MAQUIAVEL E A POLÍTICA MODERNA: ALGUMAS REFLEXÕES INTRODUTÓRIAS SOBRE O PENSAMENTO POLÍTICO MAQUIAVELIANO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11316691


Adriano Rosa da Silva1


RESUMO

Este trabalho tem por objetivo precípuo discutir as bases do pensamento político maquiaveliano, a partir da obra O Príncipe, tendo como enquadramento teórico o período renascentista. Foi utilizada como metodologia a pesquisa qualitativa descritiva acerca das publicações de Maquiavel e de suas ideias republicanas, por meio da investigação de dados documentais e bibliográficos, com enfoque analítico, levando-se em consideração o contexto sociocultural de sua produção e o de sua circulação, considerando a diversidade desses contextos. Para elucidar essas questões, buscou-se referencial teórico mediante material bibliográfico atinente a essa temática.

Palavras-chave: Maquiavel. O Príncipe. Pensamento Político Renascentista.

ABSTRACT

The main objective of this work is to discuss the bases of Machiavellian political thought, based on the work The Prince, using the Renaissance period as its theoretical framework. The methodology used was descriptive qualitative research on Machiavelli’s publications and his republican ideas, through the investigation of documentary and bibliographic data, with an analytical focus, taking into account the sociocultural context of his production and circulation, considering the diversity of these contexts. To elucidate these questions, a theoretical reference was sought using bibliographic material related to this theme.

Keywords: Machiavelli. The prince. Renaissance Political Thought.

1. INTRODUÇÃO

Interessa observar que o objetivo deste estudo, dentro dos seus limites, é esboçar uma breve reflexão acerca das possibilidades de análise suscitadas sobre o campo da teoria política. Não foi utilizada consulta no idioma original, apenas traduções. Nessa direção, estudar o pensamento político maquiaveliano é tarefa complexa e requer leitura atenta e acurada do amplo leque de conceitos e questões correlacionadas, considerando as variadas e, por vezes, divergentes interpretações de seus escritos. Para compreendermos o contexto da elaboração de O Príncipe e a investigação de Maquiavel2 sobre a natureza da política moderna, é fundamental considerarmos o conjunto da obra maquiaveliana e o período histórico em que o filósofo escreve. Sob essa ótica, com o advento da modernidade, o pensamento humanista3 adquire grande influência, não se creditando mais os males da vida à ‘vontade de Deus’, mas esses terão que ser resolvidos pela ação política dos homens. Assim, os sucessos e insucessos da vida passam a ser considerados frutos das escolhas e das atitudes tomadas livremente, em substituição à crença em uma ‘força divina’, desprendendo os princípios políticos das doutrinas religiosas. O que permitiu à filosofia construir as bases da nova visão de mundo e do pensamento político moderno, pautado pela racionalidade.

Nessa linha, a Itália ‘trecentista’ era uma República citadina que, graças à derrota do Imperador em sua contenda com o Papa4, transformou cidades como Florença e Veneza em grandes expoentes da vida republicana5 e, nelas, se desenvolveria uma nova teoria política e uma nova fase de expansão capitalista. Nesses Estados, como o poder se concentrou em poucas mãos, o poder autocrático gerou, nesse cenário, as teorias humanistas do Republicanismo. A partir do século XV, na Itália no ‘quattrocento’ houve o advento do Renascimento, com mudanças na configuração dos Estados e profundas transformações econômicas devido à ascensão dos burgueses, promotores das grandes navegações. No campo religioso, a Reforma Luterana abalou a influência da Igreja Católica, especialmente devido à tradução das sagradas escrituras para o alemão, possibilitando a interpretação individual desses textos, sem a necessidade da mediação da Igreja.

