FEMALE AGING IN LÍVIA GARCIA-ROZA
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10569365
Fabrícia Gonçalves Amaral Pontes
Aleyxo Luiz Rocha Santos
Ana Carolina Sobota Vasconcelos
Edinaura Rios Cunha Hugho
Allex Neves Pontes
Josy Barros Noleto de Souza
Márcia Ferreira Sales
Maria de Jesus Gama Lima Strasser
Maria Dilce Wânia Rodrigues de A. Nascimento
Nagila Pereira Firmo
Nelzir Martins Costa
Raimundo Célio Pedreira
Sara Janai Corado Lopes
Vanda Moreira Tavares Araujo
Resumo: Este artigo trata-se de uma pesquisa explicativa, documental e bibliográfica sobre a percepção do envelhecimento feminino, a partir das obras literárias Milamor e Amor em dois tempos, de Lívia Garcia-Roza. Como aporte teórico temos: Del Priore, Simone de Beauvoir, dentre outros estudiosos do envelhecimento feminino e feminismo.
Palavras-chave: Literatura brasileira contemporânea. Autoria feminina. Envelhecimento feminino. Corpo.
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa iniciou-se a partir do interesse pela obra Milamor (2008) de Lívia Garcia- Roza, escritora contemporânea que estreia na literatura em 1995, angariando o prêmio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) – Selo Altamente Recomendável, pela escrita da obra o Quarto de Menina. Ao todo, sua obra é composta de vinte e uma obras, de gêneros distintos: romances, contos, crônicas e infanto-juvenil. Outros prêmios foram conquistados na categoria romance, tornando-se uma autora reconhecida pela crítica literária.
Dito de outro modo, o envelhecimento é um acontecimento recorrente para homens e mulheres, todavia, como vivemos numa sociedade midiática, onde os mais diversos discursos sobre como a mulher deve se portar têm mais visibilidade são dominantes, em se tratando delas, a condição de inferiorização é evidente se comparada com os homens.
Na contemporaneidade, são inúmeros os recursos disponíveis no mercado para que a mulher permaneça numa constante busca por jovialidade, num patamar, muitas vezes inatingíveis às exigências de um grupo e/ou ao mercado de trabalho. Tal fato pode leva-las a problemas psicológicos por se sentirem inferiores e inúteis em meio a tantas exigências.
Nessa linha de raciocínio, o discurso do mercado de trabalho que a mídia coloca em circulação pode ser compreendido como uma herança da Revolução Industrial por priorizar pessoas produtivas, proativas, em pleno vigor, logo, caso a mulher não possua esses critérios, não terá como se manter no mercado de trabalho.
Em comparação com a contemporaneidade, séculos atrás chegar à velhice era uma situação oposta ao que vivenciamos hoje, ou seja, era digno de respeito envelhecer. Atualmente, os arranjos familiares se modificaram e muitas famílias possuem como sustentáculo os avós. Precisamente, as avós.
Essa alteração na constituição da família reforça nossa inquietação quanto ao papel da mulher envelhecida, pois muitas delas provem o sustento e a moradia dos filhos, netos e respectivos genros e noras. Restando muitas vezes para si um quartinho nos fundos da casa que é sua.
Essa nova estruturação familiar nos coloca a problematizar as seguintes questões: Por que as mulheres envelhecidas são silenciadas? O discurso do envelhecimento ativo abrange a todas elas? Fala-se tanto em progresso, avanços, mas e o olhar direcionado às mulheres em envelhecimento, por que continua o de outrora?
Metodologicamente, sob o viés qualitativo, temos uma pesquisa exploratória, bibliográfica e documental por ter a finalidade de desenvolver e esclarecer como o envelhecimento feminino se difere do masculino e ainda, tem estreita relação com o poder aquisitivo do sujeito.
