FAKE NEWS, DESINFORMAÇÃO COLETIVA E O DIREITO A ELEIÇÕES LIVRES

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7664130


Bianka Zloccowick Borner de Oliveira¹


RESUMO

O presente artigo visa analisar os conflitos entre verdade e política, buscando distinguir os fatos das opiniões para traçar uma fronteira entre o verdadeiro e o falso. A partir disso, pretende-se analisar o fenômeno das fake news e a desinformação coletiva verificada numa era conhecida como pós-verdade. Mais precisamente, o trabalho visa analisar os reflexos desse fenômeno nos direitos humanos relativos à informação e às eleições livres e honestas, bem como avaliar as medidas de combate a às fake news à luz do direito à liberdade de expressão.

PALAVRA-CHAVE : filosofia; direitos humanos; fake news; democracia

ABSTRACT: This article aims to analyze the conflicts between truth and politics, seeking to distinguish facts from opinions in order to draw a boundary between the true and the false. From this, it is intended to analyze the phenomenon of fake news and the collective disinformation verified in an era known as post-truth. More precisely, the work aims to analyze the effects of this phenomenon on human rights related to information and free and honest elections, as well as to evaluate measures to combat fake news in the light of the right to freedom of expression.

KEYWORDS: philosophy; human rights; fake news; democracy.

“O Súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe a diferença entre o fato e a ficção (isto é, a realidade e a experiência) e a diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento)” (Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo).

1 INTRODUÇÃO

O uso de mentiras para fins políticos não é nenhuma novidade. Não é de hoje que pessoas alçadas a altos cargo, utilizam-se desses para propagar informações com a intenção de se perpetuar no poder, moldar narrativas e, assim, mobilizar a sociedade de acordo com os seus interesses. Há diversos exemplos na história em que fatos foram ocultados, negados ou alterados com a intenção de manipular a opinião pública.

O presente estudo terá como propósito lançar um olhar específico sobre como a desinformação coletiva, por meio de uma plataforma de fake news, pode afetar os direitos humanos e fragilizar o sufrágio universal, culminando na erosão da democracia.

Exemplo da citada associação pode ser representado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, haja vista que fora gestada em resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o Nazismo. Ponto fulcral fora a ruptura com o discurso antissemita, calcado, justamente, na desinformação coletiva promovida pelas imagens de propaganda do Estado. Tal fator possibilitou a construção do valor dos direitos humanos, agora, respaldados em aspectos éticos a determinar a condição de sujeitos de direito e com o fito de orientar a ordem internacional.

Não obstante, ainda com o marco global e internacional dos direitos humanos e a ideia atrelada à concepção de sujeitos de direito – que fora posteriormente ratificada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993 –, o advento da globalização apresentou novos campos de comunicação, notadamente após o desenvolvimento da internet. Com efeito, acompanhou-se o surgimento de redes sociais, que ampliaram o exercício do direito à informação e à liberdade de expressão, para dar voz a pessoas, que até então estavam soporíficas, como também amplificaram a participação política doutras mais engajadas, através da possibilidade de organização de movimentos, por exemplo.

Percebe-se que a influência das redes sociais na comunicação humana fora fator estimulante para o exercício ativo da cidadania. Todavia, exercício este praticado, por vezes, de maneira irresponsável, inconsequente e, até mesmo, criminosa. Estas características se revelam presentes quando se depara na utilização daquelas ferramentas para disseminar fake news e promover a desinformação coletiva. 

Desde as eleições norte-americanas de 2016, e posteriormente, nas eleições brasileiras de 2018, popularizou-se o compartilhamento massivo de notícias de conteúdo falso por meio das redes sociais (Facebook, Twitter, Whatsapp, entre outras) com finalidades eleitorais. Os exemplos apontam para o uso de conteúdo falso pode acarretar vicissitudes em diferentes espectros políticos, afetando o sistema democrático em sua estrutura fundamental.

O termo fake news foi eleito a palavra do ano de 2017 pelo dicionário Collins, vez que naquele citado período houve um aumento registrado de 365% do seu uso. A familiaridade, o uso e a naturalidade com a sua incorporação no cotidiano social demonstram diversas reações sociais. Não se quer adentrar nelas, mas sim reforçar o modo como foi encarado a utilização material das fake news, na medida em que ocasionou interferências na garantia fundamental de eleições livres, supedâneo necessário para estabilidade da democracia.

