O CONSUMO EXCESSIVO DE INFORMAÇÃO E A REGULAÇÃO MIDIÁTICA: UMA ANÁLISE À LUZ DA ZETÉTICA E DOGMÁTICA JURÍDICA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202511301940


Pedro Miguel D’Andréa


RESUMO 

Este artigo analisa criticamente o fenômeno do consumo excessivo de informação e seus impactos na alienação cognitiva da sociedade contemporânea, estabelecendo conexões com as perspectivas zetética e dogmática jurídica no contexto da regulação midiática. Com base em autores como Byung-Chul Han, Pierre Bourdieu, Luís Mauro Sá Martino, Miguel Reale e Jessé de Souza, o estudo demonstra como a hiperconectividade e os algoritmos promovem o esvaziamento da consciência crítica, ao mesmo tempo em que examina os fundamentos jurídicos para uma regulação adequada dos meios de comunicação. A pesquisa utiliza revisão bibliográfica e análise teórica para propor reflexões sobre a necessidade de uma ética comunicacional comprometida com a dignidade humana e o bem comum, investigando como o ordenamento jurídico brasileiro articula fato, valor e norma na regulação da comunicação de massa. 

Palavras-chave: Alienação Cognitiva. Hiperconectividade. Regulação Midiática. Zetética Jurídica. Dogmática Jurídica. Teoria Tridimensional do Direito. 

1. INTRODUÇÃO 

A sociedade contemporânea atravessa uma das mais profundas transformações comunicacionais de sua história. A expansão exponencial da internet e das redes digitais inaugurou a chamada era da informação, caracterizada por um volume sem precedentes de dados circulando em tempo real. Paradoxalmente, esse fenômeno não gerou uma sociedade mais consciente ou esclarecida. Pelo contrário, observa-se uma crise cognitiva marcada pela superficialidade, ansiedade mental e alienação informacional. 

Este artigo propõe uma análise crítica desse cenário a partir de duas perspectivas complementares: primeiro, examina-se o fenômeno do consumo excessivo de informação e seus efeitos sobre a cognição humana e a consciência crítica; segundo, investiga-se como o Direito, por meio das abordagens zetética e dogmática, pode oferecer fundamentos para uma regulação midiática comprometida com valores democráticos e humanitários. 

A relevância do tema justifica-se pela necessidade urgente de compreender como a sobrecarga informacional e a manipulação algorítmica afetam a capacidade dos indivíduos de exercerem cidadania ativa e de se engajarem com questões sociais fundamentais. Além disso, torna-se essencial discutir os fundamentos jurídicos da regulação comunicativa, especialmente em um contexto no qual poucos grupos econômicos controlam a maior parte dos meios de comunicação. 

A metodologia adotada consiste em revisão bibliográfica de autores das teorias da comunicação, da filosofia contemporânea e da teoria do direito, articulando essas contribuições para construir uma análise crítica e propositiva sobre os desafios éticos e jurídicos da comunicação de massa no Brasil. 

2. O COLAPSO DA RACIONALIDADE: DA CULTURA LIVRESCA À INFOCRACIA 

2.1 O Declínio da Esfera Pública Discursiva 

A democracia moderna, tal como concebida a partir do Iluminismo, sustentava-se em um pilar fundamental: a cultura do livro. Era o texto escrito, com sua linearidade e profundidade, que estabelecia as bases para o discurso racional. Han (2022) relembra que, em Mudança estrutural da esfera pública, Habermas identificou uma relação íntima entre o público leitor e a democracia. Sem a imprensa e o hábito da leitura, o pensamento raciocinante — essencial para a cidadania — não encontraria solo fértil. 

Na cultura livresca, o discurso político possuía uma “arquitetura temporal” distinta, caracterizada pela coerência lógica e pela extensão. Um exemplo histórico emblemático reside nos debates entre Abraham Lincoln e Stephen A. Douglas, em 1854. Naquela ocasião, os oradores discorriam por horas, formulando argumentos complexos para um público cuja capacidade de concentração era extraordinariamente alta. O discurso público era, então, um componente sólido da vida social, exigindo tempo para ser compreendido e debatido. 