Para tanto, partimos da tese que qualidade de vida ou ausência dela no envelhecimento feminino está diretamente relacionada às questões como: raça, gênero e, poder aquisitivo, pois muitas mulheres vivem em condições de abandono material, mesmo sendo aposentadas. Outras são exploradas financeiramente e/ou trabalham como domésticas dos filho(a)s, além da solidão afetiva acompanhada, isto é, mesmo com filhos, netos e maridos, essas mulheres são negligenciadas.
Desse modo, seria inviável tentarmos entender o envelhecimento feminino levando em consideração apenas o aspecto biológico. Assim, justifica-se investigar a questão do gênero feminino na literatura brasileira contemporânea de autoria feminina com os olhares voltados para a geração/idade, pois muitos estudiosos desdobram seus esforços sobre gênero, raça/etnia, classe social e/ou orientação sexual, todavia, em se tratando do etarismo feminino, ainda precisamos avançar.
Para tanto, elegemos como corpus analítico as protagonistas narradoras das obras (Millamor e Amor e dois tempos), de autoria de Lívia Garcia-Roza. No decorrer das páginas problematizaremos sobre esse sujeito indizível, silenciado: o corpo feminino, precisamente o corpo feminino envelhecido.
2 O ENVELHECIMENTO FEMININO
São muitas as questões que envolvem o envelhecimento feminino. O tabu sobre o corpo envelhecido, a sexualidade e, em se tratando da ressignificação da vida na mulher envelhecida, nesta pesquisa esses assuntos se entrecruzam. Conforme pontua Simone de Beauvoir em A velhice (1990), quando o assunto é a velhice na história da humanidade fala-se, sobretudo de homens velhos, pois as mulheres não estavam em evidência nos registros mais antigos sobre o envelhecimento humano. Tal fato era recorrente porque, segundo as palavras da pensadora, o destino de uma mulher é ser, aos olhos dos homens um objeto erótico, ao tornar-se velha e feia, ele perde o lugar que lhe é destinado na sociedade (Beauvoir, 1990, p. 152).
Para Ecléa Bosi na obra Memória e sociedade: lembranças de velhos (1987), além de ser um destino do indivíduo, a velhice é uma categoria social. Tem um estatuto contingente, pois cada sociedade vive de forma diferente o declínio biológico (Bosi, 1987, p. 77).
Em se tratando da exigência do vigor físico a todo custo, existe um paradoxo conforme um documento da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República confirmando uma inversão na pirâmide populacional brasileira em que uma das maiores conquistas de um povo em seu processo de humanização é o processo de envelhecimento de sua população (BRASIL, 2014).
E mais: o mesmo documento confirma a feminização da velhice, isto é, o quantitativo de mulheres com idade acima dos sessenta anos é superior ao dos homens. Todavia, infelizmente esse índice altíssimo de mulheres envelhecidas ainda não modificou a mentalidade da população brasileira sobre as implicações e, vulnerabilidades, do que é ser velho no Brasil.
Partindo, especificamente para a questão do corpo feminino envelhecido, é notória a exigência das cobranças sociais para que a mulher mantenha os padrões de beleza vigentes como os cabelos sempre pintados, mantenha-se magra, forte. A mídia reforça esses estereótipos sempre divulgando um produto que resolva o “problema” da velhice, refletido nos aspectos estéticos dessas mulheres.
Destarte, em se tratando do corpo masculino, o tratamento é outro. Os cabelos grisalhos são superestimados, a barriguinha saliente é tida como uma “herança”, e o fato de envolverem-se com uma mulher mais jovem tem o sentido de poder, ao contrário das mulheres que nesses casos são vistas como interesseiras, depravadas, ou seja, reforça o peso de uma condenação sobre as mulheres cujos parceiros são mais jovens e ainda, conserva o elogio aos homens que conseguem mulheres mais jovens, segundo Marilena Chauí em Repressão social: esse nossa (des) conhecida (1984).