Assim, para a investigação do tema proposto, será analisado inicialmente o que se entende por verdade. Nesse aspecto, serão demarcadas as linhas fronteiriças entre a verdade racional, a verdade de fato e a opinião. A intenção é de atribuir critérios capazes de distinguir cada conotação em seu respectivo seio, com vistas a conferir maior lucidez ao tema de fundo.

Em um segundo momento, o foco será dirigido à análise da verdade, mas tendo como contexto a política. Uma visão histórica será apresentada, iniciando por contributos gregos, perpassando por pensadores da Idade Moderna e encerrando com outros do século XX, com o fim de auxiliar a percepção do uso da desinformação para fins políticos.

Após, o exame será detido ao fenômeno atual das fake news. O objetivo fincará na revelação das razões que levaram uma velha prática a ser bastante atual e com forças incomensuráveis, a partir de uma nova roupagem. Na oportunidade, serão apresentadas as distinções atreladas ao termo fake news e sobre informação incorreta e desinformação, como também aprofundadas o tema das redes sociais e a era da pós-verdade.

Na sequência, serão analisados os efeitos que a desinformação coletiva provoca no direito à liberdade de expressão e de informação, em sua acepção coletiva, bem como os reflexos provocados no exercício do direito às eleições livres e justas.

Em seguida, longe de almejar o esgotamento do tema, o trabalho perpassará pelas medidas passíveis de serem adotadas para se combater o fenômeno da desinformação coletiva e o risco de colisão com direito à liberdade de expressão, em virtude da possibilidade de controle autoritário e censura. 

Por fim,as ideias serão sumarizadas e apresentadas de maneira a retomar a conjugação das duas ideias principais: a utilização das fake news como fator que viola o direito à informação adequada, na medida em que tem o condão de manipular a opinião pública, e consequentemente, distorcer o processo eleitoral, base da democracia; e os meios de combatê-la sem violar o direito à liberdade de expressão, também essencial à democracia.

2 VERDADE E POLÍTICA : UMA RELAÇÃO CONTURBADA

A relação entre verdade e política nunca foi das mais amistosas. Afinal, a política é o palco do debate de opiniões, em que a arte da retórica e da persuasão – que pouco apego têm à verdade – assumem papel de destaque. 

Tradicionalmente, o conflito entre verdade e política se encerrava no antagonismo com a “verdade racional”, seja filosófica ou científica. Por muito tempo, discutiu-se a relação entre a verdade ontológica, aquela que decorre da capacidade de raciocinar e o Poder. Um exemplo clássico é a condenação de Galileu pela divulgação de uma verdade racional, a teoria do heliocentrismo, considerada incômoda pela Igreja.

Ao retornar aos gregos, observa-se que Platão se referia à política real, isto é, aquela praticada em seu tempo, como lugar de “demagogos que têm todo o vagar para elogiar e manipular esse grande animal que é o povo”.[1] O ideal platônico, então, sugere a submissão da política à norma do verdadeiro, que deveria ser exercida por aqueles que detém o conhecimento verdadeiro e racional (epistocracia).

 Por sua vez, Aristóteles desenvolve um pensamento mais realista, no qual admite que a prática da política enfrenta contingências quotidianas e não permite a realização de uma verdade integralmente racional. A política, segundo a visão aristotélica, será guiada pela phronesis, a sabedoria prática que consiste na capacidade de juízo deliberativo partilhado pelos cidadãos.

Na Idade Moderna, o pensamento de Maquiavel reflete os conflitos intrínsecos entre o poder e a verdade. Ao tratar do modo como o príncipe deve “honrar a sua palavra”, Maquiavel expõe que, embora seja louvável que o soberano mantenha sua palavra e viva com integridade, a experiência demonstra que os príncipes que realizaram grandes feitos, ao contrário, pouca importância deram à verdade. Em suma, o príncipe deve saber conciliar as leis e a força, de modo a não se afastar do bem, quando possível, mas saber usar do mal, se necessário. Neste sentido, afirma que “um soberano prudente não pode nem deve manter a palavra quando tal observância se reverta contra ele e já não existam os motivos que o levaram a empenhá-la”.[2] 

E Maquiavel vai além, ao aduzir que o príncipe deve “ser um grande fingidor e dissimulador; e os homens são tão simplórios e obedientes às necessidades imediatas que aquele que engana sempre encontrará quem se deixe enganar”.[3] 

Em seu clássico Verdade e Política , ao analisar a matéria, Hannah Arendt enfatiza que “as mentiras foram sempre consideradas como instrumentos necessários e legítimos, não apenas na profissão de político e demagogo, mas também na de homem de estado”.[4] Partindo desse pressuposto, ela faz uma evolução histórica do uso da mentira como “arsenal da ação política”, que pode servir de mecanismo de substituição do uso da violência, ocultação de segredos de Estado, mas também de enganação e manipulação do domínio público.

