REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8428971
Sônia Marise Tomasoni1
Maria Inez Carvalho2
RESUMO
O artigo, baseado na tese de doutoramento Dinâmica socioespacial da produção de fogos de artifício em Santo Antônio de Jesus – BA: Território fogueteiro produzida por uma das autoras em 2015, está estruturado em 2 momentos: o primeiro apresenta, em síntese, a tese, com ênfase nos achados do período estudado e, o segundo, aponta, de maneira sucinta, o quadro atual do território estudado. Versa sobre a tragédia ocorrida, em 1998, no município baiano de Santo Antônio de Jesus quando da explosão de uma fábrica de fogos de artifício e estuda o fenômeno sob a perspectiva da territorialidade constituída pela presença da indústria de fabricação de fogos de artifício na periferia do município. No primeiro momento, discorre sobre os conceitos de território e territorialidade (SANTOS,1994; HAESBAERT, 2004, RAFFESTIN, 1993), apresenta a metodologia, uma abordagem qualitativa-quantitativa de uma pesquisa descritiva-explicativa, para a seguir aponta a formação de um território periferizado com a exploração de mão de obra, notadamente feminina, produzindo sob imenso risco. No segundo, e, último momento, apresenta informações atualizadas do território, um território modificado pela introdução da produção chinesa e, ainda, lutando pela justiça para com as vítimas da tragédia.
Palavras-chave: Território. Territorialidade. Pirotecnia. Trabalho Feminino. Trabalho Infantil.
1. INTRODUÇÃO
O dia 11 de dezembro é uma data que marca a vida de toda população Santoantoniense e traz lembranças tristes. Foi nesse dia que a tenda de fogos, situada na Joeirana, explodiu e matou 64 pessoas, dentre elas crianças e adultos. Dois anos após o acontecimento, as senhoras conhecidas como Dona Helena e Dona Dolores conseguiram criar uma creche com o nome de 11 de dezembro, onde são realizados trabalhos com crianças e adolescentes. Um movimento também foi criado e todos os anos são realizadas caminhadas para lembrar a data, pedir justiça e homenagear aqueles que se foram. Sabe-se que até o momento o proprietário da fábrica, Osvaldo Prazeres Bastos, e sete pessoas ligadas a ele, não pagaram nenhuma indenização aos familiares, que lutam perante à Justiça para conseguir o que é de direito. Todos os réus fazem parte da mesma família. Bastos é conhecido como Vardo dos Fogos. A investigação apontou que ele armazenava material explosivo de forma ilegal e produzia fogos de artifício sem condições básicas de segurança. Santo Antônio de Jesus é conhecida como polo da produção de fogos de artifício. Apesar da importância econômica da atividade para o município, a fabricação de fogos ocorre, na maior parte dos casos, sem autorização para o funcionamento.
Voz da Bahia, 11, dez., 2014.
Tragédia que, há duas décadas e meia, atraiu atenção de todo o país para a baiana Santo Antônio de Jesus, desnudando, como tantas outras vezes e de tantos outros modos, a situação de vulnerabilidade de tantos brasileiros: trabalho informal, o trabalho precário, a posição da mulher, o trabalho infantil a marginalição social estavam expostos em cada um das fagulhas que cobriu o céu da periferia de Santo Antônio de Jesus naquele 11 de dezembro de 1998. Naquela feita, o barulho e a cor do artifício dos fogos não trazia encantamento, mas dor.
Em 2015, um trabalho acadêmico, Dinâmica socioespacial da produção de fogos de artifício em Santo Antônio de Jesus – BA: Território fogueteiro, a tese de doutorado, de uma das autoras deste artigo, ousou colocar, mais uma vez, o dedo na ferida e discorreu sobre a tragédia na perspectiva da territorialidade constituída pela fabricação de fogos de artifício, notadamente os conhecidos truques, em Santo Antônio de Jesus-BA. É esta tese a base deste artigo, que a atualiza com o questionamento: e hoje, vinte e cinco anos depois?
O artigo está estruturado em 2 momentos, o primeiro apresenta, em síntese, a tese, com ênfase nos achados naquele no período analisado e, o segundo, aponta, de maneira sucinta, o quadro atual do território estudado.
2. 2015 – A TESE
O conceito de território foi a referência para compreensão da realidade estudada, a saber, o território fogueteiro do município baiano de Santo Antônio de Jesus. Um conceito que permitiu atingir o objetivo proposto na investigação: compreender a constituição da dinâmica territorial fogueteira.
Apoiamo-nos em Santos (1994a), o qual aborda o território considerado como “formas, mas o território usado são objetos e ações, sinônimo de espaço humano, espaço habitado” (SANTOS, 1994a, p. 15). Assim como, em Milton Santos e Silveira (2000, p.11): “o território usado – e não o território em si mesmo constitui um ator essencial da vida social” (SANTOS; SILVEIRA, 2000, p. 11).
