INDENIZAÇÃO PUNITIVA NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO: A REPETIÇÃO DE INDÉBITO EM DOBRO DO ARTIGO 940 COMO INSTITUTO JURÍDICO EQUIPARADO

PUNITIVE DAMAGES IN THE BRAZILIAN CIVIL CODE: THE DOUBLE DAMAGES UNDER ARTICLE 940 AS AN EQUIVALENT LEGAL INSTITUTE

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch10202410141640


Gabriel Saad de Avila Morales1


RESUMO

Idealizada na tradição anglo-americana do século XVIII, a indenização punitiva emerge como espécie de sanção autônoma que propõe refletir o papel da responsabilidade civil sob as lentes da modernidade. De formação casuística e consuetudinária, o instituto estrangeiro sugere a insuficiência das funções ressarcitória e compensatória no alcance do status quo ante em hipóteses de má-fé ou elevado grau de culpa do ofensor, especialmente quando a ilegalidade decorre da busca por vantagem pessoal. Assim, as minúcias do caso ganham destaque no plano de valoração da conduta do agente, com incursão rigorosa na órbita da vontade. Assim, ao adotar a Teoria do Desestímulo, o direito civil ostenta caráter preventivo, em contraposição à reincidência de atos lesivos ultrajantes no convício social, com o fito de resguardar a boa-fé objetiva nas relações privadas. O presente artigo, portanto, percorre as raízes históricas e evolução conceitual desse modelo no tempo, com exposição das particularidades em relação aos métodos indenizatórios tradicionais, à luz dos princípios do enriquecimento sem causa e da reparação integral. Por fim, o estudo investiga a eventual possibilidade de equiparação à repetição de indébito em dobro prevista no artigo 940 do Código Civil. A partir da abordagem teórica e dedutiva, com uso dos métodos qualitativo, básico, explicativo e bibliográfico, sob o prisma do direito comparado, a hipótese inicial é confirmada, com ressalvas.

PALAVRAS-CHAVE: Indenização punitiva. Teoria do desestímulo. Responsabilidade civil. Direito Civil. Direito comparado.

ABSTRACT: Conceived within the Anglo-American tradition of the 18th century, punitive damages emerge as a distinct form of sanction intended to reflect the role of civil liability through a modern perspective. Originating from case law and customary practices, this foreign institution underscores the inadequacy of compensatory and restitutive functions in restoring the status quo ante in cases of bad faith or significant culpability of the offender, particularly when the wrongdoing stems from the pursuit of personal gain. Thus, the details of the case become crucial in assessing the agent’s conduct, with a rigorous examination of intent. By adopting the Theory of Deterrence, civil law acquires a preventive character, countering the recurrence of egregious harmful acts within social interactions, aiming to safeguard objective good faith in private relations. This article, therefore, traces the historical roots and conceptual evolution of this model over time, highlighting its distinctions from traditional compensatory methods, under the principles of unjust enrichment and full reparation. Finally, the study explores the potential equivalence to the double recovery provision under Article 940 of the Civil Code. Through a theoretical and deductive approach, utilizing qualitative, foundational, explanatory, and bibliographic methods, and viewed through the lens of comparative law, the initial hypothesis is confirmed, with reservations.

KEYWORDS: Punitive damages. Deterrence theory. Civil liability. Civil law. Comparative law.

INTRODUÇÃO

A responsabilidade civil e o direito das obrigações exploram os meios capazes de orientar as partes ao cumprimento dos deveres assumidos no plano legal ou negocial, visando preservar a boa-fé objetiva no âmbito dos contratos e do convívio social.

Trata-se, pois, do estudo voltado ao adimplemento das obrigações derivadas de atos unilaterais, bilaterais, plurilaterais ou ilícitos, por meio da coerção ou das perdas e danos. O cerne de preocupação, portanto, é levar a cabo vínculos e desonerar encargos, possibilitando a continuidade do fluxo natural da vida, com o atendimento das expectativas ou retorno das partes ao estado anterior.

