REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202505310013
Ueudison Alves Guimarães
Michele Silva Villela Pereira de Sousa
Andréia Nascimento de Paiva
Elizângela Rodrigues de Aguiar Moura
Raquel Rodrigues da Silva
Fábio Paz Kujavo
Aline Simonassi dos Santos de Freitas
Leidiane Aparecida dos Santos
RESUMO
A participação democrática na gestão escolar, longe de configurar-se como mero mecanismo normativo ou técnica administrativa, expressa-se como campo de disputa simbólica e reinvenção formativa, em que a docência se reinscreve como prática coletiva, situada e politicamente marcada. Ao ampliar as margens de intervenção dos sujeitos no cotidiano institucional, a gestão participativa desestabiliza os modos tradicionais de organização pedagógica, convocando os professores a atuarem não só como executores de diretrizes, mas como coautores dos projetos educativos e corresponsáveis pelos vínculos que sustentam a escola como espaço público. Tal configuração exige compreender a formação docente para além da dimensão técnica ou legalista, reconhecendo-a como processo em constante elaboração, atravessado por experiências institucionais concretas, tensões éticas e engajamento político. Inspirado por essas inquietações, o presente artigo se dedica a investigar as articulações entre práticas participativas e percursos formativos na docência contemporânea, buscando apreender os efeitos da gestão democrática sobre os modos de ser, pensar e agir do professor. A metodologia adotada ancora-se em pesquisa bibliográfica, amparada em autores que concebem a educação como prática social complexa, ética e dialógica, cujo exercício formativo se realiza nos interstícios entre decisão coletiva, responsabilidade compartilhada e compromisso institucional.
Palavras-chave: Formação docente. Gestão escolar. Participação.
ABSTRACT
Democratic participation in school management, far from being a mere normative mechanism or administrative technique, is expressed as a field of symbolic dispute and formative reinvention, in which teaching is reinscribed as a collective, situated and politically marked practice. By expanding the scope of intervention of subjects in the institutional routine, participatory management destabilizes traditional modes of pedagogical organization, calling on teachers to act not only as executors of guidelines, but as co-authors of educational projects and co-responsible for the bonds that sustain the school as a public space. This configuration requires understanding teacher training beyond the technical or legalistic dimension, recognizing it as a process in constant development, traversed by concrete institutional experiences, ethical tensions and political engagement. Inspired by these concerns, this article is dedicated to investigating the articulations between participatory practices and formative paths in contemporary teaching, seeking to understand the effects of democratic management on the ways of being, thinking and acting of teachers. The methodology adopted is based on bibliographical research, supported by authors who conceive education as a complex, ethical and dialogical social practice, whose formative exercise takes place in the interstices between collective decision, shared responsibility, and institutional commitment.
Keywords: Teacher Training. School Management. Participation.
1. INTRODUÇÃO
O entendimento da escola como território formativo exige abandonar a visão que a reduz a um espaço de aplicação técnica e cumprimento de prescrições externas. O que se configura no cotidiano escolar é, sobretudo, uma rede de relações marcadas por disputas de sentido, negociações tácitas e experiências de pertencimento que atravessam as práticas pedagógicas e atribuem densidade simbólica à ação docente.
Considerar o professor como sujeito implicado nessas tramas não significa enaltecê-lo individualmente, mas reconhecê-lo como agente que se move entre tensões institucionais e possibilidades coletivas. Sua ação se constrói no entremeio das rotinas escolares e dos enfrentamentos que o desafiam a pensar com os outros os rumos do projeto educativo. Nesse cenário, a gestão escolar deixa de ser um plano técnico-administrativo para se tornar um campo de formação em ato.
A gestão participativa, quando não se reduz à retórica normativa, pode funcionar como espaço de circulação de saberes, construção de consensos parciais e elaboração crítica. Ao permitir a intervenção qualificada dos docentes, ela redefine o lugar do professor na escola e reposiciona a prática pedagógica como construção partilhada. Decidir junto é também aprender junto — e essa aprendizagem ultrapassa o campo do conteúdo e adentra a esfera do convívio institucional.
