O MUNDO DO TRABALHO: TRABALHO FEMININO E TRABALHO INFANTIL NA DINÂMICA DA PRODUÇÃO DE FOGOS DE ARTIFÍCIO EM SANTO ANTÔNIO DE JESUS – BA. 

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8428971


Sônia Marise Tomasoni1
Maria Inez Carvalho2


RESUMO 

O artigo, baseado na tese de doutoramento Dinâmica socioespacial da  produção de fogos de artifício em Santo Antônio de Jesus – BA: Território  fogueteiro produzida por uma das autoras em 2015, está estruturado em 2  momentos: o primeiro apresenta, em síntese, a tese, com ênfase nos achados  do período estudado e, o segundo, aponta, de maneira sucinta, o quadro atual  do território estudado. Versa sobre a tragédia ocorrida, em 1998, no município baiano de Santo Antônio de Jesus quando da explosão de uma fábrica de  fogos de artifício e estuda o fenômeno sob a perspectiva da territorialidade  constituída pela presença da indústria de fabricação de fogos de artifício na  periferia do município. No primeiro momento, discorre sobre os conceitos de  território e territorialidade (SANTOS,1994; HAESBAERT, 2004, RAFFESTIN,  1993), apresenta a metodologia, uma abordagem qualitativa-quantitativa de  uma pesquisa descritiva-explicativa, para a seguir aponta a formação de um  território periferizado com a exploração de mão de obra, notadamente feminina,  produzindo sob imenso risco. No segundo, e, último momento, apresenta  informações atualizadas do território, um território modificado pela introdução  da produção chinesa e, ainda, lutando pela justiça para com as vítimas da  tragédia. 

Palavras-chave: Território. Territorialidade. Pirotecnia. Trabalho Feminino. Trabalho  Infantil. 

1. INTRODUÇÃO 

O dia 11 de dezembro é uma data que marca a vida de toda população Santoantoniense e traz lembranças tristes. Foi nesse dia que a tenda de fogos, situada na Joeirana, explodiu e matou 64 pessoas, dentre elas crianças e adultos. Dois anos após o acontecimento, as senhoras conhecidas como Dona Helena e Dona Dolores conseguiram criar uma creche com o nome de 11 de dezembro, onde são realizados trabalhos com crianças e adolescentes. Um movimento também foi criado e todos os anos são realizadas caminhadas para lembrar a data, pedir justiça e homenagear aqueles que se foram. Sabe-se que até o momento o proprietário da fábrica, Osvaldo Prazeres Bastos, e sete pessoas ligadas a ele, não pagaram nenhuma indenização aos familiares, que lutam perante à Justiça para conseguir o que é de direito. Todos os réus fazem parte da mesma família. Bastos é conhecido como Vardo dos Fogos. A investigação apontou que ele armazenava material explosivo de forma ilegal e produzia fogos de artifício sem condições básicas de segurança. Santo Antônio de Jesus é conhecida como polo da produção de fogos de artifício. Apesar da importância econômica da atividade para o município, a fabricação de fogos ocorre, na maior parte dos casos, sem autorização para o funcionamento.
Voz da Bahia, 11, dez., 2014. 

Tragédia que, há duas décadas e meia, atraiu atenção de todo o país  para a baiana Santo Antônio de Jesus, desnudando, como tantas outras vezes  e de tantos outros modos, a situação de vulnerabilidade de tantos brasileiros:  trabalho informal, o trabalho precário, a posição da mulher, o trabalho infantil a  marginalição social estavam expostos em cada um das fagulhas que cobriu o  céu da periferia de Santo Antônio de Jesus naquele 11 de dezembro de 1998.  Naquela feita, o barulho e a cor do artifício dos fogos não trazia encantamento,  mas dor. 

Em 2015, um trabalho acadêmico, Dinâmica socioespacial da produção  de fogos de artifício em Santo Antônio de Jesus – BA: Território fogueteiro, a  tese de doutorado, de uma das autoras deste artigo, ousou colocar, mais uma  vez, o dedo na ferida e discorreu sobre a tragédia na perspectiva da  territorialidade constituída pela fabricação de fogos de artifício, notadamente os  conhecidos truques, em Santo Antônio de Jesus-BA. É esta tese a base deste  artigo, que a atualiza com o questionamento: e hoje, vinte e cinco anos depois?

O artigo está estruturado em 2 momentos, o primeiro apresenta, em  síntese, a tese, com ênfase nos achados naquele no período analisado e, o  segundo, aponta, de maneira sucinta, o quadro atual do território estudado. 

2. 2015 – A TESE 

O conceito de território foi a referência para compreensão da realidade  estudada, a saber, o território fogueteiro do município baiano de Santo Antônio  de Jesus. Um conceito que permitiu atingir o objetivo proposto na investigação:  compreender a constituição da dinâmica territorial fogueteira. 

Apoiamo-nos em Santos (1994a), o qual aborda o território considerado  como “formas, mas o território usado são objetos e ações, sinônimo de espaço  humano, espaço habitado” (SANTOS, 1994a, p. 15). Assim como, em Milton  Santos e Silveira (2000, p.11): “o território usado – e não o território em si  mesmo constitui um ator essencial da vida social” (SANTOS; SILVEIRA, 2000,  p. 11). 