No entanto, a digitalização fragmentou essa estrutura. A atualidade vertiginosa das informações atomiza o tempo, reduzindo-o a uma sucessão de “presentes pontuais”. Diferentemente das narrativas, que constroem continuidade e sentido, a informação digital vive do estímulo da surpresa e da brevidade. Nesse contexto, a racionalidade — que por definição requer tempo, reflexão e distanciamento — entra em colapso. A coação da aceleração priva o sujeito da capacidade de julgamento, substituindo o comportamento racional por um comportamento meramente “inteligente”, focado em soluções de curto prazo e reações viscerais. 

2.2 Hiperconectividade e Esvaziamento da Consciência Crítica 

A transição para o digital impôs uma hiperconectividade que, paradoxalmente, gera alienação. Byung-Chul Han (2015) descreve a “sociedade do cansaço”, na qual a hiperatividade elimina a negatividade da contemplação, essencial para o pensamento crítico. O sujeito contemporâneo não é mais um receptor passivo, mas um emissor compulsivo que produz e consome dados permanentemente, preso em uma “embriaguez de comunicação”. 

Essa comunicação incessante não promove o entendimento, mas o ruído. O excesso de positividade — onde tudo é visível, compartilhável e “curtível” — desmantela a esfera privada e, ironicamente, destrói a esfera pública. A atenção não se dirige mais a temas relevantes para a coletividade, mas dispersa-se em uma estrutura rizomática, sem centro, onde a distinção entre o essencial e o irrelevante desaparece. 

A alienação aqui não é a falta de acesso à informação, mas o excesso dela. O sujeito “bem informado” da era digital é, muitas vezes, aquele que perdeu a capacidade de distinguir a verdade da mentira, o fato da fabricação, a realidade da encenação. A hiperconectividade, portanto, mantém as pessoas em uma “nova menoridade”, onde a fórmula da submissão é: “comunicamo-nos até morrer” (HAN, 2022). 

2.3 Algoritmos e Psicopolítica: A Morte da Autonomia 

Se na era das mídias de massa a dominação ocorria pela propaganda genérica, na infocracia ela se dá pela psicopolítica. A ferramenta central desse novo regime é a psicometria ou profiling psicográfico. Através dos rastros digitais deixados em smartphones e redes sociais, algoritmos constroem perfis de personalidade com precisão assustadora, conhecendo o usuário melhor do que seus amigos ou familiares. 

Essa capacidade de processamento de dados permitiu o surgimento do microtargeting (focalização micro). Diferente da propaganda tradicional, que transmitia uma mensagem única para as massas, o microtargeting personaliza a mensagem política para explorar os medos, desejos e preconceitos inconscientes de cada indivíduo. Han (2022) alerta que isso mina o processo democrático, pois pressupõe a manipulação de níveis pré-reflexivos da consciência. 

O caso da Cambridge Analytica e a eleição de Donald Trump em 2016 ilustram como a política se tornou orientada por dados (data-driven). Os eleitores não são convidados a debater programas de governo, mas são bombardeados com “dark ads” (anúncios sombrios) e fake news ajustadas ao seu perfil psicométrico. Isso fragmenta a esfera pública: grupos diferentes recebem informações contraditórias, tornando impossível o consenso ou o debate comum. A autonomia da vontade, pressuposto da democracia liberal, é erodida por algoritmos que transformam cidadãos em “gado eleitoral manipulável”. 

2.4 Da Midiocracia à Infocracia: A Guerra da Informação 

É crucial distinguir dois momentos na degeneração da esfera pública: a Midiocracia e a Infocracia. A Midiocracia (analisada por Neil Postman e pelo primeiro Habermas) era a era da televisão. Nela, a política submetia-se à lógica do entretenimento e do show. O perigo era a diversão excessiva, a “teatrocracia” onde vencia quem melhor se encenava (como Ronald Reagan). O cidadão era um espectador passivo, entretido até a imaturidade, vivendo uma versão distópica do Admirável Mundo Novo de Huxley. 