Nesse cenário renascentista, numa época que apontava para novos caminhos, encontra-se Maquiavel, que escreveu sua obra com bastante apuro analisando a política como realmente acontecia após um longo período servindo ao governo florentino. No momento em que Maquiavel desenvolve seu trabalho, os grandes Estados-Nação buscavam consolidar-se como potência na Itália, ao mesmo tempo, que as Cidades-Estado visavam independência. Nesta via, as configurações políticas da Península Itálica se encontravam em constante modificação6. A contradição de interesses aumentou os conflitos internos e diminuiu a possibilidade de unificação do país, fragilizando-o militarmente. A desunião de seus líderes o tornava alvo fácil das ambições dos monarcas dos grandes Estados europeus, como a França e a Espanha. No tocante à formação demográfica e urbana europeia entre os séculos XV e XVI, cabe ressaltar que, até os anos 1400, apenas Paris e Nápoles possuíam uma população superior a 200 mil habitantes, conforme Larrivaille (1988, p. 191).

Segundo Chevallier (1982, p. 17), a Renascença se estende do início do século XIV até meados do século XVI, constituindo-se num movimento de reformulação filosófica, artística e literária, e de retorno às obras e fontes do conhecimento antigo clássico, base da cultura ocidental, modificando os valores medievais que criaram um sistema de pensamento que funcionava em termos teológicos e filosóficos, de certo modo, estático. A Renascença possibilitou maior rigor teórico e viabilizou a análise da política sem a interferência do divino, já que os renascentistas defendiam o protagonismo do homem e a separação entre política e religiosidade, trazendo o homem para o centro do debate político, embora ainda prevalecessem princípios cristãos. Onde o pensamento político se modificou e também ocorreu um grande florescimento cultural e intelectual proporcionado pelo Humanismo, fundamental para o nascimento da modernidade (NOGARE, 1981, p. 56), constituindo-se por um movimento cultural e intelectual de relevância para a mentalidade política renascentista, dotada de valores republicanos.

O pensamento social e político que desabrochou e cresceu em Florença, nos inícios do século XV, pôde resultar de duas importantes tradições intelectuais: a dos distractores medievais e a dos humanistas petrarquianos de fins do século XIV […] Bastou os humanistas se convencerem de que haviam posto fim à Idade das Trevas e de que iniciavam uma genuína Renascença, para se sentir em condições de concluir que a luz que ora acendiam haveria de brilhar tal como jamais fulgira no passado (SKINNER, 1996, p. 123, 132).

2. BREVE REFLEXÃO TEÓRICA SOBRE O PENSAMENTO POLÍTICO DE MAQUIAVEL

No sentido de resgatar as intenções do autor ao elaborar seu texto, a despeito do conjunto de dificuldades que encontrei numa análise ligeira entre autores e obras, baseando sempre a chave de interpretação no máximo de evidências (POCOCK, 2003, p. 27), à luz das pistas concernentes a textos e obras específicas, pude depreender que Maquiavel confere à política um status de autonomia em relação à religião, confrontando a tradição política italiana com a realidade do seu tempo. Esse secretário florentino crítico do humanismo moralista não pensava a política a partir de um ideal de Estado e de governante (RIDOLFI, 2003). Sobre isso, em O Príncipe, o autor demonstra o quanto os dirigentes políticos são humanos e imperfeitos, distanciando-se das qualidades ‘éticas’ e ‘cristãs’. Importa considerar que Maquiavel escreve no contexto da pós-reintegração dos Medici7 na política italiana, em 1512, refletindo sobre um novo modo de ver e fazer política, por meio de um método de análise realista a partir do Renascimento, colocando o homem como sujeito da ação política, agindo, salvo melhor juízo, conforme o ‘tempo certo’, a occasione, a vita civilis8.

De acordo com Skinner, o retorno à imagem clássica da dignidade da ação humana produziu, junto aos humanistas, uma noção nova acerca das capacidades do homem9, tornando-se, em certa medida, senhor do próprio destino. Assim também, os humanistas retomam a ideia defendida por Aristóteles, Políbio e Cícero, em que o curso dos eventos humanos segue uma constante de ciclos que se renovam. Nesse ângulo, Maquiavel retoma de seus predecessores humanistas a ideia de virtù10, como uma capacidade moral e intelectual, para elucidar a capacidade humana de agir. Não numa concepção cristã de homem virtuoso que age sob a influência do ethos cristão, mas desvelando um processo de laicização da política e de reforço da ética para reger a ação do homem político. Segundo Skinner, em oposição à virtù está a Fortuna, conceito complexo na obra de Maquiavel, entendida como a divindade cultuada pelos romanos e que pode alterar os destinos da vida de cada um, para o bem ou para o mal, conforme a sorte e o acaso. Em face ao exposto, para Maquiavel, a Fortuna representa uma força com poder destrutivo, contingência própria da realidade política, sendo, porém, que o homem de autêntica virtus pode antecipar-se aos seus efeitos, criando os meios para controlar as circunstâncias, instaurando-se o conflito do homem virtuoso com as circunstâncias do mundo que extrapolam o controle humano.

