GUARANTEE JUDGE: INSTRUMENT FOR PROTECTING THE INDIVIDUAL RIGHTS OF THE ACCUSED OR OBSTACLE TO THE EFFECTIVENESS OF CRIMINAL JUSTICE?
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202411111954
Marco Antônio Pereira Filho
RESUMO
O objetivo deste estudo é avaliar o impacto da possível implementação do juiz das garantias na preservação dos direitos fundamentais do acusado e na eficiência da justiça criminal brasileira. A pesquisa investiga a criação, os objetivos e os debates em torno do instituto, destacando a relevância da imparcialidade judicial no processo penal e os benefícios proporcionados pela figura do Juiz das Garantias, conforme a perspectiva garantista. O Juiz das Garantias, estabelecido pelo Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019), é encarregado da fase pré-processual ou investigativa do processo penal e visa assegurar a neutralidade na condução das investigações criminais. Este estudo aborda as questões relacionadas à implementação desse instituto e sua correlação com a proteção dos direitos fundamentais dos réus. Através de uma revisão bibliográfica e análise documental, a pesquisa examina a decisão do Supremo Tribunal Federal que interrompeu a implantação do Juiz das Garantias e propõe possíveis alternativas para sua introdução no Brasil. Ademais, o estudo ressalta os impactos potenciais na eficácia da justiça criminal e na salvaguarda dos direitos fundamentais dos acusados. Como resultados, o estudo verificou que essa inovação pode ser percebida como uma oportunidade para aprimorar o trabalho dos magistrados, assegurando um processo penal mais justo e equilibrado, e fortalecendo a consolidação de um Estado Democrático de Direito no Brasil.
Palavras-chave: Garantismo. Direitos fundamentais. Processo penal. Efetividade.
ABSTRACT
The aim of this study is to assess the impact of the potential implementation of the “juiz das garantias” on the preservation of the fundamental rights of the accused and the efficiency of the Brazilian criminal justice system. The research investigates the creation, objectives, and debates surrounding the institute, emphasizing the relevance of judicial impartiality in criminal proceedings and the benefits provided by the figure of the “juiz das garantias” according to the garantismo perspective. The “juiz das garantias,” established by the Anti-Crime Package (Law No. 13,964/2019), is responsible for the pre-trial or investigative phase of criminal proceedings and aims to ensure neutrality in the conduct of criminal investigations. This study addresses the issues related to the implementation of this institute and its correlation with the protection of the fundamental rights of defendants. Through a literature review and documentary analysis, the research examines the decision of the Federal Supreme Court that interrupted the implementation of the “juiz das garantias” and proposes possible alternatives for its introduction in Brazil. Moreover, the study highlights the potential impacts on the effectiveness of criminal justice and the safeguarding of the fundamental rights of the accused. As a result, the study found that this innovation can be perceived as an opportunity to improve the work of magistrates, ensuring a more just and balanced criminal process, and strengthening the consolidation of a Democratic State of Law in Brazil.
Keywords: Garantismo. Fundamental rights. Criminal process. Effectiveness.
INTRODUÇÃO
O juiz das garantias é uma figura processual recentemente inserida no sistema judiciário brasileiro, por meio da Lei nº 13.964/2019, também conhecida como Pacote Anticrime. Essa figura tem como objetivo garantir a imparcialidade na condução de investigações criminais e aprimorar o sistema de justiça criminal. Sob uma ótica garantista, o supracitado instituto é uma inovação necessária para fortalecer a proteção dos direitos fundamentais dos acusados e assegurar um processo justo e equilibrado, no entanto, alcançou sua suspensão logo após o Pacote Anticrime, com severas críticas ao instituto, que serão refutadas ao longo deste estudo.
O juiz das garantias demonstra-se responsável pela fase pré-processual ou investigativa do processo penal, atuando na garantia dos direitos fundamentais do investigado. Entre suas atribuições, estão a análise de medidas cautelares, como a prisão preventiva, a condução coercitiva, a busca e apreensão, a quebra de sigilo e a interceptação telefônica. Nessa fase, o juiz das garantias zela pela observância das garantias constitucionais e legais do investigado, evitando abusos e excessos por parte da autoridade policial ou do Ministério Público. Ao final da investigação, caso seja oferecida denúncia pelo Ministério Público, o processo é encaminhado a um outro juiz, denominado Juiz de Instrução e Julgamento, que ficará responsável pela instrução do processo e eventualmente pela sentença.
A problemática central a ser abordada neste trabalho gira em torno do seguinte questionamento: Qual o impacto da implementação do juiz das garantias na preservação dos direitos fundamentais do acusado e na eficiência da justiça criminal brasileira? A relevância deste estudo reside na importância de se analisar o papel do instituto no cenário jurídico brasileiro e contribuir para o debate acerca de possíveis ajustes no sistema de justiça penal que assegurem a defesa dos direitos fundamentais do réu, tanto em termos sociais quanto jurídicos.
A metodologia aplicada neste trabalho envolve uma pesquisa bibliográfica e documental, que compreende a análise de livros e artigos científicos relacionados ao tema, bem como o exame da legislação e jurisprudência aplicáveis. Além disso, serão consultados autores renomados no campo do Direito Processual Penal e Garantismo Penal, como Renato Brasileiro de Lima, Guilherme de Souza Nucci, Luigi Ferrajoli, entre outros, com o objetivo de fundamentar a discussão apresentada e enriquecer o debate sobre os possíveis reflexos da implementação do Juiz das Garantias no processo penal brasileiro.
O trabalho está estruturado em cinco seções principais, além da introdução e conclusão. A primeira seção aborda o juiz das garantias no Processo Penal Brasileiro, apresentando sua origem, propósito e as discussões relacionadas à sua implementação no sistema judiciário do país. A segunda seção trata da imparcialidade do juiz no processo penal e a figura do instituto, analisando como este contribui para garantir a neutralidade do magistrado no processo penal. A terceira seção discute as vantagens propiciadas pelo instituto do juiz das garantias à luz da ótica garantista, destacando como esse mecanismo pode fortalecer a proteção dos direitos individuais e assegurar um processo justo e equilibrado.