Haesbaert (2004) nos auxiliou com o entendimento do território pelo viés do poder, como sendo “o produto de uma relação desigual de forças, envolvendo o domínio ou controle político-econômico do espaço e sua apropriação simbólica” (HAESBAERT, 2004, p. 121), “sempre multidimensional e multiescalar, material e imaterial, de dominação e apropriação ao mesmo tempo” (Ibidem, p. 97). Foi também com este autor que a ideia de territorialidade foi concebida como “um conjunto de relações que se originam num sistema tridimensional sociedade – espaço – tempo em vias de atingir a maior autonomia possível, compatível com os recursos do sistema” (RAFFESTIN, 1993, p.160). Uma noção de territorialidade concebida a partir das relações dos agentes e atores sociais e da produção do espaço, mediatizadas. Assim sendo, quando alguém se refere às ocupações do espaço, espaço ocupado, vivido, apropriado, está falando, com efeito, de territorialidade.
Conceituações que aplicadas ao contexto socioespacial produzido pelas relações de produção resultantes da pirotecnia, especificamente do traque, propiciaram um trabalho que se caracterizou como uma pesquisa descritiva explicativa, com abordagem qualitativa-quantitativa. A dimensão qualitativa permitiu explicar as relações construídas no território fogueteiro, principalmente aquelas relacionadas às trabalhadoras de traque, assim como as informações quantitativas permitiram solidez comparativa. Com base no empirismo, foram utilizados instrumentos da pesquisa: observação in loco, análise de documentos, registro fotográfico, questionários e entrevistas. Um conjunto teórico-prático que possibilitou a produção dos achados da pesquisa que estão sintetizados a seguir:
2.1 O local e a produção fogueteira
Santo Antônio de Jesus – BA e os territórios fogueteiros: Bairros Irmã Dulce e São Paulo.
Fonte: Arquivo pessoal.
Santo Antônio de Jesus, cidade baiana do Território de Identidade do Recôncavo, é historicamente um dinâmico centro comercial polo regional do Território e uma grande produtora de fogos de artifício. Uma produção que se faz na zona rural e na periferia, principalmente, em dois bairros: Irmã Dulce e São Paulo.
A atividade pirotécnica, com alto grau de periculosidade, já deixou, ao longo do tempo, marcas profundas no território santantoniense. Uma produção artesanal que devido a periculosidade da matéria-prima necessita(ria) de cuidados específicos quanto ao manuseio ou acondicionamento. O estalo de salão, traque de bater no chão ou simplesmente traque1 encabeça a produção de bombas, espadas, rojões, vulcões, traques de riscar, cobrinhas, chuvinhas, sputniks. Os traques são denominados pelos produtores de “miudeza” ou “produtos da terra”2. Uma terminologia local para os chamados “produtos de salão” que se distinguem, na classificação segundo o tipo de material do produto manufaturado, dos “produtos de explosivos”.
A massa do traque é composta por nitrato de prata, areia, álcool e ácido nítrico. Como a concentração de nitrato não ultrapassa 50%, o produto não é considerado de alto risco. Portanto, conforme a legislação, a produção de traques não carece do controle do Exército, constituindo-se uma atividade legal! Essa legalidade ampara a posição dos produtores que não se preocupam com os problemas existentes na fabricação de traque, havendo mesmo descaso quanto às formas do trabalho naquele mundo do trabalho pirotécnico. Institui-se assim, a informalidade. A produção de fogos de artifício ocorre na ilegalidade e também na clandestinidade, com traços marcantes de informalidade.
2.2 Um território e sua constituição
Material utilizado para confecção do traque: Massa e papel de seda.
Fonte: Arquivo pessoal.
A partir da produção da massa, a pirotécnica em território fogueteiro santoantoniense é classificada como: a) circuito de produção formal; b) circuito de produção informal.
O circuito de produção formal é aquele em que a produção atende às normas trabalhistas, conforme exigências do Ministério Público de Trabalho (MPT), e às normas de segurança do Exército. Quanto ao circuito de produção informal, nele se encontram desde os produtos considerados legais – aqueles liberados pelo Exército, como os traques – até os que são controlados – e portanto, proibidos de serem manufaturados –, porém produzidos na clandestinidade.
Uma produção realizada – principalmente em fábricas em fundo de quintal – durante todo ano, mas que em função da demanda dos festejos juninos, se intensifica a partir do mês de março, chegando ao ápice da produção nos meses de maio e junho, sendo retomada com mais intensidade somente no final de ano, devido às festividades de Ano Novo.
É desenvolvida tanto na zona urbana quanto na zona rural, a depender da produção e do tipo do produto: a) em território fogueteiro urbano concentra se a produção de bombinha, cobrinha, traque de riscar e traque; b) em território fogueteiro rural, a produção de bombas, rojões, sputniks, pistolões, apitos gaiatos, girândolas, vulcões, espadas, entre outros. Divisão que ocorre em função da própria natureza da pirotecnia: aqueles de maior perigo são acondicionados na zona rural embora haja registros de material acondicionado em “depósitos”, na área urbana, de forma ilegal.