Na implicação com os processos colegiados, o educador aciona repertórios que não foram adquiridos em manuais de pedagogia. Toma decisões que o implicam, sustenta posições diante de seus pares e, sobretudo, aprende a lidar com a instabilidade das escolhas coletivas. É nesse movimento que a gestão se converte em uma prática formativa de caráter profundamente ético e político.
Por essa razão, este artigo propõe uma análise das articulações entre práticas participativas e processos formativos vivenciados por professores na escola pública. O caminho metodológico adotado é de natureza bibliográfica, sustentado por autores que compreendem a docência como prática situada, continuamente atravessada por disputas simbólicas, exigências éticas e possibilidades de transformação inscritas no cotidiano das relações escolares.
A vida institucional que favorece o diálogo e a corresponsabilidade transforma-se em ambiente de aprendizagem contínua. Não se trata apenas de espaços formais de decisão, mas de gestos diários — reuniões, confrontos, proposições — que constituem o campo simbólico onde o professor aprende a agir com os outros, a sustentar desacordos e a elaborar alternativas diante de dilemas complexos.
Esses momentos, muitas vezes considerados secundários frente ao ato de ensinar, carregam uma potência formativa silenciosa, mas profunda. Neles, o docente negocia convicções, revisita certezas e, por vezes, reorganiza sua própria compreensão do papel profissional que ocupa. É nesse espaço de trânsito entre a palavra e a ação que a escola se reconfigura como território ético de formação.
O reconhecimento recíproco e a valorização da divergência compõem o chão pedagógico sobre o qual a participação se torna formativa. Quando os docentes são convocados a integrar os processos que organizam o cotidiano escolar, aquilo que se aprende não se restringe à dimensão funcional — são elaboradas, ali, formas de pertencimento, modos de agir e horizontes de sentido que atravessam a docência.
O que será examinado ao longo deste texto são as dinâmicas escolares que tensionam ou favorecem essas experiências de formação. O percurso teórico está comprometido com uma leitura crítica da escola como espaço político, em que a presença do professor nas instâncias decisórias é também um gesto de responsabilização. A análise se dá em diálogo com práticas reais, mas à luz de concepções que recusam a neutralidade pedagógica.
A proposta não é descrever modelos ideais de gestão ou prescrever protocolos formativos, mas compreender as experiências docentes como narrativas de implicação institucional. Participar, nesse horizonte, não significa apenas estar presente — mas envolver-se, significar o que se faz e fazer do cotidiano escolar um espaço permanente de aprendizagem coletiva e reconstrução ética do projeto educativo.
2. METODOLOGIA
A escolha metodológica que orienta esta investigação foi motivada pela necessidade de compreender a docência em sua vinculação com os processos institucionais, sem submetê-la a esquemas padronizados de análise. Pensar a formação do professor articulada à gestão democrática exige mais do que enunciar categorias: requer mergulho cuidadoso em discursos, conceitos e experiências já consolidadas na produção acadêmica, como forma de dialogar criticamente com o campo educacional.
Por essa razão, optou-se por uma abordagem qualitativa de caráter bibliográfico, não como mera etapa técnica de levantamento de fontes, mas como movimento interpretativo sustentado por leituras comprometidas com os sentidos sociais e políticos da prática pedagógica. A centralidade da linguagem e da produção discursiva, nessa perspectiva, constitui não apenas o objeto de análise, mas o território simbólico de onde emergem os modos de pensar e praticar a docência.
Foram selecionados artigos científicos, dissertações, capítulos de livros e teses que abordam o entrelaçamento entre participação, formação e gestão escolar. A curadoria textual buscou não apenas amplitude temática, mas densidade crítica e rigor argumentativo. Priorizaram-se obras que tomam o cotidiano escolar como espaço de disputa de sentidos, valorizando as práticas instituintes e as mediações formativas vividas pelos professores.
O processo investigativo se desenhou em diálogo com bases acadêmicas consolidadas, como o Portal de Periódicos da Capes, o Scielo, a Redalyc e o Google Acadêmico, evitando repositórios de baixa relevância ou conteúdos automatizados. A seleção bibliográfica visou garantir o lastro teórico necessário para uma leitura situada da gestão democrática, reconhecendo as tensões que estruturam a prática docente na escola pública contemporânea.