A quarta seção apresenta uma análise crítica da decisão do Supremo Tribunal Federal (ADI 6298) e explora possíveis alternativas para a instauração do juiz das garantias no Brasil, avaliando os cenários e os possíveis desdobramentos dessa mudança no sistema de justiça penal. Por fim, a quinta seção aborda os possíveis impactos na efetividade da justiça criminal e na proteção dos direitos fundamentais do acusado, em resposta ao problema de pesquisa e considerando os desafios e as oportunidades que a figura do instituto apresenta para o sistema judiciário nacional.
1 O JUIZ DAS GARANTIAS NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO
No Brasil, a figura do juiz das garantias apareceu antes mesmo de ser disposta no Código de Processo Penal, já que em 2009 foi apresentado um Projeto de Lei (PL nº 156) no Senado Federal com o objetivo de reformar integralmente o Código, projeto esse que ainda está em andamento (BRASIL, 2009). Entre outras disposições, o supracitado Projeto de Lei prevê a criação desse ator processual, responsável por assegurar a legalidade e a proteção dos direitos fundamentais durante a fase preliminar. Desde então, o conceito tem sido amplamente debatido e reivindicado por acadêmicos e profissionais do direito, que buscam adequar a prática penal ao conjunto normativo estabelecido pela Constituição Federal de 1988 e evidenciam a relevância de sua incorporação ao sistema jurídico nacional (BRASIL, 1988).
Com a promulgação da Lei nº 13.964/2019, a figura do juiz das garantias foi incluída na legislação pátria. Embora represente um avanço significativo na realização da democracia processual, sua implementação enfrentou e enfrenta muita resistência devido à persistência de uma mentalidade fortemente inquisitória. Esse cenário não só dificulta a implementação do instituto, atualmente suspenso por tempo indeterminado devido a uma decisão monocrática do Supremo Tribunal Federal (que será exposta no decorrer do estudo), como também coloca em risco a efetividade do sistema acusatório no Brasil, mantendo a prática penal vinculada à estrutura inquisitorial (BRASIL, 2019).
De acordo com o entendimento de Coutinho, o artigo 3º do Código de Processo Penal que incorporou de modo expresso a estrutura acusatória, determinou uma regra que segue estritamente os princípios do sistema acusatório, uma vez que proíbe a iniciativa do magistrado na fase de investigação, “bem como obsta a viabilidade de substituição do papel probatório do acusador” (COUTINHO, 2021, p. 1). Por essa razão, a implementação do juiz das garantias é fundamental.
Nesse contexto, pode-se afirmar que uma estrutura coerente com o sistema acusatório requer a presença de um ator processual distinto da fase processual durante a preliminar, ou seja, a figura do juiz das garantias, encarregado de supervisionar e controlar a legalidade da investigação e de se pronunciar sobre os pedidos da Polícia, do Ministério Público e da defesa. Dessa forma, o juiz encarregado do julgamento permanece imune a influências que poderiam ser adquiridas durante seu exercício na investigação (COUTINHO, 2021).
Apenas dessa forma é possível ter um processo que obedeça ao princípio da imparcialidade do julgador, considerando que as questões examinadas na fase preliminar serão conduzidas por um ator processual específico em outra fase da persecução penal. A partir desse momento, cabe ao juiz do processo examinar de forma imparcial as solicitações apresentadas pelas partes, avaliar as evidências e, em seguida, deliberar e aplicar a lei ao caso específico, com notada originalidade cognitiva. Assim, compete ao juiz das garantias as disposições do art. 3º-B e 3º-F do CPP (BRASIL, 2019).
De acordo com os dispositivos mencionados do CPP, o juiz das garantias é responsável por receber a comunicação da prisão, zelar pelos direitos da pessoa detida, controlar a legalidade da investigação, decidir sobre medidas cautelares, analisar pedidos de produção antecipada de provas e prorrogar a prisão provisória ou medida cautelar. O juiz das garantias também pode julgar Habeas Corpus, requisitar documentos, determinar a instauração de incidente de insanidade mental e decidir sobre medidas restritivas de direitos e garantias individuais. Além disso, o juiz das garantias é responsável pelo juízo de admissibilidade da acusação, assegurando o cumprimento das regras para o tratamento da pessoa detida e realizando a audiência de custódia (BRASIL, 2019).
É evidente que o juiz das garantias desempenha uma função crucial na persecução penal, uma vez que seu papel – dentro do Poder Judiciário – é garantir o afastamento do julgador da formação das informações geradas durante a investigação, a fim de preservar a imparcialidade do julgamento. Além disso, é importante considerar a relevância do aspecto coletivo de suas decisões, ou seja, o que está estabelecido em relação à adequação das leis processuais penais à CF/88 (no que diz respeito às acepções teóricas), o respeito ao Estado Democrático de Direito e o reconhecimento e consolidação dos direitos humanos (ADÃO; RODRIGO, 2020).
Dessa forma, a proposta de reforma abrangente do Código de Processo Penal (Projeto de Lei nº 156) apresentou um rol exemplificativo das funções direcionadas ao juiz das garantias, com a finalidade de proteger a legalidade da investigação inicial e proteger os direitos individuais. Adicionalmente, dividiu a atuação jurisdicional em duas etapas separadas (investigação e julgamento), ao determinar que o magistrado que executar, na fase investigativa, qualquer ação mencionada no rol de competências do juiz das garantias, ficará impedido de atuar na demanda, com fulcro no art. 3º-D do CPP (MARQUES et. al., 2020).