A abordagem sobre informalidade remete-nos ao olhar de Pedrão (2007), que analisa tal categoria de trabalho no Estado da Bahia, esclarecendo que: “Falta de emprego e os processos de exclusão que atingem a maior parte do interior da Bahia revestem-se de maior gravidade nas regiões de maior densidade demográfica”, em que o território do Recôncavo é exemplo (PEDRÃO, 2007, p. 54). À luz dessa reflexão, o autor exemplifica a cidade de Santo Antônio de Jesus-BA:
O significado social da falta de emprego é um mercado de trabalho de baixos salários e de grande incerteza de renda, em que os trabalhadores são compelidos a aceitar essa remuneração insuficiente […] mediante a prática de salários abaixo do mínimo [em] anos de atividade regionalmente importantes, tais como a fabricação de fogos de artifício […] desenvolvendo-se novos mecanismos de circulação dos trabalhadores entre a esfera da informalidade e a do mercado formalizado de trabalho (PEDRÃO, 2007, p. 54).
A divisão do trabalho da pirotecnia santantoniense também se contrabalança pela competição, pela lei da oferta e da procura do mercado. A produção de fogos de artifício é uma rede produtiva clandestina devido a não legalização e regulamentação das fábricas e à forma irregular de aquisição e de manuseio de matéria-prima para fabricação de produtos pirotécnicos, principalmente, na etapa de embalagem
O sistema produtivo de fogos de artifício santantoniense, na sua manufatura de produtos de salão ou explosivos, na legalidade ou ilegalidade, no urbano ou rural, aqui considerada uma rede clandestina, é uma cadeia comercial dependente da relação produtor/mercado. Relação esta que extrapola os limites do Recôncavo baiano e nacional. Ocorre uma relação de complementaridade: Santo Antônio de Jesus (BA) alimenta a produção de Santo Antônio do Monte (MG), especialmente em relação ao traque. Curioso que os traques produzidos e embalados em Santo Antônio de Jesus possuem embalagens em que o registro aponta o município de Antonio do Monte (MG) como produtor.
Então, essa produção resulta em relações espaciais, formando territórios fogueteiros, baseados na presença de empresários, com relações extraterritório, que controlam o território, mantendo estreitas relações informais de trabalho, criando dependência da população que precisa sobreviver.
2.3 Um território e suas gentes
Trabalhadoras e seus tabuleiros.
Fonte: Justiça Global.
Desta intrincada rede – que absorve inclusive mão de obra de crianças e de idosas que enrolam traques dentro de suas casas e/ou nas calçadas –, nos interessa especialmente a divisão da produção por gênero. Especialmente quanto ao traque, a produção é realizada por mulheres. Quiçá, em virtude da agilidade no manuseio com o traque, as mulheres e crianças do gênero masculino “ganharam” essa função. São mais de duas mil mulheres fazendo traques… elas fazem em casa mesmo, pois o serviço é simples, não tem perigo não… não estourar que nem os outros produtos e todas mulheres da família trabalha. (ENTREVISTA: Produtor, 65 anos).
Trabalhadoras que se submetem aos riscos típicos da atividade pirotécnica e aos poucos ganhos, principalmente, por falta de oportunidades, de opção de trabalho. Uma “mais-valia oculta” pode ser atribuída a essa produção: diferentemente de um operário em linha de produção de bens de consumo, as fogueteiras têm baixa remuneração pela necessidade de relativa invisibilidade e pelo risco verificados nessa esfera de trabalho.
A visibilidade foi direcionada para mulheres, na sua imensa maioria mãe solo que se encontra(va)m à margem da sociedade, sem opções de emprego, usando sua força de trabalho para realizar um trabalho domiciliar que envolve crianças, jovens e idosos, em um sistema de trabalho análogo a escravidão. A questão da mulher, no território fogueteiro, evidencia o contexto feminino, no processo estrutural daquele território; o papel da mulher na sociedade; e o próprio processo de construção de ser mulher, que se estabelece no trabalho domiciliar.
O sistema de embalagem é a única etapa da produção de traque em que o sexo masculino participa. Ressalte-se que, mesmo no trabalho infantil, crianças do sexo masculino não confecionam traque. A tradicional posição machista de designação das atividades domésticas: “Os homens não enrolam traque. Eles têm vergonha. Só as mulheres, a gente sabe fazer isso, eles só embalam” (ENTREVISTA: Trabalhadora, 22 anos).
A produção de fogos de artifício envolve ações humanas, recursos materiais e revela um sistema produtivo perverso, num mundo de trabalho precário emaranhado na informalidade e na clandestinidade. A clandestinidade se caracteriza devido à natureza da matéria-prima utilizada na confecção do produto.
Todo este complexo sistema compreende: i)Massa – usada para produção do estalo; ii)Manipulador; iii)Distribuidor; iv)Trabalhadora/enroladora; v)Empacotador/embaladeiro; vi)Produtor ou comerciante.
O produtor é responsável por quase todo o processo; além de comercializar, assume, muitas vezes, o papel de distribuidor e empacotador. Cada produtor tem seu grupo de trabalho, que consiste em pequenas redes em substrato de informalidade. Dessa maneira, a base produtiva difusora de fogos de artifício, em Santo Antônio de Jesus, conforma-se a partir de divisão de trabalho informal, constituindo uma rede pirotécnica, na medida em que produz, distribui e comercializa a produção para além da região do Recôncavo.