Mais do que localizar respostas prontas, a metodologia adotada permitiu o confronto entre perspectivas, a identificação de impasses conceituais e a reorganização de matrizes de pensamento que sustentam a ideia de formação como experiência partilhada. A análise foi orientada por uma lógica interpretativa, guiada pela articulação entre linguagem, política e responsabilização institucional nos contextos escolares.
A pesquisa bibliográfica é desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos. Ela proporciona um exame aprofundado do que já se produziu sobre determinado assunto, permitindo não apenas a sistematização do conhecimento existente, mas também a formulação de novas interpretações a partir das diferentes perspectivas analisadas” (GIL, 2008, p. 44)
Com essa formulação, Gil reafirma a dimensão crítica da pesquisa bibliográfica, ao afastá-la de qualquer leitura meramente instrumental ou compilatória. Não se trata, portanto, de reproduzir opiniões acadêmicas, mas de tensioná-las, fazer com que se encontrem e se contradigam, permitindo ao pesquisador tecer, entre elas, novos fios interpretativos capazes de sustentar análises coerentes com a complexidade do objeto estudado.
O percurso metodológico aqui delineado não busca oferecer neutralidade ou distância analítica, mas proximidade reflexiva. A docência é compreendida como prática atravessada por afetos, disputas e decisões cotidianas. Por isso, a pesquisa se organiza como campo simbólico de implicação, onde a leitura do que já foi dito sobre o tema se transforma em gesto ético de produção de sentido e reposicionamento crítico.
3. REFERENCIAL TEÓRICO
3.1 A construção coletiva do saber e os espaços de formação na escola pública
A formação docente, quando vinculada às experiências concretas do ambiente escolar, assume um caráter que vai muito além da transmissão técnica ou da apropriação de métodos prescritos. É nesse cotidiano marcado por contradições e potências que o professor encontra não apenas desafios, mas possibilidades reais de reinventar seu papel como sujeito de mediação, implicado nos rumos da instituição em que atua.
A escola pública, ao ser compreendida como espaço político e relacional, não pode ser reduzida à condição de aparelho reprodutor de normas estatais. Ela é, ao mesmo tempo, campo de disputas e de invenção, onde práticas pedagógicas se entrelaçam a decisões coletivas e onde a formação acontece, não por fora da rotina, mas no interior de suas fissuras e agenciamentos. É nessa arena que a gestão democrática ganha densidade formativa.
Ruiz e Sandaniel (2014) sublinham que a formação do professor para atuar em processos participativos exige não apenas capacitação técnica, mas uma profunda reorganização dos vínculos que sustentam a escola como espaço público. Segundo as autoras, é no exercício cotidiano da coordenação pedagógica, por exemplo, que se elaboram formas de pertencimento, reconhecimento mútuo e tomada de decisão coletiva.
A formação docente, quando articulada à gestão participativa, deixa de ser um evento isolado ou dependente exclusivamente de programas externos. Ela se realiza em encontros, nos coletivos de planejamento, nas assembleias escolares e nos momentos de debate, onde o saber profissional não se impõe, mas é construído com os outros. O professor forma-se, assim, na partilha e na negociação.
Mais do que aprender técnicas ou replicar fórmulas, o educador se constitui como sujeito formativo ao experienciar a complexidade das relações escolares. Cada decisão colegiada, cada confronto de ideias, cada tentativa de pactuar caminhos revela não só os limites das estruturas escolares, mas também a potência criativa dos que nela atuam com responsabilidade e abertura ética diante das realidades institucionais.
França (2025) defende que a gestão participativa exige um deslocamento das práticas escolares centradas em hierarquias rígidas para formas mais flexíveis de tomada de decisão. A autora afirma que o professor, nesse contexto, é chamado a adotar posturas propositivas e corresponsáveis, rompendo com o modelo de docência executora e assumindo seu papel como sujeito político da escola pública.
As práticas que envolvem a presença ativa dos professores nos processos institucionais tornam-se, portanto, momentos de elaboração pedagógica. A formação não é um ato externo, mas um efeito direto da implicação com o funcionamento coletivo da escola. Nessa implicação, o professor desenvolve não apenas novas competências, mas também formas mais sofisticadas de interpretação e posicionamento político diante das situações escolares.