A Infocracia, contudo, representa um estágio mais avançado e perigoso. Nela, a política não se degenera apenas em show, mas em guerra de informação. O palco da TV cede lugar à arena do Twitter e das redes sociais. A verdade e a veracidade perdem qualquer valor diante da eficácia viral. Informações são usadas como armas (weaponization of information). 

Nesse regime, a luta política é travada por exércitos de bots sociais (robôs) e trolls que fabricam artificialmente o clima de opinião. A infodemia — a propagação viral de informações — impede o discurso racional porque “argumentos e fundamentações não cabem em tuítes ou memes” (HAN, 2022). O meme, como vírus midiático, mobiliza afetos visuais rápidos, dispensando a coerência lógica. A verdade, por ser lenta, complexa e muitas vezes tediosa, não consegue competir com a velocidade viral da mentira e do ódio. Como sentencia Han: “A tentativa de combater a infodemia com a verdade está condenada ao fracasso. A infodemia é resistente à verdade”. 

3. ZETÉTICA JURÍDICA E DOGMÁTICA JURÍDICA: ABORDAGENS PARA O ESTUDO DA REGULAÇÃO MIDIÁTICA 

3.1 A Realidade Ontognoseológica do Direito Aplicada à Comunicação 

A compreensão da regulação midiática exige uma reflexão sobre a natureza mesma do Direito enquanto fenômeno social e normativo. A abordagem ontognoseológica investiga não apenas o que é o Direito, mas como ele se manifesta na realidade social e como pode ser conhecido. Essa dupla dimensão — ontológica (ser) e gnoseológica (conhecer) — é fundamental para entender como o ordenamento jurídico se relaciona com a comunicação de massa. 

Miguel Reale (2001) desenvolveu uma teoria que reconhece o Direito como fenômeno tridimensional, no qual fato, valor e norma são inseparáveis. Essa perspectiva supera tanto o positivismo jurídico, que reduz o Direito à norma, quanto o jusnaturalismo, que o subordina a valores transcendentes. Para Reale, o Direito emerge da tensão entre fatos sociais (como a concentração midiática, a disseminação de desinformação, a manipulação algorítmica) e valores (como liberdade de expressão, dignidade humana, pluralismo informativo), cristalizando-se em normas que buscam regular essas tensões. 

Aplicada à comunicação, essa abordagem permite compreender que as normas sobre regulação midiática não surgem do nada, mas respondem a fatos sociais concretos e buscam realizar determinados valores constitucionais. O artigo 220 da Constituição Federal, que assegura a liberdade de manifestação do pensamento e veda a censura, não é uma proposição abstrata, mas uma resposta histórica ao autoritarismo e uma afirmação de valores democráticos. 

A realidade ontognoseológica do Direito da Comunicação revela, portanto, que não basta conhecer as normas formais; é preciso compreender os fatos que as motivam e os valores que as orientam. Isso exige uma postura zetética, de questionamento permanente, capaz de investigar os fundamentos, as consequências e as lacunas da regulação existente. 

3.2 Leis Físicas, Culturais e Éticas: O Lugar da Norma Jurídica na Regulação da Comunicação 

A comunicação humana é regida por diferentes tipos de leis. As leis físicas (como as que governam a propagação de ondas eletromagnéticas) determinam as condições técnicas da transmissão. As leis culturais (como as normas de etiqueta, os costumes linguísticos, os padrões estéticos) influenciam o conteúdo e a forma da mensagem. As leis éticas (como os princípios de veracidade, respeito e responsabilidade) orientam moralmente os comunicadores. 