De fato, após a modificação inserida em 2019, o Código de Processo Penal passou a regular as funções do juiz das garantias, vinculando seu papel às diligências efetuadas e solicitadas pela autoridade policial e pelo MP na primeira etapa da persecução, especialmente no que diz respeito às medidas limitadoras de direitos e garantias individuais, estipulando que devem ser submetidas ao exame do órgão jurisdicional, com o propósito de preservar a legalidade dos atos. Nesse contexto, o cidadão que tiver seus direitos e garantias restringidos durante a investigação poderá recorrer a essa figura processual, que deve assegurar o cumprimento de seus direitos até o término da fase preliminar e o começo da processual (sua competência não se estende ao processo, ao julgamento e à fase de execução penal).
A definição da competência do juiz das garantias inclui todas as infrações penais, excetuando-se as de menor potencial ofensivo, e termina ao receber a denúncia ou queixa, de acordo com o artigo 3º-C do CPP. Além disso, para manter a imparcialidade do juiz, a norma estabelecida no artigo 3°-D impede que o magistrado que praticar qualquer ato na investigação atue nas fases de instrução e julgamento, determinando que, nas comarcas onde houver apenas um juiz, os Tribunais devem implementar um sistema de rodízio entre os magistrados para cumprir essa proibição (BRASIL, 2019).
Nessa linha de pensamento, a fim de assegurar a integridade cognitiva do julgador ao evitar o contato com informações obtidas na fase preliminar, o § 3° do artigo 3-C dispõe a proteção dos autos da investigação na secretaria do juízo das garantias, ficando à disposição do Ministério Público e da defesa. Ou seja, para evitar a influência no julgador durante a edificação de sua convicção e assegurar sua imparcialidade, aderiu-se o conceito de exclusão física do inquérito policial da etapa processual, por meio do não apensamento aos autos do processo (MARQUES et. al., 2020).
Nesse sentido, como assevera Coutinho (2021, p. 4), o juiz das garantias:
Trata-se de um magistrado que não busca provas e, até o momento da admissibilidade (inclusive), atua como responsável por tomar todas as decisões necessárias para proteger direitos e garantias, como juiz natural. Por outra perspectiva, a presença do juiz das garantias assegura a manutenção da originalidade cognitiva no julgamento de mérito, o que é essencial.
Como se observa, o juiz das garantias é não apenas um instrumento crucial para um processo penal acusatório, devido à conformidade constitucional nele presente, mas também é vital para a realização da democracia processual, imprescindível em um Estado Democrático de Direito. No entanto, a implementação do juiz das garantias foi e tem sido alvo de críticas e questionamentos, principalmente em relação à sua aplicação em comarcas com poucos magistrados ou em locais onde só existe um juiz criminal. Um dos argumentos contrários é o de que, em tais situações, seria inviável designar um juiz exclusivamente para atuar como juiz das garantias, o que poderia atrasar o andamento dos processos criminais.
Além disso, há o receio de que essa medida possa gerar uma maior concentração de poder e de responsabilidades nas mãos de um único magistrado. No entanto, é importante destacar que a figura do juiz das garantias pode ser exercida por um juiz que não seja necessariamente do âmbito criminal, como, por exemplo, um juiz cível. Por tanto, essa possibilidade pode propiciar um fortalecimento entre as áreas, permitindo que diferentes juízes possam atuar na fase de investigação criminal, sem comprometer o bom andamento dos processos.
2 A IMPARCIALIDADE DO JUIZ NO PROCESSO PENAL E A FIGURA DO JUIZ DAS GARANTIAS
A imparcialidade do magistrado tem impacto direto na aplicação da lei em busca da verdade dos eventos e na posterior troca da autonomia das partes em detrimento de seus direitos individuais, levando em consideração a norma penal coercitiva caracterizada como crime no sistema jurídico nacional. É responsabilidade do juiz, enquanto representante do Estado, assegurar a persecução penal da maneira mais justa e equitativa.
Nessa linha, Lopes Jr. (2019, p. 70) afirma que a imparcialidade do juiz é um princípio fundamental do processo, “sendo essencial para seu desenvolvimento adequado e obtenção de uma decisão judicial justa”. Nesse sentido, o princípio da imparcialidade foi uma das principais razões para a criação do juiz das garantias, tornando o julgamento muito mais neutro com a divisão dos poderes dos magistrados.
A alteração trazida pela Lei n. 13.964/2019 está relacionada ao reconhecimento explícito pela legislação processual penal de que não há a mínima imparcialidade em um processo criminal que permite que o mesmo juiz que atuou na fase investigativa, julgue posteriormente o mérito da imputação, condenando ou absolvendo o acusado. Isso significa que, diante de eventuais danos à imparcialidade do juiz, resultantes do contato com as informações obtidas na investigação preliminar e das decisões tomadas, como a imposição de medidas cautelares pessoais, o objetivo da nova figura do juiz das garantias é afastá-lo permanentemente da fase processual (LIMA, 2020).
Dessa forma, preserva-se sua neutralidade para o julgamento do caso sem pré-julgamentos, permitindo que ele analise o caso sem restrições que possam prejudicar sua posição imparcial, evitando tornar-se uma parte involuntariamente influenciada no processo. Trata-se, portanto, de uma espécie de proteção à garantia do supracitado princípio (LIMA, 2020).
Nesse sentido, o entendimento de Pereira e Souza (2021, p. 606) afere que:
A reflexão sobre se no modelo jurídico penal atual – sem o Juiz das Garantias, em que o mesmo juiz do inquérito é, de regra, o juiz do processo – estaria assegurada mais do que eficácia, a verdadeira efetividade da garantia do juiz imparcial no processo penal, envolve o enfrentamento das inúmeras hipóteses de necessária intervenção judicial, no curso da investigação, tendo se optado, neste trabalho, por analisar em especial os casos de decretação de prisão preventiva. Diante do recorte temático, indispensável reafirmar que a imparcialidade do juiz é uma garantia fundamental do cidadão, cuja eficácia tem, o Estado, o dever de assegurar, a despeito de não encontrar previsão expressa no texto constitucional de 1988.