É interessante notar que Hannah Arendt traz, também, uma perspectiva construtiva da mentira para a ação política. Segundo sugere, a ficção está interligada à liberdade e à imaginação e pode ser o motor da mudança de mundo. Aquele que imagina um mundo melhor tem a capacidade de agir para transformá-lo. Porém, ressalta que “não é o passado – e toda a verdade de fato, como é evidente, diz respeito ao passado – mas o futuro que está aberto à ação”..[5]

 Sob o prisma do século XX, Arendt anota que, diferentemente do tradicional conflito com a verdade racional, os regimes totalitários do século XX desafiaram a verdade de fato, ou seja, a realidade comum, vivida e partilhada pelos indivíduos em sociedade.

Neste sentido, Arendt analisa o uso de “mentiras organizadas” pelo Estado, que foram capazes de desprezar as verdades de fato e criar realidades alternativas, por meio de imagens de propaganda.  

 A “mentira organizada” tinha por alvo toda a gente e foi capaz de manipular a opinião pública por meio de um encadeamento de imagens, aparentemente coerentes, que não apenas negavam os fatos, mas criavam um substituto para a realidade. 

Os regimes totalitários buscavam reescrever a história de acordo com a sua ideologia, ainda que, para isso, tivessem que modificar o passado e apagar tudo aquilo que fosse considerado indesejável. Buscava-se uma coesão social, com a criação de uma realidade alternativa que fosse partilhada e cultivada por todos. 

Porém, como ensinou Hannah Arendt, a verdade de fato não é flexível, ela é vinculativa. O seu conteúdo não é persuasivo, é coercitivo, isto é, “os fatos estão para além do acordo e do consentimento”.[6] Desse modo, enquanto no campo da verdade racional, o antagonismo se dá entre a verdade, de um lado, e o erro, a ignorância ou a ilusão, de outro; o oposto da verdade de fato é a mentira.  

A verdade de fato é relativa à pluralidade, ela se sustenta na realidade coletiva vivida e partilhada pelos seres em sociedade. Se essa noção de realidade passa a ser confrontada por realidades alternativas, perde-se completamente a fronteira entre a verdade e a mentira. O desaparecimento dessa fronteira causa a perda do mundo comum, da experiência partilhada, e torna a sociedade altamente vulnerável a mentiras de todo o tipo, tornando-se alvo fácil para oportunistas políticos, que usam de discursos emotivos para persuadir a multidão.

Foi assim que o regime nazista, fundado em “mentiras organizadas”,[7] impôs uma realidade alternativa que permitiu a prática de todas as atrocidades e violações aos direitos humanos cometidas naquele período.

Nos dias atuais, ao contrário do que ocorria na ideologia totalitária, não se observa a criação de uma narrativa histórica una e coerente, que embora mentirosa, seja comungada pela opinião pública. Nas sociedades atuais, há tantas realidades alternativas quanto cabem na imaginação, as quais são propagadas por diversas fontes e compartilhadas na velocidade viral da internet. 

O resultado disso é a destruição da história partilhada e do juízo comum, o que conduz ao rompimento das fronteiras entre o verdadeiro e o falso. Em outras palavras, não há o reconhecimento de fatos incontestáveis, de maneira que a verdade e a mentira são transformadas em opinião.

Há muitas controvérsias quanto à existência de uma verdade objetiva. Muitos filósofos pós-modernos sustentam que, sendo os fatos objeto de interpretações subjetivas, não há uma verdade objetiva, mas diversas verdades subjetivas[8]. Essa visão pode servir para sustentar a ideia de realidades alternativas igualmente válidas, levando a uma banalização da verdade dos fatos, que passa a ocupar o mesmo patamar que a opinião.

A confusão entre a verdade e a opinião também é bastante conhecida na política.

Na Alegoria da Caverna, Platão narra a história do filósofo que tenta comunicar a verdade racional aos homens comuns, mas a vê distorcida em muitos pontos de vista, opiniões e preconceitos. Para Platão, os homens comuns, os cidadãos, não conseguem enxergar o verdadeiro, por isso defende um governo epistemocrático, liderado pelos sábios, pelo “filósofo-rei”[9].