A norma jurídica ocupa um lugar específico nesse conjunto: ela é uma norma ética dotada de coercibilidade. Diferentemente das leis culturais, que são seguidas espontaneamente, e das leis éticas, que apelam à consciência individual, a norma jurídica pode ser imposta pela força do Estado. Isso significa que, quando a ética da comunicação é violada de forma grave — por exemplo, através da difamação, do incitamento ao ódio ou da manipulação fraudulenta —, o Direito intervém para proteger bens jurídicos fundamentais. 

No contexto da comunicação de massa, isso se manifesta em normas que protegem a honra e a imagem (artigos 5º, V e X, da CF/88), garantem o direito de resposta (artigo 5º, V, da CF/88, regulamentado pela Lei nº 13.188/2015), vedam a formação de monopólios e oligopólios (artigo 220, § 5º, da CF/88) e estabelecem deveres éticos para os veículos de radiodifusão (artigo 221 da CF/88). 

Essas normas não eliminam a liberdade de expressão, mas delimitam seu exercício legítimo, impedindo que ela se transforme em instrumento de opressão ou manipulação. A tensão entre liberdade e responsabilidade é permanente e exige ponderação cuidadosa, à luz dos fatos concretos e dos valores constitucionais. 

3.3 Notas Distintivas do Direito Aplicadas à Regulação Midiática 

O Direito possui características específicas que o diferenciam de outras ordens normativas. Reale (2001) identifica quatro notas distintivas fundamentais: bilateralidade atributiva, heteronomia, coercibilidade e generalidade. Cada uma delas tem implicações importantes para a regulação midiática. 

A bilateralidade atributiva significa que toda norma jurídica estabelece uma relação entre sujeitos, atribuindo direitos a uns e deveres a outros. No contexto midiático, isso se manifesta em várias relações jurídicas: entre os meios de comunicação e o público (direito à informação versus dever de veracidade); entre jornalistas e fontes (direito ao sigilo profissional versus dever de transparência); entre o Estado e os meios (poder de regulação versus liberdade de expressão); entre empresas de comunicação e trabalhadores (direitos laborais versus liberdade editorial); entre comunicadores e titulares de direitos de personalidade (liberdade de expressão versus proteção de honra e imagem). 

A heteronomia indica que as normas jurídicas são estabelecidas por uma autoridade externa (o legislador, o juiz), não dependendo da vontade individual para sua validade. Isso protege valores fundamentais mesmo quando não há consenso social. A vedação à censura prévia, por exemplo, não depende da concordância dos governantes de plantão. 

A coercibilidade assegura que o Direito pode ser imposto pela força. Isso significa que as normas sobre comunicação não são meras recomendações éticas, mas podem ser exigidas judicialmente e seu descumprimento pode gerar sanções (indenizações, direito de resposta, responsabilização criminal). 

A generalidade implica que as normas se aplicam a todos os que se encontrem na situação prevista, sem privilégios. Tanto grandes conglomerados midiáticos quanto pequenos blogs estão sujeitos às mesmas regras de responsabilidade civil e penal. 

3.4 Direito, Moral e Religião na Regulação da Comunicação 

Embora relacionados, Direito, moral e religião são ordens normativas distintas. A moral se refere ao foro íntimo, aos valores que cada indivíduo considera corretos. A religião vincula-se à transcendência, às obrigações perante o sagrado. O Direito, por sua vez, regula a vida social externa, protegendo bens jurídicos fundamentais. 

Na regulação da comunicação, essa distinção é crucial. O Estado laico não pode impor concepções morais ou religiosas específicas, mas deve garantir que a comunicação respeite direitos fundamentais. Por exemplo: a liberdade de expressão protege inclusive manifestações moralmente controversas ou religiosamente ofensivas, desde que não violem a dignidade humana ou incitem à violência. 

O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) reflete esse equilíbrio ao estabelecer que a liberdade de expressão é um princípio fundamental, mas que o uso da internet deve respeitar os direitos humanos e a dignidade da pessoa. A Lei não impõe uma moral específica, mas delimita juridicamente o exercício legítimo da liberdade comunicativa. 