A citação de Pereira e Souza (2021) traz uma reflexão importante sobre a garantia do juiz imparcial no processo penal brasileiro. De fato, a imparcialidade do juiz é uma garantia fundamental do cidadão e é essencial para assegurar a efetividade do processo penal. Nesse sentido, é importante que sejam analisadas as hipóteses de necessária intervenção judicial no curso da investigação, especialmente em casos de decretação de prisão preventiva.
Seguindo esse raciocínio, Zilli (2003, p. 140) esclarece que a imparcialidade do juiz é “marcada pela falta de interesse pessoal no caso a ser julgado, impedindo que ele favoreça os interesses particulares de qualquer parte envolvida no processo”. Assim, ele deve atuar como um observador neutro, exercendo sua autoridade judicial de maneira imparcial e sem permitir que influências externas afetem o andamento do processo e o teor de sua decisão. Deste modo, ao estabelecer um juiz das garantias para a etapa investigativa e outro para a etapa processual, evita-se a contaminação do julgador pelas provas colhidas na fase pré-processual e o consequente comprometimento de sua imparcialidade.
É importante ressaltar que, segundo Carnelutti (2009, p. 23), “alcançar a imparcialidade humana é um desafio considerável”. Pode-se afirmar que, por meio de estudos psicológicos, antropológicos e sociológicos, os juízes podem tentar reduzir sua parcialidade; no entanto, devido à sua natureza humana, essa imparcialidade nunca será completamente alcançada. Portanto, embora não seja possível eliminar totalmente a parcialidade, é possível criar mecanismos para atenuá-la.
Ferrajoli argumenta que os três aspectos da imparcialidade do juiz exigem garantias orgânicas que envolvem separações: a imparcialidade requer a separação institucional do juiz e da acusação pública; a independência exige sua separação institucional dos demais poderes estatais e a distribuição da função judiciária entre indivíduos não subordinados uns aos outros; a naturalidade demanda exclusivamente a separação das autoridades comissionadas ou delegadas de qualquer natureza e a determinação exclusivamente legal de suas competências (FERRAJOLI, 2002).
É desnecessário acrescentar que a imparcialidade, além das garantias institucionais que a sustentam, constitui um hábito intelectual e moral, semelhante ao que deve orientar qualquer forma de investigação e conhecimento. Sendo assim, compreende-se que os três aspectos mencionados por Ferrajoli são o princípio do juiz natural, imparcial e independente, estes previstos constitucionalmente e de caráter absoluto (FERRAJOLI, 2002).
Nesse panorama, é possível aferir que a separação das funções entre o juiz das garantias e o juiz da fase processual é uma medida que busca proteger a imparcialidade do julgador. Ao evitar que o juiz que teve contato com as provas e tomou decisões na etapa investigativa também atue na fase processual, reduz-se o risco de contaminação e comprometimento de sua imparcialidade. Isso porque o contato prévio com as provas e decisões tomadas na investigação preliminar poderia gerar predisposições ou pré-julgamentos por parte do magistrado.
A implementação do juiz das garantias no processo penal brasileiro representa um avanço na busca pela imparcialidade e pelo fortalecimento do sistema de justiça. A separação de funções e a atuação do juiz das garantias contribuem para garantir um julgamento mais justo, equitativo e alinhado aos princípios constitucionais e aos direitos fundamentais dos envolvidos no processo. Portanto, o instituto do juiz das garantias torna-se um importante mecanismo de proteção à imparcialidade do julgador, fortalecendo a credibilidade e a efetividade do sistema de justiça criminal no Brasil.
3 VANTAGENS PROPICIADAS PELO INSTITUTO DO JUIZ DAS GARANTIAS À LUZ DA ÓTICA GARANTISTA
A partir da ótica garantista, a jurisdição é estabelecida como um instrumento legítimo para ordenar a proteção jurídica da parte mais vulnerável, que pode ser o acusado no processo ou o condenado durante a execução da pena. Isso se apresenta como uma garantia fundamental indispensável para os indivíduos. A implementação do Juiz das Garantias no Brasil está sendo muito discutida juntamente com outras alterações trazidas pela Lei n°13.964/2019 que limitam o poder e criam condições mais efetivas para assegurar o cumprimento da garantia jurisdicional com o acréscimo dessa nova figura de juiz relevante (MARTÍNEZ; MENDES, 2020 p.49).
Conforme aponta a doutrina de Ferrajoli (2006, p. 123):
É importante notar que o processo deve ser compreendido como uma disputa ou controvérsia que envolve valores democráticos, como o respeito à pessoa acusada, igualdade entre as partes e a necessidade prática de refutar a pretensão punitiva com exposição ao controle do acusado. Tudo isso é feito dentro do contexto jurisdicional, de um sistema acusatório e sob o princípio do contraditório.
Assim, ao longo do tempo, houve um aumento nas expectativas dos magistrados durante o processo penal em nossa democracia, levando à busca pela independência, imparcialidade e responsabilidade de juízes no sistema jurídico. Portanto, é importante discutir os benefícios da implementação do conceito de juiz das garantias no Brasil.
Nesse diapasão, uma das vantagens da investigação preliminar conduzida pelo juiz das garantias é a sua imparcialidade, já delineada no tópico anterior, que só será garantida se este juiz não participar do julgamento. A imparcialidade é fundamental tanto para o modelo acusatório quanto para o contraditório e seria comprometida caso os magistrados fossem responsáveis pela gestão de provas. É importante destacar que um juiz deve ser imparcial em relação à atividade de instrução e investigação e se distanciar dessa função para poder exercer esse princípio fundamental (MARTÍNEZ; MENDES, 2020).
Considerando isso, as razões que justificam a instrução preliminar da investigação se tornam mais eficazes, resultando em uma apuração mais completa e útil para as partes envolvidas no processo, visando garantir uma melhor defesa ou acusação. De acordo com Lopes Jr. e Gloeckner (2014, p.144), a imparcialidade é algo extremamente importante e o princípio “nullum iudiciun sine accusatione” destaca essa importância, já que este divide as funções entre acusador e julgador, além de impedir que o juiz das garantias possa julgar casos em litígio. Isso, aliado ao processo dividido em duas fases distintas e a prevalência do sistema acusatório, tornam possível afastar a figura do juiz das garantias (que atua como instrutor) da conhecida imagem histórica do juiz inquisidor.