Haesbaert (2004) nos auxiliou com o entendimento do território pelo viés  do poder, como sendo “o produto de uma relação desigual de forças,  envolvendo o domínio ou controle político-econômico do espaço e sua  apropriação simbólica” (HAESBAERT, 2004, p. 121), “sempre multidimensional  e multiescalar, material e imaterial, de dominação e apropriação ao mesmo  tempo” (Ibidem, p. 97). Foi também com este autor que a ideia de  territorialidade foi concebida como “um conjunto de relações que se originam  num sistema tridimensional sociedade – espaço – tempo em vias de atingir a  maior autonomia possível, compatível com os recursos do sistema”  (RAFFESTIN, 1993, p.160). Uma noção de territorialidade concebida a partir  das relações dos agentes e atores sociais e da produção do espaço,  mediatizadas. Assim sendo, quando alguém se refere às ocupações do  espaço, espaço ocupado, vivido, apropriado, está falando, com efeito, de  territorialidade. 

Conceituações que aplicadas ao contexto socioespacial produzido pelas  relações de produção resultantes da pirotecnia, especificamente do traque,  propiciaram um trabalho que se caracterizou como uma pesquisa descritiva explicativa, com abordagem qualitativa-quantitativa. A dimensão qualitativa permitiu explicar as relações construídas no território fogueteiro, principalmente  aquelas relacionadas às trabalhadoras de traque, assim como as informações  quantitativas permitiram solidez comparativa. Com base no empirismo, foram utilizados instrumentos da pesquisa: observação in loco, análise de documentos, registro  fotográfico, questionários e entrevistas. Um conjunto teórico-prático que  possibilitou a produção dos achados da pesquisa que estão sintetizados a  seguir: 

2.1 O local e a produção fogueteira 

Santo Antônio de Jesus – BA e os territórios fogueteiros: Bairros Irmã Dulce e São Paulo.

Fonte: Arquivo pessoal.

Santo Antônio de Jesus, cidade baiana do Território de Identidade do  Recôncavo, é historicamente um dinâmico centro comercial polo regional do  Território e uma grande produtora de fogos de artifício. Uma produção que se  faz na zona rural e na periferia, principalmente, em dois bairros: Irmã Dulce e  São Paulo. 

A atividade pirotécnica, com alto grau de periculosidade, já deixou, ao  longo do tempo, marcas profundas no território santantoniense. Uma produção  artesanal que devido a periculosidade da matéria-prima necessita(ria) de cuidados específicos quanto ao manuseio ou acondicionamento. O estalo de salão, traque de bater no chão ou simplesmente traque1 encabeça a produção de bombas, espadas, rojões, vulcões, traques de riscar,  cobrinhas, chuvinhas, sputniks. Os traques são denominados pelos produtores  de “miudeza” ou “produtos da terra”2. Uma terminologia local para os chamados  “produtos de salão” que se distinguem, na classificação segundo o tipo de  material do produto manufaturado, dos “produtos de explosivos”. 

A massa do traque é composta por nitrato de prata, areia, álcool e ácido  nítrico. Como a concentração de nitrato não ultrapassa 50%, o produto não é  considerado de alto risco. Portanto, conforme a legislação, a produção de  traques não carece do controle do Exército, constituindo-se uma atividade  legal! Essa legalidade ampara a posição dos produtores que não se preocupam  com os problemas existentes na fabricação de traque, havendo mesmo descaso quanto às formas do trabalho naquele mundo do trabalho pirotécnico.  Institui-se assim, a informalidade. A produção de fogos de artifício ocorre na  ilegalidade e também na clandestinidade, com traços marcantes de  informalidade. 

2.2 Um território e sua constituição 

Material utilizado para confecção do traque: Massa e papel de seda.

 Fonte: Arquivo pessoal.

A partir da produção da massa, a pirotécnica em território fogueteiro  santoantoniense é classificada como: a) circuito de produção formal; b) circuito  de produção informal. 

O circuito de produção formal é aquele em que a produção atende às  normas trabalhistas, conforme exigências do Ministério Público de Trabalho (MPT), e às normas de segurança do Exército. Quanto ao circuito de produção  informal, nele se encontram desde os produtos considerados legais – aqueles liberados pelo Exército, como os traques – até os que são controlados – e  portanto, proibidos de serem manufaturados –, porém produzidos na  clandestinidade. 

Uma produção realizada – principalmente em fábricas em fundo de  quintal – durante todo ano, mas que em função da demanda dos festejos  juninos, se intensifica a partir do mês de março, chegando ao ápice da  produção nos meses de maio e junho, sendo retomada com mais intensidade  somente no final de ano, devido às festividades de Ano Novo. 

É desenvolvida tanto na zona urbana quanto na zona rural, a depender  da produção e do tipo do produto: a) em território fogueteiro urbano concentra se a produção de bombinha, cobrinha, traque de riscar e traque; b) em território  fogueteiro rural, a produção de bombas, rojões, sputniks, pistolões, apitos  gaiatos, girândolas, vulcões, espadas, entre outros. Divisão que ocorre em  função da própria natureza da pirotecnia: aqueles de maior perigo são  acondicionados na zona rural embora haja registros de material acondicionado  em “depósitos”, na área urbana, de forma ilegal. 