3.5 Estrutura Tridimensional do Direito e a Regulação Comunicativa 

A teoria tridimensional de Miguel Reale (2001) sustenta que o Direito é, simultaneamente, fato, valor e norma. Essa perspectiva supera tanto o positivismo formalista, que reduz o Direito à norma escrita, quanto o idealismo jusnaturalista, que o subordina a valores abstratos. Para Reale, o ordenamento jurídico é um processo dialético no qual fatos sociais são valorados à luz de princípios éticos, cristalizando-se em normas que, por sua vez, incidem sobre novos fatos, num ciclo contínuo. 

Aplicada à regulação midiática, essa abordagem revela a complexidade do ordenamento. O complexo normativo constitucional (artigos 5º, 220, 221 da CF/88) envolve múltiplas “faixas normativas” que não se relacionam linearmente, mas de forma dinâmica e tensionada: 

  1. Faixa de liberdade: artigos 5º, IV, IX e 220, que estabelecem liberdade de expressão e vedam censura prévia. 
  2. Faixa de responsabilidade: artigos 5º, V e X, que estabelecem direito de resposta e proteção de imagem. 
  3. Faixa de regulação estatal: artigo 221, que estabelece deveres das emissoras quanto a conteúdo educativo, artístico e cultural. 
  4. Faixa de proteção concorrencial: artigo 220, § 5º, que veda formação de monopólios, regulamentado pela Lei nº 12.529/2011. 
  5. Faixa de direitos processuais: Lei nº 13.188/2015, que operacionaliza o direito de resposta. 

Essas faixas não formam uma pirâmide hierárquica simples, mas se relacionam de forma complexa, exigindo ponderação permanente. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 1.075.412/PE (2023), reconheceu essa complexidade ao estabelecer que, embora seja vedada a censura prévia, admite-se “a possibilidade posterior de análise e responsabilização de conteúdo”, equilibrando liberdade e responsabilidade. 

Jessé Souza (2018) oferece uma contribuição importante ao criticar abordagens que separam moralidade e poder. Segundo ele, a prática de obedecer a regras envolve necessariamente uma compreensão das relações de poder que subjazem à normatização. Aplicado à regulação midiática, isso significa que não basta analisar as normas formais sobre liberdade de expressão; é preciso investigar os fatos sociais (concentração de mídia, disseminação de desinformação, manipulação algorítmica) e os valores em conflito (liberdade versus responsabilidade, pluralismo versus concentração). 

A regulação midiática brasileira materializa, assim, não uma pirâmide hierárquica simples, mas múltiplas faixas normativas em contínua tensão: liberdade, responsabilidade, regulação estatal, proteção concorrencial. Isso revela que a moralidade (os valores constitucionais) e o poder (os fatos de dominação midiática) não podem ser divorciados da normatividade sem que se redunde em incompreensão das próprias regras que regulam a comunicação de massa no Brasil. 

3.6 O Fato, O Valor e A Norma no Direito da Comunicação 

O Direito nasce do fato e ao fato se destina. Sem um acontecimento oriundo das forças da natureza ou da vontade humana, não há base para que se estabeleça uma relação jurídica. Com base nos dados do processo social, o legislador instaura modelos jurídicos. Mas se o direito nasce do fato, ele também se destina ao fato, pois foi criado para reger os acontecimentos importantes para a convivência social. 

No âmbito da comunicação, os fatos sociais que dão origem às normas jurídicas incluem fenômenos como: 

  • A concentração da propriedade midiática, particularmente relevante para o artigo 220, § 5º, da CF/88; 
  • A manipulação da informação mediante técnicas sofisticadas de desinformação e fake news; 
  • Os efeitos da comunicação de massa sobre a opinião pública e comportamento coletivo; 
  • A proliferação das redes sociais digitais como espaço público de debate; 
  • A disseminação de discurso de ódio e intolerância mediante plataformas comunicativas; 
  • Os ataques à honra e privacidade de pessoas. 