Conforme Skinner, Maquiavel, ao mesmo tempo em que investiga os problemas do seu tempo, investiga a liberdade buscando compreender sua importância nas maiores Repúblicas da História Antiga11. Assim, com base em seus estudos sobre as realizações de Roma12, a título de exemplo, somente enquanto estiveram em liberdade as cidades se expandiram em termos de domínio e de riqueza, tornando-se elemento essencial para que uma cidade se desenvolva. Por certo, Maquiavel se distancia dos pensadores de seu tempo e da tradição do Humanismo Cívico, analisando, a seu modo, a liberdade, tendo presente que “no pensamento político florentino do século XIV o termo “liberdade” veio a conotar tanto a independência política quanto o auto governo republicano” (SKINNER, 1996, p. 29). Nesse prisma, a ideia da construção de um Estado forte, com instituições sólidas e um governante virtuoso, é fundamental para interpretarmos os fenômenos políticos modernos e contemporâneos, pois constitui a garantia da liberdade na esfera política, que contribui para a construção de um corpo político potente e duradouro.

Consoante com Merleau-Ponty (1958), o poder político para Maquiavel deve colaborar com o povo. Na visão maquiaveliana sobre o Estado o elemento mais importante é o povo, para quem as atividades governamentais estão direcionadas. Isso porque, um governo age para que o povo se sinta confortável e satisfeito, evitando-se o conflito político e os riscos à estrutura governamental, haja vista a diferença entre os interesses do povo e os dos nobres. Maquiavel (1983) no capítulo IX afirma que “o objetivo do povo é mais honesto do que o dos poderosos; estes querem oprimir e aquele não ser oprimido”. Foi a disparidade entre nobres e plebeus, na Itália, resultando em conflitos entre classes, que despertou o interesse de Maquiavel em investigar as Repúblicas13, onde tais divergências aparecem, considerando que os desejos de quem assume o poder podem influenciar na direção do Estado, o qual atua com sua força bruta. Daí a importância para Maquiavel da virtù do dirigente político. Segundo Maquiavel (1983), “na Itália do Renascimento reinava grande confusão, onde a tirania imperava em pequenos principados, governados despoticamente por casas reinantes sem tradição dinástica ou de direitos contestáveis”.

[…] de uma parte, o povo não quer ser comandado nem oprimido pelos poderosos, de outra, os poderosos querem comandar e oprimir o povo; desses dois desejos antagônicos advêm uma das três consequências: principado, liberdade ou desordem (MAQUIAVEL, 2010, p. 77).

Diante disso, o autor considera em sua filosofia os conflitos entre os extratos sociais da cidade, rejeitando a ideia de sociedade sem contradições, e chega a afirmar no capítulo IX que “em toda república há dois humores diferentes, o do povo, e o dos grandes” (MAQUIAVEL, 2007, p. 22). A classe dominante separa-se do restante da população, segundo Larivaille, “por um abismo econômico, político e cultural, que não para de crescer” (1988, p.193). Para Maquiavel (1983), “o essencial numa nação é que os conflitos originados em seu interior sejam controlados e regulados pelo Estado”, de modo que o ‘equilíbrio’14, ou seja, a boa organização do corpo social é resultado de um processo de luta. Conforme o capítulo IX, afirma que um príncipe prudente15 “deve cogitar da maneira de fazer-se sempre necessário aos seus súditos e de precisarem estes do Estado; depois, ser-lhe-ão sempre fiéis” (MAQUIAVEL, 1983). E acrescenta no capítulo XIV que “a guerra, seu regulamento e sua disciplina, é a única arte que se espera de quem comanda”16, No capítulo XX de O Príncipe, Maquiavel considera como a maior fortaleza de um governante a certeza de não ser odiado por seu povo, sendo imprescindível à manutenção do poder o apoio dos governados. Para Maquiavel, o Estado é autônomo em relação aos detentores do poder, devendo ser contínuo e não sujeito às ambições individuais17. Nesse aspecto, cabe pontuar que existia em Florença “algo que poderíamos chamar de terror de déspota, isto é, o medo de que a concentração de poderes numa só mão conduzisse a uma ditadura” (CHABOD, 1994, p. 344).  