Sendo assim, as análises das obras aqui em evidência tornam-se pertinentes porque problematizam, as representações do corpo feminino envelhecido na Literatura Brasileira Contemporânea. Enfatizamos que nos questionamos: o que seria contemporâneo para a literatura? Logo, nos baseamos na definição do pensador italiano Giorgio na obra O que é contemporâneo? e outros ensaios (2009,) para quem:
Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado a suas pretensões e é portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo (Agamben, 2009, p. 58-59).
A partir desse excerto entende-se que ao mesmo tempo em que para se conseguir acessar o presente há que se recorrer ao passado e debruçar-se sobre ele, há que se distanciar para se ter mais clareza e entendimento sobre o objeto observado.
Assim, pretende-se dar visibilidade aos modos de representação do corpo feminino envelhecido mencionado pelo encadeamento dos pensamentos das personagens que funcionam numa movimentação entre as rememorados do passado e de como estão no presente – degradado e silenciado.
A partir do exposto, o corpo feminino é compreendido como um sujeito ora onipresente nas imagens, esculturas, pinturas, nos discursos médicos, midiáticos, publicitários, objeto de desejo, sobre o qual se fala, classifica, conceitua, porém, é opaco, indizível pelas próprias mulheres. Fala-se dele, mas não é falado como as mulheres o percebem, o sentem, muito menos as mulheres envelhecidas. Nessas circunstâncias silenciam-no.
3 AS MULHERES DE LÍVIA GARCIA-ROZA
A literatura contemporânea brasileira feminina, apesar de ter um percentual significativo de diferença entre a produção de autoria masculina, tem apontado uma produção expressiva de publicação de autoras, dentre elas a escritora Lívia Garcia-Roza, estreando na literatura em 1995 com a publicação dos mais diversificados gêneros, conquistando a aceitação do público leitor, talvez pela sua “despretensiosa” intenção de falar da mulher em circunstâncias dentro e fora do âmbito familiar.
A autora faz uso com muita sensibilidade de uma linguagem acessível para retratar de temáticas abordadas como relacionamentos que se desgastam cruelmente, a incomunicabilidade nas famílias contemporâneas, relacionamentos na maturidade, o aborto, a solidão, a violência psicológica, relacionamentos fluidos, dentre outros, numa perspectiva feminina. Geralmente suas obras se voltam para acontecimentos dentro do âmbito familiar.
Em sua maioria são mulheres que refletem sobre seu papel na família, suas culpas, desejos, conflitos existenciais provocados por uma sociedade predominantemente patriarcal e conservadora. Nesse cenário, as protagonistas em sua maioria são mulheres entre quarenta e sessenta anos que avaliam seu presente a partir do seu passado a partir de monólogos entrecortadas em tempos diferentes. A fragmentação se dá de forma crescente, algumas lacunas abertas sem respostas, ações se desenvolvem com agilidade, sempre revezando ação-reflexão, presente-passado.
Em se tratando das duas obras em evidência, temos duas protagonistas num mundo sofisticado de mulheres brancas, heterossexuais e financeiramente estabelecidas. Condições essas que fazem com que o envelhecimento feminino tenha outra perspectiva, pois essas têm acesso a médicos particulares, funcionários domésticos, viajam, frequentam restaurantes, falam várias línguas, não precisam prover a família; fato que as tornam mulheres privilegiadas em se tratando de um país de terceiro mundo como o Brasil onde a maioria da população é pobre.
Em Milamor (2008), Maria é a narradora-protagonista prestes a completar sessenta anos. É viúva e vive em companhia de sua filha. Em Amor em dois tempos (2014), Vivian, assim como Maria também é sexagenária, viúva e se envolve em um relacionamento amoroso com um homem casado – seu amor de infância. Nos dois romances as protagonistas refletem sobre suas histórias de amor, solidão e sexualidade, colocando em xeque a redescoberta de seus corpos de mulheres envelhecidas.