Esses fatos sociais demandam respostas normativas que se concretizam em leis, regulamentos e decisões judiciais. O Supremo Tribunal Federal, reconhecendo esses fatos, pronunciou-se na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 10 (2023) sobre a necessidade de o Congresso Nacional regulamentar o artigo 220, § 5º, da Constituição, que veda a formação de monopólios e oligopólios nos meios de comunicação. 

Os valores que orientam essa regulação incluem a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF/88), a liberdade de expressão (artigo 5º, IV e IX), o direito à informação (artigo 5º, XIV), a proteção da honra e da imagem (artigo 5º, V e X), o pluralismo (artigo 1º, V) e a função social da propriedade (artigo 5º, XXIII). Esses valores entram frequentemente em tensão, exigindo ponderação cuidadosa. 

As normas jurídicas concretizam esses valores, estabelecendo direitos, deveres e procedimentos. A Constituição Federal (artigos 5º, 220, 221) estabelece o quadro normativo fundamental. O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) regulamenta o uso da internet no Brasil. A Lei nº 13.188/2015 disciplina o direito de resposta. O Código Civil (artigos 186, 187, 927) estabelece a responsabilidade civil por danos. O Código Penal tipifica crimes contra a honra (artigos 138 a 145). 

O Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 1.627.863/DF (2016), exemplifica essa relação triádica ao reconhecer que o fato (disseminação de informação potencialmente injuriosa), o valor constitucional (proteção à dignidade e imagem) e a norma (que equilibra liberdade com responsabilidade) devem ser considerados conjuntamente na análise de casos concretos. 

Souza (2018, p. 131-135) esclarece que os autores mobilizados para compreender problemas concretos não precisam partir necessariamente de uma moldura teórica semelhante para que possamos usá-los produtivamente. A regulação midiática brasileira materializa não uma pirâmide hierárquica simples, mas múltiplas faixas normativas em contínua tensão (liberdade, responsabilidade, regulação estatal, proteção concorrencial), revelando que a moralidade (valores constitucionais) e o poder (fatos de dominação midiática e estruturas de concentração) não podem ser divorciados da normatividade sem que se redunde em incompreensão das próprias regras que regulam a comunicação de massa no Brasil. 

As relações jurídicas que emergem desse contexto são invariavelmente bilaterais e atributivas. Entre o público e os meios de comunicação, a Constituição Federal estabelece liberdade de imprensa (artigos 5º, IX e 220), criando direito dos meios comunicarem. Correlativamente, o público possui direito de receber informação responsável e direito de resposta (artigo 5º, V, CF/88). 

Entre jornalistas e fontes, há o direito ao sigilo profissional versus o dever de transparência. Jornalistas possuem direito constitucional à preservação do sigilo de fontes, reconhecido implicitamente na liberdade de expressão (artigo 5º, IX, CF/88). Fontes, por sua vez, possuem direito de anonimato protegido — o artigo 5º, IV, da CF/88 veda anonimato apenas para o manifestante, não para a fonte. 

Entre o Estado e os meios de comunicação, há o poder de regulação versus liberdade de expressão. O Estado possui poder-dever de regulamentar a comunicação (artigos 221, 220, § 5º, CF/88), mas é vedado exercer censura prévia (artigo 220, § 2º, CF/88). Os meios possuem liberdade de comunicação, mas estão sujeitos a controle posterior (RE nº 1.075.412/PE, 2024). 

4. A GUERRA MEMÉTICA E A EROSÃO DA VERDADE: MECANISMOS DA DESESTABILIZAÇÃO DEMOCRÁTICA 

4.1 A Viralidade como Vetor de Irracionalidade 

A dinâmica comunicacional contemporânea não opera mais sob a égide do argumento lógico ou da persuasão retórica clássica, mas sob a lógica da contaminação viral. Na infocracia descrita por Han (2022), a informação comporta-se como um patógeno: sua eficácia não reside em sua veracidade ou profundidade, mas em sua capacidade de replicação e infecção cognitiva. Esse fenômeno, denominado “infodemia”, representa uma ameaça existencial ao processo democrático, que é, por natureza, lento, reflexivo e procedimental. 

