado pro Pai.  (NUNES, 2009, p. 44).

Ao mostrar para o leitor as ações de Timorato, através da descrição das reações do cachorro, compreende-se a relação que o animal tinha com os adultos da narrativa. E essa descrição de olhares e expressões do cachorro, por sua vez, não parte do protagonista, mas sim do narrador. Esse movimento é comum na Literatura, no teatro e também no cinema, mas neste romance específico, a voz do narrador é tão essencial quanto a do protagonista.

O narrador, por sua vez, mostra versões que estão longe da idealização do menino e que contribuem para o leitor moldar, sob outra perspectiva, a imagem dos personagens do enredo. Há no romance um narrador que, ao fazer esse jogo, compreende as angústias de Lucas e constrói um movimento fundamental para o leitor sentir as dores do garoto, que é mostrando as versões humanas, longe de uma idealização, dos adultos que o rodeiam.

A partir do que é descrito no enredo é possível compreender também que Lucas era um menino que morava em um apartamento, que além da escola regular tinha acesso a aulas de Artes e outras modalidades. O Pai ocupava um bom cargo. O protagonista, por sua vez, não é um personagem que sofre com conflitos como a desigualdade social, como é exposto em outros romances da autora, ele é um garoto que possui privilégios e que, se fôssemos delimitar, se enquadraria como um menino da classe média.

Mesmo assim, Lygia Bojunga ao construir um narrador que passeia por temáticas tão importantes como as dúvidas da adolescência, a paixão do garoto pela professora Lenor, conflitos familiares e o espaço escolar, costura a narrativa de forma que faz com que o narrador expresse cuidado e delicadeza para o seu leitor, de modo que não diminua as dores de Lucas e se faça possível compreendê-lo. As dores demonstram uma perspectiva intimista, psicológica e humana, intrínseca ao cotidiano e que podem acontecer na existência de qualquer sujeito.

SEIS VEZES LUCAS: O narrador e o contexto de sala de aula

As abordagens dos elementos estruturais da narrativa aparecem nos livros didáticos dos mais diversos modos. Normalmente são os contos as obras escolhidas para localizar e classificar enredo, tempo, espaço, personagens e foco narrativo. Como se pode observar em livros como Português: Linguagens, de Cereja e Viana (2022), os livros didáticos têm como foco ensinar os conceitos e não propriamente discutir, a partir da recepção das obras lidas, possíveis efeitos que certos recursos podem causar.

Figura 1. (p.30)

Figura 2. (p.31)

Percebe-se nas figuras acima que o objetivo adotado pelo livro didático em questão é descrever um conceito e não necessariamente aprofundar ou possibilitar uma experiência literária. Ele está mais ligado ao viés interpretativo, cujas informações se pautam na habilidade de decodificar esses dados do que de propriamente propor uma vivência leitora com eles em uma produção. Essa questão também pode ser observada com o fato dessas classificações serem postas e descritas apenas com tópicos em boxes postos nas laterais do livro, o que só reforça o olhar pragmático e não experiencial com esses elementos.

Para além da discussão apresentada até o presente momento, a percepção sobre a complexidade do narrador em Seis Vezes Lucas (2009) é um aspecto que se destaca e que alcança diversos contextos, o da sala de aula é um deles. Através de uma experiência de leitura da referida obra, com alunos do 9º. ano de uma escola pública, surgiram vários questionamentos referentes à voz da personagem Lucas e a voz do narrador[3]. Dentre as várias dúvidas, destacamos: “professora, Lucas é o narrador?”, “Quem é que está falando?”, “A autora é o narrador?”. É interessante pensar como um elemento da narrativa se torna capaz de envolver tanto o leitor a ponto de ser um fator essencial para a sua construção perceptiva sobre o enredo.