 A abordagem sobre informalidade remete-nos ao olhar de Pedrão (2007),  que analisa tal categoria de trabalho no Estado da Bahia, esclarecendo que:  “Falta de emprego e os processos de exclusão que atingem a maior parte do  interior da Bahia revestem-se de maior gravidade nas regiões de maior  densidade demográfica”, em que o território do Recôncavo é exemplo  (PEDRÃO, 2007, p. 54). À luz dessa reflexão, o autor exemplifica a cidade de  Santo Antônio de Jesus-BA: 

O significado social da falta de emprego é um mercado de trabalho de baixos salários e de grande incerteza de renda, em que os trabalhadores são compelidos a aceitar essa remuneração insuficiente […] mediante a prática de salários abaixo do mínimo [em] anos de atividade regionalmente importantes, tais como a fabricação de fogos de artifício […] desenvolvendo-se novos mecanismos de circulação dos trabalhadores entre a esfera da informalidade e a do mercado formalizado de trabalho (PEDRÃO, 2007, p. 54). 

A divisão do trabalho da pirotecnia santantoniense também se  contrabalança pela competição, pela lei da oferta e da procura do mercado. A  produção de fogos de artifício é uma rede produtiva clandestina devido a não  legalização e regulamentação das fábricas e à forma irregular de aquisição e  de manuseio de matéria-prima para fabricação de produtos pirotécnicos,  principalmente, na etapa de embalagem 

O sistema produtivo de fogos de artifício santantoniense, na sua  manufatura de produtos de salão ou explosivos, na legalidade ou ilegalidade,  no urbano ou rural, aqui considerada uma rede clandestina, é uma cadeia  comercial dependente da relação produtor/mercado. Relação esta que  extrapola os limites do Recôncavo baiano e nacional. Ocorre uma relação  de complementaridade: Santo Antônio de Jesus (BA) alimenta a produção de  Santo Antônio do Monte (MG), especialmente em relação ao traque. Curioso  que os traques produzidos e embalados em Santo Antônio de Jesus possuem  embalagens em que o registro aponta o município de Antonio do Monte (MG)  como produtor. 

Então, essa produção resulta em relações espaciais, formando  territórios fogueteiros, baseados na presença de empresários, com relações  extraterritório, que controlam o território, mantendo estreitas relações informais  de trabalho, criando dependência da população que precisa sobreviver. 

2.3 Um território e suas gentes 

Trabalhadoras e seus tabuleiros.

Fonte: Justiça Global.

Desta intrincada rede – que absorve inclusive mão de obra de crianças e  de idosas que enrolam traques dentro de suas casas e/ou nas calçadas –, nos  interessa especialmente a divisão da produção por gênero. Especialmente  quanto ao traque, a produção é realizada por mulheres. Quiçá, em virtude da  agilidade no manuseio com o traque, as mulheres e crianças do gênero masculino  “ganharam” essa função. São mais de duas mil mulheres fazendo traques… elas fazem  em casa mesmo, pois o serviço é simples, não tem perigo não… não estourar que nem os  outros produtos e todas mulheres da família trabalha. (ENTREVISTA: Produtor, 65 anos).  

Trabalhadoras que se submetem aos riscos típicos da atividade  pirotécnica e aos poucos ganhos, principalmente, por falta de oportunidades,  de opção de trabalho. Uma “mais-valia oculta” pode ser atribuída a essa  produção: diferentemente de um operário em linha de produção de bens de  consumo, as fogueteiras têm baixa remuneração pela necessidade de relativa  invisibilidade e pelo risco verificados nessa esfera de trabalho. 

A visibilidade foi direcionada para mulheres, na sua imensa maioria mãe  solo que se encontra(va)m à margem da sociedade, sem opções de emprego,  usando sua força de trabalho para realizar um trabalho domiciliar que envolve  crianças, jovens e idosos, em um sistema de trabalho análogo a escravidão. A  questão da mulher, no território fogueteiro, evidencia o contexto feminino, no  processo estrutural daquele território; o papel da mulher na sociedade; e o  próprio processo de construção de ser mulher, que se estabelece no trabalho  domiciliar. 

O sistema de embalagem é a única etapa da produção de traque em que  o sexo masculino participa. Ressalte-se que, mesmo no trabalho infantil,  crianças do sexo masculino não confecionam traque. A tradicional posição  machista de designação das atividades domésticas: “Os homens não enrolam  traque. Eles têm vergonha. Só as mulheres, a gente sabe fazer isso, eles só embalam”  (ENTREVISTA: Trabalhadora, 22 anos). 

A produção de fogos de artifício envolve ações humanas, recursos materiais e revela um sistema produtivo perverso, num mundo de trabalho  precário emaranhado na informalidade e na clandestinidade. A clandestinidade  se caracteriza devido à natureza da matéria-prima utilizada na confecção do  produto. 

Todo este complexo sistema compreende: i)Massa – usada para  produção do estalo; ii)Manipulador; iii)Distribuidor; iv)Trabalhadora/enroladora; v)Empacotador/embaladeiro; vi)Produtor ou comerciante. 

O produtor é responsável por quase todo o processo; além de  comercializar, assume, muitas vezes, o papel de distribuidor e empacotador.  Cada produtor tem seu grupo de trabalho, que consiste em pequenas redes em  substrato de informalidade. Dessa maneira, a base produtiva difusora de fogos  de artifício, em Santo Antônio de Jesus, conforma-se a partir de divisão de  trabalho informal, constituindo uma rede pirotécnica, na medida em que produz,  distribui e comercializa a produção para além da região do Recôncavo. 