[…] Talvez Maquiavel tenha querido, também, mostrar quanto a população se deve defender de entregar o seu bem-estar a um único homem que, se não é fútil ao ponto de se julgar capaz de agradar a todos, deverá constantemente recear qualquer conspiração e, por isso, vê-se obrigado a preocupar-se sobretudo consigo próprio e, assim, a enganar a população em vez de a salvaguardar. E estou tanto mais disposto a julgar assim acerca deste habilíssimo autor quanto mais se concorda em considerá-lo um partidário constante da liberdade (SPINOZA, 1977, p. 50).

A título de compreensão, Maquiavel demonstra no capítulo XV de O Príncipe que o desejo de apresentar as coisas do Estado a partir de um realismo expresso na verità effetuale della cosa, na ‘verdade efetiva das coisas’, isto é, na verdade dos fatos tal como ocorrem na realidade política sem idealismos, pois o que importa é compreender a natureza humana tal como ela é, procurar na política e na vida privada a verdade efetiva das coisas, evidenciando o protagonismo do homem de Estado maquiaveliano sobre a ‘providência divina’, que seria o terreno de investigação dos eventos políticos e dos fatos dados, deixando para trás a tradição filosófica-teológica medieval que se desconectava da realidade dos fatos, como se houvesse uma ‘providência’ regulando as coisas humanas. Em seu realismo político maquiaveliano, julgou adequado “procurar a verdade pelo resultado das coisas, mais do que por aquilo que delas se possa imaginar” (MAQUIAVEL, 1983). Nesse sentido, Maquiavel vê a renovação do cenário político e alimenta-se dessa fonte, promovendo uma ruptura com a tradição idealista e um abandono da herança cultural que traçou as bases da cultura europeia a partir de um modelo ideal de governo e de organização política do Estado. Em suma, numa ruptura com a passividade contemplativa própria do medievo, num entendimento de que a Renascença

não é apenas renascimento, ressurreição do passado, da antiguidade clássica, mas é antes de tudo criação, geração de algo novo. A Renascença não é apenas um movimento erudito ou literário, antes é nova forma de vida, nova concepção do homem e do mundo, baseada na personalidade humana livre e na realidade presente (LUZURIAGA, 1978, p. 93).

Com efeito, Maquiavel, singular leitor da história e da política (GILBERT, 2012, p. 111), volta-se para a questão da religião18, elemento necessário à vida social e importante para o caráter do homem e conservação da virtù de uma cidade, exaltando sua virtude política, sua simplicidade, pureza de costumes e amor à liberdade, fundamental para a conservação do corpo político (BIGNOTTO, 1991, p. 197), a partir do frei Savonarola que, por meio de seus sermões, mobilizou a cidade em seu favor19. Os sermões de Savonarola atraíam muitos espectadores ao ponto de, em 1491, após proferir discursos na catedral e provocar grande fervor na cidade, ele creditar ter inspiração divina inclusive para prever o futuro. Segundo Ridolfi (2003, p. 25), Savonarola encontrou um terreno fértil para suas pregações e para o discurso moralista perante o povo devido à corrupção nas cortes, o que lhe proporcionou grande prestígio popular, tendo em vista que a ação política é orientada por uma lógica própria, mas não isenta de princípios morais. Diante da perversão dos costumes, os discursos contra a corrupção comovem a população, sendo, a família Medici, o principal alvo das condenações de Savonarola naquele determinado contexto.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