De acordo com W. Goldschmidt, o princípio da imparcialidade é uma garantia fundamental que tem sido utilizada indevidamente. A afirmação de que a mesma pessoa não pode atuar como juiz na fase de instrução e no julgamento já não consegue abranger completamente esse importante princípio. Isso ocorre porque os preconceitos do juiz podem influenciar em sua decisão futura, levando à violação do mesmo (GLOECKNER; LOPES JR., 2015).
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos decidiu em dois casos importantes, Piersack (1982) e De Cubber (1984), que o poder investigatório é incombinável com o julgamento e a imparcialidade deve ser entendida tanto objetivamente quanto subjetivamente. A imparcialidade objetiva se refere à originalidade da cognição do juiz durante o processo, evitando qualquer certeza prévia sobre os fatos. Já a imparcialidade subjetiva diz respeito à ausência de vínculos jurídicos relevantes entre o magistrado e as partes ou terceiros interessados no caso penal. É fundamental, assim, enfatizar a importância de considerar a prevenção no que diz respeito à relação do juiz com o expediente policial, pois nesta fase o sistema jurídico favorecia um juiz instrutor em detrimento do juiz das garantias. (MARTÍNEZ; MENDES, 2020).
Ademais, Lopes JR. e Gloeckner (2015, p. 145) afirmam que, na etapa de investigação preliminar, ocorrem atos de averiguação que, de certo modo, limitam os direitos fundamentais do indivíduo afetado, especialmente no que se refere às medidas adotadas. É necessário que tais medidas sejam conduzidas por uma entidade com poder jurisdicional, não podendo ser regidas pela Polícia ou pelo Ministério Público. Para que isso ocorra, é preciso que o juiz atue como autoridade que autoriza as práticas restritivas ou que limite os direitos fundamentais.
Dar a responsabilidade de coletar provas para qualquer parte – seja ela privada ou pública – pode comprometer sua imparcialidade, conduzindo à falta de consideração das provas contra ou a favor do indivíduo em questão; por isso, essa tarefa deve ser confiada exclusivamente ao magistrado encarregado pelo processo investigativo. Assim, é possível enfatizar ainda mais essa ideia afirmando que instruir significa recolher provas, no entanto, elas só podem ser coletadas objetivamente por um órgão imparcial, isto é, como o juiz.
Mendes e Martínez (2020, p. 53) afirmam que o legislador brasileiro fez bem ao considerar o sujeito passivo como parte do processo e não um objeto, destacando a importância de tratar a pessoa presa com respeito e evitar abusos em relação à sua imagem. Além disso, a aplicação do juiz das garantias como sistema judicial de instrução preliminar apresenta vantagens importantes, tais como a independência do magistrado instrutor para prevenir perseguição política pelo Poder Executivo, resultados mais efetivos na investigação com maior credibilidade e qualidade, servindo tanto para acusação quanto defesa.
Além disso, considerando as decisões tomadas pelo sistema jurisdicional, é possível apelar a uma instância superior graças ao modelo processual orgânico adotado. Isso não seria viável em outros sistemas de investigação. A existência do recurso permite que ambas as partes possam questionar fundamentos sem limitar o escopo dos elementos legais, como no caso da impugnação de atos de inquérito através do habeas corpus (GLOECKNER; LOPES JR., 2015).
Martínez e Mendes (2020, p. 56) afirmam que a introdução do juiz das garantias no processo penal brasileiro é uma etapa relevante em sua evolução. Tal discussão será apresentada a seguir:
Estamos completamente convencidos de que, no âmbito do processo criminal, a forma é uma garantia essencial. Sabe-se muito bem que as etapas processuais compõem um conjunto vital – e desejável – conhecido por nós como regras do jogo democrático. A adoção do juiz das garantias representa um enorme avanço em todos estes aspectos mencionados.
Conforme Nucci (2020, p. 82), a criação do Juiz das Garantias “é uma mudança importante no sistema acusatório para garantir a separação entre o juiz que investiga e o que vai julgar o acusado com imparcialidade”. Com isso, as garantias fundamentais do sujeito passivo são ampliadas. Silveira, membro da comissão redatora do anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal, concorda com essa realização e seu impacto benéfico no processo penal brasileiro. No PL nº 156 de 2009, o juiz das garantias é fundamental para o sistema acusatório. Ele é uma parte importante desse processo e a separação do agente judicial nas fases da investigação e do processo representa um elevado refinamento e consolidação desse modelo.
De acordo com a opinião de Mendes e Martínez (2020, p. 53), um processo considerado justo é mais do que apenas seguir o procedimento formal adequado. Ele deve contar com juízes completamente imparciais e independentes, garantir os mesmos direitos e tratamento para todas as partes envolvidas, assim como respeitar os princípios fundamentais da civilidade jurídica em todas as fases do processo judicial – desde a investigação inicial até o veredicto final no caso concreto. É nesse contexto que se justifica plenamente a existência do juiz das garantias como uma necessidade essencial para o processo penal pátrio.
4 ANÁLISE CRÍTICA DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ADI Nº 6298 E POSSÍVEIS ALTERNATIVAS
Depois da promulgação da Lei 13.964/2019, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) entraram com a ADI n. 6298 na Suprema Corte para contestar o instituto do juiz das garantias. Argumentaram a inconstitucionalidade do art. 3° da lei mencionada, que inseriu os artigos 3°-A a 3°-F no CPP, bem como o art. 20, que determinava um período de trinta dias de vacatio legis. O Ministro Luiz Fux, de maneira monocrática, concedeu a suspensão cautelar das normas referentes a esse instituto, protelando, assim, a sua aplicação no país (STF, 2019).