Com isso, permite-se a conversão da pretensão resistida em ação, com adoção de todos os meios judiciais e extrajudiciais aptos a cessar inércia injustificada, corrigir inadequação e indenizar (ressarcir ou compensar) danos ao patrimônio material e imaterial, tanto no âmbito contratual como extracontratual.

Pode-se assumir, portanto, que a vontade manifestada e a boa-fé objetiva são os bens jurídicos tutelados, ao passo que a responsabilidade civil é a sanção imponível para circunstâncias de inescusável ruptura à legítima expectativa e ao dever de não lesar.

Etimologicamente, responsabilidade vem do latim respondere, que significa responder. Na romanística, trata-se da forma de vinculação entre credores e devedores nos contratos verbais (GAGLIANO, 2022, p. 45).

No entanto, outros autores aprofundam-se nas raízes da palavra a partir de sua conotação filosófica, tal como faz Rui Stoco ao aproximar tal noção à ideia de livre arbítrio, na medida em que “O que, dentro de mim, intuído pelo meu espírito, é LIVRE ARBÍTRIO, fora de mim, apreendido pelos outros, é RESPONSABILIDADE” (STOCO, 1997, p. 64).

A importância do objeto de estudo deriva, afinal, ao fato de que, como afirma Aguiar Dias, “Toda manifestação da atividade humana traz em si o problema da responsabilidade” (DIAS, 1944, p.1). O fenômeno da responsabilidade civil, portanto, é um fato social, na medida em que os encargos assumidos através dos negócios e do pacto social passam a prevalecer sobre interesses individuais escusos.

O inadimplemento contumaz e a transgressão constante dos direitos da personalidade no sociedade brasileira, por sua vez, são aspectos complexos e que carecem estudo próprio, multidisciplinar e aprofundado, mas a consequência maior disso é a sociedade patológica na qual vivemos, com nítido desinteresse no cumprimento espontâneo de obrigações, muitas vezes visando auferir vantagem pessoal, sobretudo quando o descumprimento é mais vantajoso.

A problemática faz-nos repensar no papel da responsabilidade civil na contemporaneidade, em especial no que concerne à efetividade do amparo estatal nas relações privadas.

Nesse contexto, emerge a temática da pesquisa, como um dos possíveis remédios idealizados para combater isso, por meio da incorporação da Teoria do Desestímulo às relações privadas, com aplicação de uma nova modalidade de pena civil: as indenizações punitivas.

Com surgimento na tradição anglo-americana do século XVIII, este modelo propõe a insuficiência das funções compensatórias e ressarcitórias para restaurar o estado anterior ao dano em casos de má-fé ou alta culpabilidade do ofensor, especialmente quando motivado por ganhos pessoais. Tem-se, assim, a criação da técnica do valor de desestímulo, que introduz a função preventiva ao Direito Civil, visando coibir práticas nocivas e reforçar a boa-fé objetiva nas relações privadas. Coloca-se a civilística como guardiã da boa-fé objetiva nas interações privadas, promovendo um ambiente de segurança jurídica.

Assim, o presente estudo explora as raízes históricas e a evolução conceitual das chamadas indenizações punitivas, delineando suas particularidades em relação aos métodos tradicionais de reparação. A análise é feita à luz dos princípios do enriquecimento sem causa e da reparação integral, oferecendo uma perspectiva crítica sobre a eficácia e aplicabilidade das indenizações punitivas no contexto contemporâneo.

Além disso, o estudo examina a equiparação da repetição de indébito em dobro prevista no artigo 940 do Código Civil, utilizando uma abordagem teórica e dedutiva. Através de métodos qualitativos, explicativos e bibliográficos, avaliando a compatibilidade dessa forma indenizatória, com a intenção de contribuir para o debate acadêmico sobre o assunto.

Com uma seleção criteriosa de autores, buscamos compreender as indenizações punitivas a partir das lentes do direito comparado.