Essas duas personagens pertencem a uma parcela significativa da população que a cada dia cresce no Brasil e no mundo, as pessoas na maturidade. O mundo está envelhecendo e a autora, com muita sutileza e riqueza de detalhes lança luz sobre possíveis dramas vivenciados por mulheres dessa geração. São mulheres do século XX vivendo no século XXI, contrastando os dilemas próprios do tempo, logo novas significações, novos valores, novos paradigmas e elas vão tentando se adequar.
Nada foge da contemporaneidade, apenas o passado que vem à tona com os coloridos ou não da infância. Em Milamor são lembranças de tempos difíceis de medo e incertezas infantis. A perda materna, a solidão infantil, a história do pai cheia de reticências, escondendo algo do passado relacionado à Segunda Guerra Mundial.
No início de sua fase adulta Maria perde o pai, mas não está sozinha, pois tem um relacionamento amoroso, casa-se, tem filhos e, logo após, uma separação traumática, casa-se novamente, mas sempre revivendo as fraturas do passado. Visualizamos assim uma mulher com questões existenciais mal resolvidas, quiçá resolvidas. Com a morte do segundo marido e, de acordo com a decisão da filha, foi viver com ela, dividir espaços, mas cada uma buscando manter, no mesmo espaço, suas individualidades.
A narrativa desdobra-se em pretérito e no presente da escrita. Maria era tradutora, aposentou-se e divide seu tempo em cuidados pessoais, conversas com amigas, momentos rápidos com a filha que é jornalista e está sempre envolvida com o trabalho ou com relacionamentos fluidos.
Vivendo numa solidão acompanhada, Maria divide seus diálogos com as samambaias:
“fui criada para falar pouco e baixo, para não incomodar as pessoas. E também para fazer tudo sozinha, sem ajuda de terceiros. Não me afastei da educação recebida, a não ser no que diz respeito a amizades. Sempre tive muitas amigas” (Garcia-Roza, 2008, p. 62).
As colocações da personagem explicitam ao leitor a rigidez da sua criação paterna, mas ainda assim não interferiu na sua vontade de viver um amor no outono da vida. Mesmo diante da forma como a filha lhe enxerga: “eu sonhando com uma vida nova, e minha filha querendo me envelhecer a força! (Garcia-Roza, 2008, p. 63)”, isto é, segundo a visão de sua filha, o que uma mulher em envelhecimento precisa é ficar reclusa em casa.
Maria é uma mulher que ao longo de sua existência cumpriu os papeis sociais tradicionalmente determinados (Beauvoir, 1967): filha, esposa, mãe, avó; vivendo quase sempre em função da família. Perdeu a mãe quando ainda era menina e o pai quando já era uma moça. Com o primeiro marido Paulo teve dois filhos. Esse os abandonou sem explicações. O segundo marido (Haroldo), após viverem alguns tranquilos anos juntos, morreu. Vitor, Maria Inês e os netos (filhos de Vitor), são os seus entes familiares.
Vitor quase não visita a mãe. Segundo ela, a justificativa da ausência do filho é a nora que tem ciúmes das amigas de Maria Inês: “Minha nora tem ciúmes das amigas de Maria Inês. Acha que nossa casa é um bordel! […] ela proíbe meu filho de vir aqui, e ele, por sua vez, não quer se incompatibilizar com a mulher […], portanto não aparece” (Garcia-Roza, 2008, p.14).
Maria Inês, uma mulher moderna, dedicada ao trabalho, bem resolvida financeiramente, sempre com namorados diferentes. Para não deixar sua mãe sozinha, decide trazê-la para sua casa: “Moramos bem, minha filha e eu, num bom apartamento, espaçoso, vazio, porque ela não gosta de móveis. Precisa se locomover – nos poucos momentos em que passa em casa –, sem nada ao redor, na amplidão” (Garcia-Roza, 2008, p.8, grifos nossos).