À guisa de conclusão, urge salientar que o procedimento metodológico utilizado foi o da seleção e análise qualitativa de referenciais disponibilizados nesta disciplina durante as aulas e obras consideradas seguras, em princípio, sobre a política renascentista. Os autores consultados não devem ser considerados como tratando de forma homogênea a cada um dos conceitos e termos do vocabulário maquiaveliano. Assim, para perseguir meu objetivo principal, o estudo apresentado buscou investigar, mais especificamente, a reflexão política de Nicolau Maquiavel em O Príncipe, considerando nessa obra, que foi um divisor de águas, suas características principais, sua narrativa e originalidade, num resgate da dignidade humana, instaurando a laicização da política, desprendendo-a da religião e opondo-se ao pensamento utópico renascentista. Altera-se a perspectiva pela qual o mundo é observado. Diferente daquele homem medieval voltado para o interior, para o isolamento, surge um homem aberto para o mundo e para a realidade sempre dinâmica. Com isso, Maquiavel, um autor que disse coisas novas a cada nova geração, abre a possibilidade da crítica e contestação à forma de governo “ideal”, “perfeita” ou “incorrupta” e oferece a perspectiva de um mundo aberto à instabilidade e às mudanças. Por fim, pude observar que há uma gama profícua de obras sobre o tema, embora não haja total consenso e convergência entre elas, de modo que, com o avançar das minhas leituras, foi tornando-se aos poucos cada vez mais claro o processo de evolução histórica do conceito de Estado20, à luz da herança das publicações maquiavelianas. Desse modo, essa pesquisa referindo-se a apenas um esboço de ideias, especialmente sobre o republicanismo de Maquiavel, muito contribuiu para redirecionar o meu olhar de um ponto de vista mais crítico sobre a capacidade de Maquiavel em produzir sua teoria política em contraponto à historiografia anterior. Espero ter a chance de aprofundar esses estudos em investigações futuras. Assim concluo este quadro de análise, apesar de sua expressiva incompletude, destacando, como bem observa McCormick (2008), que na dedicatória do livro de Maquiavel o autor atribui-se a perspectiva de quem, do povo, observa e analisa o príncipe.

Espero que não seja considerado presunçoso que um homem de baixa e ínfima condição ouse examinar e regular o governo dos príncipes; […] para conhecer bem a natureza dos povos, é preciso ser príncipe, e, para conhecer a natureza dos príncipes, convém ser do povo (MAQUIAVEL, 2010).


2 Nicolau Maquiavel nasceu em Florença no dia 3 de maio de 1469 e morreu nessa mesma cidade no dia 21 de junho de 1527, filho de Bernardo Maquiavel, advogado pertencente aos ramos mais pobres da nobreza toscana, e Bartolomea de’Neli. Recebeu formação dos humanistas e possuía habilidades de escrita. Assumiu o serviço público em 19 de junho de 1948 ocupando o posto de chefe da Segunda Chancelaria da República de Florença, cargo que exerceu cumulativamente ao de Secretário dos Dez da Guerra, a partir de 14 de julho do mesmo ano até sua destituição pelos Medici em 7 de novembro de 1512. A Segunda Chancelaria era responsável pelos assuntos internos e o Conselho dos Dez da Guerra pelos assuntos militares e relações diplomáticas em tempos de guerra (RIDOLFI, 1954).

3 Os humanistas concentraram suas preocupações em torno do ideal de liberdade republicana, voltando a atenção, acima de tudo, para as ameaças que podem pairar sobre ela e para os modos como é possível garanti-la (SKINNER, 1996, p. 94).

4 Durante toda a luta que travaram contra o Império, as cidades italianas tiveram como seu aliado principal o papado (Op. cit., p. 34).

5 Florença destacou-se por suas doutrinas, teorias políticas, experiências e bruscas transformações, tornou-se o berço dos estudos históricos modernos e, junto com Veneza, o berço da estatística (BUCKHARDT, 1973, p. 66).