É nesse gesto — denso, tensionado, cotidiano — que a escola se sustenta como território de formação. Não como espaço de aplicação de discursos prontos, mas como lugar em que se produz sentido sobre o que significa ensinar, aprender e decidir em coletivo. Essa produção, atravessada por afetos, conflitos e escolhas, constitui o que se pode chamar de experiência formativa em sua acepção mais profunda.
Diante dessa perspectiva, França (2025, p. 17990) esclarece que:
A gestão participativa pode contribuir para a melhoria da qualidade educacional, ao fortalecer o vínculo entre os membros da escola e estimular o desenvolvimento de um ambiente colaborativo. […] A participação ativa de todos os membros da comunidade escolar se mostrou fundamental para o fortalecimento do vínculo entre a escola e a comunidade, favorecendo a construção de soluções alinhadas às necessidades dos estudantes” (FRANÇA, 2025, p. 17990).
Diante o exposto, sublinha-se que o envolvimento do professor em processos colegiados não representa um acréscimo à sua carga funcional, mas uma dimensão constitutiva do seu fazer pedagógico. Ao participar das decisões que organizam o cotidiano escolar, ele não apenas contribui com sua experiência, mas também ressignifica sua identidade profissional diante das complexidades institucionais.
Ao integrar instâncias deliberativas, o educador é interpelado a rever posicionamentos, sustentar argumentos e reconhecer limites. Aprendi, nessa experiência, que a escola não é campo neutro, mas espaço de produção política. Nesse movimento, a docência ganha novos contornos, pois passa a incluir a capacidade de dialogar, resistir e propor coletivamente.
Ruiz e Sandaniel (2014) indicam que tais práticas formativas só se efetivam quando há um projeto político-pedagógico que favorece a horizontalidade e que reconhece a complexidade da atuação docente como parte do processo decisório. Não basta abrir espaços simbólicos de fala; é necessário garantir que as decisões construídas em conjunto modifiquem efetivamente a estrutura e o funcionamento da escola.
A produção do saber docente, nesse contexto, está atrelada ao exercício da corresponsabilidade institucional. Participar é também assumir a escola como espaço que nos constitui e que se transforma conosco. Ao compreender sua presença como gesto de elaboração crítica, o professor contribui para que a gestão democrática deixe de ser ideal normativo e se concretize como práxis coletiva.
É nesse movimento contínuo entre agir e refletir que o professor se forma. A escola pública, como espaço de embate e de invenção, constitui uma matriz viva de formação, onde não se aprende apenas a ensinar, mas a compor com os outros os caminhos possíveis de um projeto educativo coletivo, plural e ético.
3.2 Práticas de gestão e os desafios da participação no cotidiano educacional
A ideia de que a gestão escolar consiste apenas em coordenar procedimentos e garantir o funcionamento técnico da instituição precisa ser tensionada com urgência. Quando a escola se reconhece como espaço público em disputa, a gestão deixa de operar como ferramenta de manutenção e passa a integrar a própria tessitura da formação, pois é no modo como os vínculos se constroem — ou se rompem — que se formam os sentidos do projeto educativo em curso.
Embora o discurso da participação seja amplamente difundido em documentos oficiais e programas de formação, sua efetivação concreta na rotina escolar esbarra em resistências históricas, estruturas verticalizadas e ausências de escuta real dos sujeitos implicados. A dificuldade em transformar tais princípios em práticas vividas decorre, muitas vezes, da permanência de modelos de gestão que privilegiam o controle, o cumprimento de indicadores e a neutralização dos conflitos.
Guimarães et al. (2023) destacam que o gestor democrático atua como articulador das relações escolares, construindo condições para que os diferentes segmentos da comunidade participem de forma ativa e autêntica das decisões pedagógicas. Para os autores, a cultura da participação só se mantém quando há intencionalidade formativa nas interações institucionais e quando se reconhece o coletivo como espaço legítimo de produção de sentido.
Nesse sentido, pensar práticas de gestão que favoreçam a inclusão de vozes plurais é também repensar a própria estrutura organizativa da escola. As decisões precisam deixar de ser tomadas em instâncias formais isoladas para ganharem corpo nos encontros cotidianos, nas assembleias escolares e nos momentos informais de partilha entre professores, estudantes e famílias. A gestão, nesse viés, não se opõe à pedagogia — ela a compõe.