Aqui, podemos notar a solidão acompanhada em que Maria vive, pois sua filha precisa de espaço. E poder oferecer confortos materiais para a sua mãe é a maneira que ela tem de cuidar, logo, não consegue imaginar a mãe estabelecendo um romance. Em seguida em seguida ela reforça (2008, p.7):
“Não tive opção. Com a súbita morte de Haroldo e aproveitando-se da confusão do momento, Maria Inês me trouxe para a casa dela, que fica no alto de uma ladeira, no último prédio de uma rua de paralelepípedos, de difícil acesso (…) nunca pensei que fosse terminar meus dias encarapitada num morro”. (Garcia-Roza, 2008, p.7)
Porém, Maria apaixona-se por Alencar, um recém-viúvo, e utiliza várias estratégias para conquistá-lo, ou seja, as iniciativas sempre partem dela: “Tinha que pensar em tudo, qualquer falha e a esperança se perdia de vez. (…) Não gostaria que ele tivesse uma impressão errônea a meu respeito” (Garcia-Roza, 2008, p. 46-47).
Na obra Memória e sociedade: lembrança de velhos, a pensadora Ecléa Bosi (2009) traz pontuações também acerca da manipulação e do domínio que, normalmente recai sobre as pessoas envelhecidas. Para ela (2009, p. 78),
No interior das famílias a cumplicidade dos adultos em manejar os velhos, em imobilizá-los com cuidados para “seu próprio bem”. Em privá-los da liberdade de escolha, em torná-los cada vez mais dependentes “administrando” sua aposentadoria, obrigando-os a sair de seu canto, a mudar de casa (experiência terrível para o velho) e, por fim, submetendo-os à internação hospitalar. Se o idoso não cede à persuasão, à mentira, não se hesitará em usar a força. (Bosi, 2009, p.78)
Entre Maria e Alencar há vários encontros premeditados, alguns ela faz de conta que são casuais, mas são provocados por ela. Alencar parece corresponder, mas não toma atitudes de conquista. Tudo é organizado por Maria. A partir de algum tempo estabelece-se certo conhecimento entre ambos, questões familiares e amigos em comum. Maria, no entanto, está sempre na frente, instigada pelo desejo.
Ao completar seus 60 anos, ela reflete: “estava precisando ficar sozinha com os meus 60 anos. Saí caminhando, devagar, andei durante muito tempo, sem direção e também sem receio. Passo a passo, completando meus 60 anos (Garcia-Roza, 2008, p. 188)”.
Maria percebe o passar do tempo num tom melancólico. No entanto, ao ser surpreendida pelos filhos e amigas com uma comemoração surpresa pelos seus sessenta anos, seus pensamentos escuros dissipam-se. Nesse contexto ela ainda está disposta para o amor e consequentemente, observa os aspectos físicos de seu corpo, das roupas, e seu o modo com que se olha no espelho, se modifica.
Maria percebe que seu corpo está falido, a juventude passou: “apesar das dietas rigorosas, do constante esforço para ir à hidroginástica, e do longo percurso diário das caminhadas, meu corpo faliu” (Garcia-Roza, 2008, p.7). Porém, o reconhecimento das mudanças físicas não a impede de desejar a conquista amorosa novamente. Consulta o ginecologista, cerca-se de todos os cuidados necessários, mesmo tendo passado por momentos dolorosos ao lado de Paulo e se casado com Haroldo sem amá-lo, ainda vê em Alencar uma possibilidade.
Outra personagem feminina que merece ser destacada na obra Millamor é Adélia por representar o contraste da vida de Maria por ser uma mulher pobre, velha, sem aposentaria e ainda trabalhando como manicure para se sustentar, tendo em vista que nenhum salão a contratava mais pelo fato da idade que tem.
Não só, mas também por não ter mais um corpo que condiz beleza e estética que os empreendimentos de beleza exigem: “Adélia estava velha, não tinha aposentadoria, e nenhum salão aceitava mais contratá-la; restaram então as antigas clientes que se mantiveram fiéis e que se submetiam semanalmente aos tremores de suas mãos” (Garcia-Roza, 2008, p.75).
