REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.6755248
Autora:
Lívia Barreto Canoves
O constitucionalismo é um movimento de limitação do poder estatal, através de uma constituição, que, além de organizar a estrutura do Estado, prevê direitos e garantias fundamentais para os cidadãos.
Leciona Luís Roberto Barroso que:
No princípio era a força. Cada um por si. Depois vieram a família, as tribos, a sociedade primitiva. Os mitos e os deuses – múltiplos, ameaçadores, vingativos. Os líderes religiosos tornam-se chefes absolutos. Antiguidade profunda, pré-bíblica, época de sacrifícios humanos, guerras, perseguições, escravidão. Na noite dos tempos, acendem-se as primeiras luzes: surgem as leis, inicialmente morais, depois jurídicas. Regras de conduta que reprimem os instintos, a barbárie, disciplinam as relações interpessoais e, claro, protegem a propriedade. Tem início o processo civilizatório. Uma aventura errante, longa, inacabada. Uma história sem fim. (2017, p. 29).
Pedro Lenza conceitua o constitucionalismo como uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos (2019).
A constituição pode ser compreendida em sentido material e em sentido formal. Sob uma perspectiva sociológica, Bernardo Gonçalves Fernandes (2019) sustenta que todos os países, e até mesmo as comunidades primitivas, possuem constituições em sentido material ou real, que se identificam com as matérias que constituem as sociedades, explicitando o seu “modo de ser”. Por outro lado, a ideia de organização constitucional formal dos Estados se relaciona com os movimentos do constitucionalismo, oriundos, principalmente, das revoluções americana e francesa.
Não se pode, porém, desconsiderar a experiência inglesa, que, a partir da revolução gloriosa do século XVII, culminou com a supremacia do Parlamento inglês, de modo que a sua constituição material, em que pese não formalizada em um único documento, obteve um sentido jurídico, abarcando as normas tipicamente constitutivas do Estado (FERNANDES, 2019).
Atualmente, o conceito de constituição é bem definido por Branco, para quem:
A Constituição assume a missão de organizar racionalmente a sociedade, especialmente na sua feição política. É o estatuto do poder e o instrumento jurídico com que a sociedade se premune contra a tendência imemorial de abuso dos governantes. É também o lugar em que se expressam as reivindicações últimas da vida em coletividade e se retratam os princípios que devem servir de guia normativo para a descoberta e a construção do bem comum. (2016, p. 37).
Em suma, a constituição e o movimento do constitucionalismo visam à limitação do poder, estruturando e organizando o Estado, e à consecução de direitos e garantias fundamentais (FERNANDES, 2019).
Barroso (2017) adverte, porém, que nem sempre a associação entre existência de uma constituição escrita e a limitação do poder estatal e a supremacia da lei se mostra correta. O Reino Unido, por exemplo, apesar de não possuir tradicionalmente uma constituição formal, é um país onde a experiência do constitucionalismo obteve êxito. Por outro lado, as ditaduras da América Latina se pautaram em constituições escritas, mas nem por isso limitaram os abusos de seus governantes. Assim, é preciso que a constituição seja, antes de tudo, legítima e que tenha a adesão espontânea de seus destinatários.
Fazendo um recorte a partir da tradição ocidental, alguns autores identificam fases ou momentos do constitucionalismo, desde a antiguidade até os dias atuais.
Os hebreus, por exemplo, estabeleceram limitações ao poder político, incumbindo aos profetas a fiscalização da legitimidade dos atos dos governantes, a fim de que não extrapolassem os limites bíblicos (LENZA, 2019).
Já na Grécia Antiga, destaca-se a experiência ateniense, onde as funções estatais estavam divididas em órgãos distintos, havendo a separação entre o poder secular e a religião, bem como um sistema judicial pautado na supremacia da lei. Além disso, destacam-se as deliberações políticas exercidas pelos cidadãos. Ressalte-se, contudo, que não havia a participação dos escravos, estrangeiros e das mulheres (BARROSO, 2017).