Aristóteles, por sua vez, ao analisar a opinião (doxa) no âmbito da democracia grega, como a capacidade dos cidadãos de julgar e opinar, indica que ela incide sobre o provável, o senso comum, que não é necessariamente o verdadeiro, mas o verosímil. 

Contudo, nas sociedades democráticas atuais, o problema assume um contexto diferente: não é a verdade racional, mas a verdade de fato que é subvertida em opinião, e com isso, passa a ser palco de debate e contradição.

É assim que vemos fatos históricos, como o holocausto, a escravidão dos negros, a ditadura militar no Brasil, além de muitos outros exemplos, serem negados ou distorcidos abertamente em discursos políticos e disseminados em redes sociais.

Na visão de Hannah Arendt, os fatos são relativos à pluralidade, eles não pertencem a nenhum indivíduo e se inscrevem no plano coletivo, na troca de experiências, no testemunho do ser humano em sociedade. Por isso, os fatos não são alvo de discussão, de debate público[10].

A opinião, por sua vez, nunca é evidente ou, por si só, coercitiva. O seu processo de formação é individual e aberto ao debate, por isso, a opinião é naturalmente política. Porém, a opinião tem (ou deveria ter) por matéria-prima a verdade de fato

Não se pretende, com isso, sustentar que os fatos independem de interpretação. Não existem fatos “puros”, eis que toda narrativa depende de uma concatenação de ideias que não prescinde de interpretação. No entanto, como pontua Myriam D‟Allones “a configuração dos fatos (associada a escolhas) não apaga a realidade factual e não apaga a diferença entre os factos, a interpretação e a opinião”.[11]

Um exemplo prático pode ajudar na compreensão. É uma verdade de fato, por exemplo,a vitória de Joe Biden nas eleições norte-americanas no ano de 2020. Partindo-se dessa premissa, é possível – e até mesmo saudável em uma sociedade democrática – observar diversos pontos de vista e debater diferentes opiniões sobre as vantagens e desvantagens deste fato.

Por outro lado, nas sociedades democráticas atuais, tem-se observado o fenômeno da negação dos fatos pelos atores políticos, por meio da criação de fake news, que criam realidades alternativas sem qualquer base fática. Foi o que fez Donald Trump ao negar o fato de que Joe Biden foi eleito, sugerindo fraude nas eleições norte-americanas. 

Essa prática altera profundamente o debate na esfera pública, na medida em que, ao invés de a política ser palco de debate de opiniões sobre fatos, a própria verdade dos fatos é posta em debate.[12]A negação da verdade de fato e a ideia de convivência de realidades alternativas podem servir de sustentáculo para atores políticos que propagam fake news e buscam manipular a população de acordo com os seus interesses.[13]

Os efeitos são potencialmente perniciosos para a democracia, na medida em que a erosão da noção coletiva da realidade e a destruição da fronteira entre a verdade e a mentira afetam o exercício da cidadania pelo povo, desde a escolha do melhor candidato a seu representante no poder, até à fiscalização dos fatos de interesse público. 

Neste sentido, como relembra Jonatas Machado e Iolanda Rodrigues de Brito, embora a verdade absoluta seja inatingível, a busca pela verdade dos fatos constitui um móbil estruturante das sociedades democráticas, por meio do qual se pode alcançar a purificação dialógica e crítica da esfera de debate público[14]. Em outras palavras, a democracia exige a busca e a revelação da verdade dos fatos, para que o povo exerça a cidadania democrática de forma adequada.

Uma população que não consegue discernir a verdade e a mentira, torna-se terreno fértil para a disseminação de fake news e alvo fácil para a discursos políticos populistas, que apelam aos instintos e preconceitos morais.

3 FAKE NEWS: VELHO FENÔMENO COM NOVA ROUPAGEM

Como exposto no tópico anterior, o uso da mentira na política não é nenhuma novidade. Há diversos exemplos na história que demonstram ser essa uma prática antiga e comum no exercício do poder.

A título ilustrativo, há registros de que no Egito antigo, em 1274 a.c., Ramsés II alegou que conquistou com sucesso a cidade de Kadesh, de modo que sua falsa vitória foi espalhada pela população e até pintada em muros pela cidade.[15] Nas eleições de 1800, nos Estados Unidos da América, John Adams propagou em sua campanha que se seu opositor Thomas Jefferson fosse vencedor, os homens veriam suas filhas e mulheres se tornarem prostitutas e que assassinatos, roubos, violações, e adultérios seriam comuns. 