A velhice de Adélia demonstra a vulnerabilidade de uma mulher pobre envelhecida, representando como em decorrência do poder aquisitivo como a velhice pode ser feliz ou sofrida. Adélia é a representação da falta do poder aquisitivo para cuidar de si, dificilmente conseguirá manter seu sustento com o prolongamento da idade. Logo nos questionamos: por quem ela será amparada quando não tiver mais condições de trabalhar, quando suas clientes fiéis e, também envelhecidas não existirem mais?
De acordo com Matos e Soihet (2003), esse silêncio sobre o corpo feminino é de longa duração, inscrito na construção do pensamento simbólico da diferença entre sexos, e, sobretudo, reforçado pelo discurso médico ou político ou religioso. Para as autoras, na época contemporânea as circunstâncias mudaram, pois o corpo que antes era particular agora se tornou centro de saberes, poderes e consequentemente, o lugar de um discurso superabundante às vezes até verborrágico. Mas e o papel da mulher nesse cenário de complexidades?
Em se tratando da obra O Amor em dois tempos (2014), tem-se a narradora-protagonista Vívian, uma mulher também viúva, com muitas amigas, e mesmo em envelhecimento não se sente impedida pela idade para viver um grande amor. A narrativa transcorre no presente, com relatos do passado, principalmente sobre a infância que fazem parte do romance que está sendo escrito pela protagonista.
Ao mesmo tempo, são lembranças da personagem narradora relativas à sua infância no ambiente familiar e sua amizade com Laurinho, de cunho lúdico ou com conotações veladas de desejos adolescentes. Assim, se entrelaçam duas narrativas escritas simultaneamente pela mesma narradora personagem-protagonista. Ora é possível perceber que são fatos narrados para o livro encomendado por uma editora, ora são momentos lineares do fio existencial de Vivian.
A escrita vai tomando cada vez mais espaço na sua vida, publica livros e, enquanto ela nos conta sobre o seu reencontro com Laurinho, a narrativa encomendada e com data de entrega prevista, segue paralelamente no entrecruzando de um texto sobre o outro, tomando como ponto de partida os acontecimentos vivenciados por Vivian como um modo de atualização do texto citado por ela no decorrer da narrativa, indicando uma intertextualidade ao mesmo tempo um gênero autobiográfico.
Convém reforçar que o tema morte pode ser entendido como propulsor do desencadeamento das narrativas, isto é, antes da morte de seus maridos Maria e Vivian tinham um estilo de vida preestabelecido, em seguida, com a chegada da viuvez, acontece a transição do estado civil de casada para viúva, acompanhado de um recomeço – temos então a morte ocasionando uma desordem na vida dessas mulheres, os reencontros e as redescobertas do corpo, da sexualidade, da relação com os filhos e novos parceiros ordenam suas rotinas.
Nas palavras de Vivian (Garcia-Roza, 2014, p.9),
“Sou uma senhora, não propriamente idosa, mas uma senhora. Moro em uma casa confortável de altos e baixos no bairro dos Jardins, em São Paulo e vivo com relativa tranquilidade – digo “relativa” porque sou mãe -, tanto quanto se pode viver nos dias atuais quando de súbito a vida revelou sua face real. De um momento para outro se deu o desenlace de meu marido” (Garcia-Roza, 2014, p. 9).
Observa-se que é uma narrativa ágil, pontual e sem alardes, recorrendo à metáfora, “desenlace”. Agora ela sente-se uma mãe solitária de um único filho que mora no exterior, tem que cuidar de toda a burocracia do funeral do marido que em vida determinou que devesse ser cremado em sua terra natal (Salvador): “parece que quanto mais velhos nos tornamos, mais recuamos nas lembranças” (Garcia-Roza, 2014, p. 53).