2.4 Um território e suas histórias
Apenas uma histórica imagem.
Fonte: Arquivo pessoal.
Quanto à origem e temporalidade da atividade fogueteira no município de Santo Antônio de Jesus, fogueteiros (produtores, trabalhadores/as) asseguram que o ofício vem de longa data e que segue “uma certa tradição familiar”. Uma trabalhadora de 39 anos afirmou: Desde que eu me conheço por gente, desde pequenininha sempre estava lidando com fogos, minha mãe, minha avó trabalham enrolando traque de bater e a minha filha desde antes de dez anos também já faz… (ENTREVISTA: Trabalhadora, 39 anos).
Em 1990, ocorreu um grave acidente com fogos de artifício na cidade com duas vítimas fatais. Na madrugada de 18 de dezembro, no Alto de São Benedito, uma área periférica da cidade explodiu um “depósito” clandestino de fogos de artifício. Segundo artigo do jornal Folha das Palmeiras, de dezembro de 1990, a explosão teve vinte pessoas acidentadas e vitimou dois menores. Era uma casa que tinha como finalidade depositar a produção de fogos de artifício, sendo que o “depósito” não atendia ao regimento do Exército sobre acondicionamento do produto pirotécnico.
O material foi identificado como de propriedade de Osvaldo Bastos dos Prazeres, “Vardo dos Fogos”, um dos maiores produtores de fogos de artifício da cidade/região. Os moradores tinham conhecimento do depósito clandestino e alguns deles, trabalhadores fogueteiros, repetiam a frase dos produtores/comerciantes: “são só umas cobrinhas, uns traques”… Ou seja, não viam os riscos da atividade; tampouco os órgãos competentes alertavam sobre os mesmos.
Apesar do incidente de 1990, as atividades de produção de fogos continuam em pleno vapor, seguindo a mesma relação de trabalho – clandestino, informal e precarizado. Assim se passaram oito anos, sem haver nenhuma medida dos órgãos competentes sobre o trabalho pirotécnico clandestino da cidade. A produção de fogos de artifício encontrava-se, no território fogueteiro, em plena ascensão, mesmo com acidentes envolvendo essa atividade. Os trabalhadores seguiam fabricando fogos de artifício em grande escala, e o trabalho das mulheres, enrolando traque, intensificava-se.
Então, no final da manhã do dia 11 de dezembro de 1998, ocorreu uma explosão em uma das fábricas clandestinas de fogos de artifício, no município de Santo Antônio de Jesus. O acidente teve como consequência a morte de adultos e crianças, totalizando 64 (sessenta e quatro) vítimas, entre mulheres e crianças. A tragédia descortinou um mundo de trabalho invisível, oculto para muitos na cidade. O desnudamento desse cenário, dessa realidade camuflada da indústria pirotécnica, mostrou a fronteira tênue entre a legalidade e a clandestinidade e o trabalho análogo a escravidão no âmbito da produção de fogos de artifício no município.
Diante da tragédia ocorrida naquela fatídica manhã de dezembro, tornou-se manifesto que não existia segurança nas diversas tendas espalhadas na área rural e periférica santantoniense: além do material para confecção de fogos de artifício, os locais abrigavam toneladas de fogos para comercialização, e os trabalhadores estavam com a produção em ritmo acelerado para as demandas festivas do final de ano.
Evidenciou-se um sistema de produção caracterizado por trabalho invisível; seus desdobramentos descortinam a atividade produtiva de fogos de artifício em Santo Antônio de Jesus e viabilizaram um território fogueteiro repleto de contrastes entre fazeres e viveres. Finalmente, o episódio trouxe para a cidade olhares de vários segmentos da sociedade, em âmbito estadual, nacional e internacional, o que fomentou a implantação de políticas públicas e trouxe à tona o debate sobre a temática e suas implicações.
Em 1999, um ano após o acidente, foi criado o Projeto Fênix a partir da ONG Instituto Fênix. Pelo projeto, em 2002, foi instituído o Condomínio de Indústrias de Fogos (COEFÊNIX), um polo para produção de fogos com o objetivo de trazer para o município soluções pertinentes ao mundo do trabalho na área pirotécnica (SEBRAE, 2003).
A nova política pública teve o envolvimento do Estado e da sociedade, por meio de representantes de diversos segmentos. O Projeto Fênix buscou parcerias com órgãos públicos, organizações civis e entidades religiosas, em busca de soluções tanto para os produtores quanto para os trabalhadores. O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) fomentou ações e cursos profissionalizantes, além de treinamentos de segurança, com o intuito de orientar os produtores a legalizarem a produção pirotécnica, para o produtor sair da clandestinidade. Nesse contexto, uma das preocupações era a aplicação do regimento trabalhista e o atendimento às normas de segurança para a produção de fogos de artifício.