A democracia exige tempo. O debate parlamentar, a instrução processual e a formação da opinião pública esclarecida são processos que demandam “arquiteturas de tempo extensas”. A viralidade digital, em contrapartida, impõe uma tirania do instantâneo. Informações, verdadeiras ou falsas, propagam-se na velocidade da luz, impedindo qualquer tentativa de verificação ou contraditório. Quando a verdade finalmente calça os sapatos, a mentira já deu a volta ao mundo. Como alerta Han (2022, p. 67): “A tentativa de combater a infodemia com a verdade está condenada ao fracasso. A infodemia é resistente à verdade”. 

Essa resistência decorre da própria estrutura ontológica da informação digital. Ela vive do “estímulo da surpresa” e da excitação afetiva. A verdade, frequentemente complexa, cheia de nuances e tediosa, não possui o mesmo potencial de engajamento que uma teoria da conspiração desenhada para confirmar vieses e mobilizar ódios viscerais. 

4.2 Memes: A Arma Semiótica da Infocracia 

Nesse cenário de guerra informacional, o meme emerge não apenas como uma peça de humor, mas como uma arma semiótica de alta precisão. Han (2022) descreve os memes como “vírus mediais” que encapsulam uma carga ideológica em um invólucro visual infeccioso. A “guerra memética” (Memetic Warfare) substitui o debate de ideias pela colisão de imagens de impacto imediato. 

O perigo do meme para a racionalidade democrática reside em sua natureza visual e sintética. Imagens não argumentam; elas mostram e evocam. Não exigem o esforço cognitivo da leitura de um texto complexo, mas apelam diretamente ao sistema límbico, provocando riso, escárnio ou indignação instantânea. Ao reduzir a política a fragmentos visuais descontextualizados, os memes destroem a coerência lógica necessária para o discurso público. 

A eleição de Donald Trump e o fenômeno do Brexit demonstraram a eficácia dessa estratégia. O discurso político foi substituído por uma guerrilha imagética onde a realidade factual torna-se irrelevante. O termo “We actually elected a meme as president” (Na verdade, elegemos um meme como presidente), citado por Han, ilustra o grau de fusão entre a política institucional e a cultura digital de massa. Nesse contexto, o político deixa de ser um representante de ideias para se tornar um significante vazio, moldável pelas projeções afetivas de seus seguidores. 

4.3 Bots e a Simulação da Opinião Pública 

Se o meme é a munição, os bots (robôs) são a infantaria mecanizada dessa guerra. A esfera pública digital, que deveria ser o espaço de interação entre cidadãos livres, é invadida por exércitos de contas automatizadas que simulam o apoio popular e distorcem a percepção da realidade. 

A atuação dessas máquinas cria o que se pode chamar de “alucinação estatística”. Ao inflar artificialmente hashtags, curtidas e compartilhamentos, os bots fabricam uma falsa sensação de consenso ou de maioria. O cidadão comum, ao ver um tópico nos trending topics, tende a acreditar que aquilo reflete uma preocupação genuína da sociedade, quando, muitas vezes, trata-se apenas de uma operação coordenada de astroturfing (falso movimento de base). 

Essa manipulação algorítmica ataca o princípio fundamental da democracia: a auto-observação da sociedade. Se o espelho onde a sociedade se olha (a esfera pública) está distorcido por robôs, a soberania popular torna-se uma ficção. Decisões políticas e votos são influenciados por um “clima de opinião” (Stimmung) fabricado industrialmente a custo zero. 

4.4 O Direito Diante da “Infowar”: Limites e Desafios 

Diante da “guerra da informação” (infowar), o Direito encontra-se em uma posição defensiva e, por vezes, anacrônica. Os instrumentos jurídicos tradicionais foram desenhados para lidar com a mentira episódica (calúnia, difamação) ou com a propaganda enganosa comercial, mas não com uma campanha sistêmica de desrealização do mundo. 