Na Roma Antiga, a ideia de limitação do poder também se mostrou presente, ao fim da Monarquia, implementando-se a República, e com a Lei das Doze Tábuas. No entanto, segundo Barroso (2017), as decisões políticas ainda se limitavam a um pequeno grupo de órgãos e pessoas, sendo reduzida a participação dos cidadãos.
A despeito de seu caráter aristocrático, o poder na República era repartido por instituições que se controlavam e temiam reciprocamente. Nada obstante, um conjunto de causas conduziram ao ocaso do modelo republicano, dentre as quais o sistema de privilégios da aristocracia patrícia e a insatisfação das tropas, do povo e das outras aristocracias excluídas dos cargos consulares e do Senado. Do ponto de vista institucional, o fim veio pela via previsível: os comandantes militares tornaram-se excessivamente poderosos e escaparam ao controle efetivo dos órgãos políticos. Quando a República ruiu e deu-se a coroação do imperador, não foi o fim de Roma, cujo domínio duraria ainda mais meio milênio. O que terminou, na véspera do início da era cristã, foram a experiência e o ideal constitucionalistas, que vinham dos gregos e haviam sido retomados pelos romanos. A partir dali, o constitucionalismo desapareceria do mundo ocidental por bem mais de mil anos, até o final da Idade Média. (BARROSO, 2017, p. 34).
Durante a Idade Média, houve uma dispersão do poder político, uma vez que as relações de poder se estabeleciam, basicamente, entre o dono da terra e seus vassalos, marcando o período feudal, no qual restava pouco poder concentrado nas mãos do rei (BARROSO, 2017).
É importante destacar, no entanto, que a Magna Carta de 1215 foi um documento que marcou a Idade Média, consagrando, ainda que apenas formalmente e para um grupo seleto, alguns direitos individuais, sendo fruto de um pacto com o monarca inglês (LENZA, 2019).
Já no final da Idade Média, destaca Barroso (2017) que, em razão de fatores como o crescimento do comércio, e em reação à pluralidade de poderes, iniciou-se o processo de concentração de poder, culminando na formação do Estado Moderno, no início do século XVI.
Nasce absolutista, por circunstância e necessidade, com seus monarcas ungidos por direito divino. O poder secular liberta-se progressivamente do poder religioso, mas sem lhe desprezar o potencial de legitimação. Soberania é o conceito da hora, concebida como absoluta e indivisível, atributo essencial do poder político estatal. Dela derivam as ideias de supremacia interna e independência externa, essenciais à afirmação do Estado nacional sobre os senhores feudais, no plano doméstico, e sobre a Igreja e o Império (romano-germânico), no plano internacional. Com Jean Bodin e Hobbes, a soberania tem seu centro de gravidade no monarca. Com Locke e a Revolução Inglesa, ela se transfere para o Parlamento. Com Rousseau e as Revoluções Francesa e Americana, o poder soberano passa nominalmente para o povo, uma abstração aristocrático-burguesa que, com o tempo, iria democratizar-se. (BARROSO, 2017, p. 35-36, grifos do autor).
Após o processo de concentração do poder e formação do Estado Moderno, portanto, ocorreram as revoluções liberais, que combatiam os abusos decorrentes do absolutismo, visando à concretização de direitos individuais, notadamente para a classe burguesa.
Com o êxito das revoluções e a supremacia do Parlamento, pontua Branco (2016) que não vingou a ideia de supremacia da Constituição. Isso porque não havia mecanismos aptos a protegê-la em face do próprio Poder Legislativo. Nessa época, vigorava a supremacia da lei, fruto do Parlamento, que, por representar a vontade do povo, não poderia sofrer censura. Conforme as ideias de separação de poderes desenvolvidas por Montesquieu, o Poder Judiciário era reduzido à condição de mero aplicador da lei, sem poder interpretá-la.
A ideia de uma Constituição com menor valor jurídico perdurou, na Europa continental, até as crises do Estado liberal do final do século XIX e início do século XX (BRANCO, 2016).
A situação se altera apenas com o fim da Segunda Guerra Mundial. Ainda de acordo com Branco,
Terminado o conflito, a revelação dos horrores do totalitarismo reacendeu o ímpeto pela busca de soluções de preservação da dignidade humana, contra os abusos dos poderes estatais. Os países que saíam do trauma dos regimes ditatoriais buscaram proteger as declarações liberais das suas constituições de modo eficaz. O Parlamento, que se revela débil diante da escalada de abusos contra os direitos humanos, perdeu a primazia que o marcou até então. A Justiça Constitucional, em que se viam escassos motivos de perigo para a democracia, passou a ser o instrumento de proteção da Constituição – que, agora, logra desfrutar de efetiva força de norma superior do ordenamento jurídico, resguardada por mecanismo jurídico de censura dos atos que a desrespeitem. (2016, p. 47-48).
Diversos abusos cometidos durante o período da Segunda Guerra se pautaram na própria lei, o que demonstrou que ela, por si só, não seria suficiente para a proteção dos indivíduos e promoção de sua dignidade. Nesse sentido, no pós-guerra, os Estados, além de se unirem para proteger os direitos humanos, no plano internacional, através da assinatura de tratados, declarações e convenções, também passaram a conferir força normativa às suas cartas constitucionais, onde se encontram positivados direitos e garantias fundamentais, é organizado o Estado e são limitados os seus Poderes.
O instante atual é marcado pela superioridade da Constituição, a que se subordinam todos os poderes por ela constituídos, garantida por mecanismos jurisdicionais de controle de constitucionalidade. A Constituição, além disso, se caracteriza pela absorção de valores morais e políticos (fenômeno por vezes designado como materialização da Constituição), sobretudo em um sistema de direitos fundamentais autoaplicáveis. Tudo isso sem prejuízo de se continuar a afirmar a ideia de que o poder deriva do povo, que se manifesta ordinariamente por seus representantes. A esse conjunto de fatores vários autores, sobretudo na Espanha e na América Latina, dão o nome de neoconstitucionalismo. (BRANCO, 2016, p. 53).
Há essencialmente três marcos fundamentais que definem o “novo” direito constitucional: o marco histórico, evidenciado pelas Constituições do pós-guerra e busca pela redemocratização; o marco filosófico, que se pauta no pós-positivismo, que procura empreender uma leitura moral do Direito, sem que se recorra a categorias metafísicas; e o marco teórico, representado pela ideia de força normativa da constituição, envolvendo uma nova dogmática da interpretação constitucional e a constitucionalização dos direitos fundamentais, cuja proteção passa a caber ao Poder Judiciário (LENZA, 2019 apud BARROSO, 2006).
O papel das cortes constitucionais é ampliado, em razão do fenômeno de constitucionalização de todos ramos do direito, o que viabiliza o questionamento da validade de leis e atos normativos, tendo como parâmetro a Constituição.
Há, portanto, uma mudança na forma de enxergar o papel da Constituição no ordenamento jurídico, passando a fundamentar a validade de todas as demais normas, bem como a legitimidade das decisões tomadas pelo Poder Judiciário, protagonista do controle de constitucionalidade, e pelos demais Poderes na formulação das políticas públicas.
Considerando-se que a isonomia é um direito fundamental e que abrange a equidade de gênero, faz-se necessário compreender o constitucionalismo sob a perspectiva feminista. Isso porque, até pouco tempo atrás, a mulher não podia trabalhar fora de casa, escolher com quem se casaria, a se divorciar, a votar, dentre uma série de outros direitos, que, hoje, vemos como indissociáveis à sua dignidade e autonomia. As conquistas alcançadas, ao longo dos anos, foram fruto de muitas lutas femininas. Tais lutas não acabaram, visto que ainda se está longe de atingir o ponto ideal de reconhecimento e igualdade perante os homens.
Segundo Carla Cristina Garcia (2011), embora, de modo geral, a sociedade reconheça a necessidade de promover a igualdade entre gêneros, nota-se que a palavra feminismo não é bem compreendida por todos, gerando até mesmo um certo medo ou receio, diante da desinformação, o que levou muitos a acreditar que o feminismo seria um inimigo a ser combatido, quando, na verdade, o feminismo visa, objetivamente, à promoção de direitos e oportunidades para as mulheres, pois só assim se promove a equidade de gênero.
As presentes gerações desconhecerem as lutas das mulheres, os nomes que estiveram à frente dos movimentos, denunciando as discriminações e buscando um relacionamento justo com os homens. Ademais, a história do feminismo é desconhecida por ser pouco contada, fato que deve ser revertido (DUARTE, 2003).
De acordo com Garcia,
O termo feminismo foi primeiro empregado nos Estados Unidos por volta de 1911, quando escritores, homens e mulheres, começaram a usá-lo no lugar das expressões utilizadas no século XIX tais como movimento das mulheres e problemas das mulheres, para descrever um novo movimento na longa história das lutas pelos direitos e liberdades das mulheres. Esse novo feminismo visava ir além do sufrágio e de campanhas pela moral e pureza social buscando uma determinação intelectual, política e sexual. O objetivo das feministas americanas era um equilíbrio entre as necessidades de amor e de realização, individual e política, o que parecia algo muito difícil de conseguir. (2011, p. 12-13).
Todas as vezes que as mulheres, de forma individual ou coletiva, movimentam-se no sentido de combater as opressões e discriminações que, historicamente, sempre permearam os seus relacionamentos com os homens, há uma ação feminista. O feminismo significa, portanto, a tomada de consciência das mulheres acerca da dominação fruto do patriarcado, buscando a sua emancipação, liberdade plena e igualdade em direitos. Nesse sentido, o feminismo se articula como movimento social e filosofia política (GARCIA, 2011).
Destaca a autora que:
Além de ser uma teoria política e uma prática social o feminismo é muito mais. O discurso, a reflexão e a prática feminista carregam também uma ética e uma forma de estar no mundo. A tomada de consciência feminista transforma – inevitavelmente – a vida de cada uma das mulheres que dela se aproximam, pois a consciência da discriminação supõe uma postura diferente diante dos fatos. Supõe dar-se conta das mentiras – pequenas ou grandes – em que a história, a cultura, a economia, os grandes projetos, os pequenos detalhes do cotidiano estão alicerçados. Supõe enxergar os micromachismos, as pequenas manobras realizadas por muitos homens todos os dias para manter sob seu poder as mulheres e a estafa que supõe manter duplas ou mais jornadas de tarefas. Ser consciente de que estamos infrarrepresentadas na política e ver como a mulher é coisificada dia a dia na publicidade. Supõe saber que segundo a ONU uma em cada três mulheres no mundo já sofreu algum tipo de maus-tratos ou abuso. (GARCIA, 2011, p. 14).
Como se vê, o feminismo pressupõe, antes de mais nada, a compreensão de que as mulheres sempre estiveram em lugar de desprestígio em relação aos homens. Isso porque o oprimido só pode agir quando tem consciência da opressão e identifica o seu opressor. No caso do machismo, a opressão vem não apenas dos homens, mas de toda a sociedade, que construiu uma cultura em que os corpos, pensamentos e ações das mulheres estão sendo constantemente vigiados e controlados.
Ressalte-se que o movimento feminista não é coeso, uma vez que formado pelo pensamento de muitas mulheres, em todos os lugares do mundo.
Destaca Sueli Carneiro (2003) que o feminismo ficou, por muito tempo, atrelado apenas a uma visão eurocêntrica, o que dificultou a identificação da diversidade existente no universo feminino, numa busca inútil de universalizar as mulheres. Isso acabou silenciando e invisibilizando outras formas de opressão. Há uma necessidade de se reelaborar discursos e práticas políticas do feminismo, notadamente diante do movimento emergente de mulheres negras, vítimas também do racismo estrutural.
Enegrecendo o feminismo é a expressão que vimos utilizando para designar a trajetória das mulheres negras no interior do movimento feminista brasileiro. Buscamos assinalar, com ela, a identidade branca e ocidental da formulação clássica feminista, de um lado; e, de outro, revelar a insuficiência teórica e prática política para integrar as diferentes expressões do feminino construídos em sociedades multirraciais e pluriculturais. Com essas iniciativas, pôde-se engendrar uma agenda específica que combateu, simultaneamente, as desigualdades de gênero e intragênero; afirmamos e visibilizamos uma perspectiva feminista negra que emerge da condição específica do ser mulher, negra e, em geral, pobre, delineamos, por fim, o papel que essa perspectiva tem na luta anti-racista no Brasil. (CARNEIRO, 2003, p. 118, grifo da autora).
É preciso, portanto, pensar o movimento feminista a partir da interseccionalidade, pois as mulheres negras e pobres estão sujeitas a outras formas de discriminação e opressão, em razão da raça e classe social.
De acordo com Julia Ignacio (2020), o termo interseccionalidade visa à compreensão da sobreposição de diferentes formas de opressão e discriminação, consistindo em instrumento que viabiliza a discussão sobre as relações entre raça, sexo e classe, a fim de que se adotem políticas públicas eficazes.
No que diz respeito ao feminismo e à interseccionalidade, Sueli Carneiro aponta que:
Ao politizar as desigualdades de gênero, o feminismo transforma as mulheres em novos sujeitos políticos. Essa condição faz com esses sujeitos assumam, a partir do lugar em que estão inseridos, diversos olhares que desencadeiam processos particulares subjacentes na luta de cada grupo particular. Ou seja, grupos de mulheres indígenas e grupos de mulheres negras, por exemplo, possuem demandas específicas que, essencialmente, não podem ser tratadas, exclusivamente, sob a rubrica da questão de gênero se esta não levar em conta as especificidades que definem o ser mulher neste e naquele caso. Essas óticas particulares vêm exigindo, paulatinamente, práticas igualmente diversas que ampliem a concepção e o protagonismo feminista na sociedade brasileira, salvaguardando as especificidades. (CARNEIRO, 2003, p. 119).
Como visto, o movimento feminista é complexo e não pode tratar as demandas das mulheres da mesma forma, já que existem diversos outros fatores que não podem ser olvidados na luta pela emancipação feminina e fim das desigualdades existentes na nossa sociedade.
Segundo Christine Peter (2018), o constitucionalismo feminista consiste em uma postura hermenêutica de constitucionalismo inclusivo, ou seja, é uma forma de tratar os problemas tipicamente constitucionais a partir de uma visão plural, aberta e tolerante, dando destaque para aspectos que o Direito Constitucional Contemporâneo ainda exclui e marginaliza. Defende-se, portanto, uma perspectiva de gênero como um método para resolver problemas jurídicos.
Durante o processo de redemocratização dos países da América Latina, nota-se que houve uma maior participação popular, sendo que se destaca a participação das mulheres, durante da década de 80, reivindicando a constitucionalização de suas demandas históricas. Para Salete Maria da Silva e Sônia Jay Wright (2015), a exemplo dos países vizinhos, no Brasil, as mulheres atuaram de forma participativa, na Assembleia Constituinte de 1987/1988, contribuindo, de modo decisiv0, para a ampliação de seus direitos de cidadania.
Ainda conforme as autoras,
[…] em face da posição desigual das mulheres nos espaços de poder, foi necessária a articulação da democracia representativa e democracia participativa, materializada tanto na presença de mulheres enquanto deputadas e senadoras, como na incorporação das vozes, ideias e demandas femininas apresentadas pelas próprias feministas, através de grupos de pressão atuantes no âmbito os poderes constituídos. (SILVA, WRIGHT, 2015, p. 174).
Em sua essência, o constitucionalismo é marcadamente androcêntrico, pois a ideia de limitação do poder estatal visa à proteção da liberdade individual e propriedade privada, direitos que eram conferidos apenas ao homem, que, pelas leis da natureza, seria o sujeito que já nasceria livres, sendo, pois, o “cidadão universal” (SILVA, WRIGHT, 2015).
Nesse contexto, cumpre trazer à baila a reflexão feita por Christine Oliveira Peter da Silva e Carolina Freitas Gomide, segundo as quais
Considerando que uma das evidentes contribuições do feminismo emerge da ação de denunciar a insuficiência dos paradigmas contemporâneos, explicando que tal insuficiência decorre das exclusões e clivagens do patriarcado, que pretende colocar o homem branco, cisgênero e heterossexual como referência de universalidade, é urgente a conscientização dos cidadãos e cidadãs de que a igualdade somente poderá ser uma realidade, como categoria constitucional, diante da experiência do reconhecimento dos outros como livres, diferentes e igualmente merecedores de respeito e consideração. (2020, p. 19).
A ausência de participação das mulheres na formulação dos textos constitucionais era fruto da ideia de que elas não eram sujeitos políticos e, assim, por não participarem do processo de tomada de decisões, não tinham suas demandas reconhecidas e positivadas nas normas constitucionais. A partir da Segunda Guerra Mundial, houve o surgimento de um novo constitucionalismo, na Europa, com preocupações éticas e humanitárias em relação ao conteúdo e elaboração das normas regentes do Estado, embora ainda com viés androcêntrico (SILVA, WRIGHT, 2015).
Na América Latina, o neoconstitucionalismo emerge somente a partir da década de 80, no contexto de redemocratização, após as ditaduras militares. Entretanto, ainda não havia a percepção de que as mulheres formavam um grupo com necessidades e demandas específicas, que precisavam ser levadas em consideração. No Brasil, o movimento feminista constatou a importância de dialogar com o Estado, passando a buscar a presença das mulheres na vida política, o que ocorreu, de forma inédita, com a pressão por elas exercida na Assembleia Constituinte. Esse fenômeno ficou conhecido como o “lobby do batom” (SILVA, WRIGHT, 2015).
Para uma melhor percepção da importância da ação deste grupo de pressão dentro do Parlamento, vale destacar que, ao longo dos seus 192 anos de independência, o Brasil já elaborou oito Constituições, sendo quatro impostas pelos governantes e quatro votadas por assembleias constituintes; no entanto, até 1986, apenas uma mulher havia sido eleita deputada constituinte: a médica paulista Carlota Pereira de Queiroz que, em 1934, atuou junto ao parlamento nacional na elaboração da Lei Maior. Todavia, pelas próprias condições da época, sua participação foi acanhada, pois, diferentemente da experiência discutida neste artigo, a Assembleia Constituinte de 1933 não contou com a ampla mobilização e participação feminina, uma vez que neste período o feminismo no Brasil não tinha o mesmo acúmulo prático e teórico que ostentou em 1987/88 e ostenta nos dias atuais. Assim, em que pese a conquista do direito ao voto em 1932, recepcionado e ampliado pela Constituição de 1934, não se pode destacar avanços em termos de direitos da mulher nesta norma superior, tampouco nas demais que a sucederam. (SILVA, WRIGHT, 2015, p. 176 apud SILVA, 2012).
Desse modo, apenas a partir da atual Constituição é que se percebem os maiores avanços em termos de garantia e proteção dos direitos e demandas específicas das mulheres.
Na Assembleia Constituinte de 1987/1988, dos 559 parlamentares, 26 eram mulheres, o que representou um recorde na participação feminina, embora ainda muito tímida. Convém destacar que, em 1985, foi criado o Conselho Nacional de Direitos da Mulher (CNDM), através da Lei nº 7.353/1985, vinculado ao Ministério da Justiça. O Conselho atuou em três frentes: creches, violência e constituinte, exercendo importante papel na redemocratização e contribuindo para que as demandas femininas fossem incluídas na nova Constituição. Ademais, o Conselho também interviu nas áreas de saúde, educação, trabalho e cultura (SILVA, GOMIDE, 2020).
Durante o período de trabalho em torno da Constituinte, o movimento feminista foi o que mais se destacou por trabalhar diretamente no trato com os parlamentares, de modo a convencê-los da necessidade de serem atendidas as demandas formuladas por mulheres. Essa atuação conseguiu aprovar em torno de oitenta por cento das reivindicações, constituindo-se o setor organizado da sociedade civil que mais vitórias conquistou. (SILVA, GOMIDE, 2020, p. 28 apud MIRANDA, 2015).
Vê-se, portanto, que a organização das mulheres no período que antecedeu a Assembleia Constituinte e sua participação direta na elaboração do texto constitucional foi fator decisivo para a positivação, no Texto Maior, de muitas de suas reivindicações e direitos específicos, contribuindo para a formulação do constitucionalismo feminista.
Segundo Christine Peter (2018), a hermenêutica feminista, como forma de interpretar o Direito Constitucional, a partir do lugar de fala feminino, permite que se identifiquem os elementos da dogmática jurídica que discriminam por gênero, raciocinando de modo que as normas constitucionais permitam a superação dos dilemas concretos de mulheres reais. Com isso, aumenta-se a colaboração através de diferentes visões de mundo e experiências de mulheres e homens, a fim de construir um novo caminho, pautado no respeito, igualdade e considerações recíprocos.
Ainda de acordo com a autora, em contraposição ao individualismo e competitividade, o feminismo cultural se pauta na ética do cuidado, do afeto e da alteridade, valores que, trazidos para a perspectiva constitucional, apresentam-se como princípios expressos ou implícitos de fraternidade, solidariedade e sustentabilidade (PETER, 2018).
Na Constituição Federal de 1988, esses valores foram consagrados no preâmbulo, onde se afirma que a instituição do Estado Democrático se destina a assegurar o exercício de direitos sociais e individuais, pautando-se em valores como a igualdade, bem-estar, para construir uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
Além disso, a solidariedade social é objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, conforme dispõe o art. 3º, I, da CRFB.
Especificamente no que concerne à igualdade de gênero, uma vez que só é possível a construção de uma sociedade livre, justa e solidária se houver tratamento equânime, o legislador constitucional previu, no art. 5º, I, da CRFB, que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.
Além disso, existem documentos internacionais ratificados pelo Brasil que tratam da igualdade de gênero. Como lembra Desdêmona Tenório de Brito Toledo Arruda,
[…] são abundantes os instrumentos legislativos internacionais que exigem a igualdade entre homens e mulheres e a efetivação dos direitos fundamentais das mulheres. O reconhecimento formal e o compromisso dos Estados ao assinarem tais tratados é indispensável à efetivação dos direitos humanos nos planos internos e externo. Trata-se de uma etapa fundamental e sempre em construção e aperfeiçoamento, sem a qual não há possibilidade de trabalhar pela implementação da equidade de gênero por meio de leis e políticas públicas. (2020, p. 58-59).
No entanto, não basta apenas a afirmação da igualdade formal. Obviamente, a história mostra que a positivação de direitos das mulheres e a sua compreensão enquanto cidadãs, dignas de respeito e igual consideração dos homens foi um marco a ser celebrado e comemorado. Contudo, não basta apenas a previsão legal de igualdade, se não houver a consagração, através de políticas públicas efetivas, de seus direitos específicos.
A construção de uma cultura pautada no patriarcado reflete uma mentalidade de que as mulheres devem centrar suas atividades no seio doméstico, cuidando especialmente dos filhos, para que os maridos possam trabalhar e prover recursos para a manutenção do lar.
Com isso, a inserção feminina, no mercado de trabalho, ainda é algo relativamente recente e desigual em comparação com os homens.
Dados do IBGE mostram que 54,5% das mulheres com 15 anos ou mais integravam a força de trabalho no país em 2019, enquanto que, entre os homens, esse percentual foi 73,7%. A força de trabalho se compõe das pessoas que estão empregadas ou procurando emprego.
Além disso, na faixa etária entre 25 e 49 anos, é de 54,6% o percentual de ocupação das mulheres que têm filho com até três anos de idade, e de 67,2% daquelas que não têm. Por outro lado, em relação aos homens, ocorre o inverso: aqueles que têm filho com até três anos de idade têm nível de ocupação de 89,2%, enquanto que aqueles que não têm registram ocupação de 83,4%.
Vale frisar que, dentre as mulheres com crianças de até três anos, as pretas e pardas registraram percentual de ocupação inferior a 50%, enquanto que as brancas marcaram um percentual ocupacional de 62,6%. A pesquisa apenas confirma que a questão racial deve ser debatida juntamente com a questão de gênero, uma vez que uma mesma pessoa pode estar sujeita a mais de uma forma de opressão.
Os dados também revelam que, no ano de 2019, as mulheres registraram quase o dobro do tempo de horas semanais que os homens no cuidado de pessoas e afazeres domésticos, sendo 21,4 horas contra 11,0.
Vale ressaltar, ainda, que:
Embora a Convenção nº 100 da Organização Internacional do Trabalho (1951) e o art. 7º da Constituição de 1988 proíbam a diferença de salários por motivo de sexo, dados do Fórum Econômico Mundial de 2018 situam o Brasil na lamentável 132ª posição dentre 149 países analisados quanto à igualdade de pagamento para trabalhos semelhantes entre homens e mulheres. (ARRUDA, 2020, p. 59).
Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Marques e Patrícia Pacheco Rodrigues (2020) relatam que, em busca de emprego, a mulher sempre se submeteu a condições precárias de trabalho, ressaltando-se que, no Código Civil de 1916, ela tinha “status” de relativamente incapaz e precisava de autorização do marido para que pudesse exercer alguma profissão fora do lar, estando o pátrio poder concentrado nas mão deste, enquanto perdurasse a sociedade conjugal.
Com a Constituição de 1934, houve previsão de trabalho da mulher, proibindo-se a discriminação salarial, vedando o seu trabalho em locais insalubres e se garantindo o repouso antes e depois do parto, sem prejuízo do emprego e salário (MARQUES, PACHECO, 2020).
Já com a Lei nº 4.121/1962 (Estatuto da Mulher Casada), a mulher deixa de ser considerada relativamente incapaz e se estabelece um tratamento paritário entre os cônjuges, no que concerne aos efeitos jurídicos do casamento, incluindo as relações patrimoniais. No ano de 2002, é editado um novo Código Civil, que traz a capacidade plena da mulher e implementa a igualdade constitucionalmente prevista na Constituição de 1988, substituindo o pátrio poder pelo poder familiar e prevendo a chefia familiar pelo homem e pela mulher, nas relações heteroafetivas (MARQUES, PACHECO, 2020).
Apesar dos notáveis avanços em termos de consagração de direitos, ainda não foi atingido o nível desejado de igualdade de gênero no mercado de trabalho e nas relações familiares, fatores que têm íntima relação.
O fato de os homens ainda exercerem maiores níveis ocupacionais, notadamente quando advêm filhos das relações com as mulheres, acaba, em muitos casos, por aumentar a dependência feminina, perpetuando a ideia de que, por ser o provedor econômico, o homem é o chefe da família.
Os dados do IBGE supracitados revelam que não é suficiente a contemplação de direitos de igualdade de gênero em documentos normativos, sendo necessária a atuação, no plano concreto, do Estado e dos cidadãos e cidadãs, para que haja uma efetiva mudança no tratamento entre homens e mulheres, não só no que diz respeito ao mercado de trabalho, mas em todos os campos sociais, políticos, econômicos e culturais.
Desse modo, embora as mulheres sejam as maiores interessadas na mudança, ela só é possível com o esforço de todos, pois se trata, segundo Arruda (2020), de um projeto de fôlego, a exigir a implementação de políticas públicas e mudanças culturais, no setor público e privado, exigindo-se a participação individual e coletiva, para enfrentar as resistências, avanços e retrocessos.
Como bem destacam Marques e Rodrigues (2020), as sociedades menos igualitárias são as que possuem maiores índices de desemprego, menor crescimento econômico e menos avanços sociais, razão pela qual a concretização da equidade de gênero deveria interessar a toda a sociedade.
Só a partir de políticas públicas efetivas que promovam a igualdade de gênero, com a transformação da cultura e mentalidade da sociedade, é que a Constituição Federal cumprirá com seus objetivos de promover uma sociedade livre, justa e solidária e de promover o bem de todos, sem qualquer forma de preconceito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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