Os principais argumentos usados para a suspensão foram basicamente: Em primeiro lugar, os artigos 3-A a 3-F são inconstitucionais devido a vício formal. O Ministro Luiz Fux, como relator das ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305, declarou que o juiz das garantias é mais do que uma simples reforma, implicando em uma mudança estrutural no funcionamento da justiça criminal brasileira. Segundo Fux, existe inconstitucionalidade formal nos dispositivos mencionados, devido ao suposto caráter híbrido deles, pois abrangem tanto normas gerais como normas de procedimento em matéria processual, violando assim o art. 24, §1°, da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, a União, no contexto da legislação concorrente, deveria ter se limitado a determinar normas gerais. Portanto, segundo essa premissa, a regulação da “fase pré-processual”, referente ao inquérito policial, não constitui matéria processual penal, mas sim matéria procedimental (STF, 2019).
Além disso, argumenta-se que o juiz das garantias pressupõe lei de iniciativa dos tribunais (art. 96, I, ‘a’, ‘d’ e II, ‘d’, da CF/88). A base dessa afirmação seria que esse instituto demandaria modificações nas leis de organização judiciária e a implementação de cargos. Sendo assim, estar-se-ia lidando com uma lei de eficácia contida, já que depende da edição de normas complementares para se tornar efetiva, o que leva ao caráter inconstitucional do art. 20, que estabelece a vacatio legis de trinta dias – de fato, é incontestável que esse prazo foi insuficiente.
As alegações mencionadas não devem ser levadas em consideração. É crucial ressaltar que a instauração e o processamento do inquérito policial sempre foram regulados pelo CPP, sendo que o controle da legalidade da investigação criminal e a proteção dos direitos individuais, cuja garantia tenha sido reservada à permissão prévia do Poder Judiciário, sempre foram “atividades exercidas pelos juízes criminais em todo o Brasil” (LIMA, 2020, p. 188).
Nessa perspectiva, é importante destacar que várias mudanças legais, depois da promulgação do texto constitucional de 1988, ocorreram no CPP, nos artigos relacionados à fase pré-processual da persecução, sem que fosse sinalizada qualquer inconstitucionalidade por violar a competência concorrente dos estados. Como exemplo, a Lei nº 8862/1994 modificou os incisos I e II do art. 6º do CPP e os artigos 159, 160, 164 e 181, todos referentes à realização do exame pericial na etapa investigativa. O inciso X do art. 6º foi inserido pela Lei nº 13.257/2016 (SHREIBER, 2020).
Em relação ao suposto caráter híbrido da lei que inclui o juiz das garantias, vale ressaltar a distinção feita por Marques (1960, p. 20), que afirma que “as leis de organização judiciária tratam da administração da justiça e as leis de processo da atuação da justiça”. As normas processuais, assim, regulam a tutela jurisdicional, ao passo que as de organização judiciária disciplinam a administração dos órgãos encarregados da função jurisdicional.
Fica evidente, então, que os dispositivos em questão, inseridos no CPP, referentes ao juiz das garantias, abordam a competência judicial. Como resultado, ao estabelecer as funções do magistrado na etapa de investigação, regulam normas de competência e de impedimento. Assim, possuem natureza processual e não procedimental, tornando improcedente a alegação de inconstitucionalidade formal. Verifica-se, diante disso, que tais disposições tratam de temas relacionados ao exercício da jurisdição, à separação de competência dos juízes que atuarão na fase investigativa e na instrução processual, incluindo-se na esfera de competência legislativa privativa da União, disposta no art. 22, inciso I, da CF/88, e, portanto, abordam o Direito Processual (BRASIL, 1988).
O segundo argumento foi o da inconstitucionalidade material devido à violação da autonomia financeira e administrativa do Poder Judiciário (CF, art. 99, caput), pela falta de dotação orçamentária prévia para inserção das mudanças organizacionais decorrentes da Lei (CF, art. 169, §1º) e em virtude da violação do novo regime fiscal da União. O Ministro Luiz Fux compreendeu que a inclusão do juiz das garantias infringiria diretamente os artigos 169 e 99 da CF/88. A violação ocorre à medida que a inserção do instituto requer dotação orçamentária prévia para realização de despesas pela União, Estados e DF, já que isso assegura autonomia orçamentária ao Poder Judiciário.
Segundo o supracitado Ministro, não se pode negar que a implementação do juízo das garantias provoca um impacto financeiro significativo no Poder Judiciário, especialmente considerando as movimentações funcionais de magistrados, os aprimoramentos necessários nos sistemas processuais e nas soluções correlatas de tecnologia da informação, as reestruturações e as realocações de recursos humanos e materiais, dentre outras possibilidades. Todas essas alterações acarretam custos que não estão detalhados nas leis orçamentárias anuais da União e dos Estados (STF, 2019).
Em nosso entendimento, os argumentos apresentados pelo respeitado Ministro não prosperam. No que diz respeito à falta de dotação orçamentária, é importante ressaltar que a Lei 13.964/2019 não cria cargos dentro do Poder Judiciário. Dessa forma, percebe-se que o objeto em discussão não requer uma reestruturação do Judiciário em si, mas sim uma reorganização da estrutura já existente, considerando que não há um novo órgão, nem uma nova competência. Como mencionado anteriormente, trata-se de uma divisão funcional de competências já estabelecidas (BRASIL, 2019).
Além disso, a Lei 9.099/1995, a Lei 10.259/2001 e a Lei 11.340/2006 podem ser citadas como exemplos de leis federais que instituíram novos órgãos judiciários, aprovadas a partir de projetos de lei que não foram iniciativa do Judiciário e que igualmente não previram impacto orçamentário ou fontes de financiamento. Em resumo, entende-se que o juiz das garantias não infringe a autonomia financeira e administrativa do Judiciário (art. 99, caput, CF/88) devido à falta de dotação orçamentária e estudos preliminares de impacto para a inserção da medida e o efeito da medida na eficiência dos mecanismos brasileiros de combate ao crime, visto que o instituto em análise não cria, necessariamente, novas funções ou cargos (LIMA, 2020).
Desta feita, o juiz das garantias demanda a adaptação da estrutura que já existe no Judiciário, de modo que a atividade, atualmente desempenhada apenas por um juiz, seja dividida através de Varas especializadas ou até mesmo pela edificação de núcleos de inquéritos, centrais regionais, desenvolvendo-se por meio de videoconferência. Assim, não se pode afirmar que há inconstitucionalidade. Nesse sentido, vale ressaltar que a maioria dos doutrinadores entende pela constitucionalidade do juiz das garantias, como é o caso de Aury Lopes Jr, Nestor Távora, Jacinto Coutinho, Fábio Roque e Klaus Negri, Renato Brasileiro, dentre outros.
Conforme mencionado, as atividades atribuídas ao juiz das garantias são basicamente as mesmas atualmente exercidas por um juiz criminal durante a investigação. Dito isso, sua efetividade é viável, apesar da organização necessária para tal. É crucial enfatizar que a efetividade do juiz das garantias aprimorará o sistema processual brasileiro, através da concreção do princípio acusatório e do fortalecimento da regra de que a prova importante para formar a convicção do juiz deve ser produzida em contraditório judicial.
O juiz das garantias e sua consolidação representariam um modelo legal que busca preservar a imparcialidade do magistrado, tornando-se, assim, mais alinhado ao sistema acusatório previsto no texto constitucional de 1988. É importante destacar que a efetividade do juiz das garantias não visa assegurar a impunidade, mas sim buscar o respeito às normas e à qualidade na jurisdição. O processo penal não deve ser entendido somente como o meio essencial para a materialização da pretensão punitiva do Estado. Pelo contrário, deve ser considerado um instrumento de proteção aos direitos e garantias fundamentais do indivíduo. Para isso, é preciso que haja “um processo ético, limpo, sem surpresas, equilibrado, com regras delineadas e conhecidas, e que valoriza o ser indivíduo”. (GIACOMOLI, 2008, p.13)
Algumas pessoas argumentam que o juiz das garantias trará ainda mais lentidão ao processo penal, como é o caso de Sanches da Cunha que, em audiência pública no STF sobre o tema, aferiu também que o juiz das garantias é uma “poluição legislativa” e que o Pacote Anticrime é uma lei da qual a sociedade brasileira não precisa. A contestação do notável jurista merece ser refutada, considerando que a implementação do instituto pode ocorrer através de Varas especializadas que, historicamente, sempre proporcionam maior agilidade e qualidade na prestação jurisdicional (CUNHA, 2021).
Por exemplo, é possível mencionar a Resolução CJF n° 314/2003, que estabelece a especialização de Varas Federais Criminais para processar e julgar, na Justiça Federal, crimes contra o sistema financeiro nacional e de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, o que resultou em maior eficiência e qualidade no julgamento desses delitos. Vale destacar, ainda, contra a suposta morosidade, o fato de que não estão sendo criadas novas atribuições para o Judiciário, que causariam sobrecarga de trabalho. Como salientado, ocorrerá “apenas” a divisão de competências e a instituição de impedimento, isto é, o juiz envolvido na investigação não participará da instrução (LOPES JR.; ROSA, 2019).
Portanto, argumenta-se que é viável criar centrais regionais de inquéritos, sobretudo on-line, de acordo com as especificidades de cada estado, tendo em vista que o juiz das garantias não está ligado ao critério de competência em função do local, diferentemente do juiz da instrução (LOPES JR.; ROSA, 2019). Percebe-se, assim, que a viabilidade da implementação do juiz das garantias é possível e benéfica para o processo penal brasileiro.
5 POSSÍVEIS IMPACTOS NA EFETIVIDADE DA JUSTIÇA CRIMINAL E NA PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO ACUSADO
A despeito da suspensão atual da inserção do juiz das garantias no panorama jurídico do Brasil, devido aos debates no contexto do Supremo Tribunal Federal, o tema acerca da eficácia deste instituto como instrumento para um processo penal acusatório ainda precisa ser abordado. Dessa forma, se a visão de Sendra et. al. é válida, argumentando que a mera divisão do procedimento em dois momentos, um pré-processual e outro estritamente processual, com a designação de um juiz para cada fase, é o bastante para sustentar que o princípio estrutural do processo penal se baseia em um modelo acusatório, a incorporação do juiz de garantias torna-se crucial para reafirmar o modelo acusatório no âmbito processual penal brasileiro (SENDRA et. al., 1996).
Isso ocorre porque a “mera” divisão entre os juízes responsáveis pela etapa de instrução e julgamento seria o bastante para manter o juiz distante da “arena das partes” e delinear bem as fases de atuação de cada um deles, gerando as condições necessárias para a imparcialidade tão almejada. Contudo, é importante ressaltar que, muitas vezes, a realidade mostra resultados menos favoráveis à imparcialidade do magistrado. Isso se dá porque existe uma contaminação prática das provas obtidas durante a investigação, que, mesmo que sujeitas a uma contradição durante um julgamento oral, frequentemente serão examinadas pelo juiz sob as mesmas condições iniciais em que foram coletadas na instrução de um procedimento inquisitorial. Em outras palavras, na fase processual, simplesmente se reproduzem as provas já edificadas pré-processualmente e são disfarçadas em um julgamento de inocente ou culpado realizado por um juiz “imparcial” (MAYA, 2020).
Nesse viés, o entendimento elevado pelos autores parece acertado, no sentido de que, após um período de dicotomia entre os sistemas inquisitivo e acusatório e outro caracterizado pela mistura de ambos, deveríamos avançar para uma terceira etapa em que seriam abandonados termos como acusatório e inquisitivo, que acabam sendo excessivamente rotuladores e relacionados à uma visão tradicional que sustenta um eterno embate conceitual possivelmente infrutífero (LOPES JR.; MAYA, 2020).Isso ocorre porque, embora uma visão de modelo acusatório possa ser mais compatível com o texto constitucional, isso não seria suficiente. O princípio fundamental de um sistema jurídico não deveria ser, assim, inquisitivo ou acusatório, mas sim pautado em sua conformidade constitucional e sua capacidade de atuar como garantidor da democracia.