1 INDENIZAÇÃO PUNITIVA NAS FAMÍLIAS JURÍDICAS ANGLO-AMERICANAS

Para definir a indenização punitiva, é necessário primeiro compreender as conotações do vocábulo. Nesse sentido, o dicionário da Universidade de Cambridge define o instituto como um valor pecuniário que alguém que tenha cometido uma ofensa deve pagar, cuja fixação seja intencionalmente elevada para o fim de prevenir que ele ou outros indivíduos venham a cometer ofensas semelhantes no futuro (tradução livre) “an amount of money that someone who commits an offence has to pay, which is intended to be large enough to prevent them or others from committing similar offences in the future”.

Em que pese a tradução literal ser de “danos punitivos” (RESEDA, 2009, p. 260), é preciso adequar esse termo à realidade brasileira, elevando sua precisão, adequação e coerência em face do ordenamento jurídico pátrio. Pode-se chamá-los de indenizações punitivas, dissuasórias, punitivo-dissuasórias ou, ainda, técnica do valor de desestímulo – sem exaurir outras possibilidades –, o que descreve bem suas características, mas com diferentes enfoques.

Para fins do presente estudo, os termos que nos parecem mais adequados às particularidades do instituto parece-nos ser indenização punitiva ou de técnica do valor de desestímulo, as quais representam dois momentos diferentes: a primeira o instante em que ocorre o dano e surge o direito subjetivo; enquanto o segundo condiz com o momento da sentença, com fixação do quantum indenizatório pelo magistrado.

Desestimular um indivíduo e seus pares à reincidência de práticas ilícitas é tarefa desafiadora, mas certamente não pode ser alcançada por meio de punições desproporcionais e desprovidas de fundamento jurídico. No propósito da pena é onde recai a diferença entre a punição e a vingança. Ora, o punir carrega características que transcendem o interesse individual da parte lesada, pois o foco também está na sua função social, tanto na perspectiva do lesante  como da sociedade. Na vingança, no entanto, a pena é um fim em si mesmo, tal como ocorre, por exemplo, no castigo mitológico de Sísifo, sem propósitos maiores além da barbárie.

Uma sanção severa, mas também razoável, coerente e propositada, certamente detém maior aptidão para alcançar os efeitos desejados na prática, desencorajando a prática de atos semelhantes (dissuasório), atestar ao ofensor que sua conduta não será admitida (pedagógico) e puni-lo em extensão condizente ao mal injusto praticado (punitivo). O desestímulo social de determinada prática, portanto, pressupõe que punição seja um meio, não um fim em si.

Colocadas tais ponderações, passemos às raízes históricas das indenizações punitivas, as quais demonstram como tais aspectos da pena foram pensados à exaustão no estrangeiro, dando nova conotação à ideia de responsabilidade civil. Acerca da técnica do valor de desestímulo, há consenso doutrinário de que os primeiros casos registrados a aplicarem as indenizações autônomas punitivas ocorreram em 1763 na Common Law da Inglaterra. Tais precedentes foram formados no âmbito do julgado dos casos “Huckle v. Money” e “Wilkes v. Wood” (SERPA, 2011).

O primeiro, “Huckle v. Money”, versa sobre ação movida por um tipógrafo para questionar ordem de prisão proveniente da monarquia inglesa, após ser mantido em cárcere por mais de seis horas por uma suspeita de impressão artigos considerados subversivos, sem indícios mínimos de autoria ou materialidade. No julgamento, reconheceu-se a responsabilidade do rei mandante, sendo fixada uma condenação correspondente ao valor de 300,00 libras a título do que a corte inglesa denominou de “exemplary damages” – quantia elevada para os padrões da época. Condenado, o rei recorreu à House of Lords para buscar um novo julgamento, mas a decisão foi mantida, uma vez que o dano representou, segundo a corte, em clara violação às liberdades do cidadão e, portanto, deveria servir de exemplo às autoridades públicas (ibidem).