2.4 Um território e suas histórias 

Apenas uma histórica imagem.

Fonte: Arquivo pessoal.

Quanto à origem e temporalidade da atividade fogueteira no município  de Santo Antônio de Jesus, fogueteiros (produtores, trabalhadores/as)  asseguram que o ofício vem de longa data e que segue “uma certa tradição  familiar”. Uma trabalhadora de 39 anos afirmou: Desde que eu me conheço por  gente, desde pequenininha sempre estava lidando com fogos, minha mãe, minha avó trabalham  enrolando traque de bater e a minha filha desde antes de dez anos também já faz…  (ENTREVISTA: Trabalhadora, 39 anos). 

Em 1990, ocorreu um grave acidente com fogos de artifício na cidade  com duas vítimas fatais. Na madrugada de 18 de dezembro, no Alto de São  Benedito, uma área periférica da cidade explodiu um “depósito” clandestino de  fogos de artifício. Segundo artigo do jornal Folha das Palmeiras, de dezembro  de 1990, a explosão teve vinte pessoas acidentadas e vitimou dois menores.  Era uma casa que tinha como finalidade depositar a produção de fogos de  artifício, sendo que o “depósito” não atendia ao regimento do Exército sobre  acondicionamento do produto pirotécnico. 

O material foi identificado como de propriedade de Osvaldo Bastos dos  Prazeres, “Vardo dos Fogos”, um dos maiores produtores de fogos de artifício  da cidade/região. Os moradores tinham conhecimento do depósito clandestino  e alguns deles, trabalhadores fogueteiros, repetiam a frase dos  produtores/comerciantes: “são só umas cobrinhas, uns traques”… Ou seja, não viam  os riscos da atividade; tampouco os órgãos competentes alertavam sobre os  mesmos. 

Apesar do incidente de 1990, as atividades de produção de fogos  continuam em pleno vapor, seguindo a mesma relação de trabalho – clandestino, informal e precarizado. Assim se passaram oito anos, sem haver  nenhuma medida dos órgãos competentes sobre o trabalho pirotécnico  clandestino da cidade. A produção de fogos de artifício encontrava-se, no  território fogueteiro, em plena ascensão, mesmo com acidentes envolvendo  essa atividade. Os trabalhadores seguiam fabricando fogos de artifício em  grande escala, e o trabalho das mulheres, enrolando traque, intensificava-se. 

Então, no final da manhã do dia 11 de dezembro de 1998, ocorreu uma  explosão em uma das fábricas clandestinas de fogos de artifício, no município  de Santo Antônio de Jesus. O acidente teve como consequência a morte de  adultos e crianças, totalizando 64 (sessenta e quatro) vítimas, entre mulheres e  crianças. A tragédia descortinou um mundo de trabalho invisível, oculto para  muitos na cidade. O desnudamento desse cenário, dessa realidade camuflada  da indústria pirotécnica, mostrou a fronteira tênue entre a legalidade e a  clandestinidade e o trabalho análogo a escravidão no âmbito da produção de  fogos de artifício no município. 

Diante da tragédia ocorrida naquela fatídica manhã de dezembro, tornou-se manifesto que não existia segurança nas diversas tendas espalhadas  na área rural e periférica santantoniense: além do material para confecção de  fogos de artifício, os locais abrigavam toneladas de fogos para  comercialização, e os trabalhadores estavam com a produção em ritmo  acelerado para as demandas festivas do final de ano. 

Evidenciou-se um sistema de produção caracterizado por trabalho  invisível; seus desdobramentos descortinam a atividade produtiva de fogos  de artifício em Santo Antônio de Jesus e viabilizaram um território fogueteiro  repleto de contrastes entre fazeres e viveres. Finalmente, o episódio trouxe  para a cidade olhares de vários segmentos da sociedade, em âmbito estadual,  nacional e internacional, o que fomentou a implantação de políticas públicas e  trouxe à tona o debate sobre a temática e suas implicações. 

Em 1999, um ano após o acidente, foi criado o Projeto Fênix a partir da  ONG Instituto Fênix. Pelo projeto, em 2002, foi instituído o Condomínio de  Indústrias de Fogos (COEFÊNIX), um polo para produção de fogos com o  objetivo de trazer para o município soluções pertinentes ao mundo do trabalho  na área pirotécnica (SEBRAE, 2003). 

A nova política pública teve o envolvimento do Estado e da sociedade,  por meio de representantes de diversos segmentos. O Projeto Fênix buscou  parcerias com órgãos públicos, organizações civis e entidades religiosas, em  busca de soluções tanto para os produtores quanto para os trabalhadores. O  Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE)  fomentou ações e cursos profissionalizantes, além de treinamentos de  segurança, com o intuito de orientar os produtores a legalizarem a produção  pirotécnica, para o produtor sair da clandestinidade. Nesse contexto, uma das  preocupações era a aplicação do regimento trabalhista e o atendimento às  normas de segurança para a produção de fogos de artifício. 

Em suma, o SEBRAE traduzia uma política pública que tinha, em seu  bojo, como diretriz, “regulamentar, legalizar e revitalizar a atividade pirotécnica  e propiciar desenvolvimento para toda a comunidade em aspectos sociais e  econômicos, buscando o desenvolvimento integral do município” (SEBRAE,  2003). O Condomínio Fênix teve um investimento orçado em torno de três  milhões de reais, não contabilizados o terreno e a estrutura física onde se instalou. 