Além disso, como observado por Langer em suas pesquisas, a justiça em um julgamento não depende exclusivamente de elementos derivados da dicotomia inquisitivo-acusatório (como a função do juiz no inquérito e no processo), mas de outros fatores, como a qualidade do sistema de defesa e o abismo entre os réus e os atores profissionais do sistema de justiça. Dessa forma, em vez de começar perguntando qual sistema, acusatório ou inquisitivo, é normativamente melhor, deveria começar perguntando quais princípios e objetivos são valorados em um processo criminal e então debater quais são as melhores formas de inserir esses princípios e objetivos em uma jurisdição específica (LANGER, 2015).
Assim, após ultrapassados os conceitos de acusatório e inquisitório, como classificações que não definem um sistema em sua completude e acabam se misturando, dependendo da instituição processual penal ou do momento processual de um sistema jurídico, talvez valha a pena concluir que devemos nos ater aos princípios estruturantes de cada sistema como finalidade de um sistema jurídico penal.
Nessa direção, a inclusão de um juiz das garantias no Brasil serve bem ao texto constitucional de 1988, de natureza garantista, no que se refere à imparcialidade do magistrado e à ampla divisão entre as funções de acusação e julgamento; ambas características indispensáveis em um sistema classificado como acusatório. Todavia, ao tratar de um possível norte para um modelo totalmente acusatório com a inserção da figura do juiz das garantias, algumas considerações devem ser feitas, decorrentes do fato de que, para a concretização de um sistema processual penal de fato acusatório, deveria deixar de existir uma etapa pré-processual de inquérito inquisitiva (SENDRA et. al., 1996).
De modo que o juiz das garantias serviria somente como um passo em direção a um modelo acusatório se fosse considerado um magistrado que assegurasse o contraditório durante a fase do Inquérito Policial. Contudo, as atribuições do juiz das garantias, conforme estabelecido pela Lei nº 13.964/2019, não englobam a contradição de provas no âmbito de um Inquérito Policial, mas sim as funções de supervisão da legalidade da investigação e proteção dos direitos fundamentais, sobretudo no que diz respeito aos elementos relacionadas à prisão provisória do investigado (BRASIL, 2019).
Sendo assim, o juiz das garantias, quando adequadamente aplicado na prática jurídica, não resultaria em um processo penal totalmente acusatório. Nesse sentido, desempenharia apenas um papel na garantia da imparcialidade do juiz responsável pela instrução e julgamento e, assim, de um dos princípios fundamentais do modelo acusatório. Contudo, é importante destacar que, do ponto de vista prático do exercício jurisdicional, conforme proposto por Andrade, o juiz das garantias, mesmo restrito ao controle de legalidade e direitos e garantias, acabaria por aprimorar a atividade judicial como um todo (ANDRADE, 2011). Portanto, tal implementação permitiria melhor prestação dos serviços jurisdicionais, tanto do ponto de vista qualitativo quanto quantitativo, mesmo que somente em relação às demandas relacionadas aos direitos e garantias fundamentais dos acusados.
CONCLUSÃO
Diante das discussões e análises realizadas ao longo deste trabalho, fica evidente que o Juiz das Garantias representaria, se implementado de fato, um importante avanço no sistema judiciário brasileiro, buscando alcançar um equilíbrio entre a proteção dos direitos a efetividade da justiça criminal. A implementação do instituto fortalece a imparcialidade no processo penal, ao separar as funções de investigação e julgamento entre dois juízes distintos, evitando assim que o magistrado que julgará o caso tenha contato prévio com elementos que possam influenciar sua decisão. Este mecanismo contribui para a proteção dos direitos fundamentais do acusado e assegura um processo justo e equilibrado, conforme a ótica garantista.
A decisão do Supremo Tribunal Federal (ADI 6298), que suspendeu o instituto logo após sua inserção no Pacote Anticrime e as possíveis alternativas apresentadas ao longo do trabalho, reforçam a necessidade de um debate amplo e cuidadoso sobre a implementação do Juiz das Garantias no Brasil, considerando que ele, mesmo diante dos desafios enfrentados, representaria um passo significativo rumo à consolidação de um Estado Democrático de Direito, no qual o respeito às garantias e direitos dos cidadãos seja sempre priorizado.
É importante ressaltar, conforme o exposto na pesquisa, que a implementação do Juiz das Garantias não implica necessariamente na criação de novos cargos, mas sim na reorganização e divisão de atribuições entre os juízes já existentes. Essa redistribuição de responsabilidades pode otimizar a atuação dos magistrados e contribuir para a eficiência do sistema judiciário. Além disso, a possibilidade de o Juiz das Garantias ser oriundo de outra área, como, por exemplo, de uma Vara Cível, pode promover a diversificação de perspectivas e enriquecer a análise das questões relacionadas às garantias individuais do acusado. Essa abordagem colaborativa e interdisciplinar pode trazer benefícios para o sistema de justiça criminal, garantindo uma apreciação mais ampla e aprofundada dos casos.
A implementação do Juiz das Garantias, portanto, deve ser encarada como uma oportunidade para repensar o funcionamento do sistema judiciário brasileiro, visando sempre aprimorar a proteção dos direitos fundamentais e a efetividade da justiça criminal. A adoção desta figura, mesmo diante dos desafios enfrentados, reforça o compromisso com um Estado Democrático de Direito, no qual o respeito às garantias e direitos dos cidadãos seja constantemente priorizado e aprimorado.
Em última análise, o Juiz das Garantias se mostra como um instrumento capaz de promover um equilíbrio entre a proteção dos direitos individuais do acusado e a efetividade da justiça criminal, sem necessariamente aumentar a burocracia ou onerar o sistema judiciário. Ao contrário, essa inovação pode ser vista como uma oportunidade para otimizar o trabalho dos magistrados, garantindo um processo penal mais justo e equilibrado.
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