É provável que essa inquietação tenha partido no contexto de sala de aula em decorrência das nuances do romance, que não partem somente dos personagens da trama, pois ao costurar a narrativa as revelações transpostas pela voz do narrador tornam-se também cruciais para o envolvimento dos alunos com a leitura. É fato que essa característica é comum na literatura, mas nos romances de Lygia Bounga essa predominância estética se torna ainda mais considerável, pois a autora em questão tem uma forma diferente de manejar a linguagem.

Essa percepção pode ser explicada pelo modo como, ao mover as tramas da narrativa, a autora não torna o conteúdo do seu enredo um fator determinante para a sua abrangência. Os conteúdos, a densidade das temáticas é sim um ponto importante, mas o manejo com a linguagem que, nesse caso, passeia pelos mais variados elementos narrativos, torna-se fundamental. O modo como a autora contempla e descreve os conflitos vivenciados por Lucas em meio à temáticas como o divórcio, por exemplo, explicita melhor a colocação.

— Lucas, a tua mãe quer ir embora. E quer levar você junto. Cismou que vai passar uma temporada lá no sítio da tia Elisa, perto de Friburgo. Num sítio, imagina! Sem telefone, sem televisão, sem nada! Você sabe como a tia Elisa gosta de se isolar. E é pr’aquela solidão que a tua mãe, logo a tua mãe quer te arrastar. E quer que você largue a escola, vê se pode. É claro que eu não concordo. E é claro que você também não vai concordar. Além do mais, você já não é nenhuma criacinha para viver grudado nas saias da tua mãe.

 O Lucas sentiu uma coisa esquisita no pé, era câimbra? Sacudiu a perna, que coisa! E que calor que tava fazendo.  A mãe olhou fundo pro Lucas:

— Eu quero que você venha comigo, meu filho, eu preciso que você venha comigo (NUNES, 2009, p.99)

Lygia Bojunga com transparência e profundidade prossegue o “contar” dentro   de   sua   própria história, um manejo que transpassa a instância temporal da narrativa com habilidade, sensibilidade e também ludicidade em sua escrita. Há uma atenção da escritora ao tocar em uma temática tão sensível de sua obra, mas tão comum na vida de tantos jovens. A autora não subestima a capacidade interpretativa de seu leitor e, nessa sequência, a voz do narrador se submete apenas a descrever o estranhamento sentido por Lucas e que fica distante do conflito criado pelos adultos da trama. A voz desse elemento narrativo acompanha a tensão do momento sentenciado no enredo e descreve de modo detalhado as reações do protagonista. 

No contexto de sala de aula, os questionamentos feitos foram respondidos, um tópico em comum entre alguns alunos foi o fato de acharem que a autora era quem fazia a voz do narrador no romance lido. Outros, confundiam a voz de Lucas com a do narrador a ponto de pensarem ser a mesma pessoa. Esses fatos nos servem como um contraponto de oportunidades para pensar em como os elementos da narrativa são compreendidos por um leitor em formação. E que também nos mostra o quanto a voz do narrador torna-se fundamental para chamar atenção dos alunos em um contexto que parte da sua análise, mas que migra sobretudo para o campo da sua leitura intima, subjetiva e particular.

Figura 3.

O fato de muitos confundirem a voz do narrador com a do protagonista, por exemplo, foi crucial para a discussão sobre esse elemento e tantos outros que perpassam por uma narrativa, como o espaço e o tempo. As discussões aconteceram de modo problematizado, cujo objetivo se pautava em pensar: quem era o narrador? Com o término das aulas de leitura e das rodas de conversa, os alunos compreenderam que a voz do narrador era justamente a voz de um outro elemento narrativo, que não necessariamente precisava ser a de algum personagem da obra.

Essa discussão nos deu a oportunidade de aprofundar um diálogo proveitoso sobre um elemento essencial nos textos literários e que até o momento da discussão não era do conhecimento dos alunos, foi uma alternativa para pensar nos caminhos da literatura no contexto da sala de aula, mas também permitiu refletir sobre aquele novo saber adquirido pelos leitores em formação conquistados naquele momento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora a presença do narrador se mostre central em outras expressões artísticas, no romance em questão ela se torna fundamental. A partir das observações expostas, pode-se perceber o quanto esse elemento mantém uma relação com o leitor e colabora diretamente para com a sua leitura. Com uma grande carga de sensibilidade, o narrador da obra Seis Vezes Lucas (2009) insere o leitor na atmosfera psicológica do protagonista e mostra facetas que o garoto ainda não descobriu.

O narrador, embora não seja classificado como um personagem na narrativa, é responsável por mostrar para quem lê ações que os sujeitos na história ainda não decodificaram. Ele traça um jogo participativo, entre o leitor e a vida dos sujeitos na trama. Há um envolvimento que, mesmo sob uma perspectiva distante, faz com que quem lê se sinta parte da história e descubra junto com o garoto, ou antes dele, o desenrolar do enredo. Desse modo, pode-se constatar que o narrador desenvolve um jogo integrativo entre a narrativa, seus personagens e o leitor, fazendo com que este, por sua vez, possa se sentir parte da trama e permanecer entusiasmado para descobrir as facetas que envolvem o enredo e Lucas, o protagonista.

Há nessa ação uma postura importante por parte da autora, que é o reconhecimento pleno do seu sujeito leitor e a sua capacidade em se envolver e decodificar os trâmites do enredo.  

REFERÊNCIAS

BOOTH, Wayne C. A retórica da ficção. (Título original The retoric of fiction). Tradução de Maria Teresa H. Guerreiro. Lisboa-Portugal: Artes e Letras/Arcádia, 1983.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000.

CEREJA, William Roberto; Vianna, Carolina Dias. Português: linguagens, 9º ano: Língua Portuguesa. 11. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2022.

GENETTE, G. Palimpsestos, a literatura de segunda mão. Tradução: Cibele Braga et alli. Edições Viva Voz, Belo Horizonte, 2010.

LDB – Lei nº 9394/96, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: MEC, 1996. BRASIL.

LEITE, Lígia Chiappini de Moraes. O foco narrativo, ou, A polêmica em torno da ilusão. São Paulo: Ática, 1987. (Série Princípios)

NUNES, Lygia Bojunga. Seis vezes Lucas. 4.ed. Rio de Janeiro: Agir, 1995.

NUNES, Lygia Bojunga. Seis vezes Lucas. 4.ed. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2009.

SANDRONI, Laura Constância. De Lobato a Bojunga, as reinações renovadas. Rio de Janeiro: Agir, 1987. 

SANTINI, Juliana; ROCHA, Rejane Cristina.  Com quantas cores se narra uma saudade? O narrador infantil e a leitura do real em um texto de Lygia Bojunga. Revista Literatura em Debate, v. 8, n. 14, p. 8-22, ago. 2014. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/. Acesso em 17 de maio de 2023.

SILVA, Vera Maria Tietzmann, O mar na Ficção de Lygia Bojunga. In: SILVA, Vera Maria Tietzmann. Literatura Infanto-Juvenil: seis autores, seis estudos. Goiânia: Editora UFG, 1994. p.85-109. 


[1] A autora Lygia Bojunga Nunes é considerada um dos grandes nomes que compõem o cenário da literatura infantil e juvenil brasileira. Ela nasceu na cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, mas logo aos oito anos de idade, mudou-se para o Rio de Janeiro, local de grande carga afetiva para a autora e que é muito citado em seus escritos. Antes de consolidar-se na literatura, trabalhou como atriz, atuando tanto na rádio quanto na televisão.

[2] A primeira publicação de Seis Vezes Lucas ocorreu em 1995, entretanto, a presente pesquisa faz uso da 4ª edição da obra publicada em 2009.

[3] A experiência aconteceu a partir da pesquisa de dissertação do mestrado. A intervenção teve autorização do Comitê de Ética e teve respaldo entre todos os trâmites legais que nos possibilitaram o registro dos sujeitos da pesquisa. CAEE: 64369522.7.0000.5182


1 Autor; UFCG

2 Profº Coautor; UFCG