Contudo, a evolução da internet e a popularização das redes sociais elevaram esse fenômeno a um patamar superior.

Em primeiro lugar, com a evolução da tecnologia de smartphones e das redes sociais, qualquer um pode se tornar produtor de conteúdo e divulgador de notícias e opiniões, e cada vez mais, a disseminação possui maior amplitude. Em 2019, o usuário médio do Twitter tinha 707 seguidores, aos quais a informação divulgada chegava em questão de segundos.[16]

Além disso, a divulgação de informações na internet, não possui uma regulamentação própria, tanto técnica e econômica, como ética, nos moldes existentes para os veículos tradicionais de comunicação (jornais, revistas, televisão, rádio).

Em terceiro lugar, pode-se destacar a existência do anonimato na internet, o que permite o uso de máquinas ou robôs para a disseminação de conteúdo nas redes sociais. É comum, hoje, na rede social Twitter o uso de bots (contas automatizadas, que fazem milhares de retuítes ou likes) para amplificar o alcance da notícia.

E mais, as empresas de big data, titulares das redes sociais, decidem o conteúdo a ser divulgado para os seus usuários com base em sistemas de algoritmos. Esses algoritmos são inteligentes e se ajustam ao perfil do usuário, de acordo com os seus likes, suas visualizações, os perfis que segue etc. Assim, essa sistemática favorece a criação de “bolhas” sociais, em que o indivíduo tem contato apenas com informações que confirmam as suas convicções pré existentes.

Neste contexto, enquanto muitos celebravam os novos meios de comunicação, que garantiam maior acesso à informação, e funcionavam como espaços de liberdade de expressão e debate público, outros já visualizaram o potencial manipulativo daquelas tecnologias.

Com efeito, não se demorou a perceber o potencial político daquelas plataformas sociais e as infinitas possibilidades de uso de todo aquele arsenal de dados pessoais dos cidadãos.

As eleições norte-americanas de 2016 foi um dos primeiros grandes experimentos políticos desse tipo. Durante a campanha eleitoral de Donald Trump, houve divulgações massivas de notícias falsas nas redes sociais, com o uso de um sistema de análise de dados pessoais que direcionava as informações de acordo com cada perfil de usuário. 

Em 2018, foi divulgado o escândalo envolvendo a empresa Cambrigde Analytica, que trabalhou na campanha de Trump e na campanha pró-Brexit, no Reino Unido, que expôs a obtenção e o uso de dados pessoais de mais de 50 milhões de perfis do Facebook para fins políticos.[17]

Nas eleições presidenciais brasileiras de 2018, o fenômeno se repetiu. Há registros de que uma rede de divulgação de fake news foi criada, com o uso de robôs, para a disseminação em massa de conteúdo nas redes sociais. Um dos exemplos emblemáticos foi a disseminação de que o Partido dos Trabalhadores (PT), cujo candidato era Fernando Haddad, se eleito, iria implementar uma política de gênero nas escolas públicas, pela qual as crianças supostamente aprenderiam a ser homossexuais, o chamado “kit gay”.

Apesar de o Tribunal Superior Eleitoral brasileiro ter determinado a retirada do conteúdo porque “geram desinformação e prejudicam o debate político”, ele já havia disseminado e atingido um público de grandes proporções.

Na era da internet e das redes sociais, a velocidade e a amplitude da disseminação de informações é tão alta que mesmo as em pouco tempo pode gerar efeitos irreparáveis, dificultando a adoção de medidas de contenção e combate às fake news.  

3.1 Informação incorreta vs. Desinformação

O termo fake news pode ser usado com diferentes sentidos, que podem abranger diversos tipos de falhas na informação, propositais ou não, como, por exemplo: (i) sátiras ou paródias; (ii) informações fora de contexto; (iii) rumores sem origem da notícia exata; (iv) conteúdo manipulado ou distorcido; (v) conteúdo fabricado.[18]

Neste sentido, o termo é bastante ambíguo e indefinido, pois comporta tanto manifestações artísticas e divulgação de informações pouco acuradas, como a criação dolosa de informações falsas[19].

Relevante, ainda, mencionar que muitos políticos têm usado impropriamente o termo fake news para deslegitimar notícias e opiniões indesejadas ou desagradáveis a seu respeito. São conhecidos os ataques do presidente Donald Trump à imprensa se utilizando do termo.