6 A confusão na península itálica originou-se das crescentes perdas de legitimidade da Igreja e de garantia da ordem e segurança. Em fins do século XIII a maior parte das cidades-repúblicas italianas foram, a tal ponto cindidas por suas facções internas, que elas se viram forçadas a abandonar as constituições republicanas e a aceitar o poder forte de um único signore, passando assim de uma forma de governo livre para outra despótica, a fim de atingir maior paz cívica (SKINNER, 1996, p. 45).

7 A família Medici, grande financiadora do desenvolvimento artístico e literário do Renascimento, controlou a política florentina, usando-a para interesses próprios, sendo o comércio sua principal fonte de enriquecimento. Ganhou a simpatia do povo, teve prestígio dentro e fora da Itália e atingiu seu apogeu com Lorenzo Medici, o Magnífico. Esta família retornou ao poder em 1512 derrubando a república popular liderada por Soderini e servida por Maquiavel.

8 Uma nova perspectiva ética e republicana, surgida na península Itálica, entre os séculos XIV e XV, valorizando-se a Vita activa em detrimento da Vita contemplativa. Isto é, valorizando-se a ativa participação nas decisões políticas, na defesa da liberdade e na manutenção do autogoverno em detrimento do distanciamento das questões políticas (POCOCK, 2002, p. 169-171).

9 Os humanistas fazem a leitura das capacidades humanas converter-se numa insistente exortação patriótica. Tendo em vista a considerar a República romana o maior repositório da virtus em toda a história do mundo (SKINNER, 1996, p. 115).

10 A virtù é um conceito central na filosofia maquiaveliana, correspondendo a algo intrínseco ao sujeito e que está em estreita relação com a sua vida pública, a capacidade do dirigente político compreender o sentido secreto das coisas, uma qualidade cívica que deve ser empregada pelo governante em benefício dos cidadãos. No capítulo VI de O Príncipe, Moisés é citado como um homem que teve virtù para liderar o povo hebreu na fuga do Egito, e, mais adiante, no capítulo XVI, afirma que “para provar a virtude de Moisés era necessário que o povo de Israel estivesse escravizado no Egito” (MAQUIAVEL, 2010, p. 134). No capítulo XI do livro I, ele estabelece uma espécie de hierarquia entre os homens que contribuem para o cultivo da virtù. A título de ilustração, esse conceito de virtù se relaciona com o de necessità, o caráter de obrigatoriedade de que se revestem as ações políticas comandadas por “regras gerais” inalteráveis. Para os humanistas, o valor do homem está em sua capacidade de agir, não em benefício próprio, mas em favor de seus concidadãos, sendo útil aos demais, atingindo a virtù e opondo-se à ‘fortuna’, a qual só agia onde a virtù fora incapaz de impor a sua força (BIGNOTTO, 1991, p. 34).

11 O príncipe deve ler história de países e avaliar as ações dos grandes homens, verificar como se conduziram nas guerras, analisar os porquês de suas vitórias e derrotas, para ser capaz de escapar destas e imitar aquelas; deve, principalmente, agir como teriam agido em épocas remotas alguns grandes homens, que imitavam os que antes deles tinham sido glorificados por suas ações […] Um príncipe sábio deve prestar atenção a essas coisas e jamais permanecer ocioso nos tempos de paz (MAQUIAVEL, 1983).

12 Autor de O príncipe, buscando inspiração na Roma antiga, é verdade, mas apoiado sempre na observação pessoal dos fatos políticos e sociais de seu tempo, meditou sobre as leis próprias da política, ligando à cultura ocidental uma obra que, por ter rompido decisivamente com o medievalismo, com os conceitos básicos do feudalismo e da escolástica, é justamente considerada a pedra fundamental da ciência política moderna (ESCOREL, 2014, p. 41).

13 Maquiavel claramente considerava a percepção fundamental do político: que “toda a legislação que favoreça a liberdade decorre do choque” entre as classes e, por isso, o conflito de classes não é o solvente, mas o cimento de uma República (SKINNER, 1996, p. 202).