Já no segundo caso, “Wilkes v. Wood”, também julgado em 1763, o contexto era de um editor de jornais que teve a sua residência invadida pelo Secretário de Estado desprovido de mandado judicial, sendo confiscados diversos documentos que estavam em sua posse. Nesse caso, também houve a propositura de ação, sendo fixada a condenação de 5.000,00 libras, também mencionando o propósito de desestimular reincidências. Posteriormente, a House of Lords reduziu o valor para 1.000,00 libras, fixando a tese de que seriam aplicáveis ao caso “aggravated damages”, que se destinariam a compensar a vítima pelo infortúnio e punir a autoridade, desencorajando-a de reincidir naquela conduta (ibidem).

Há também um terceiro exemplo na Inglaterra que merece menção, conhecido por “Rookes v. Barnard” , julgado em 1964, quando a House of Lords pela primeira vez fixou parâmetros objetivos em precedente para aplicação dos “punitive damages”, quais sejam: 

a) no caso de violação dos direitos fundamentais do cidadão por parte da Administração Pública; b) no caso de comportamentos ilícitos expressamente destinado à obtenção de lucro excedente em relação ao dano; c) em caso de expressa previsão legal. (MARINANGELO, 2016, p. 82).

Essa teoria não tardou a chegar aos Estados Unidos, onde foi aplicada a indenização punitiva nos casos “Genay v. Norris” (1784) e “Coryell v. Colbaugh” (1791). Nos anos que sucederam os casos, a teoria foi desenvolvida pelos tribunais estrangeiros, adquirindo o formato que é atualmente conhecido e aplicado em diversos países (ibidem).

No primeiro caso norte-americano, após um desentendimento entre duas pessoas, ambos concordaram em resolver suas desavenças em um duelo com armas de fogo. No entanto, antes que o duelo começasse, um dos sujeitos propôs um brinde reconciliatório, aproveitando-se da confiança do seu adversário para envenená-lo. A vítima sobreviveu, mas foi acometida por fortes dores. Assim, a corte norte-americana aplicou o que chamou de “vindictive damages” e “very exemplary damages” (ibidem).

No segundo caso, houve o rompimento de uma promessa de casamento ofertada por um homem após engravidar uma mulher. A corte de Nova Jersey aplicou “damages for example’s sake” (ibidem).

Nesse interregno, a técnica foi aperfeiçoada e passou a ser rotineiramente aplicada pelos tribunais dos Estados Unidos, tornando-se uma constante no direito local, com exceção apenas dos estados de Massachusetts, Nebraska, Washington, New Hampshire e Louisiana, onde a aplicação é restritiva (ibidem).

Em nossa coleta de dados, localizamos também outros dois exemplos recentes que merecem menções honrosas sobre a temática, sendo ambos nos Estados Unidos. O primeiro deles é o caso “Grimshaw v. Ford Motor Co.” (1981), em que um modelo Ford Pinto de 1972 pegou fogo após uma colisão de trânsito em sua traseira, acarretando a morte da condutora e deixando o passageiro adolescente com queimaduras graves e desfigurantes. Proposta a ação pelo passageiro e demais herdeiros da vítima, constatou-se no curso do processo que a Ford já havia constatado graves problemas de segurança nos modelos produzidos daquele ano, pois verificou em testes realizados que os veículos não preenchiam os requisitos exigidos para o sistema de combustível. Ainda assim, a Ford fez a opção consciente de não realizar o recall, uma vez que o pagamento de indenizações ocasionais seria menos custoso. Verificado motivo torpe para a inércia, a montadora foi condenada a pagar 2.516.000,00 de dólares ao passageiro e 559.680,00 de dólares aos herdeiros, para fins compensatórios, e, em complemento, fixou-se indenização no valor de 125.000.000,00 de dólares a título de indenização punitiva, para o fim de desestimular a reincidência pela companhia e rivais do ramo (JUSTIA US LAW).

O segundo caso ocorreu no emblemático julgamento de “Liebeck v. McDonald’s Restaurants” (1992). Em suma, uma senhora de 79 anos ajuizou ação contra o McDonalds por queimaduras em 6% do seu corpo ao acidentalmente derramar café quente em suas pernas. Durante o processo, constatou-se que o café era servido em temperatura de aproximadamente 185 fahrenheit (85 º.C), sendo que a temperatura recomendável para evitar queimaduras é de no máximo de 140 F (60 º.C). Na ocasião, a franquia de fastfood foi condenada a pagar 160.000,00 dólares para fins compensatórios, além de 2.700.000,00 dólares em aplicação de “punitive damages”. Posteriormente, o valor da indenização punitiva foi reduzido para 480.000,00 dólares, mas, ainda assim, culminou num total indenizatório de 640.000,00 dólares (AMERICAN MUSEUM TORT LAW).

Assim, tem-se que as indenizações punitivas nasceram em território inglês no ano de 1763, chegando aos Estados Unidos, onde evoluiu com o passar dos séculos, a ponto de ser comumente aplicado no país, onde há, inclusive, intermináveis discussões acerca da sua banalização, fazendo o Judiciário ser usado como uma espécie de loteria.

Por outro lado, há aqueles que defendem que a aplicação das indenizações punitivas foi necessária diante da ineficiência dos mecanismos de reparação civil da legislação em solucionar casos graves, de modo que foi necessário transmutar as teorias do direito penal e administrativo para o âmbito das relações privadas (SERPA, 2011).

Sem prejuízo das tentativas colocar critérios objetivos para a sua aplicação, como ocorreu no caso “Rookes v. Barnard”, há estudos aprofundados no Brasil sobre o tema, onde é defendida a ideia de existência de três pressupostos necessários para a aplicação dos punitive damages.

O primeiro deles seria o dano extrapatrimonial, precisamente à lesão dos da dignidade da pessoa humana, na segunda a culpa grave ou dolo do agente causador do dano, e na última a presença de culpa contratual ou extracontratual (MARINANGELO, 2016, p. 121-122).

Outras vozes defendem a necessidade de dois pressupostos objetivos e outros três subjetivos, quais sejam o fato ilícito, o prejuízo, a malícia do agente, a intenção/temeridade e, por fim, a negligência (SERPA, 2011, p. 62).

Há também vertentes que restrinjam a aplicação aos casos de danos difusos, coletivos ou individual homogêneos (AZEVEDO, 2009).

2 A REPETIÇÃO DE INDÉBITO EM DOBRO DO ARTIGO 940 DO CÓDIGO CIVIL

No Brasil, o artigo 940 do Código Civil é expresso em proibir a cobrança de dívida quitada, sob pena de imposição ao demandante de repetição do indébito pelo dobro do valor exigido. Em outras palavras, além da restituição simples, o Códex também prevê a aplicação de sanção condizente ao dobro do valor, isto é, uma indenização autônoma, um plus ao que foi cobrado.

Os tribunais brasileiros, no entanto, passaram a restringir tal aplicação aos casos de comprovada má-fé do demandante, cuja presunção de boa-fé beneficia, uma vez que o engano não poderia estar sujeito à sanção, sob pena de enriquecimento sem causa do demandado. Aliás, é o que dispõe o enunciado da Súmula 159/STF, cujo indexador pontifica que a “Cobrança excessiva, mas de boa-fé, não dá lugar às sanções do art. 1.531 do Código Civil”.

O dispositivo a que faz referência é do Código Civil de 1916, que previa:

Art. 1.531. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas, ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar o devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que lhe exigir, salvo se, por lhe estar prescrito o direito, decair da ação.

No Código Civil de 2002, essa proposição foi mantida, com alteração apenas no reconhecimento que a cobrança está sujeita à prescrição, não à decadência:

Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.

Há disposição similar no artigo 939 do Código Civil, que trata, no entanto, da cobrança antes do termo inicial da dívida, também prevendo o pagamento das “custas em dobro” e “descontar juros”. Ademais, no artigo 941, fala-se que as “penas previstas nos arts. 939 e 940 não se aplicarão quando o autor desistir da ação antes de contestada a lide, salvo ao réu o direito de haver indenização por algum prejuízo que prove ter sofrido”.

Assim, desde uma primeira leitura dos dispositivos, fica evidente que são claras exceções à regra da indenização pela extensão do dano, conforme prescrito no artigo 944, caput, do Código Civil. Nesse sentido, não há que se falar no enriquecimento sem causa do artigo 884, caput, do Código Civil, diante da previsão expressa na lei, ou mesmo em bis in idem, quando o próprio texto legal assim delimita, até por escapar da indenização stricto sensu da qual tais dispositivos se referem.

No entanto, há controvérsia doutrinária em relação à natureza jurídica da norma. Alguns entendem que seria de direito material ou substantivo, aplicável contra demandantes abusivos, de modo a configurar uma sanção civil de natureza compensatória, podendo, ainda, ser complementada às sanções por litigância de má-fé previstas nos artigos 79 e 81 do Código de Processo Civil (DINIZ, 2002, p. 552).

De outro lado, há vozes que entendem se tratar de norma de caráter processual ou adjetivo, uma vez que o artigo 941 do Código Civil fala expressamente da não aplicação dessas penas quando o autor desistir da ação antes de contestada a lide, sendo aplicada no lugar as disposições do Código de Processo Civil relativas à litigância de má-fé, sem possibilidade de cumulação (OLIVEIRA, 2000, p. 48).

Ora, em que pese a disposição do artigo 941 do Código Civil, é evidente que a cobrança de má-fé de valor já pago, com ulterior devolução pelo demandante, não retira do demandado o direito de ação para pedir a restituição do dobro do faltante, uma vez que a hipótese de incidência da norma está em dois momentos: (a) a cobrança de valor pago; e (b) comprovada má-fé. Trata-se, pois, de sanção cuja hipótese de incidência está desprendida do valor principal, podendo ser objeto de ação autônoma para sua aplicação. 

Concordando com esta afirmação, resta claro que a norma possui natureza jurídica de direito material, carecendo apenas de declaração judicial para regular constituição – dada a necessidade de comprovada má-fé, o que não retira-lhe caráter substantivo –, razão pela qual filiamo-nos ao posicionamento de Maria Helena Diniz.

Nada obstante, independentemente da sua natureza jurídica, as características da referida norma aparentam condizes em exata proporção e medida àquelas dos punitive damages, o que, num primeiro momento, importa na admissão de sua equiparação aos instituto estrangeiro, apesar de restrito ao dobro do valor principal.

Ora, se o particular cobrar de má-fé por dívida quitada, a lei impõe que ele seja obrigado a restituir o dobro do proveito econômico ilicitamente pretendido. Há clara recepção legislativa, portanto, da ideia de promover o desestímulo às práticas fraudulentas, de modo a configurar verdadeira pena civil (DINIZ, idem).

Aliás, isso vai precisamente ao encontro de dois requisitos tratados no caso “Rookes v. Barnard”, reitera-se: “b) no caso de comportamentos ilícitos expressamente destinado à obtenção de lucro excedente em relação ao dano; c) em caso de expressa previsão legal”.

Portanto, dadas as características da norma, é inequívoco que houve a recepção legislativa da referida teoria no Brasil desde o Código Civil de 1916, certamente motivado pelas tendências da responsabilidade civil na época e crescimento exponencial da Teoria do Desestímulo ao redor do mundo, a qual foi incorporada.

Nesse sentido, tem-se que a própria doutrina norte-americana defende que a devolução do dobro do valor do valor pago condiz com os chamados double damages (indenização em dobro), que é uma das categorias dos enhaced damages (indenizações majoradas), compondo as espécies do gênero punitive damages (indenizações punitivas) (McCORMICK, 1935; DOBBS, 1993; e OWEN, 2017).

A fim de comprovar tamanho grau de compatibilidade entre o instituto da devolução em dobro e os punitive damages, um método possível de averiguação está por meio das inferências e deduções. Para tanto, utilizaremos das leis lógicas para formalizar tais proposições normativas no nível sintático.