A institucionalização da participação requer, ainda, o deslocamento de uma lógica prescritiva para uma lógica dialógica, onde o dissenso não é visto como obstáculo, mas como oportunidade de elaboração coletiva. Administrar conflitos e mediar interesses diversos é parte inseparável do processo de gestão democrática. É nesse terreno instável, porém fecundo, que o gestor se constitui como sujeito formador e mediador institucional.
Silva (2020) defende que o fortalecimento de uma prática democrática exige mais do que boa vontade ou discursos inclusivos; requer a reorganização das relações de poder na escola, a superação de hierarquias rígidas e a valorização dos saberes locais como referências legítimas para a construção do projeto pedagógico. Nesse processo, o papel do professor como sujeito ativo ganha destaque fundamental.
A gestão participativa, nesse cenário, deixa de ser um apêndice administrativo e se torna parte integrante da experiência formativa dos educadores. Ao envolver-se nos processos decisórios, o docente aprende com os impasses da instituição, exercita a negociação com os pares e redimensiona seu lugar na escola como espaço de pensamento e ação crítica. Essa dimensão formativa não é secundária, mas constitutiva da docência.
A fragilidade da formação continuada dos gestores escolares revela-se com intensidade ainda maior diante da instabilidade institucional que marca muitas redes públicas de ensino. A troca recorrente de direções, a lógica produtivista que impõe uma avalanche de exigências administrativas e a rarefação de espaços legítimos para o planejamento coletivo comprometem, de forma estrutural, qualquer tentativa de consolidar uma gestão que privilegie a elaboração pedagógica em vez da mera resposta a metas externas.
Guimarães et al. (2023) observam que a participação não pode ser compreendida como simples presença física ou cumprimento de normas regimentais, mas como implicação subjetiva e política com o destino da escola. A construção de espaços efetivos de deliberação exige clareza sobre os objetivos comuns, disposição para o diálogo interpares e abertura para revisar caminhos diante dos desafios que surgem no cotidiano.
Considerando tais reflexões, é possível afirmar que a prática da gestão democrática não se sustenta apenas pela adoção de conselhos escolares ou instâncias consultivas. O que a caracteriza é a intencionalidade com que os vínculos são estabelecidos, o modo como as decisões são construídas e a legitimidade conferida às vozes que compõem o ecossistema institucional. A qualidade da gestão está no processo, não no aparato normativo.
Silva (2020) aponta que, para que o discurso da participação se traduza em ações efetivas, é imprescindível que o projeto político-pedagógico da escola assuma a formação cidadã como eixo articulador. Isso significa integrar a gestão às práticas pedagógicas, fazer da tomada de decisões um exercício contínuo de aprendizagem institucional e reconhecer os sujeitos escolares como coconstrutores de saberes e trajetórias.
Nessa perspectiva, o gestor não é um operador de normas, mas um sujeito que habita a escola com sensibilidade, capacidade, escuta e disposição para sustentar coletivamente os dilemas do cotidiano. Sua função não é apagar o conflito, mas criar condições para que ele se converta em produção de pensamento, em redefinição de rotas, em reinvenção do comum.
Assim, entende-se a necessidade de compreender que a gestão democrática, para ser efetiva, exige uma ética da presença, uma política do cotidiano e um compromisso contínuo com a criação de espaços que legitimem o dissenso, a complexidade e a construção coletiva de soluções. É nesse horizonte que a escola pode afirmar-se como comunidade de aprendizagem e formação permanente.
3.3 Formação docente e responsabilidade coletiva – caminhos de resistência pedagógica
A profissionalização do magistério, longe de significar apenas a aquisição de competências técnicas ou a formalização de títulos acadêmicos, implica uma reconfiguração profunda do lugar do professor na vida pública da escola. Em um cenário marcado pela fragmentação institucional e pelo avanço de lógicas gerencialistas, a formação do educador exige o cultivo de vínculos éticos com a prática, a palavra e os sentidos que sustentam a docência como ato coletivo.
A resistência pedagógica não se inscreve unicamente em grandes movimentos teóricos ou projetos estruturais. Ela também se realiza nos gestos cotidianos, nas pequenas mediações que constroem um tempo outro dentro da escola, no esforço silencioso por preservar a palavra reflexiva em meio à lógica da performance. Assumir esse campo de resistência é reconhecer que formar-se como docente é assumir responsabilidade diante de uma realidade que interpela a todo instante.