A envergadura do movimento em torno do projeto, fosse no âmbito  político ou econômico, facilitou sua assimilação e como era de se esperar,  diversos mecanismos de fixação acerca do projeto foram elaborados. Um deles  é uma cartilha, intitulada “Fênix: da tragédia a solução”, cuja finalidade era  atingir a população escolar e foi elaborada através de várias parcerias,  inclusive a Universidade do Estado da BAHIA – UNEB. O material foi utilizado,  nos dois primeiros anos, nas escolas públicas estadual e municipal. Hoje, só  resta uma cópia no arquivo público Municipal da cidade. 

A linguagem da cartilha refere-se à produção de fogos como uma  atividade natural e vocativa da comunidade a qual se traduz uma tradição  fabricar fogos. Busca-se criar uma naturalidade e submissão aos riscos natos  do tipo de produção. Outro aspecto fortemente tratado no texto diz respeito ao  emprego e à renda, como na assertiva de que mesmo, e apesar dos riscos, a atividade beneficia a comunidade. Tal ideia propõe uma situação na qual a  única alternativa de trabalho ou a principal fonte de renda pelo trabalho  assalariado estaria na produção de fogos. Um terceiro aspecto, de cunho  fortemente ideológico, está registrado que embora os fabricos clandestinos não  ofereçam nenhuma segurança, trabalhadores se arriscam em busca de uns  trocados. E nesse contexto, esse risco nato, atribuído à atividade e à  clandestinidade, impuseram seu ônus, não aos que verdadeiramente se  beneficiaram da atividade, mas aos que nela se debruçaram de forma silenciosa  e invisível. 

Ao final, mesmo com o empenho dos segmentos da sociedade  envolvidos na proposta, o projeto não teve êxito. 

2.5 Um território e sua tragédia anunciada

Acondicionamento de material para confecção de traque e para embalagem.

Fonte: Arquivo pessoal. 

Avaliar as questões que causaram o insucesso do projeto não foi uma  tarefa fácil, haja vista que os entrevistados, fosse por questões políticas ou  pessoais, não se sentiram à vontade para falar sobre o assunto. Preferiram  falar de forma abstrata sobre o projeto. 

Segundo Toneto, ex-Secretário Municipal de Desenvolvimento  Econômico e Meio Ambiente e empresário local, “o governo do Estado investiu  mais de três milhões para a estruturação do condomínio, mas houve  ingerência” e relata estratégias políticas inviabilizaram o Projeto Fênix: 

O condomínio não chegou a ser instalado, não foi criado o estatuto do condomínio. A primeira empresa, Cosme e Damião, foi criada de forma “indicada”, sem uma manifestação espontânea, e juntaram [sic] sócios que não tinham afinidades pessoais e nem experiência empresarial […] e era monitorada por terceiros com foco principal na “marketingzação” de um modelo, um mero teatro e com essa característica foi um fracasso gerencial. Teve uma empresa que fechou assim que conseguiu o empréstimo da DESENBAHIA. A posteriori, o Estado contemplou três empresas, oriundas de outro estado, que, em minha opinião, elas vieram apenas para “sufocar” a produção de Santo Antonio de Jesus, pois se viabilizasse a produção de fogos, na especialidade que é a produção de estalos, [a produção local] seria concorrente deles. Com a instalação finalizaria o modelo existente que é mais rentável (ENTREVISTA: José C.Toneto, 2015). 

Outro fator mencionado para o insucesso do projeto foi a indisposição  dos grandes empresários de pirotecnia da região que, embora tivessem  garantida uma área, não mostraram interesse em instalarem-se no condomínio,  visto que, os mesmos não tinham necessidades de recursos financeiros nem  de “suporte territorial”. De fato, esses empresários estavam habituados a  manter o império dos fogos na clandestinidade, com obtenção de bons lucros  marginais. Para eles, não interessava legalizar a atividade, pois, mesmo com acidentes e tragédias, a garantia da impunidade se mantinha. Assim sendo,  ainda é verificada uma rede clandestina de produção de fogos de artifício em  Santo Antônio de Jesus e região. 

Ailton José dos Santos, coordenador do Polo Sindical esclarece que: 

O Projeto Fênix foi criado com o objetivo de agregar os trabalhadores que estavam em condição de trabalho clandestino e oferecer ao trabalhador condições de produzir e de vender de forma regular. Mas a Secretaria de Indústria e Comércio do Estado não deu atenção aos pequenos e médios produtores. Entregou o projeto em mãos de empresários que não tinham envolvimento com fogos nem compromisso com os trabalhadores, eles só se beneficiaram com o projeto, seus interesses eram particulares, se aproveitaram do poder do cargo e não [se preocuparam] com a situação dos pequenos produtores. Tiveram empresas laranja, criadas para atender a um grupo; teve benefícios para pessoas da família que se atêm à produção de fogos aqui em Santo Antonio e na região. Veio o empresário de Santo Antonio do Monte, com incentivos que se instalaram e se beneficiaram dos acordos e propostas, mas, com a exigência do Exército de todo o processo ser regulamentado, eles não ficaram […]  (ENTREVISTA: Ailton J. Santos, Coordenador do Polo Sindical, 2015). 