Antes de formalizarmos as estruturas, o emprego do silogismo é bem-vindo. Dessa forma, partiremos de duas premissas e chegaremos a uma conclusão: (i) premissa 1: os punitive damages são uma espécie de indenização que vão além da extensão do dano, visando desestimular a prática de um ilícito; (ii) premissa 2: a devolução em dobro do artigo 940 do Código Civil é hipótese de indenização pelo dobro da extensão do dano e visa coibir cobranças indevidas; (iii) conclusão: a devolução em dobro equivale aos punitive damages.

Aplicando a lógica formalizadora aos enunciados, temos a seguinte proposição:

[(D⊃R)∧(R⊃P)]⊃(D⊃P)

Nela, temos D como aplicação da restituição em dobro do valor cobrado, R como a cobrança em dobro ser uma forma de pena civil, e P ser que a cobrança em dobro equivale aos punitive damages, cuja conclusão é da equivalência entre ambos os institutos, dadas suas características, sem desprezar a construção teórica até aqui feita, que é essencial para se comprovar as premissas de que a restituição em dobro caracteriza forma de pena civil, sendo equivalente à indenização punitiva. Tais aspectos escapam da proposição, devendo o leitor chegar às suas conclusões para aceitar ou refutar a fórmula.

Portanto, a formalização lógica das proposições demonstra se tratar de uma tautologia, isto é, todos os valores da fórmula são verdadeiros, de modo que o raciocínio por trás das proposições se apresenta válido, com capacidade para ser uma lei universal, independente do contexto (VILLANOVA, 1997). Assim, podemos interpretar que qualquer forma de devolução em dobro de valor pago, seja no Brasil seja no exterior, será uma forma equiparável às indenizações punitivas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente artigo, analisamos a temática dos punitive damages, teoria derivada das famílias jurídicas anglo-americanas, passando pelas suas raízes históricas e evolução conceitual no tempo, desde os seus primeiros casos na Inglaterra e nos Estados Unidos, bem como exemplos recentes.

Nesse contexto, investigamos suas hipóteses de aplicação e peculiaridades em relação às indenizações tradicionais, mostrando como ainda não há consenso, mas apenas pontos de convergência sobre as condições necessárias de aplicação, em especial a partir de “Rookes v. Barnard”, julgado em 1964, pela House of Lords.

Em seguida, passamos ao artigo 940 do Código Civil, cujo enunciado veda a cobrança de dívida paga, sob pena de repetição em dobro do indébito, desde que haja comprovada má-fé (Súmula 159/STF).

Com isso, identificamos que há divergência em relação à natureza jurídica material ou processual da norma, mas que, em todos os casos, é certo que ela incorporou textualmente a ideia de valor de desestímulo no ordenamento doméstico, sendo exceção clara aos regramentos de restrição das indenizações à extensão do dano, e não se enquadrando nas vedações de enriquecimento sem justa causa ou bis in idem.

Assim, considerando que o cerne da problemática era avaliar se tal norma possui as características necessárias para o seu enquadramento como uma indenização punitiva, chegamos à conclusão da presença dos elementos para tanto.

Por fim, a fim de comprovar que tal dedução estava correto sob o ponto de vista lógico, promovemos a aplicação da técnica do silogismo e, a partir disso, seguimos com a lógica formalizadora, hipótese que os resultados, com as premissas adotadas, formaram uma tautologia, onde todos os seus valores são verdadeiros, em quaisquer hipóteses e contextos.

O estudo, portanto, limita-se a afirmar que houve a recepção da Teoria do Desestímulo no artigo 940 do Código Civil, conclusão que se baseia na revisão bibliográfica, bem como nas inferências e deduções lógicas. A hipótese inicial, portanto, se apresenta verdadeira, com a ressalva de que a repetição de indébito em dobro configura caso de double damages, espécie de punitive damages, segundo a doutrina norte-americana.

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 1Advogado. Bacharel em Direito e especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde também é candidato ao título de mestre em Direito Civil Comparado. Endereço eletrônico: ra00183518@pucsp.edu.br