Neste contexto, é importante fazer uma distinção clara entre as manifestações artísticas, as simples falhas nas informações e a criação e disseminação dolosa de informações falsas com a intenção de enganar e manipular o público. 

A manifestações artísticas, como a criação de charges, sátiras ou paródias são materialização da liberdade de expressão, artística e cultural e, nesse sentido, possuem não só proteção na ordem jurídica internacional[20] (e em grande parte dos Estados, também nacional), como cumprem importante papel no cenário democrático, ao estimularem o debate público de questões relevantes. 

No que tange às informações, para fins do presente trabalho, adota-se a distinção feita no Código de Prática sobre Desinformação da União Europeia entre misinformation, aqui traduzida por informação incorreta, e a disinformation, traduzida por desinformação.[21]

Enquanto a informação incorreta é a informação falsa ou descontextualizada disseminada por quem acredita ser verdadeira, sem intenção maliciosa; a desinformação, é a informação falsa criada, divulgada e disseminada com o objetivo de enganar a opinião pública. O Código acrescenta, ainda, que a desinformação é aquela que pode causar danos públicos e ameaças ao sistema político democrático[22]

A informação incorreta ou pouco acurada, embora indesejável, é natural em um ambiente democrático. Como leciona Jonatas Machado e Iolanda Rodrigues de Brito, a democracia pressupõe o livre mercado das ideias, a partir do qual é possível a confrontação de informações de diversas fontes, que propiciam uma melhor base para o conhecimento da verdade factual. Segundo os autores: “a existência de diferentes vozes, a livre circulação das ideias, a concorrência de opiniões e a troca livre e desimpedida de vozes, favorecem a liberdade individual, a igualdade comunicativa, a geração de nova informação e novas ideias (….)”[23]

Dessa forma, é inevitável que esse livre mercado – sobretudo na era da internet, em que há uma grande descentralização da criação e divulgação de informação – contenha falhas, como informações pouco acuradas, descontextualizadas, ou mesmo que configurem apenas rumores. Desde que não tenham a intenção dolosa de causar prejuízos ao interesse público e à democracia, tais falhas podem ser admitidas ou tratadas nas esferas competentes de remediação, como retratações jornalísticas, erratas, e eventualmente, na reparação da honra, imagem ou privacidade. 

Por outro lado, as falhas desse mercado podem ser prejudiciais à própria liberdade de comunicação e à democracia, quando se verifica a disseminação de informações deliberadamente falsas, criadas com o intuito de distorcer a realidade e manipular a opinião pública de acordo com os interesses políticos de um certo grupo, partido político, ou indivíduo. Nesse caso, observa-se a existência de desinformação, a verdadeira fake news, como sinônimo de informação intencionalmente falsa, que viola direitos humanos, na medida em que prejudica o processo de formação da opinião, mina o debate público e, com isso, ameaça à democracia.

Em casos tais, cabe ao Estado intervir para corrigir essas falhas de mercado, seja pela via legislativa ou judicial, a fim de tutelar os direitos humanos coletivos envolvidos, a liberdade de comunicação e a própria ordem democrática. 

Assim, as medidas de combate estatais devem se dirigir às chamadas fake news no seu sentido de desinformação, mas não podem se deixar confundir com discursos autoritários avessos às liberdades de comunicação.

3.2 As redes sociais e a era da pós-verdade

Como já dito em tópico anterior, o processo de formação de opinião deve ser fundado na verdade de fato. Só a partir desses fatos comuns, ou da realidade partilhada pela comunidade, é possível construir opiniões válidas e promover um debate público democrático.

Quando as fronteiras entre o verdadeiro e o falso são rompidas, e as opiniões são formadas com origem em mentiras, o domínio público é totalmente esfarelado. Se cada

“bolha” social vive uma realidade alternativa diferente, não há debate de qualidade, e a democracia é ameaçada.

Como não existe mais uma delimitação clara do que é verdade e mentira, o público se deixa levar pelos instintos, pela emoção. Assim, a miopia causada pela proliferação de fake news resulta em um desprezo aos fatos, assim como à ciência e ao conhecimento, dando origem à era da “pós-verdade”. 