14 O equilíbrio pode ser obtido pela mediação que o príncipe faz entre ambos os humores, esforçando-se por conciliá-los de modo que o conflito se mantenha sob seu controle. Maquiavel afirma a importância dessa conciliação: “Os estados bem-ordenados e os príncipes sábios têm aplicado toda a diligência tanto em não exasperar os Grandes como em satisfazer o povo e mantê-lo contente, porque essa é uma das principais matérias que cabem a um príncipe” (MAQUIAVEL, 2008, p. 604).

15 Todo príncipe prudente deve agir: não apenas prover o presente, mas antecipar casos futuros e premunir-se com muita perícia, de modo que se possa facilmente lhes dar corretivo, e não permitir que os fatos se esbocem, pois se assim for o remédio não chega a tempo, e a doença torna-se incurável (MAQUIAVEL, 2010).

16 Consoante com a “nova moral” de Maquiavel, deve uma cidade bem ordenada querer que este estudo da guerra seja usado em tempos de paz por exercício, e em tempos de guerra por necessidade e para a glória (MACHIAVELLI, 1992, p. 307), trabalhando em seus escritos a questão da fortaleza e das fortificações, levando a efeito em Florença uma experiência de organização do sistema militar, tendo sido aprovada a criação da milícia pelo “Grande Conselho” em 1506 e nomeado seu Secretário, Maquiavel iniciou assim o recrutamento e treinamento de soldados. Havendo, pois, limites ‘técnicos’ e ‘políticos’. Defeito ‘técnico’ pela pressuposição errônea de que os homens do país poderiam, com algum exercício adequado e sem estar bem disciplinados, colocar-se em condições de resistir aos bem treinados exércitos profissionais de guerra. Defeito ‘político’, pois para que os habitantes do domínio florentino entregassem sua alma em defesa da pátria, teria sido necessário que primeiro sentissem Florença e o Estado florentino como sua pátria, e tivesse com os florentinos, igualdade de direitos, além da igualdade de deveres (CHABOD, 1994, p. 213).

17 Interessa observar, nesse prisma, que a tirania acabou com a liberdade na maior parte das cidades. Em cada tempo histórico os tiranos são derrubados, mas levantam-se, reaparecendo a tirania cada vez com mais força, porque a situação interna a favorecia e as forças que a poderiam combater são praticamente inexistentes (BUCKHARDT, 1973, p. 56).

18 A religião somente pode contribuir de maneira positiva para a vida cívica se nos der meios de glorificar os valores corretos, que para Maquiavel serão a “magnanimidade”, a força física e tudo o mais que concorre para dar aos homens a maior audácia (SKINNER, 1996, p. 187). Assim, na visão de Cassirer (1976, p. 153-5), a religião, compondo a realidade social e política, deve ser demonstrada na ação, gerando boa ordem, pois na passividade pode trazer a ruína aos Estados, mas não deve ser tomada como verdade absoluta.

19 Cabe ressaltar que as orações são certamente algo muito necessário e é totalmente insensato quem impede o povo de realizar suas cerimônias e devoções, porque são elas que permitem colher concórdia e ordem moral, as quais, por seu turno, acarretam a boa fortuna e a alegria (MAQUIAVEL, 1986, p. 383). Nesse sentido, os príncipes duma república ou dum reino, portanto, devem conservar os fundamentos da religião que professam; e, feito isso, ser-lhes-á mais fácil manter religiosa, e por conseguinte, boa e unida a sua república (MAQUIAVEL, 2007, p. 53).

20 A questão de saber se o Estado sempre existiu ou se se pode falar de Estado apenas a partir de uma certa época é uma questão cuja solução depende unicamente da definição de Estado da qual se parta: se de uma definição mais ampla ou mais estreita. […] O problema real é saber se existem analogias e diferenças entre o assim chamado Estado moderno e os ordenamentos políticos precedentes (BOBBIO, 2000, p. 69). Quando Maquiavel escreveu, não precisou cuidar de questões legais (ele referia-se já à lei como um dado político e social). O trabalho de construção já tinha sido realizado: o Estado, como entidade juridicamente definida, era um fato plenamente desenvolvido, não uma novidade (KRISTCH, 2004, p. 103).


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1Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense. Licenciado em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro