O DIREITO HUMANO AO DEVIDO PROCESSO JUSTO E A SUA TUTELA NO SISTEMA INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10452366


Daniel Ighor Leite Mota¹;
Luciana de Aboim Machado²;
Karine Pireddu Santana Machado³.


RESUMO

O presente trabalho aborda o direito humano ao devido processo justo e a sua tutela no sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Primeiramente, realiza-se uma abordagem da evolução histórica do direito humano ao devido processo justo, identificando-se a sua origem na Magna Carta de 1215 e a sua evolução nas constituições internas dos Estados. Realiza-se também uma análise da essência do direito ao devido processo legal e de quais elementos o caracterizam como um direito humano que garante o respeito a diversos outros direitos inerentes à dignidade da pessoa humana, verificando-se tanto o seu aspecto formal, que consiste no respeito às garantias na condução do processo, bem como o seu aspecto material que corresponde ao direito a uma decisão justa e proporcional. Destarte, analisa-se o sistema internacional de proteção aos direitos humanos, tanto o sistema global como os sistemas regionais e as suas principais fontes normativas, e como se deu o fenômeno da internacionalização dos direitos humanos. Por fim, aborda-se a tutela internacional do direito humano ao devido processo justo, verificando-se desde a sua proteção no sistema global, como também a sua previsão em sistemas regionais, europeu, interamericano e africano de proteção, e a sua importância para a concretização da proteção a todos os demais direitos garantidos constitucional e internacionalmente. 

Palavras-chave: Devido Processo Legal; Internacionalização dos Direitos Humanos.

ABSTRACT

The present work addresses the human right to due process and its protection in the international system for the protection of human rights. States, an approach was made to the historical evolution of the human to the fair process, if its origin in the Magna Carta of 1215, and its evolution in the internal constitutions of rights. A legal process of the essence of the right to human was also carried out due to the characterization as the right that guarantees the appearance of a human, several other rights inherent to aspects and elements of the human person, several other rights inherent to aspects of the human person, which consist of the both in aspects inherent to aspects of the human person in respect of guarantees in the conduct of the process, as well as its material consisting of the right to a decision and proportional. In this way, the international system for the protection of human rights, both global and regional systems, is governed by its main international norms as if the phenomenon of human rights. Finally, the international protection of the just is given, verifying the human from the protection in the global system, as well as its prediction in regional, European, inter-American and African systems and its origin for a continent of origin of protection for all. the other rights guaranteed constitutionally and internationally.

Keywords: Due Process of Law; Internationalization of Human Rights;

INTRODUÇÃO  

O direito ao devido processo justo é previsto constitucionalmente e na legislação infraconstitucional no direito interno brasileiro. Em verdade, reconhece-se o referido direito como um verdadeiro direito humano de toda pessoa. 

Com a internacionalização dos direitos humanos e a amplitude do sistema internacional de processo, faz-se necessário o estudo da tutela do direito ao devido processo justo pelo direito internacional dos direitos humanos, e da possibilidade de seu controle de convencionalidade. 

Para tanto, primeiramente se faz uma pesquisa sobre a evolução histórica do direito ao devido processo justo, identificando-se a sua origem na Magna Carta inglesa, e acerca da sua previsão posterior no ordenamento norte-americano, europeu e na américa latina. 

Destarte, realiza-se uma análise da natureza de direito humano do direito ao devido processo justo, e em que consiste esse direito, identificando-se que se trata de uma salvaguarda do cumprimento de diversas garantias processuais, o que é essencial ao respeito à dignidade da pessoa humana pelo Estado. 

Busca-se também realizar a análise do sistema internacional de proteção aos direitos humanos e a sua evolução, fazendo-se uma abordagem dos principais atos normativos do sistema global de proteção, também dos sistemas regionais, quais sejam europeu, interamericano e africano. 

Após a referida análise, aborda-se como se dá a tutela internacional do direito ao devido processo justo, identificando-se que todo o sistema internacional de proteção tutela o referido direito, seja o sistema global ou os sistemas regionais, tratando-se de uma pedra angular de todo o direito internacional dos direitos humanos. 

Sendo assim, através do método dedutivo de argumentação, pautado em pesquisa bibliográfica e legal, objetiva-se analisar a tutela do direito humano ao devido processo justo no sistema internacional de proteção aos direitos humanos. 

1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO HUMANO AO DEVIDO PROCESSO JUSTO 

O princípio do devido processo legal está previsto no ordenamento brasileiro tanto na constituição federal, como no código de processo civil como norma fundamental do processo.

Hoje não se pode falar em um processo que não seja legal, o que significaria um processo justo com respeito às garantias processuais dos cidadãos, pelo menos é a exigência constitucional e legal no ordenamento brasileiro. 

A Constituição Federal é clara ao prever o referido princípio como um direito fundamental do cidadão:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; (BRASIL, 1988, n.p.).

Da mesma forma o Código de Processo Civil dispõe que o processo deve ser ordenado de acordo com os valores e as normas fundamentais da Constituição, o que reflete justamente a obediência ao devido processo justo: “Art. 1º O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil , observando-se as disposições deste Código” (BRASIL, 2015).

Entretanto, embora devidamente balizado em diversas normas no direito internacional e no direito interno brasileiro, o reconhecimento de tal direito passou por uma grande evolução histórica. 

A menção ao surgimento a tal direito remonta a 1215 com a denominada Magna Carta inglesa, com a exigência pelos barões ingleses de que o rei João I respeitasse as Leis da terra, visando evitar que os homens livres fossem molestados, despojados, ou colocados fora da lei, sem o devido julgamento legal pelas Leis da terra:

É por isso que, em 1215, os barões ingleses exigem do rei João I o respeito às leis da terra. Fazem com que ele se comprometa que “nenhum homem livre será molestado, ou aprisionado, ou despojado, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo aniquilado, nem nós iremos contra ele, nem permitiremos que alguém o faça, exceto pelo julgamento legal de seus pares ou pelo Direito da terra” (RAMOS, João, 2007, p.3). 

Entretanto, o termo devido processo legal (due processo of the law) apenas foi utilizado em 1354 pelo Rei Eduardo III, que confirmou as Leis da terra e a Magna Carta das liberdades:

O uso da expressão “devido processo legal” (due process of the law), ocorre pela primeira vez em 1354, quando o rei Eduardo III, seguindo a velha tradição, confirma as leis da terra e, entre elas, a Magna Carta das Liberdades. O texto de Eduardo III dispõe que “que nenhum homem de qualquer estado ou condição que ele seja, possa ser posto fora da terra ou da posse, ou molestado, ou aprisionado, ou deserdado, ou condenado à morte, sem ser antes levado a responder a um devido processo legal” (RAMOS, João, 2007, p.3).

Logo, verifica-se como ponto de partida para o reconhecimento do direito humano ao devido processo justo a Magna Carta inglesa de 1215 e a evolução do respeito as denominadas Leis da terra. 

O direito ao devido processo legal inspirado na legislação inglesa influenciou o resto do mundo e em grande força o direito norte-americano com a denominada quinta emenda à constituição:

A Constituição Norte-Americana, a princípio, nada previa acerca desta importante garantia. Somente com o advento das primeiras dez emendas à Constituição Americana, ratificadas em 15 de dezembro de 1791 e conhecidas como Carta de Direitos (Bill of Rights), é que foram acrescidos os dispositivos que compreendiam direitos dos cidadãos americanos. Entre esses direitos destaca-se o due process of law, previsto na Quinta Emenda, na qual se lê que nenhuma pessoa será privada de sua vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal (CALIXTO, 2017,  p. 242). 

O direito ao devido processo legal foi sendo inserido também em textos constitucionais da Europa Ocidental:

o princípio do devido processo legal foi encampando, de uma forma ou de outra, nos seguintes textos constitucionais da Europa Ocidental: a) art. 24 da Constituição Italiana de 1947; b) art. 103, Seção I, da Lei Fundamental da Alemanha de 1948; c) art. 24 da Constituição Espanhola de 1978. A a Constituição Francesa de 1958 não consagra expressamente o devido processo legal, mas, não obstante isso, o Counseil Constitutionnel reconheceu, em diversas decisões, algumas garantias processuais que as leis ordinárias devem respeitar (CALIXTO, 2017,  p.243). 

Pode-se apontar que a evolução do direito ao devido processo legal no direito Europeu veio fortemente com os eventos oriundos da segunda guerra mundial, pois, anteriormente a isso, os maiores debates da processualística se restringia apenas ao aperfeiçoamento da ciência processual, sem, entretanto, existir uma maior preocupação com a efetivação dos direitos humanos através do processo:

No outro canto do mundo, na doutrina processualística da Itália e Alemanha, o conceito de «ação» (azione, Klagerecht, Rechtsschutzanspruch), até a primeira metade do século XX, encontrava-se fortemente impregnado por um forte conceitualismo que condicionou os estudos sobre o processo civil. Prova disso é a chamada teoria abstrata da ação (cujo desenvolvimento deu-se na segunda metade do século XIX), 12 as teorias concretistas da ação, 13 destacando entre essas últimas a de CHIOVENDA14 e, inclusive, a chamada teoria eclética de LIEBMAN, que visava a conciliar ambas as correntes mesmo sem abandonar um viés claramente conceitual.15 A preocupação principal residia na construção de sistemas, elaboração de conceitos e o aperfeiçoamento da ciência processual. No entanto, com o advento das novas cartas fundamentais passou-se a enxergar esse problemático conceito como precisamente aquilo que estava reconhecido na norma fundamental (CAVANI, 2014, p. 29). 

Com os efeitos oriundos do fim da guerra o advento do neoconstitucionalismo, pode-se verificar uma mudança na ciência processual, no sentido de enxergar o devido processo legal não como um emaranhado de formalismo, mas sim aquele preocupado em garantir os direitos humanos e constitucionais:

Esta nova forma de conceber o processo civil respondeu à evolução social e cultural, sendo que «o objetivo da cultura técnica deveria ser o de construir instrumentos processuais eficientes e funcionais à consecução da finalidade consistente na tutela dos direitos dos cidadãos». 27 A ação, assim, passou a ser já não um direito potestativo nem um direito à sentença de mérito, mas uma verdadeira garantia constitucional, com inspiração ideológica totalmente distinta às teorias da ação anteriores. Daí que, segundo COMOGLIO, não seja possível transferir ao plano constitucional o debate teórico das concepções tradicionais,28 o que se explica inclusive no fato de ele afirmar que a garantia de defesa está integrada no direito de ação (CAVANI, 2014, p.32). 

Justamente com os efeitos do pós-guerra e a consequente evolução do devido processo legal, sobretudo no cenário europeu, tal conceito também chegou a América Latina, de modo que diversas Constituições passaram a prever o referido direito, mesmo que nem sempre de forma expressa:

Foi através da já referida mudança de paradigma experimentada na doutrina do Posguerra (principalmente a italiana, adotando a noção de due process of law) que esse conceito chegou na América Latina.33 Após alguns anos o uso do devido processo legal (tradução mais conhecida do termo inglês) por parte da doutrina dessa parte do mundo, diversas Constituições latino-americanas reconheceram-no expressamente, como é o caso do art. 5°, inciso LIV, da CF brasileira, 34 o art. 29°, §§ 1, 4 e 5 da Constituição colombiana de 199135 e o art. 139°, inciso 3, da Constituição peruana de 1993. 36 Isso fez com que, evidentemente, o órgão encarregado de proteger a Constituição (esteja ou não fora do Poder Judiciário) também trabalhasse com o devido processo legal, inclusive em ordenamentos cuja Constituição não consagrou expressamente semelhante expressão (CAVANI, 2014, p. 33). 

Como se observa, o direito ao devido processo justo passou por diversas evoluções, o que, inclusive, permitiu a sua consolidação constitucional e legislativa no Brasil, conforme já devidamente delineado. 

2 O DIREITO AO DEVIDO PROCESSO JUSTO COMO DIREITO HUMANO

O devido processo legal consiste no fato de um processo conter diversas garantias essenciais a efetivação de diversos direitos fundamentais que compõem a dignidade da pessoa humana. 

O processo é o meio pelo qual o Estado exerce o poder jurisdicional, e existe como meio de proteger o cidadão contra a arbitrariedade estatal, motivo pelo qual devem ser cumpridas garantias essenciais na instauração, condução e finalização do processo. 

Alguns denominam o devido processo legal como um supraprincípio, do qual todos os demais princípios processuais são derivados:

O âmbito de proteção do devido processo legal é amplíssimo. É que a doutrina majoritária compreende o devido processo legal como fonte normativa mais genérica de todos os demais direitos fundamentais processuais, explicitados ou não na CF, 9 qualificando-o como sobreprincípio 10 ou superprincípio, 11 por amalgamar, em seu âmbito de proteção, diversos princípios processuais mais específicos. A força da tradição do devido processo legal faz-se sentir, na prática forense, na referência, bastante comum entre nós, de princípio processual específico (contraditório, ampla defesa e juiz natural, por exemplo) acompanhado da invocação do devido processo, e isso quando este não vem referenciado isoladamente. Quando se estuda a evolução dos direitos humanos, vê-se que o desrespeito Seja como for, o fato é que o devido processo legal reúne hoje em seu âmbito de proteção conteúdos de todos os outros direitos fundamentais processuais, que derivam de sua previsão mais genérica – cláusula geral. 12 Assim, o processo é devido quando se observam o contraditório e a ampla defesa (art. 5.º, LV, CF), a igualdade entre as partes (art. 5.º, I, CF), o juiz natural (art. 5.º, XXXVII, CF), a duração razoável do processo (art. 5.º, LXXVIII, CF), a publicidade (art. 5.º, LX, CF), a fundamentação das decisões (art. 93, IX, CF), proíbem-se as provas ilícitas (art. 5.º, LVI, CF) etc. (SILVA, Ticiano, 2016, p. 3).

Quando se estuda a evolução histórica dos direitos humanos, verifica-se que a violação a dignidade da pessoa humana advém justamente da arbitrariedade Estatal, principalmente nos períodos de absolutismo. 

Logo, o devido processo legal se insere como uma garantia das garantias, de modo que o exercício do poder Estatal de jurisdição deve respeitar diversas garantias fundamentais que legitimaram a sua atuação, em respeito a própria dignidade da pessoa humana: 

O Devido Processo Legal, como princípio constitucional, significa o conjunto de garantias de ordem constitucional, que de um lado asseguram às partes o exercício de suas faculdades e poderes de natureza processual e, de outro, legitimam a própria função jurisdicional (CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO, 2006, p. 88).

Há ainda quem classifique o devido processo legal como formal e material, de modo que o Estado deveria cumprir as duas vertentes do princípio, sendo que o aspecto formal seria relativo à condução do processo, ou seja o devido processo legal será formal quando for cumprida todas as garantias inerentes ao contraditório e à ampla defesa. 

Já o devido processo legal material diz respeito ao fruto colhido no processo, ou seja, se a decisão do processo está proporcional ou razoável, de modo que o cidadão não tem o direito apenas à formalidade, mas também a uma decisão justa e razoável, sendo, inclusive, os termos utilizados pelo Código de Processo Civil:

Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva. 

Art. 7º É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório (BRASIL, 2015).

O direito humano ao devido processo legal apenas seria cumprido quando a condução do processo fosse realizada de acordo com as garantias do contraditória e da ampla defesa, e a decisão extraída do processo fosse igualmente proporcional e adequada ao conflito:

A classificação doutrinária do princípio constitucional do Devido Processo Legal é proposta em formal ou processual e em material ou substancial. O aspecto procedimental é mais restrito do que o substancial e sua característica principal é o respeito aos dispositivos legais. Ao passo que o substancial possui um alcance mais amplo que o lado procedimental, pois se manifesta em todos os ramos do Direito, tutelando o direito material do cidadão em processos judiciais, civis, criminais, tributários, procedimentos administrativos, militares e até nos procedimentos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Entende-se por Devido Processo Legal formal, adjetivo, processual ou procedimental, o respeito da norma ao procedimento previamente regulado, visa garantir a regularidade do processo, a ser observado nas instâncias judiciais. O aspecto material ou substantivo do Devido Processo Legal corresponde aos elementos materiais necessários para a caracterização de um Estado Democrático de Direito brasileiro. É responsabilidade do Poder Legislativo compreender o princípio constitucional do Devido Processo Legal, para que possa respeitá-lo e editar atos razoáveis, pois é incoerente admitir a produção de lei arbitrária. Através do controle de constitucionalidade dos Atos do Poder Legislativo[6], o Poder Judiciário aplicará o Devido Processo Legal, controlando as demais normas da Constituição Federal (SILVA, Eduardo, 2017, n.p.). 

Como forma de controlar o devido processo legal no aspecto material, tem-se a existência da devida fundamentação das decisões judiciais e da publicização das decisões:

O Devido Processo Legal substancial está previsto no próprio direito de ação (art.5º, XXXV, da CF/88) e na obrigatória fundamentação de todas as decisões judiciais e administrativas (art.93, IX e X, da CF/88). Ele é aplicável a todos os ramos do direito. Nos termos do artigo 3º, I da Constituição Federal de 1988: “constituem objetivos da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária”. É objetivo da República Federativa do Brasil que as normas e atos do Poder Público tenham conteúdo, justo, razoável e proporcional (SILVA, Eduardo, 2014, n.p.).

Logo, verifica-se que o direito ao devido processo justo é justamente a garantia máxima de que o processo respeite os direitos fundamentais do cidadão, razão pela qual é reconhecido como um verdadeiro direito humano, afinal, através dele é garantido o livre exercício de diversos outros direitos humanos tutelados interna e constitucionalmente. 

3 O SISTEMA INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

Após as atrocidades da segunda guerra mundial, verificou-se a necessidade de se criar um sistema internacional que protegesse os chamados Direitos Humanos. Sobre a definição de Direitos Humanos discorre Ramos (2011, p. 22):

Digna de nota é a precisa definição de PERES LUÑO que, compatibilizando a evolução histórica dos direitos humanos com a necessidade de definição de seu conteúdo, considera direitos humanos o conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências de dignidade, liberdade e igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional. Assim, os direitos humanos asseguram uma vida digna, na qual o indivíduo possui condições adequadas de existência, participando ativamente da vida de sua comunidade.

Sobre o tema afirma Piovesan (2021, p. 176):

Contudo, a verdadeira consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos surge em meados do século XX, em decorrência da Segunda Guerra Mundial. A internacionalização dos direitos humanos constitui, assim, um movimento extremamente recente na história, que surgiu a partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. Apresentando o Estado como o grande violador de direitos humanos, a Era Hitler foi marcada pela lógica da destruição e da descartabilidade da pessoa humana, o que resultou no extermínio de onze milhões de pessoas. O legado do nazismo foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja, a condição de sujeito de direitos, à pertinência a determinada raça — a raça pura ariana. No dizer de Ignacy Sachs, o século XX foi marcado por duas guerras mundiais e pelo horror absoluto do genocídio concebido como projeto político e industrial. 

Com a carta das nações unidas em 1945, logo, no ano em que a segunda guerra terminou, houve um fortalecimento da internacionalização dos direitos humanos. Criou-se, então, uma organização que serviria para coibir ameaças à paz, à segurança e à violação à dignidade humana:

A criação das Nações Unidas, com suas agências especializadas, demarca o surgimento de uma nova ordem internacional, que instaura um novo modelo de conduta nas relações internacionais, com preocupações que incluem a manutenção da paz e segurança internacional, o desenvolvimento de relações amistosas entre os Estados, a adoção da cooperação internacional no plano econômico, social e cultural, a adoção de um padrão internacional de saúde, a proteção ao meio ambiente, a criação de uma nova ordem econômica internacional e a proteção internacional dos direitos humanos Para a consecução desses objetivos, as Nações Unidas foram organizadas em diversos órgãos. Os principais órgãos das Nações Unidas são a Assembleia Geral, o Conselho de Segurança, a Corte Internacional de Justiça, o Conselho Econômico e Social, o Conselho de Tutela e o Secretariado, nos termos do art. 7º da Carta da ONU. Adiciona o art. 7º (PIOVESAN, 2021, p. 182).

Atualmente se fala em direito internacional dos direitos humanos, o qual consistiria no conjunto de normas internacionais que visam garantir a dignidade do ser humano: “o Direito Internacional dos Direitos Humanos consiste no conjunto de direitos e faculdades que garante a dignidade do ser humano e se beneficia de garantias internacionais institucionalizadas” (RAMOS, 2011, p. 36).

O sistema internacional de proteção aos direitos humanos após o devido avanço, atualmente pode ser classificado em global e regional, sendo que o sistema global surge com a carta internacional de direitos humanos em 1948. 

A referida carta buscou consolidar uma ética universal e não regional, ou seja, seriam normas de caráter universal a serem seguidas pelos Estados para proteção dos direitos humanos:

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada em 10 de dezembro de 1948, pela aprovação de 48 Estados, com 8 abstenções 229 . A inexistência de qualquer questionamento ou reserva feita pelos Estados aos princípios da Declaração, bem como de qualquer voto contrário às suas disposições, confere à Declaração Universal o significado de um código e plataforma comum de ação. A Declaração consolida a afirmação de uma ética universal 230 ao consagrar um consenso sobre valores de cunho universal a serem seguidos pelos Estados (PIOVESAN, 2021, 191).

A doutrina reconhece que a carta internacional de direitos humanos possuiria aplicação universal, ou seja, seriam destinatárias dela pessoas de todos os países, independentemente de religião, raça ou sexo:

Esta Declaração se caracteriza, primeiramente, por sua amplitude. Compreende um conjunto de direitos e faculdades sem as quais um ser humano não pode desenvolver sua personalidade física, moral e intelectual. Sua segunda característica é a universalidade: é aplicável a todas as pessoas de todos os países, raças, religiões e sexos, seja qual for o regime político dos territórios nos quais incide (PIOVESAN, 2021, p. 191).

O sistema global hoje é caracterizado como justamente um conjunto de normas de alcance a todas as pessoas de todos os países, também integrando esse sistema os pactos internacionais de direitos civis e políticos e o de direitos econômicos, sociais e culturais. 

Os sistemas regionais de proteção aos direitos humanos consistem a internacionalização no plano regional, mais precisamente na Europa, América e África, existindo, portanto, três sistemas regionais, quais sejam, africano, interamericano e europeu. 

O sistema europeu de proteção aos direitos humanos consiste no conselho da Europa fundado em 1949, o qual se originou do comitê internacional de coordenação de movimentos pela unidade da Europa. 

Inclusive, o sistema europeu de direitos humanos é considerado o mais antigo, e tem como fonte normativa a convenção europeia de direitos humanos e liberdades fundamentais que entrou em vigor em 1953:

A Convenção Europeia de Direitos Humanos (1950) é o tratado regente do Sistema Europeu de proteção aos direitos humanos cuja finalidade é estabelecer os padrões mínimos de proteção que devem ser respeitados pelos Estados-membros. Ressalta-se, ainda, que a Convenção Europeia abrange quaisquer pessoas sujeitas à jurisdição desses Estados, independentemente da nacionalidade. Dentre os órgãos estabelecidos pela referida Convenção, destaca-se: o Comitê de Ministros (função diplomática/política); a Comissão Europeia de Direitos Humanos (desempenha as funções de investigação das denúncias e análise dos critérios de admissibilidade das petições) e a Corte Europeia de Direitos Humanos (função de julgar casos de violações de direitos humanos). Mais especificamente quanto à Corte Europeia de Direitos Humanos, destaca-se que, conforme originalmente prevista, a referida Corte não permitia a petição individual. Entretanto, a partir da edição do Protocolo nº 9 à Convenção Europeia, permitiu-se que, além dos Estados; indivíduos, ONGs e outros grupos tivessem acesso direto à Corte no caso de violação de direitos humanos. Assim, entende-se que a Corte decide in concreto, mediante as petições e demandas concretas trazidas para sua análise (TRILHANTE, s.d., n.p.).

O sistema interamericano de proteção aos direitos humanos é regido pela Convenção Americana de Direitos Humanos assinada em 1969 em San José da Costa Rica e entrou em vigor em 1978, e dela se originou a comissão interamericana de direitos humanos e a corte interamericana de direitos humanos:

O instrumento de maior importância no sistema interamericano é a Convenção Americana de Direitos Humanos, também denominada Pacto de San José da Costa Rica. Foi assinada em San José, Costa Rica, em 1969, entrando em vigor em 1978. Apenas Estados-membros da Organização dos Estados Americanos têm o direito de aderir à Convenção Americana, que, até 2020, contava com 24 Estados-partes. Note-se que 25 Estados ratificaram a Convenção Americana — contudo, em 26 de maio de 1998, houve a denúncia formulada por Trinidad & Tobago e, em 10 de setembro de 2012, houve a denúncia formulada pela Venezuela – contudo, em julho de 2019, a Venezuela depositou instrumento de ratificação, assinado por Juan Guaidó. Ubstancialmente, a Convenção Americana reconhece e assegura um catálogo de direitos civis e políticos similar ao previsto pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. Desse universo de direitos, destacam-se: o direito à personalidade jurídica, o direito à vida, o direito a não ser submetido à escravidão, o direito à liberdade, o direito a um julgamento justo, o direito à compensação em caso de erro judiciário, o direito à privacidade, o direito à liberdade de consciência e religião, o direito à liberdade de pensamento e expressão, o direito à resposta, o direito à liberdade de associação, o direito ao nome, o direito à nacionalidade, o direito à liberdade de movimento e residência, o direito de participar do governo, o direito à igualdade perante a lei e o direito à proteção judicial (PIOVESAN, 2021, p. 289).

A comissão interamericana de direitos humanos é formada por sete membros, e tem como principal função a observância e a proteção dos direitos humanos na América:

A competência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos alcança todos os Estados-partes da Convenção Americana, em relação aos direitos humanos nela consagrados. Alcança ainda todos os Estados-membros da Organização dos Estados Americanos, em relação aos direitos consagrados na Declaração Americana de 1948 Quanto a sua composição, a Comissão é integrada por sete membros “de alta autoridade moral e reconhecido saber em matéria de direitos humanos”, que podem ser nacionais de qualquer Estado membro da Organização dos Estados Americanos. Os membros da Comissão são eleitos, a título pessoal, pela Assembleia Geral por um período de quatro anos, podendo ser reeleitos apenas uma vez. Promover a observância e a proteção dos direitos humanos na América é a principal função da Comissão Interamericana. Para tanto, cabe à Comissão fazer recomendações aos governos dos Estados-partes, prevendo a adoção de medidas adequadas à proteção desses direitos; preparar estudos e relatórios que se mostrem necessários; solicitar aos governos informações relativas às medidas por eles adotadas concernentes à efetiva aplicação da Convenção; e submeter um relatório anual à Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (PIOVESAN, 2021, p. 292).

O sistema africano de proteção aos direitos humanos surgiu como o terceiro sistema, e tem como ato normativo a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos assinada em 1986:

Até o ano de 1986 só havia dois sistemas regionais de proteção de direitos humanos no mundo, a saber: europeu e interamericano. Com a entrada em vigor da Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, também conhecida como Carta de Banjul, ou Banjul Charter, em 21 de outubro de 1986, passaram a existir três sistemas regionais. Sem lugar a dúvida, a Carta africana veio alicerçar a promoção, proteção e o respeito dos direitos humanos tanto ao nível regional quanto global (ROCHA; BACIAO, 2020, p.2). 