A era da pós-verdade é assim chamada não por se tratar de uma fase posterior à qual imperava a verdade, pois não se está a utilizar o uso do prefixo num sentido temporal, como em pós-guerra ou pós-parto. Aqui, o pós indica que a noção de verdade se tornou secundária, até mesmo irrelevante.[24]

Neste cenário, ganha força o movimento de “resistência ao conhecimento” e “antiintelectualismo”, em ascensão na esfera política, por meio de discursos populistas que reforçam o “senso comum” e os preconceitos que permeiam a sociedade, ao mesmo tempo que diminuem a confiança do público nas evidências fáticas e científicas.[25]

Assim, as portas ficam abertas para políticos populistas que apelam ao ressentimento e aos preconceitos morais que permeiam a sociedade. Como previa Umberto Eco “em nosso futuro, desenha-se um populismo qualitativo de TV ou internet, no qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a „voz do povo‟.”[26]

Pode-se dizer que fake news são mais atrativas do que a verdade de fato por pelo menos dois motivos. Primeiro, porque a ficção, pela liberdade que possui seu criador, pode preencher lacunas que a realidade não o faz. Assim, a mentira, muitas vezes, tem aparência mais plausível do que a verdade. E segundo, porque ela antecipa aquilo que o público deseja ouvir, o que a torna muito mais tentadora. 

Neste sentido, o uso de fake news se torna uma potente arma no discurso político, com o escopo de persuadir o público por meio da emoção. Um estudo do Massachusetts Institute of Technology (MIT) de 2018 indica que as fake news tem uma probabilidade 70% maior de ser retuitada do que fatos verídicos, e quando se trata das cadeias de retuítes, as fake news atingem profundidade 10 a 20 vezes maior do que histórias verdadeiras.[27]

O Professor e psicólogo social Jonathan Haidt criou a metáfora do elefante guiado pelo cavaleiro para explicar como as pessoas são mais intuitivas do que racionais, embora não tenham consciência disso. Em resumo, o lado emocional do indivíduo seria o elefante, e o lado racional seria o cavaleiro. O cavaleiro acredita que guia o elefante, mas quando há qualquer discordância entre ambos, o elefante geralmente vence. Segundo Haidt, a primeira regra da psicologia moral é a de que “intuitions come first, strategic reasoning second”.[28]

O fenômeno das fake news foi favorecido nas redes sociais em virtude da ausência de definições e regulamentações da mídia tradicional, como investigação das fontes, responsabilidade dos veículos de imprensa, etc.[29]

Além disso, a disseminação de fake news também encontra terreno fértil na internet em razão da sistemática de algoritmos das empresas de big data, que seleciona o conteúdo de notícias de acordo com o perfil do usuário. 

Neste sentido, Gérald Bronner, ao analisar a sociedade atual, cunhou-a democracia dos crédulos, na qual o mercado cognitivo atual da informação, sobretudo as redes sociais, favorece o sistema cognitivo de confirmação e facilita o isolamento dos indivíduos em “bolhas” que compartilham e confirmam suas convicções preestabelecidas. Ou seja, o mercado cognitivo da internet atual tende a não desenvolver o espírito crítico dos seus usuários, mas a intensificar os preconceitos.[30]

Dessa forma, paradoxalmente, as redes sociais, ao invés de ampliar o livre mercado das ideias (como era de se esperar), acaba por criar uma redoma (ou câmara de eco) em que o indivíduo é cada vez menos exposto a narrativas contrárias, fontes diversas, e críticas à sua orientação política.[31]

4 DESINFORMAÇÃO COLETIVA E SEUS REFLEXOS NO DIREITO ÀS ELEIÇÕES LIVRES E JUSTAS

O direito à informação, presente na maioria das constituições democráticas, abrange o direito de informar, o direito de se informar e o direito de ser informado, sem impedimentos ou discriminações. A exemplo, constata-se tais direitos no art. 5º, IV, XIV, e XXXIII da Constituição Federal brasileira de 1988, e no art. 37 da Constituição portuguesa de 1976.

O direito de informar, que se manifesta na liberdade de divulgar informações sem obstrução ou censura pelo Estado, está intimamente ligado à liberdade de expressão e livre manifestação do pensamento. O direito de se informar consiste no livre acesso à informação, isto é, no de cada um de buscar as informações sem restrições ou impedimentos. Por sua vez, o direito de ser informado tem uma acepção coletiva, considerado o direito dos cidadãos de receber informação, a fim de permitir o exercício consciente dos direitos civis e políticos.

Mas que informação seria essa protegida pela ordem jurídica? Apenas a informação verdadeira? As fake news estariam abrangidas? A quem caberá dizer o que é ou não verdade?