Corradini e Mizukami (2017) apontam que a constituição de uma prática formativa crítica não pode ser entendida como uma resposta pontual a crises externas. Para as autoras, a formação se dá no exercício constante de interpretação e reinvenção da experiência, exigindo do professor não apenas domínio teórico, mas disposição para habitar o conflito, sustentar o inacabado e partilhar a construção dos saberes.
A formação docente se inscreve como prática de implicação profunda quando deixa de ser pensada apenas em função de conteúdos escolares e passa a envolver os modos de estar na escola, de compartilhar dilemas e de sustentar coletivamente o que nela ainda resiste. O professor, nesse cenário, não atua solitariamente, mas tece com os outros os caminhos possíveis de uma pedagogia enraizada na realidade que enfrenta.
Falar em responsabilização, portanto, é afirmar uma ética da presença que se concretiza nas decisões diárias, nas tensões partilhadas e nos compromissos silenciosos com o bem comum. Não há projeto educativo que se sustente sem essa adesão mútua, que ultrapassa o plano do discurso e se realiza na concretude das práticas. A escola, nesse sentido, não é estrutura acabada, mas território em permanente reinvenção.
Segundo os conceitos de Saviani (2009, apud Benvenutti (2021, p. 77), descobre-se que:
A formação continuada deve ser vista como um processo permanente e integrado ao exercício da docência, de forma que os professores possam estar sempre atualizados e preparados para enfrentar os desafios do cotidiano escolar. A formação continuada deve ter como base a reflexão crítica sobre a prática docente, pois é por meio desse processo que o professor pode compreender melhor o seu trabalho e buscar aprimorá-lo” (SAVIANI, 2009, apud BENVENUTTI, 2021, p. 77).
Sob essa leitura, torna-se evidente que a formação docente, quando desconectada da prática e esvaziada de reflexão crítica, tende a se reduzir a procedimentos estéreis. O que sustenta verdadeiramente o crescimento profissional do educador é a possibilidade de interrogar sua própria ação, de produzir sentido a partir da experiência e de partilhar coletivamente os desafios que emergem do chão da escola.
Corradini e Mizukami (2017) enfatizam que, ao compreender sua atuação como construção compartilhada, o professor passa a articular a aprendizagem com o reconhecimento da alteridade. A formação, nesse caso, deixa de ser algo que se adquire para tornar-se algo que se vive, com os outros, no embate cotidiano com os impasses reais da prática escolar e das relações institucionais.
Esse processo implica romper com a lógica meritocrática que individualiza o sucesso docente e invisibiliza os fatores estruturais que condicionam o trabalho na escola pública. A responsabilização, quando desvinculada da coletividade, degenera em culpa institucionalizada. A formação crítica, ao contrário, resgata o sentido de partilha, de pacto ético e de construção conjunta de horizontes possíveis.
A construção de espaços escolares que acolham a complexidade do cotidiano docente demanda uma reinvenção do próprio projeto formativo das instituições. Mais do que adaptar-se a mudanças externas, a escola precisa assumir seu papel de formadora de sujeitos pensantes, implicados com o tempo presente e capazes de resistir às reduções tecnicistas que negam a dimensão política da educação.
Corradini e Mizukami (2017) argumentam que a formação docente ganha potência quando se articula à dimensão relacional do trabalho pedagógico. Essa relação não se limita ao convívio entre colegas, mas envolve a escuta pedagógica da realidade escolar, o reconhecimento das múltiplas vozes que habitam a instituição e a elaboração compartilhada de práticas que sustentem o compromisso com o bem comum.
O desafio contemporâneo, nesse sentido, não está apenas em garantir espaços de formação continuada, mas em produzir uma cultura institucional que valorize o inacabado, o erro como parte da aprendizagem e a fragilidade como lugar legítimo de reconstrução. Formar-se, aqui, é permitir-se ser afetado, modificar-se e comprometer-se com o que ainda está por vir.
Ao reconhecer a formação como campo de responsabilidade coletiva, torna-se possível compreender que o professor não é um agente isolado, mas sujeito de uma experiência que se faz na convivência com os outros. A resistência pedagógica se constrói, assim, na tensão entre o singular e o comum, entre o ofício solitário da docência e a partilha institucional que o sustenta.
A escola que se abre a esse movimento torna-se mais do que um lugar de ensino: converte-se em comunidade de aprendizagem, em campo de formação mútua e em espaço de reinvenção ética da presença docente. Não se trata de resolver os impasses, mas de reconhecê-los como parte constitutiva da prática e de sustentar, com os outros, o gesto formativo que a docência exige.
4. DISCUSSÕES
A análise desenvolvida ao longo do trabalho revelou que o conceito de gestão democrática não pode mais ser apreendido de maneira superficial ou normativa. Longe de se restringir a um conjunto de mecanismos administrativos, sua efetivação exige a construção cotidiana de práticas éticas e formativas, sustentadas por processos de escuta institucionalizada, responsabilização coletiva e tomada de decisões partilhadas.
A escola pública, nesse contexto, emerge como território tensionado, onde discursos de participação coexistem com estruturas hierarquizadas e resistências institucionais. O que se constata, portanto, não é a ausência de práticas democráticas, mas a fragmentação de seus sentidos diante da sobreposição de demandas externas e da persistência de modelos tecnicistas de organização escolar.
A partir das contribuições de Corradini e Mizukami (2017), torna-se evidente que a formação docente encontra sua potência justamente nas brechas da rotina escolar, quando se transforma em experiência vivida e não apenas em atividade formalizada. Esse deslocamento implica compreender o professor como sujeito em formação permanente, cujas aprendizagens são indissociáveis da implicação com os dilemas do cotidiano.
Na leitura proposta por Guimarães et al. (2023), observa-se que a gestão participativa só se sustenta quando articulada à construção de vínculos horizontais entre os sujeitos. A figura do gestor, nesse cenário, deixa de ser a de um supervisor de processos para se tornar mediador de relações, convocado a sustentar espaços de escuta, negociação e produção conjunta de soluções.
Ao mesmo tempo, as reflexões de Silva (2020) permitem compreender que a construção de uma cultura democrática não se efetiva por decretos ou formulários participativos, mas na disposição para reconfigurar relações de poder, desnaturalizar hierarquias e redistribuir a palavra como direito político e pedagógico. A participação, nesse campo, é menos um evento e mais um processo formador de subjetividades.
A citação mobilizada por Benvenutti (2021), a partir de Saviani (2009), reforça a ideia de que a formação continuada, para cumprir seu papel emancipatório, deve enraizar-se na prática docente e não ser tratada como compensação institucional ou estratégia de atualização técnica. A responsabilidade do professor com sua formação se entrelaça à responsabilidade institucional por criar as condições para que ela aconteça de modo significativo.
Diante disso, evidencia-se que a responsabilização coletiva não é apenas um eixo organizacional, mas uma ética que estrutura o fazer pedagógico. Quando a escola assume a formação como compromisso coletivo, reconhece no vínculo entre os sujeitos o elemento que sustenta a permanência, a transformação e a resistência frente às pressões por resultados imediatos e indicadores padronizados.
No percurso proposto por França (2025), a gestão democrática aparece como estratégia de articulação entre a escola e a comunidade. O investimento em espaços deliberativos, segundo a autora, favorece não apenas a produção de decisões mais justas, mas também o fortalecimento do pertencimento institucional e da consciência crítica sobre o papel social da escola.
As proposições de Ruiz e Sandaniel (2014) contribuem para reposicionar a coordenação pedagógica como instância formadora e não apenas supervisora. A mediação realizada pelos coordenadores, quando assumida com intencionalidade emancipadora, torna-se potente na construção de projetos coletivos, na reorganização curricular e na escuta qualificada das experiências dos docentes em sua relação com a escola.
No plano metodológico, Gil (2008) oferece fundamentos sólidos para compreender a pesquisa bibliográfica não como um levantamento de opiniões, mas como exercício de problematização teórica e construção interpretativa. Ao dialogar com diferentes autores, o trabalho pôde evidenciar convergências, tensões e lacunas nos discursos sobre formação e gestão, revelando a necessidade de reconfigurar seus nexos conceituais.
Corradini e Mizukami (2017) insistem na ideia de que o professor que assume sua formação como compromisso político compreende a escola como um campo de disputas, mas também de criação coletiva. Não se trata de romantizar o cotidiano escolar, mas de reconhecer nele os elementos que permitem a invenção de outras formas de ser e estar com os outros.
A escuta institucional, embora marcada por ambivalências, aparece em diferentes autores como condição para a formação crítica. Seja na relação com os pares, com a equipe gestora ou com os estudantes, o reconhecimento das vozes dissonantes é elemento estruturante da democracia. A escola que silencia se afasta da formação; a que reconhece a palavra como gesto de existência aproxima-se de seu papel público.
A gestão, ao ser tensionada pela ideia de formação, deixa de operar apenas como aparato funcional e se reconfigura como ação ética compartilhada. Essa virada epistemológica exige que os sujeitos escolares passem a ver a si mesmos como corresponsáveis pela construção das condições de aprendizagem, inclusive para os próprios professores.
Dessa forma, ressalta-se que este trabalho evidenciou que o compromisso com a formação docente e com a gestão democrática não são campos separados, mas dimensões interdependentes de um mesmo projeto político-pedagógico. Pensar em uma escola democrática é pensar uma escola que forma — não por adestramento, mas por participação. E pensar a formação, por sua vez, é reconhecer que ninguém se forma sozinho.
5. CONCLUSÃO
O processo de reflexão em torno da formação docente, articulada à gestão democrática, revela que a escola pública não pode mais sustentar práticas pedagógicas desvinculadas das estruturas institucionais que a constituem. A docência, compreendida como experiência situada e ética, emerge de um cotidiano em que o professor é convocado a decidir, negociar, sustentar e reconstruir sentidos junto aos demais sujeitos da comunidade escolar.
O objetivo desta investigação é compreender os fundamentos teóricos que sustentam as metodologias ativas e refletir sobre os desafios enfrentados por professores que tentam implementá-las em contextos educacionais marcados por limitações históricas e institucionais. A metodologia bibliográfica adotada apoia-se em produções contemporâneas que discutem a docência como prática situada, permeada por decisões éticas, disputas simbólicas e tensões formativas.
A análise permitiu reconhecer que a participação, quando legitimada como princípio formativo, exige muito mais do que espaços formais de deliberação. Ela demanda intencionalidade institucional, redistribuição das responsabilidades e construção de um ethos coletivo que reconheça o conflito como parte do processo educativo. A formação docente, nesse horizonte, se dá não fora da gestão, mas no entrelaçamento com ela.
A responsabilidade pelo ato de ensinar, quando compreendida como gesto partilhado, desafia modelos individualizantes e desloca o foco da performance para a convivência pedagógica. Nas experiências em que a corresponsabilidade se inscreve como prática cotidiana, o professor não apenas aprende a partir do que faz, mas transforma a instituição que o forma.
Ao longo do trabalho, foi possível perceber que a escola, ao assumir sua condição de território formativo, compromete-se com a tarefa de elaborar com os sujeitos que a habitam os caminhos possíveis de reinvenção do projeto educativo. Essa elaboração não é linear nem consensual; ela é tecida nas disputas, nos impasses e nos gestos cotidianos que sustentam o comum.
A gestão democrática, nesse cenário, é menos um modelo de organização e mais um modo de existir institucionalmente. Ela se efetiva quando transforma procedimentos em práticas de sentido, quando escancara as portas do planejamento à diversidade de vozes, quando reconhece na deliberação uma forma de formação e na coletividade uma matriz pedagógica.
O professor, ao ocupar esse lugar ativo na escola, reinventa não só sua prática, mas sua própria compreensão do que significa formar-se. Ele não é apenas destinatário de políticas ou de orientações técnicas: é agente implicado na produção de alternativas, no sustento da linguagem e na reinvenção das possibilidades educacionais.
Em vez de buscar soluções definitivas, o trabalho propõe deslocamentos críticos: pensar a formação como experiência partilhada e a gestão como mediação pedagógica. É nesse encontro entre a política institucional e o gesto pedagógico que a escola pública se constitui como espaço de resistência, de aprendizado e de reinvenção ética da docência.
6. REFERÊNCIAS
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