Após a assinatura da carta africana de direitos humanos e dos povos houve o estabelecimento da comissão africana de direitos humanos e dos povos, visando assegurar a eficácia do sistema de proteção:

A Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos foi estabelecida em julho de 1987, na vigésima terceira Sessão da Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da OUA. Esta encontra regulamentada na Carta Africana entre os artigos 31º à 44º (composição e organização) que correspondem ao primeiro capítulo da parte II que versa sobre as “Medidas de Salvaguarda”. A Comissão é um órgão quase judicial.  Sua estrutura é similar à do sistema interamericano, o que não exclui algumas pequenas diferenças. Uma destas é o não estabelecimento do prazo que se tem, após o esgotamento dos recursos internos, para a introdução da comunicação junto à Comissão afirma-se somente que este prazo deve ser razoável. Ainda com relação aos recursos internos, há autores que consideram sua exigência irreal, se considerado o contexto africano (ROCHA; BACIAO, 2020, p. 2). 

Logo, percebe-se que houve uma forte internacionalização da proteção dos direitos humanos, surgindo primeiramente um sistema global de proteção inaugurado pela Declaração Universal de Direitos Humanos, e posteriormente três sistemas regionais de proteção, o europeu, o interamericano e o africano. 

Cada sistema possui uma fonte normativa principal e órgãos internacionais que visam assegurar a eficácia do sistema de proteção, possuindo, inclusive, órgãos internacionais de caráter jurisdicional para julgar conflitos envolvendo a aplicação dos tratados regionais. 

4 A PROTEÇÃO INTERNACIONAL AO DIREITO HUMANO AO DEVIDO PROCESSO JUSTO 

Realizada a análise da evolução histórica do devido processo justo e do sistema internacional de proteção aos direitos humanos, aborda-se a proteção do devido processo justo no direito internacional dos direitos humanos. 

No sistema global, o direito humano ao devido processo justo está inserido em diversos dispositivos, mais precisamente conforme se verifica nos artigos 8, 9, 10, 11: 

Artigo 8 

Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.

Artigo  9

Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.

Artigo 10

Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.

Artigo 11

1.Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. 
2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte de que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso (NAÇÕES UNIDAS, 1948, n.p.).

Como se observa, a declaração universal é clara no sentido de que os tribunais nacionais devem fornecer remédio efetivo contra os atos que violem os direitos fundamentais, ou seja, trata-se da previsão de que deve existir um regular e justo processo para combater as arbitrariedades estatais omissivas ou comissivas. 

Da mesma forma, a declaração universal proíbe a detenção arbitrária, que pode ser caracterizada, inclusive, como aquela que não é precedida de um devido processo justo, o que assegura, portanto, o direito de ser regularmente processado. 

Em relação ao devido processo justo no âmbito penal, a declaração universal é clara no sentido de que todos têm direito a uma audiência perante um tribunal imparcial para decidir seus direitos e deveres em relação a qualquer acusação criminal, o que também reflete a necessidade de que haja um devido processo justo antes da aplicação de qualquer penalidade.  

Outrossim, a declaração universal prevê claramente que deve haver presunção de inocência até existir julgamento público com todas as garantias de defesa ao acusado, ou seja, mais uma vez a previsão do direito ao devido processo justo criminal. 

Embora com maior ênfase na seara criminal, já que nesta a violação aos direitos humanos é ainda mais grave por envolve o direito à liberdade, e até mesmo o direito à vida, a declaração universal dos direitos humanos prevê claramente o direito ao devido processo justo, constituindo um verdadeiro direito humano tutelado no sistema global de proteção. 

No sistema regional europeu a convenção europeia de direitos humanos prevê em seu artigo 6 o direito a um processo equitativo:

1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça. 2. Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada. 3. O acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos: a) Ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada; b) Dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa; c) Defender-se a si próprio ou ter a assistência de um defensor da sua escolha e, se não tiver meios para remunerar um defensor, poder ser assistido gratuitamente por um defensor oficioso, quando os interesses da justiça o exigirem; d) Interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação; e) Fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo (ROMA, 1950, p. 9).

Como se observa, a convenção previu o direito a um devido processo justo não só em caráter criminal, mas também em caráter civil, ao dispor que qualquer pessoa tem o direito a um processo equitativo, que respeite as suas garantias, em qualquer causa, seja ela inclusive civil.

Da mesma forma, prevê a presunção de inocência, e direitos processuais do acusado criminalmente, ou seja, segundo a convenção europeia existe claramente um direito humano ao processo justo no sistema regional europeu de proteção. 

No sistema interamericano a convenção americana de direitos humanos também previu claramente o due processo pf law em seu artigo 8, inclusive, sendo abrangente quanto a aplicação desse princípio em todas as esferas processuais, seja civil, criminal, trabalhista, fiscal:

Art. 8. Garantias judiciais 1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza (COSTA RICA, 1969, n.p.).

Afirma-se que a convenção americana de direitos humanos estabeleceu o devido processo legal como pedra angular do sistema:

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 (Convenção Americana) transformou o devido processo legal em pedra angular do Sistema Interamericano de Direitos Humanos3 , entendendo-o como a garantia de todos os direitos humanos por excelência (QUIROGA, 2005, p. 267).

Semelhantemente a Convenção Europeia de Direitos Humanos, a convenção americana prevê direitos do acusado criminalmente, os quais reforçam a necessidade da existência de um devido processo justo. 