Dito de outro modo, as ações do presente estão ligadas ao passado misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, “desloca” estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência (Bosi, 2004, p.47). Dessa forma, as lembranças da personagem-protagonista vão nos esclarecendo a importância de dois personagens na vida de Vivian: Conrado e Laurinho. Ambos povoam suas memórias. Enquanto carrega as cinzas do primeiro, do segundo, ela não tem conhecimento sobre sua vida.
Ao chegar a Salvador, juntamente com Hilda e as cinzas para serem depositadas em um determinado espaço físico que fez parte da memória afetiva de Conrado, uma surpresa acontece à Vivian, um reencontro inesperado com Laurinho- diminutivo afetivo, amigo e primeiro amor de infância.
Passados os primeiros instantes do encontro inusitado, a surpresa deu lugar às lembranças: “De um só golpe o presente desapareceu; fui arremetida à infância onde nós crianças brincávamos. Rodeada por todos outra vez. Sem saber, Laurinho me trazia o mundo e seus habitantes. O calor de outrora. A felicidade” (Garcia-Roza, 2014, p. 42).
Assim, como cada personagem tem sua relevância na literatura, notamos que ele, provavelmente, será o centro dos pensamentos da recente viúva. Entre os acontecimentos futuros a serem narrados temos uma expressiva reflexão existencial que a protagonista realiza sobre as relações afetivas. Elas se estendem da infância à sua vida presente.
O casamento com Conrado, uma vida que segue sem arroubos amorosos, a chegada do filho, um cotidiano sem alterações bruscas, entrecortado, com imagens e situações que definem um casamento sem afinidades aparentes, cada qual compartilhando o necessário, mas com uma vida interior regada por indagações e lembranças.
A narrativa segue entre as cenas em ambientes fechados, no hotel, restaurantes, residências, em espaços abertos andando por Salvador com Hilda, uma de suas amigas, sempre de humor oscilante e duvidoso. Assim, os dias seguem durante sua viagem a Salvador, com a tarefa de depositar as cinzas de Conrado.
Vivian cada vez mais envolvida emocionalmente com Laurinho e prestes a iniciar um relacionamento amoroso “clandestino”, não parece estar preocupada com o pensar do outro. Sua preocupação é recuperar afetos e desenterrar vivências cotidianas, através das lembranças, mas ao mesmo tempo em que as lembranças ornam seus momentos a sós, tem os pés no presente e na tarefa que deverá cumprir, em relação às cinzas do falecido marido. Para ela, a infância é um afeto que não se encerra (Garcia-Roza, 2014, p. 43).
Observa-se que a trama narrativa ao mesmo tempo em que aborda algumas temáticas que são os centros nervosos ficcionais, também abre lacunas para o conhecimento da narradora de si, do seu papel enquanto casada com Conrado, pois ao falar dele também fala de si, da sua condição de esposa, do lar e a descoberta da escrita como uma forma de superar a solidão acompanhada.
A desenvoltura de Vivian como uma mulher viúva é bem dinâmica. Ela percorre as ruas de Salvador, sai com Laurinho para jantares regados a música e vinhos, fugindo ao que se espera de uma “senhora” como ela se auto nomeia. Ela vive cada momento que estão lhe sendo apresentados por Laurinho:
“Estávamos liquidando a garrafa de vinho junto com a entrada (…) Um casal de idade bebendo desmesuradamente. (…) No final do jantar, tonta e confusa, eu deixava coisas caírem, franzia a toalha da mesa, ria à toa; descontrolada, enfim, Laurinho é simpático, alegre, carinhoso e loquaz. (…) “Vamos recriar nosso mundo, Vivi”, ele murmurou, e então, roçando meu rosto, seus lábios deslizaram até encontrarem os meus” (Garcia-Roza, 2014, p.63-65).
Ela se entrega aos prazeres da companhia de Laurinho, mesmo sabendo que ele era casado, que tinha que se desdobar, mentir para a esposa para se encontrar com ela. Temos uma senhora que se ajusta ao século XXI, quando a velhice recatada e caricata, em certa medida, abre espaço para que a mulher ocupe e frequente outros espaços, vivencie paixões, tome vinhos, ouça músicas, apaixone-se, seja alegre ao contrário de viver o luto até o fim de seus dias.