Em suma, o SEBRAE traduzia uma política pública que tinha, em seu bojo, como diretriz, “regulamentar, legalizar e revitalizar a atividade pirotécnica e propiciar desenvolvimento para toda a comunidade em aspectos sociais e econômicos, buscando o desenvolvimento integral do município” (SEBRAE, 2003). O Condomínio Fênix teve um investimento orçado em torno de três milhões de reais, não contabilizados o terreno e a estrutura física onde se instalou.
A envergadura do movimento em torno do projeto, fosse no âmbito político ou econômico, facilitou sua assimilação e como era de se esperar, diversos mecanismos de fixação acerca do projeto foram elaborados. Um deles é uma cartilha, intitulada “Fênix: da tragédia a solução”, cuja finalidade era atingir a população escolar e foi elaborada através de várias parcerias, inclusive a Universidade do Estado da BAHIA – UNEB. O material foi utilizado, nos dois primeiros anos, nas escolas públicas estadual e municipal. Hoje, só resta uma cópia no arquivo público Municipal da cidade.
A linguagem da cartilha refere-se à produção de fogos como uma atividade natural e vocativa da comunidade a qual se traduz uma tradição fabricar fogos. Busca-se criar uma naturalidade e submissão aos riscos natos do tipo de produção. Outro aspecto fortemente tratado no texto diz respeito ao emprego e à renda, como na assertiva de que mesmo, e apesar dos riscos, a atividade beneficia a comunidade. Tal ideia propõe uma situação na qual a única alternativa de trabalho ou a principal fonte de renda pelo trabalho assalariado estaria na produção de fogos. Um terceiro aspecto, de cunho fortemente ideológico, está registrado que embora os fabricos clandestinos não ofereçam nenhuma segurança, trabalhadores se arriscam em busca de uns trocados. E nesse contexto, esse risco nato, atribuído à atividade e à clandestinidade, impuseram seu ônus, não aos que verdadeiramente se beneficiaram da atividade, mas aos que nela se debruçaram de forma silenciosa e invisível.
Ao final, mesmo com o empenho dos segmentos da sociedade envolvidos na proposta, o projeto não teve êxito.
2.5 Um território e sua tragédia anunciada
Acondicionamento de material para confecção de traque e para embalagem.
Fonte: Arquivo pessoal.
Avaliar as questões que causaram o insucesso do projeto não foi uma tarefa fácil, haja vista que os entrevistados, fosse por questões políticas ou pessoais, não se sentiram à vontade para falar sobre o assunto. Preferiram falar de forma abstrata sobre o projeto.
Segundo Toneto, ex-Secretário Municipal de Desenvolvimento Econômico e Meio Ambiente e empresário local, “o governo do Estado investiu mais de três milhões para a estruturação do condomínio, mas houve ingerência” e relata estratégias políticas inviabilizaram o Projeto Fênix:
O condomínio não chegou a ser instalado, não foi criado o estatuto do condomínio. A primeira empresa, Cosme e Damião, foi criada de forma “indicada”, sem uma manifestação espontânea, e juntaram [sic] sócios que não tinham afinidades pessoais e nem experiência empresarial […] e era monitorada por terceiros com foco principal na “marketingzação” de um modelo, um mero teatro e com essa característica foi um fracasso gerencial. Teve uma empresa que fechou assim que conseguiu o empréstimo da DESENBAHIA. A posteriori, o Estado contemplou três empresas, oriundas de outro estado, que, em minha opinião, elas vieram apenas para “sufocar” a produção de Santo Antonio de Jesus, pois se viabilizasse a produção de fogos, na especialidade que é a produção de estalos, [a produção local] seria concorrente deles. Com a instalação finalizaria o modelo existente que é mais rentável (ENTREVISTA: José C.Toneto, 2015).
Outro fator mencionado para o insucesso do projeto foi a indisposição dos grandes empresários de pirotecnia da região que, embora tivessem garantida uma área, não mostraram interesse em instalarem-se no condomínio, visto que, os mesmos não tinham necessidades de recursos financeiros nem de “suporte territorial”. De fato, esses empresários estavam habituados a manter o império dos fogos na clandestinidade, com obtenção de bons lucros marginais. Para eles, não interessava legalizar a atividade, pois, mesmo com acidentes e tragédias, a garantia da impunidade se mantinha. Assim sendo, ainda é verificada uma rede clandestina de produção de fogos de artifício em Santo Antônio de Jesus e região.
Ailton José dos Santos, coordenador do Polo Sindical esclarece que:
O Projeto Fênix foi criado com o objetivo de agregar os trabalhadores que estavam em condição de trabalho clandestino e oferecer ao trabalhador condições de produzir e de vender de forma regular. Mas a Secretaria de Indústria e Comércio do Estado não deu atenção aos pequenos e médios produtores. Entregou o projeto em mãos de empresários que não tinham envolvimento com fogos nem compromisso com os trabalhadores, eles só se beneficiaram com o projeto, seus interesses eram particulares, se aproveitaram do poder do cargo e não [se preocuparam] com a situação dos pequenos produtores. Tiveram empresas laranja, criadas para atender a um grupo; teve benefícios para pessoas da família que se atêm à produção de fogos aqui em Santo Antonio e na região. Veio o empresário de Santo Antonio do Monte, com incentivos que se instalaram e se beneficiaram dos acordos e propostas, mas, com a exigência do Exército de todo o processo ser regulamentado, eles não ficaram […] (ENTREVISTA: Ailton J. Santos, Coordenador do Polo Sindical, 2015).
Reativando o mesmo contexto, um funcionário do SEBRAE corrobora a avaliação sobre o fracasso do Condomínio e ressalta que o grande equívoco foi o modelo implantado no Condomínio Fênix. No propósito de servir a muitos com a formação de empresas, formaram-se grupos que ou continham membros que não eram produtores; ou o eram, mas tinham divergências de natureza diversa, ausência de afinidades empresarial e comercial. Essa situação resultou num erro gerencial que culminou no fracasso do projeto.
De acordo com o SEBRAE, as quatro fábricas pirotécnicas implantadas no condomínio fracassaram, e com elas também fracassou o projeto. Em 2004, a área foi devolvida à Superintendência de Desenvolvimento de Indústria e Comércio (SUDIC). Em 2013, foi destinada à ampliação do Distrito Industrial.
Ante o fracasso do Condomínio Fênix e por não terem sido contemplados com o projeto criaram a Associação dos Produtores de Fogos de Santo Antônio de Jesus (ASFOGOS). Seu objetivo é (era) dar amparo legal aos produtores no campo da legalidade e, também, oferecer-lhes logística, cedendo espaços adequados para produção dos fogueteiros.
Apesar do fracasso do Condomínio Fênix e da desativação do Projeto Fênix, a ASFOGOS, o poder público, destacam como conquista, a criação da Lei Municipal para fiscalização e regulamentação das atividades pirotécnicas (LEI N° 665/99). Por meio dessa norma, liberou-se a produção de traque, tendo em vista que, segundo o Exército, o produto não é explosivo (sic). A medida não sanou, tampouco amenizou os problemas referentes ao trabalho precário e ao trabalho infantil. A legalização da produção de traque nas residências escamoteou a utilização do trabalho feminino e do trabalho infantil. O discurso da legalização foi apropriado pelos produtores de fogos de artifício para justificar a continuidade da forma de produção do traque de salão: o trabalho domiciliar precário.
Em paralelo, contrapondo-se ao Projeto Fênix, após a tragédia de 11 de dezembro de 1998, foi criado, em 1999, o Movimento 11 de Dezembro. Formado por familiares das vítimas e por sobreviventes do incidente, com apoio de entidades religiosas e de instituições civis quanto à criação e à estruturação do mesmo. O objetivo do movimento é buscar justiça social, sobretudo para os órfãos e os sobreviventes e direitos trabalhistas. Seus integrantes vivem, até os dias atuais, em luta constante por reparação.
Mesmo passado tantos anos, uma mãe que perdeu a filha na explosão fala, relata com muito enternecimento, sobre o contexto das fogueteiras:
Depois da tragédia a gente fazia caminhada no dia 11 de cada mês. E aí foi fundado o Movimento 11 de Dezembro, que nos deu força e união para lutar contra os que ganham dinheiro com os fogos. O Vardo [referindo-se a Osvaldo Prazeres Bastos, grande produtor, proprietário da tenda que explodiu] sempre lucrou e tem poder e dinheiro pra fazer o que quer, mas com o movimento a gente teve apoio e força pra lutar. O movimento tem de ser assim mesmo, de luta… Tem desunião, mas eu estou satisfeita, porque o movimento serviu para ajudar a lutar pela justiça, que demora, mas queira Deus não vai faltar. Quando aconteceu o acidente, nós, por sermos pobres [sic], não tinha a quem recorrer… [suspiros]. A nossa ajuda foi da igreja, e o Padre Luiz foi buscar recursos na Itália; chegou aqui, perguntou pra todas as mães do movimento se a gente queria a creche ou o dinheiro, que ele dividia o dinheiro que tinha conseguido. Nós pedimos a creche, para nossas crianças ter [sic] onde ficar, e a gente ir buscar trabalho em outras coisas fora dos fogos. Ele tinha um terreno e, com o dinheiro, fez essa creche, e é aqui que eu e muitas mulheres trabalhamos e continuamos na luta […] (ENTREVISTA: Ex fogueteira, funcionária da Creche 11 de Dezembro, 2015).
Uma integrante do Movimento, que perdeu uma irmã, avalia que, embora tenha havido desleixo nos campos jurídico e governamental, a comunidade obteve conquistas a partir dos esforços e ações do Movimento 11 de Dezembro. Exemplo disso é a criação da Creche 11 de Dezembro, fundada com o apoio de uma instituição religiosa e de ONGs de direitos humanos.
O Movimento 11 de Dezembro e a Rede Social de Justiça e Direitos Humanos abriram um processo contra a União em âmbito Federal. O juiz do Tribunal da Justiça Federal determinou, por meio de uma liminar, que o Exército pagasse uma pensão, no valor de um salário mínimo, para cada criança órfã. Além do processo, houve denúncia para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), que abriu o caso, em maio de 2002, e solicitou informações sobre as ações do governo brasileiro de antes, durante e depois da explosão. Os peticionários, além do Movimento 11 de Dezembro, foram as seguintes entidades: Fórum de Direitos Humanos de Santo Antônio de Jesus, Polo Sindical, Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa da Bahia, Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, ONG Justiça Global e Rede Social de Justiça Global.
Devido à morosidade com relação à tramitação e à ausência de medidas cabíveis quanto à fiscalização, produção e controle das atividades pirotécnicas e a presença do trabalho, o Movimento 11 de Dezembro e outras entidades acionaram a Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH da Organização dos Estados Americanos (OEA). No processo, o Estado foi responsabilizado pela tragédia. Este, por sua vez, assegurou, perante a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), reparação moral e material às vítimas da tragédia.
A tragédia de 11 de dezembro, na fazenda Juerana, trouxe à tona um universo quase que oculto da imensa maioria das pessoas em Santo Antônio de Jesus, na Bahia, no Brasil e também no mundo. A tragédia e seus desdobramentos evidenciaram a necessidade de uma nova organização em torno da atividade pirotécnica. E um novo modelo tentou-se instaurar de fato, cuja tônica não foi o empoderamento das trabalhadoras desta atividade, mas protagonizado por outros atores como os produtores. Esses, de certa forma, centralizaram e direcionaram o processo da atividade fogueteira – e ainda o fazem. Entre a intencionalidade e o poder imagético desse instrumento de divulgação, dessa cartilha, podemos observar, em suma, tal direcionamento.
Nesse contexto, a realidade tem, no palco do território fogueteiro, atores, que saem das cinzas ao labor, a conformação a seguir a vida a submissão do trabalho pirotécnico.
Em 2015, o processo contra os donos da fábrica clandestina encontra-se em tramitação. Inicialmente, o caso tramitou na cidade de Santo Antônio de Jesus, mas, após o primeiro julgamento, do qual os réus saíram impunes, e tendo em vista a influência dos fabricantes de fogos na cidade, preferiu-se transferir o processo para Salvador. Os réus, a maioria da família Prazeres, a qual domina a atividade pirotécnica na cidade e na região. Embora tenham sido condenados, no último julgamento, os réus recorreram, por agravo, ao Supremo Tribunal de Justiça, que ainda não tinha se manifestado.
Frente às informações colhidas na investigação, foram traçadas, em 2015, as seguintes constatações:
2.6 Uma territoriedade a ser desconstruída
A presidente do Movimento 11 de Dezembro Dona Dolores, demonstrou revolta com a forma em que a justiça vem tratando o caso: “as tendas de fogos continuam clandestinas e a Justiça, neste ano fechou os olhos. Tenho vontade de me mudar para um lugar bem longe para não continuar a ver a decepção que vivemos nesse país. Nós só queremos que as famílias dos envolvidos tenham seus direitos e que a Justiça faça Justiça, tomando medidas para que o comércio de fogos seja feito da maneira correta”, pediu.
Tribuna do Recôncavo, editado pela Voz Bahia, 18/06/2015.
As tentativas de mudanças nos âmbitos empresarial, gerencial e trabalhista não surtiram efeitos no sistema de produção de fogos de artifício da cidade. Apesar da tragédia e do tempo percorrido, não houve de fato contribuições na organização socioespacial que fossem relevantes e tenham trazido mudanças na dinâmica socioespacial ou nas relações de trabalho da produção de fogos de artifício.
Na rede da produção pirotécnica, ocorrem relações conflituosas, que têm rebatimento no território. Esse, por sua vez, ao tecer as vivências das fogueteiras gera especificidades ao território e institui a territorialidade.
Embora realizada de forma precária, a produção de fogos de artifício contribui para a sobrevivência daquelas mulheres, das famílias, assim como para a organização de espaços da cidade, com a formação de territórios fogueteiros controlados pelos comerciantes locais.
A grande conquista social do Movimento 11 de Dezembro é a mobilização que o mesmo consegue realizar em uma cidade que coloca venda nos olhos, para não ver o cotidiano das mulheres e das crianças envolvidas nos bastidores do trabalho pirotécnico, e que só os descobre para ver o show pirotécnico. Todo ano, no mês da tragédia, o Movimento mobiliza setores da sociedade e realiza encontros clamando justiça social, o que se verifica na imprensa, os quais colocam em pauta a problemática da produção de fogos de artifício na cidade.
3. 2019 – A ATUALIZAÇÃO
Desde a defesa da tese Dinâmica socioespacial da produção de fogos de artifício em Santo Antônio de Jesus – BA: território fogueteiro passaram-se anos, um pequeno espaço de tempo muito intenso para o Brasil intercortado com o acontecimento de tantos anos da tragédia.
A dinâmica territorial deste período provocou alterações de territórios? Quais permanências podem ser mantidas?
Como primeira informação selecionamos fato alvissareiro: no final de 2018, nos 20 anos da tragédia, após petição do Movimento 11 de Dezembro, da Justiça Global e da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, em audiência ocorrida em janeiro de 2020, tornou o Brasil réu no caso “Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus Familiares Vs. Brasil”. Em virtude da concernência da tese uma das autoras deste artigo foi convidada para ser Perita no caso. O documento constituiu embasamento para a Corte IDH proferir a sentença.
A motivação do requerimento foi o fato de o Estado não ter cumprido o acordo perante a Organização dos Estados (OEA), de reparar moral e materialmente as vítimas. Em 2018 a CIDH já havia reconhecido a responsabilidade do Brasil nas mortes e consequências causadas pela explosão, assim como nas violações aos direitos da criança, do trabalho e das garantias judiciais e proteção judicial.
No tocante à questão judicial foram instalados quatro processos pela tragédia: 1. Penal; 2. Civil; 3. Trabalhista e 4. Administrativo que tramitaram na justiça (CIDH, 2018). Na esfera penal houve acordo o qual foi pago parcialmente às vítimas das famílias. Na esfera criminal os responsáveis: o dono da fazenda, quatro filhos e três funcionários foram a júri popular. Os funcionários foram absorvidos e o dono da fábrica e seus filhos foram condenados com penas entre 9 e 10 anos, porém não foram presos.
Na continuidade da luta por justiça social e em busca dos direitos trabalhistas, o Movimento 11 de Dezembro, atual Instituto 11 de Dezembro, se mobiliza – anos após anos – na data em que ocorreu a tragédia (11 de dezembro), solicitando providência para cumprimento das questões judiciais. Após a sentença da Corte Interamericana dos Direitos Humanos – CIDH, de 15 de julho de 2020, a qual condenou o Brasil, no “Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares Vs. No Brasil as ações do Instituto 11 de Dezembro intensificaram.
A memória está viva e ainda há sofrimentos naquelas mulheres que, a cada luta na justiça, revive aquela tragédia. E quanto às paisagens dos bairros Irmã Dulce e São Paulo?
No cenário atual não se vê mais tantas mulheres em suas portas enrolando traque, imagem tão viva, mesmo em outros tipos de produção – das produções artesanais. Parte da produção de traque adentrar nas residências, saindo das calçadas para cômodos e quintais das moradias daquelas mulheres periféricas. Acontece que nesses longos anos, a produção tem deixado de ser artesanal: uma parte da mão de obra caseira foi substituída pelas máquinas importadas da China, embora ainda haja produção clandestina naquele território fogueteiro.
A pesquisa constatou que as mulheres fogueteiras eram afrodescendentes com baixa escolaridade e viviam em condições de pobreza estrutural e, por estar nessa condição, desenvolviam a atividade pirotécnica. Trabalhavam em situações de informalidade e, até, clandestinidade em condições de trabalho insalubre e precária com ausência de política de prevenção sobre segurança como equipamentos de proteção individual, treinamento ou capacitação para executar seu trabalho, tampouco instruções para evitar acidentes de trabalho. Tais fatores instalados naquele mundo do trabalho pirotécnico gerou a insegurança e causou a tragédia.
Embora no país tenha proibição do trabalho infantil, também nessa atividade, devido aos fatores acima mencionados, o trabalho infantil era realidade naquele território, tal fato foi constatado com o número de vitimas da tragédia: das 64 pessoas mortas 22 eram crianças e adolescentes que exerciam a atividade em condições de trabalho análogo a escravidão.
As tradições de barracas de venda de fogos que se instalam às margens da BR 101, no mês de junho, ainda permanecem agora abastecidas, também, por produtos made in China e pelas grandes empresas instaladas no Sul do país numa flagrante evasão de divisas do município com produtos fabricados em Santo Antônio de Jesus-BA.
Boa parte da produção migrou para Muniz Ferreira e São Félix entre outros municípios circunvizinhos, fator que pode ser atribuído, também ou principalmente, pela falta de visão dos gestores públicos em um momento de desativação, em parte, das atividades pirotécnicas no município e pela ausência de políticas públicas, em suas dimensões, em escala nação, estadual e municipal.
Assim, se faz necessário intensificar ações com políticas públicas que acatem a defesa do mundo do trabalho das mulheres e ações de órgãos competentes que tenham como objetivo combater a ilegalidade e fiscalizar o trabalho infantil.
Neste contexto, após duas décadas e meia, ainda há que deter o olhar sobre a questão do trabalho feminino e, também, do trabalho infantil para que o mundo do trabalho atenda a necessidade de sobrevivência daquelas mulheres, em sua imensa maioria mães solo e de suas crianças!
1A denominação “estalo de salão” costuma estar na embalagem do produto, mas o mesmo é chamado pelas trabalhadoras de traque e/ou traque de bater no chão. No trabalho utilizamos o termo traque.
2As informações sobre os fogos de artifício foram obtidas na ASFOGOS – Associação dos produtores de fogos de artifício de Santo Antônio de Jesus – e no Exército.
REFERÊNCIAS
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1Doutora em Geografia pela UFS. Docente da UNEB, stomasoni@uneb.br
2Doutora em Educação pela UFBA. Docente da UFBA, misc@ufba.br