Reativando o mesmo contexto, um funcionário do SEBRAE corrobora a  avaliação sobre o fracasso do Condomínio e ressalta que o grande equívoco foi  o modelo implantado no Condomínio Fênix. No propósito de servir a muitos  com a formação de empresas, formaram-se grupos que ou continham  membros que não eram produtores; ou o eram, mas tinham divergências de  natureza diversa, ausência de afinidades empresarial e comercial. Essa  situação resultou num erro gerencial que culminou no fracasso do projeto. 

De acordo com o SEBRAE, as quatro fábricas pirotécnicas implantadas  no condomínio fracassaram, e com elas também fracassou o projeto. Em 2004,  a área foi devolvida à Superintendência de Desenvolvimento de Indústria e  Comércio (SUDIC). Em 2013, foi destinada à ampliação do Distrito Industrial. 

Ante o fracasso do Condomínio Fênix e por não terem sido  contemplados com o projeto criaram a Associação dos Produtores de Fogos de  Santo Antônio de Jesus (ASFOGOS). Seu objetivo é (era) dar amparo legal aos  produtores no campo da legalidade e, também, oferecer-lhes logística, cedendo  espaços adequados para produção dos fogueteiros. 

Apesar do fracasso do Condomínio Fênix e da desativação do Projeto  Fênix, a ASFOGOS, o poder público, destacam como conquista, a criação da Lei Municipal para fiscalização e regulamentação das atividades pirotécnicas  (LEI N° 665/99). Por meio dessa norma, liberou-se a produção de traque, tendo  em vista que, segundo o Exército, o produto não é explosivo (sic). A medida  não sanou, tampouco amenizou os problemas referentes ao trabalho precário e  ao trabalho infantil. A legalização da produção de traque nas residências  escamoteou a utilização do trabalho feminino e do trabalho infantil. O discurso  da legalização foi apropriado pelos produtores de fogos de artifício para  justificar a continuidade da forma de produção do traque de salão: o trabalho  domiciliar precário. 

Em paralelo, contrapondo-se ao Projeto Fênix, após a tragédia de 11 de  dezembro de 1998, foi criado, em 1999, o Movimento 11 de Dezembro.  Formado por familiares das vítimas e por sobreviventes do incidente, com  apoio de entidades religiosas e de instituições civis quanto à criação e à  estruturação do mesmo. O objetivo do movimento é buscar justiça social,  sobretudo para os órfãos e os sobreviventes e direitos trabalhistas. Seus  integrantes vivem, até os dias atuais, em luta constante por reparação. 

Mesmo passado tantos anos, uma mãe que perdeu a filha na explosão  fala, relata com muito enternecimento, sobre o contexto das fogueteiras: 

Depois da tragédia a gente fazia caminhada no dia 11 de cada mês. E aí foi fundado o Movimento 11 de Dezembro, que nos deu força e união para lutar contra os que ganham dinheiro com os fogos. O Vardo [referindo-se a Osvaldo Prazeres Bastos, grande produtor, proprietário da tenda que explodiu] sempre lucrou e tem poder e dinheiro pra fazer o que quer, mas com o movimento a gente teve apoio e força pra lutar. O movimento tem de ser assim mesmo, de luta… Tem desunião, mas eu estou satisfeita, porque o movimento serviu para ajudar a lutar pela justiça, que demora, mas queira Deus não vai faltar. Quando aconteceu o acidente, nós, por sermos pobres [sic], não tinha a quem recorrer… [suspiros]. A nossa ajuda foi da igreja, e o Padre Luiz foi buscar recursos na Itália; chegou aqui, perguntou pra todas as mães do movimento se a gente queria a creche ou o dinheiro, que ele dividia o dinheiro que tinha conseguido. Nós pedimos a creche, para nossas crianças ter [sic] onde ficar, e a gente ir buscar trabalho em outras coisas fora dos fogos. Ele tinha um terreno e, com o dinheiro, fez essa creche, e é aqui que eu e muitas mulheres trabalhamos e continuamos na luta […] (ENTREVISTA: Ex fogueteira, funcionária da Creche 11 de Dezembro, 2015). 

Uma integrante do Movimento, que perdeu uma irmã, avalia que,  embora tenha havido desleixo nos campos jurídico e governamental, a  comunidade obteve conquistas a partir dos esforços e ações do Movimento 11 de Dezembro. Exemplo disso é a criação da Creche 11 de Dezembro, fundada com o apoio de uma instituição religiosa e de ONGs de direitos humanos. 

O Movimento 11 de Dezembro e a Rede Social de Justiça e Direitos  Humanos abriram um processo contra a União em âmbito Federal. O juiz do  Tribunal da Justiça Federal determinou, por meio de uma liminar, que o  Exército pagasse uma pensão, no valor de um salário mínimo, para cada  criança órfã. Além do processo, houve denúncia para a Comissão  Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados  Americanos (OEA), que abriu o caso, em maio de 2002, e solicitou informações  sobre as ações do governo brasileiro de antes, durante e depois da explosão.  Os peticionários, além do Movimento 11 de Dezembro, foram as seguintes  entidades: Fórum de Direitos Humanos de Santo Antônio de Jesus, Polo  Sindical, Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa da Bahia,  Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, ONG Justiça Global e  Rede Social de Justiça Global. 

Devido à morosidade com relação à tramitação e à ausência de medidas  cabíveis quanto à fiscalização, produção e controle das atividades pirotécnicas e a presença do trabalho, o Movimento 11 de Dezembro e outras entidades  acionaram a Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH da  Organização dos Estados Americanos (OEA). No processo, o Estado foi  responsabilizado pela tragédia. Este, por sua vez, assegurou, perante a Ordem  dos Advogados do Brasil (OAB), reparação moral e material às vítimas da  tragédia. 

A tragédia de 11 de dezembro, na fazenda Juerana, trouxe à tona um  universo quase que oculto da imensa maioria das pessoas em Santo Antônio  de Jesus, na Bahia, no Brasil e também no mundo. A tragédia e seus  desdobramentos evidenciaram a necessidade de uma nova organização em  torno da atividade pirotécnica. E um novo modelo tentou-se instaurar de fato,  cuja tônica não foi o empoderamento das trabalhadoras desta atividade, mas  protagonizado por outros atores como os produtores. Esses, de certa forma,  centralizaram e direcionaram o processo da atividade fogueteira – e ainda o  fazem. Entre a intencionalidade e o poder imagético desse instrumento de  divulgação, dessa cartilha, podemos observar, em suma, tal direcionamento. 

Nesse contexto, a realidade tem, no palco do território fogueteiro, atores, que  saem das cinzas ao labor, a conformação a seguir a vida a submissão do  trabalho pirotécnico. 

Em 2015, o processo contra os donos da fábrica clandestina encontra-se em tramitação. Inicialmente, o caso tramitou na cidade de Santo Antônio de  Jesus, mas, após o primeiro julgamento, do qual os réus saíram impunes, e  tendo em vista a influência dos fabricantes de fogos na cidade, preferiu-se  transferir o processo para Salvador. Os réus, a maioria da família Prazeres, a  qual domina a atividade pirotécnica na cidade e na região. Embora tenham  sido condenados, no último julgamento, os réus recorreram, por agravo, ao  Supremo Tribunal de Justiça, que ainda não tinha se manifestado. 

Frente às informações colhidas na investigação, foram traçadas, em  2015, as seguintes constatações: 

2.6 Uma territoriedade a ser desconstruída

A presidente do Movimento 11 de Dezembro Dona Dolores, demonstrou revolta com a forma em que a justiça vem tratando o caso: “as tendas de fogos continuam  clandestinas e a Justiça, neste ano fechou os olhos. Tenho vontade de me mudar  para um lugar bem longe para não continuar a ver a decepção que vivemos nesse  país. Nós só queremos que as famílias dos envolvidos tenham seus direitos e que a  Justiça faça Justiça, tomando medidas para que o comércio de fogos seja feito da  maneira correta”, pediu. 
Tribuna do Recôncavo, editado pela Voz Bahia, 18/06/2015. 

As tentativas de mudanças nos âmbitos empresarial, gerencial e trabalhista não surtiram efeitos no sistema de produção de fogos de artifício da  cidade. Apesar da tragédia e do tempo percorrido, não houve de fato  contribuições na organização socioespacial que fossem relevantes e tenham  trazido mudanças na dinâmica socioespacial ou nas relações de trabalho da  produção de fogos de artifício.

Na rede da produção pirotécnica, ocorrem relações conflituosas, que  têm rebatimento no território. Esse, por sua vez, ao tecer as vivências das  fogueteiras gera especificidades ao território e institui a territorialidade. 

Embora realizada de forma precária, a produção de fogos de artifício  contribui para a sobrevivência daquelas mulheres, das famílias, assim como  para a organização de espaços da cidade, com a formação de territórios fogueteiros controlados pelos comerciantes locais.  

A grande conquista social do Movimento 11 de Dezembro é a  mobilização que o mesmo consegue realizar em uma cidade que coloca venda  nos olhos, para não ver o cotidiano das mulheres e das crianças envolvidas  nos bastidores do trabalho pirotécnico, e que só os descobre para ver o show  pirotécnico. Todo ano, no mês da tragédia, o Movimento mobiliza setores da  sociedade e realiza encontros clamando justiça social, o que se verifica na  imprensa, os quais colocam em pauta a problemática da produção de fogos de  artifício na cidade. 

3. 2019 – A ATUALIZAÇÃO 

Desde a defesa da tese Dinâmica socioespacial da produção de fogos  de artifício em Santo Antônio de Jesus – BA: território fogueteiro passaram-se  anos, um pequeno espaço de tempo muito intenso para o Brasil intercortado  com o acontecimento de tantos anos da tragédia. 

A dinâmica territorial deste período provocou alterações de territórios? Quais permanências podem ser mantidas? 

Como primeira informação selecionamos fato alvissareiro: no final de  2018, nos 20 anos da tragédia, após petição do Movimento 11 de Dezembro,  da Justiça Global e da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, a Comissão  Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, em audiência ocorrida em janeiro  de 2020, tornou o Brasil réu no caso “Empregados da Fábrica de Fogos de  Santo Antônio de Jesus e seus Familiares Vs. Brasil”. Em virtude da  concernência da tese uma das autoras deste artigo foi convidada para ser  Perita no caso. O documento constituiu embasamento para a Corte IDH proferir  a sentença. 

A motivação do requerimento foi o fato de o Estado não ter cumprido o acordo perante a Organização dos Estados (OEA), de reparar moral e  materialmente as vítimas. Em 2018 a CIDH já havia reconhecido a  responsabilidade do Brasil nas mortes e consequências  causadas pela explosão, assim como nas violações aos direitos da criança, do  trabalho e das garantias judiciais e proteção judicial. 

No tocante à questão judicial foram instalados quatro processos pela  tragédia: 1. Penal; 2. Civil; 3. Trabalhista e 4. Administrativo que tramitaram na  justiça (CIDH, 2018). Na esfera penal houve acordo o qual foi pago  parcialmente às vítimas das famílias. Na esfera criminal os responsáveis: o  dono da fazenda, quatro filhos e três funcionários foram a júri popular. Os  funcionários foram absorvidos e o dono da fábrica e seus filhos foram  condenados com penas entre 9 e 10 anos, porém não foram presos.  

Na continuidade da luta por justiça social e em busca dos direitos  trabalhistas, o Movimento 11 de Dezembro, atual Instituto 11 de Dezembro, se mobiliza – anos após anos – na data em que ocorreu a tragédia (11 de  dezembro), solicitando providência para cumprimento das questões judiciais.  Após a sentença da Corte Interamericana dos Direitos Humanos – CIDH, de 15  de julho de 2020, a qual condenou o Brasil, no “Caso Empregados da Fábrica  de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares Vs. No Brasil as ações do  Instituto 11 de Dezembro intensificaram.  

A memória está viva e ainda há sofrimentos naquelas mulheres que, a  cada luta na justiça, revive aquela tragédia. E quanto às paisagens dos bairros  Irmã Dulce e São Paulo? 

No cenário atual não se vê mais tantas mulheres em suas portas  enrolando traque, imagem tão viva, mesmo em outros tipos de produção – das  produções artesanais. Parte da produção de traque adentrar nas residências,  saindo das calçadas para cômodos e quintais das moradias daquelas mulheres  periféricas. Acontece que nesses longos anos, a produção tem deixado de ser  artesanal: uma parte da mão de obra caseira foi substituída pelas máquinas  importadas da China, embora ainda haja produção clandestina naquele território  fogueteiro. 

A pesquisa constatou que as mulheres fogueteiras eram afrodescendentes com baixa escolaridade e viviam em condições de pobreza  estrutural e, por estar nessa condição, desenvolviam a atividade pirotécnica.  Trabalhavam em situações de informalidade e, até, clandestinidade em  condições de trabalho insalubre e precária com ausência de política de  prevenção sobre segurança como equipamentos de proteção individual,  treinamento ou capacitação para executar seu trabalho, tampouco instruções  para evitar acidentes de trabalho. Tais fatores instalados naquele mundo do  trabalho pirotécnico gerou a insegurança e causou a tragédia.  

Embora no país tenha proibição do trabalho infantil, também nessa  atividade, devido aos fatores acima mencionados, o trabalho infantil era  realidade naquele território, tal fato foi constatado com o número de vitimas da  tragédia: das 64 pessoas mortas 22 eram crianças e adolescentes que  exerciam a atividade em condições de trabalho análogo a escravidão.  

As tradições de barracas de venda de fogos que se instalam às margens  da BR 101, no mês de junho, ainda permanecem agora abastecidas, também,  por produtos made in China e pelas grandes empresas instaladas no Sul do  país numa flagrante evasão de divisas do município com produtos fabricados  em Santo Antônio de Jesus-BA. 

Boa parte da produção migrou para Muniz Ferreira e São Félix entre  outros municípios circunvizinhos, fator que pode ser atribuído, também ou  principalmente, pela falta de visão dos gestores públicos em um momento de  desativação, em parte, das atividades pirotécnicas no município e pela  ausência de políticas públicas, em suas dimensões, em escala nação, estadual  e municipal.  

Assim, se faz necessário intensificar ações com políticas públicas que  acatem a defesa do mundo do trabalho das mulheres e ações de órgãos  competentes que tenham como objetivo combater a ilegalidade e fiscalizar o  trabalho infantil. 

Neste contexto, após duas décadas e meia, ainda há que deter o olhar  sobre a questão do trabalho feminino e, também, do trabalho infantil para que o  mundo do trabalho atenda a necessidade de sobrevivência daquelas mulheres,  em sua imensa maioria mães solo e de suas crianças!


1A denominação “estalo de salão” costuma estar na embalagem do produto, mas o mesmo é chamado  pelas trabalhadoras de traque e/ou traque de bater no chão. No trabalho utilizamos o termo traque.
2As informações sobre os fogos de artifício foram obtidas na ASFOGOS – Associação dos   produtores de fogos de artifício de Santo Antônio de Jesus – e no Exército.

REFERÊNCIAS 

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CIDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Empregados da Fábrica de Fogos  de Santo Antônio de Jesus e seus Familiares VS. Brasil, 2020. Exceções Preliminares,  Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 15 de julho de 2020. Disponível:https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_407_esp.pdf 

CIDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso empregados da fábrica de fogos de  Santo Antônio de Jesus e seus familiares VS. Brasil. Informe Nº 25/18, Caso 12.428.  Admissibilidade e Mérito. Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e  seus familiares. Brasil, 2 de março de 2018. 

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TOMASONI, S.M.R.P. Dinâmica socioespacial da produção de fogos de artifício em Santo  Antônio de Jesus-BA: Território fogueteiro. Tese de Doutorado: UFS, 2015.  


1Doutora em Geografia pela UFS. Docente da UNEB, stomasoni@uneb.br
2Doutora em Educação pela UFBA. Docente da UFBA, misc@ufba.br