Embora, mesmo com toda a sua dinamicidade, Vivian tem consciência da mulher envelhecida que é e, das limitações da saúde, do seu corpo, dos cuidados que deve ter consigo e relembra de sua jovialidade:
“ao longo da vida me descobri uma mulher bonita. Fui uma menina feia. Bastante. Cresci desordenadamente, sem harmonia. Como se tivesse sido mal projetada. Dentes grandes e separados, orelhas acabanadas, pés enormes e baixinhas. Salva pelos olhos grandes, cristalinos. Um dia meu pai me disse que eu tinha olhos de cristal (…) que eu me lembro, foi o único elogio que eu recebi em toda a infância (GARCIA-ROZA, 2014, p.60)”.
A construção da identidade feminina é determinada pela idade, pelo vigor e beleza, consequentemente refletindo na sexualidade, nisso Del Priore (2020) nos ensina que o culto da mulher frágil deveria ser o refletido na etiqueta, nas mãos de dedos finos, unhas arredondadas e transparentes, nos pés minúsculos, cabelo longo e abundante, preso em enteados elaboradíssimos.
A cintura feminina era esmagada ou triturada, acentuando os seios aprisionados nos decotes – o peito pomba. Ressalta-se que as mulheres que não podiam ter filhos não eram “bem” vistas – eram tidas como mulheres secas ou amaldiçoadas por Deus, ou seja, senão podiam ter filhos, boas mulheres não eram e receberam o peso da mão divina.
Desse modo, as identidades femininas ora fixas e sólidas mudaram abruptamente, demonstrando que na maturidade ainda existem anseios, desejos, não realizados quando eram casadas e ainda existe uma busca por suas realizações. Nesse cenário convêm ressaltar que nem sempre o fato de serem mulheres vivendo só a solidão representa um fato negativo.
Os avanços tecnológicos, a seguridade social, as políticas públicas de proteção aos idosos e as condições à saúde contribuem para que o viver só seja sinônimo de independência e não o contrário pois, muitas vezes muitas mulheres são assujeitadas às ordens e vontades dos respectivos maridos e só passam a viver conforme acreditam, quando uma separação acontece (seja por morte ou por outro motivo qualquer). Dessa maneira, viver sozinha também pode expressar uma preferência (Debert, 1999).
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A representação da mulher contemporânea nas obras estudadas evidenciam como a realidade da mulher envelhecida ainda é muito restrita e repleta de questionamentos representadas pelas protagonistas sexagenárias que reconhecem seus corpos em declínio, porém, ainda buscam viver o envelhecimento de maneira significativa.
As obras da autora Lívia Garcia-Roza possuem protagonistas com idades diversas, mas, geralmente, são mulheres acima dos 30 anos que vivem dilemas amorosos, solidão, incertezas, dentre outros temas relacionados com a vida familiar e especificamente nas duas obras que tratam da velhice feminina Millamor e Amor em dois tempos.
A partir da produção das obras aqui estudadas a autora Lívia Garcia-Roza apresenta uma nova reconfiguração da velhice, a mulher abrindo espaços antes só possíveis aos homens. Ela procura representar uma nova possibilidade para as mulheres envelhecidas, mostra que a velhice atualmente, possui outra dinâmica, contrária àquela do luto da viuvez.
Em suma, a autora nos apresenta uma realidade possível para mulheres com o mesmo poder aquisitivo das personagens-protagonistas, isto é, dependendo do contexto social em que a mulher envelhecida viva, ela poderá ter uma vida semelhante à das personagens ou com implicações sociais como abandono, solidão social e emocional, fome, exclusão social, representados no papel da manicure Adélia, uma mulher também em envelhecimento.
REFERÊNCIAS
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