A regulação desse cenário exige uma abordagem que vá além da punição individual de quem compartilha fake news. É necessário enfrentar a estrutura econômica e tecnológica que torna a desinformação lucrativa e politicamente viável. Isso implica: 

  1. Responsabilização das Plataformas: Reconhecer que os algoritmos de recomendação não são neutros, mas editores ativos que privilegiam o conteúdo viral (e frequentemente falso) em detrimento da informação de qualidade. 
  2. Transparência Radical: Exigir a identificação clara de contas automatizadas (bots) e a abertura das caixas-pretas dos algoritmos de microtargeting. O eleitor tem o direito de saber por que está vendo determinado anúncio político e quem pagou por ele. 
  3. Proteção da Atenção: Considerar a atenção humana como um bem jurídico protegido, limitando as técnicas de design persuasivo que exploram vulnerabilidades psicológicas para manter o usuário viciado e radicalizado. 

A sobrevivência da democracia na era da infocracia depende da capacidade das instituições jurídicas de restaurar, ainda que parcialmente, as condições de possibilidade para o discurso racional. Sem um freio à viralidade desenfreada e à manipulação psicopolítica, o “governo do povo” degenera-se irreversivelmente em um governo de algoritmos, memes e mentiras. 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Este artigo demonstrou que o consumo excessivo de informação, longe de ampliar a consciência crítica, promove alienação cognitiva e esvaziamento da capacidade reflexiva. A hiperconectividade, os algoritmos e as bolhas informacionais criam uma realidade fragmentada, na qual os indivíduos se tornam espectadores passivos, incapazes de se engajar com questões sociais fundamentais. 

A análise zetética e dogmática da regulação midiática revelou que o Direito não pode ser reduzido a um conjunto de normas abstratas. Seguindo a perspectiva tridimensional de Miguel Reale, compreendeu-se que fato, valor e norma são inseparáveis: as normas sobre comunicação nascem de fatos sociais concretos (concentração midiática, desinformação, manipulação algorítmica) e buscam realizar valores constitucionais (dignidade humana, liberdade de expressão, pluralismo informativo). 

A contribuição de Jessé Souza permitiu compreender que a regulação midiática não pode ignorar as relações de poder que estruturam o campo comunicacional. A subcidadania, conceito central em sua obra, manifesta-se também na invisibilização de vozes marginalizadas pela mídia hegemônica, naturalizando desigualdades que poderiam ser transformadas. 

Byung-Chul Han, Pierre Bourdieu e Boaventura de Sousa Santos ofereceram ferramentas críticas para desvelar os mecanismos de dominação simbólica e temporal que operam através da comunicação de massa. A tirania do instantâneo, a sociedade do cansaço e a monocultura do tempo capitalista impedem a construção de uma consciência crítica necessária ao exercício democrático. 

As normas constitucionais brasileiras (artigos 5º, 220, 221 da CF/88), o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e a Lei do Direito de Resposta (Lei nº 13.188/2015) estabelecem um quadro normativo que busca equilibrar liberdade e responsabilidade. No entanto, a jurisprudência dos tribunais superiores revela tensões permanentes entre esses valores, exigindo ponderação cuidadosa à luz dos fatos concretos. 

A regulação midiática adequada deve considerar não apenas as normas formais, mas os fatos sociais e os valores que orientam o ordenamento jurídico. É preciso questionar os fundamentos da concentração midiática, da manipulação algorítmica e da invisibilização de pautas sociais, propondo uma ética comunicacional comprometida com a solidariedade, a diversidade e a transformação social. 

Por fim, este artigo reafirma a necessidade urgente de educação midiática crítica, democratização dos meios de comunicação e criação de ambientes comunicacionais que favoreçam a pluralidade, a pausa e a reflexão. Somente assim será possível resgatar o valor do conhecimento como base para a convivência humana e construir uma sociedade mais justa, consciente e democrática. 

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