Entretanto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao interpretar o referido dispositivo, entende que as garantias nele mencionadas devem ser aplicadas a todos os procedimentos, sejam criminais ou não, inclusive sejam judiciais ou não:

O artigo estabelece que tais garantias aplicam-se não somente aos procedimentos criminais, mas também aos de natureza civil, trabalhista, fiscal, ou outras. Além disso, entendese que sua aplicação é obrigatória a “todos os órgãos que exercitem função de natureza substancialmente jurisdicional”, inclusive órgãos administrativos (CORTE IDH, 2001b, p. 46- 47), tribunais eleitorais (CORTE IDH, 2005, p.71) ou mesmo órgãos executivos de empresas estatais (CORTE IDH, 2001a, p. 91) Apesar de o parágrafo 2º do artigo 8º especificar garantias mínimas para processos criminais, a Corte Interamericana entende que tais garantias também devem ser aplicadas a procedimentos de outra natureza, já que o parágrafo prevê “garantias devidas” às quais todo indivíduo tem direito, independentemente do tipo de processo (1990, p. 7)5 , e que configuram verdadeiro “direito de defesa processual” (CORTE IDH, 1997b, p. 21). O direito de defesa será analisado posteriormente, no item 4 (CAMPOS, 2019, p. 132).   

No sistema regional africano de proteção aos direitos humanos, a Carta Africana de Direitos Humanos prevê em seu artigo 7 o direito de ação dos cidadãos, ou seja, o direito de ir ao judiciário, e direitos que devem ser garantidos:

Toda pessoa tem o direito a que sua causa seja apreciada. Esse direito compreende:
a) o direito de recorrer aos tribunais nacionais competentes contra qualquer ato que viole os direitos fundamentais que lhe são reconhecidos e garantidos pelas convenções, leis, regulamentos e costumes em vigor;
b) o direito de presunção de inocência até que a sua culpabilidade seja reconhecida por um tribunal competente; c) o direito de defesa, incluindo o de ser assistido por um defensor de sua livre escolha; d) o direito de ser julgado em um prazo razoável por um tribunal imparcial. 2.Ninguém pode ser condenado por uma ação ou omissão que não constituía, no momento em que foi cometida, uma infração legalmente punível. Nenhuma pena pode ser prescrita se não estiver prevista no momento em que a infração foi cometida. A pena é pessoal e pode atingir apenas o delinqüente (BANJUL, 1981, n.p.).

Como se observa, diversos direitos que constituem o devido processo legal estão devidamente previstos na Carta Africana de Direitos Humanos, a exemplo da presunção de inocência, ampla defesa, economia processual, e até mesmo duplo grau de jurisdição. 

Não se permite, segundo a referida carta a condenação arbitrária, devendo ser garantido ao cidadão a plenitude de defesa. Frise-se, ainda, que o texto da Carta Africana não delimita a sua aplicação apenas ao processo penal, mas a toda causa que seja levada a apreciação do Estado. 

A doutrina aponta que o Estado humanista é justamente aquele preocupado em conferir garantias aos cidadãos, inclusive as processuais, o que é realizado pelo sistema internacional de proteção aos direitos humanos:

O Estado constitucional e humanista de Direito (ECHD), ao contrário, é abundante em garantias (sobretudo as inerentes ao princípio do devido processo). Elas existem para cumprir o relevante papel de concretizar a normatividade (programa da norma) no plano da efetividade (realidade). Trazer a teoria para a prática.

Considerando-se que o Estado constitucional e humanista de Direito conta com uma tríplice fonte normativa (Constituição Federal, tratados, convenções e pactos de Direito Internacional dos Direitos Humanos e legislação ordinária), já não se concebe estudar o princípio do devido processo e suas garantias mínimas sem que sejam levados em conta esses três diversos conjuntos (e níveis) normativos.

Do descumprimento do devido processo, recorde-se, deriva a ilegalidade ou inconstitucionalidade ou incovencionalidade de todas as consequências jurídicas dele decorrentes (GOMES, 2011, n.p.).

Pelo que se percebe, então, o direito ao devido processo legal não deve ser visto apenas sob o ponto de vista do direito constitucional interno, mas também sob o ponto de vista do controle de convencionalidade, já que se trata de um direito humano previsto no sistema global de proteção e em todos os sistemas regionais.

Há quem defenda a necessidade de um amadurecimento da doutrina, no sentido de enxergar a amplitude da proteção do direito ao devido processo justo/legal, diante da dimensão normativa dos tratados e das convenções internacionais:

A doutrina processual, especialmente a civil, não pode ignorar a dimensão normativa dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos. A potencialidade aplicativa e o impacto sistêmico dos direitos humanos processuais são ainda pouco vislumbrados. Com raríssimas exceções, a doutrina processual civil limita-se a dar notícia das interferências pontuais reconhecidas pelo STF (a ilicitude da prisão civil do depositário infiel, por exemplo), mas não avança sobre uma filtragem convencional do ordenamento processual, o que decerto demanda grandes esforços, principalmente o conhecimento do direito internacional público e da jurisprudência das cortes internacionais de direitos humanos. Se durante muito tempo as convenções de direitos humanos eram, à luz da jurisprudência do STF, hierarquicamente equivalentes às leis infraconstitucionais, a reforma constitucional, em 2004, que acrescentou o § 3.º ao art. 5.º da CF, e a mudança paradigmática no STF, em 2008, que conferiu o status supralegal aos tratados de direitos humanos, são suficientes para transformar a forma de ler a matéria. Com base nessas premissas, tem-se que os direitos humanos processuais exercem uma verdadeira função bloqueadora da legislação infraconstitucional incompatível com as disposições convencionais, como ocorreu com a prisão civil do depositário infiel. Noutras palavras, ao conformar o devido processo no plano infraconstitucional, o legislador deve considerar não somente os direitos fundamentais processuais previstos na CF como também os direitos humanos processuais estabelecidos nas convenções internacionais, que, se garantirem maior proteção, devem ter seus sentidos incorporados à noção de devido processo existente, como camadas de proteção que se sobrepõem a fim de assegurar maior tutela da dignidade humana processual (SILVA, Ticiano, 2016, p. 7).

O Brasil, inclusive, já foi parte de litígios internacionais envolvendo descumprimento ao devido processo legal, sendo um caso a ser citado o de “Ximenes Lopez” em que o país foi condenado por violação a dispositivos da Convenção Americana, inclusive, ao devido processo justo:

A denúncia apresentada pela Comissão Interamericana alegava a violação em conjunto dos artigos 8(1) e 25(1) da Convenção Americana, sem individualiza-los. Em relação a tal violação, a denúncia acusava o Estado: pela falta de efetividade do processo interno, tanto por meio das omissões das autoridades quanto pelas deficiências e falhas nas ações efetuadas; pela inexistência de uma investigação imediata, séria e exaustiva; e pela situação de denegação de justiça por parte das autoridades estatais em razão da morosidade e inércia imotivadas, entre outras alegações (2006b, p. 59). Tal como sugerido pela Comissão Interamericana, a Corte analisou conjuntamente as violações aos artigos 8(1) e 25(1) da Convenção Americana, considerando a obrigação dos Estados em “proporcionar recursos judiciais efetivos às vítimas de violações dos direitos humanos (artigo 25), os quais devem ser substanciados em conformidade com as regras do devido processo legal (artigo 8(1))” e de garantir o livre e pleno exercício dos direitos reconhecidos pela Convenção Americana (artigo 1(1)) (2006b, p.62). A indissociabilidade entre os dois artigos foi abordada novamente por Cançado Trindade em seu voto separado ao julgamento, onde esclarece que o direito de acesso à justiça possui conteúdo jurídico próprio e importa o “direito a obter justiça”, verdadeiro “direito ao Direito” que permite ao indivíduo o acesso a um ordenamento jurídico que efetivamente proteja seus direitos fundamentais (SILVA, Ticiano, 2016, p. 6-7).

Como se observa, o direito ao devido processo legal não pode ser visto apenas sob o ponto de vista do direito interno constitucional, mas também faz parte do sistema internacional de proteção aos direitos humanos, de modo que as cortes internacionais estão autorizadas a realizar o controle de convencionalidade com o fim de efetivar esse direito. 

Além disso, o sistema internacional de proteção, seja ele global ou regional, não prevê apenas a necessidade de um devido processo justo, mas também de diversas garantias que um processo precisa conter para ser considerado justo, a exemplo da ampla defesa, contraditório, duração razoável e diversas outras previstas nos tratados internacionais. 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A origem do direito humano ao devido processo justo é antiga, mais precisamente em 1215 com a Magna Carta, tendo esse direito evoluído no cenário mundial, primeiramente para o direito norte-americano, posteriormente para a Europa e depois para as constituições latino-americanas. 

Percebe-se que o direito ao devido processo justo é uma verdadeira garantia das garantias, tratando-se de um supraprincípio que permite que o processo contenha as garantias mínimas fundamentais, evitando o arbítrio Estatal e assegurando o respeito a dignidade da pessoa humana. 

O direito ao devido processo justo possui duas dimensões, uma formal e outra material, sendo a primeira destinada a assegurar a condução de um processo que respeite as garantias processuais, a exemplo do contraditório e da ampla defesa, e a segunda referente a necessidade de a decisão exarada no processo ser justa e proporcional ao caso, respeitando a dignidade da pessoa humana. 

Os direitos humanos não possuem proteção apenas interna dos Estados, tendo ocorrido o fenômeno da internacionalização dos direitos humanos, existindo um sistema internacional global e os sistemas regionais de proteção, os quais buscam realizar o denominado controle de convencionalidade. 

O direito ao devido processo justo possui ampla proteção, sendo tutelado primeiramente pelo sistema global de proteção, de modo que a declaração universal de direitos humanos assegura o direito de ação e a necessidade de que o processo cumpra as devidas garantias. 

Da mesma forma, a convenção europeia de direitos humanos prevê o direito ao devido processo legal, a presunção de inocência, e as diversas garantias ao acusado criminalmente. 

A convenção interamericana de direitos humanos, contendo o texto mais completo acerca do princípio do devido processo legal, assegura o referido direito em todos os tipos de processo, sendo que a corte interamericana de direitos humanos entende que embora algumas garantias sejam mencionadas em relação ao processo criminal, estas devem ser estendidas a outras espécies de processo, a exemplo do cível e trabalhista. 

A carta africana dos direitos humanos e dos povos também tratou da proteção do direito humano ao devido processo justo, sustentando a exemplo o direito da presunção de inocência, da ampla defesa, da economia processual, e até mesmo do duplo grau de jurisdição.

Pode-se concluir, então, que o direito humano ao devido processo justo é essencial para o combate à arbitrariedade e violação a diversos outros direitos inerentes à dignidade da pessoa humana, e goza de posição importantíssima em todo o sistema internacional de proteção aos direitos humanos, de modo que não se pode falar em dignidade sem que haja a garantia ao devido processo justo. 

REFERÊNCIAS

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¹Aluno de Mestrado no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Sergipe (PRODIR/UFS). Especialista em Direito Processual Civil pela Escola Judicial de Sergipe (EJUSE/SE). Advogado. E-mail: daniel_fmw@hotmail.com.
²Professora Doutora no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Sergipe (PRODIR/UFS). Pós-doutora em Direito Constitucional pela Universidade Federal da Bahia e pela Università Degli Studi G. d’Annunzio Chieti-Pescara. Líder do grupo de pesquisa Eficácia dos direitos humanos e fundamentais: seus reflexos nas relações sociais (CNPQ. Diretora da Rede de Pesquisa Direitos Humanos e Transnacionalidade. E-mail: lucianags.adv@uol.com.br.
³Aluna de Mestrado no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Sergipe (PRODIR/UFS). Procuradora do Município de Aracaju. E-mail: ksmachado10@gmail.com.