Essas são questões de difícil resolução que permeiam os conflitos que envolvem as dimensões individual e coletiva do direito às liberdades de comunicação numa sociedade democrática.

Se, de um lado, a democracia deve garantir a todos a livre manifestação do pensamento e da opinião, de outro, a divulgação massiva de fake news pode culminar na manipulação da esfera pública, e na própria erosão da democracia.

Nesse contexto, importante lembrar as lições de Jónatas Machado[32] no sentido de que a liberdade de expressão possui duas dimensões, uma de natureza individual, segundo a qual a liberdade de expressão é um meio para o desenvolvimento da personalidade, e outra de caráter trans-individual, numa dimensão democrático-fundamental, que assegura o desenvolvimento da opinião pública e o exercício consciente da participação política.

Consoante salientado ao longo desse trabalho, o processo de formação da opinião só é válido se tem por matéria-prima a verdade de fato. Como já dizia Hannah Arendt em 1967, “a liberdade de opinião é uma farsa se a informação sobre os factos não estiver garantida e se não forem os próprios factos o objeto do debate”.[33]

O debate democrático, a livre formação do pensamento e, consequentemente, o exercício consciente dos direitos civis e políticos, só é concretizado se os indivíduos partem de informações fundamentadas na realidade comum, nos fatos experimentados e testemunhados pela sociedade. Neste sentido, para Michico Kakutani “a verdade é um dos pilares da democracia”.[34]

Assim, a disseminação de fake news de maneira descontrolada, não só, mas especialmente no período eleitoral, representa fator de distorção que, em maior ou menor medida, contamina o direito ao acesso à informação (adequada) e viola o direito a eleições honestas e livres.

O direito às eleições livres e justas está previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) no nº 3 do artigo 21º, inserido no grupo dos direitos civis e políticos, que dispõe:“A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos; e deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto”.

Posteriormente, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966), no art. 25, assegurou a todo cidadão o direito e a possibilidade de “votar e ser eleito, em eleições periódicas, honestas, por sufrágio universal e igual e por escrutínio secreto, assegurando a livre expressão da vontade dos eleitores”.

As formas de desinformação coletiva, através da disseminação de fake news e da criação de realidades alternativas, ao manipularem a opinião pública, comprometem o exercício da “livre expressão da vontade dos eleitores”.

Um estudo realizado na Itália por Cantarella, Fraccaroli, e Volpe durante as eleições de 2018, analisou o comportamento dos eleitores de duas regiões próximas, Trento e Bolzano, sendo que, enquanto a primeira é uma típica província italiana, a segunda é formada por uma maioria de língua germânica, com pouco acesso à internet italiana. Os autores constataram que a primeira região, que estava muito mais exposta às fake news, deram mais apoio aos partidos populistas, o que indica a influência desse fenômeno no resultado das eleições[35].

Desta feita, embora seja tarefa difícil – sobretudo em tempos de internet e fragmentação dos meios de divulgação da informação – não se pode perder de vista que existe uma verdade de fato e ela deve ser o pilar da esfera pública numa sociedade democrática. Como ressalta Kakutani, a omissão ou a tolerância demasiada em relação à mentira torna os omissos igualmente indiferentes à verdade.[36]

 Ainda que não seja possível evitar a divulgação de fake news, ante o risco de se restringir o exercício da liberdade de expressão e de informação e recair em censura, é possível controlar a disseminação e punir o abuso desse direito.

5 AS MEDIDAS DE COMBATE ÀS FAKE NEWS E O RISCO DE CENSURA 

Diante da constatação da disseminação indiscriminada de fake news e dos riscos da desinformação coletiva para as sociedades democráticas, muitos Estados passaram a estudar a adoção de medidas de controle e combate a esse fenômeno.

A Alemanha editou a Lei de Atuação na Rede (Netzdurchsetzunggesetz, NetzDG), que entrou em vigor em 2017, na qual estabeleceu que as redes sociais com mais de 2 milhões de utilizadores registrados na Alemanha exerçam a remoção local de conteúdo “manifestamente ilegal”[37] (por exemplo, uma publicação, uma imagem ou um vídeo), no prazo de 24 horas após a notificação. Se a ilegalidade não for evidente, a rede social tem até sete dias para tomar uma decisão sobre o caso. 

No Brasil, atualmente tramita no Congresso Nacional um Projeto de Lei nº 2.630/2020,  que visa a combater a disseminação de fake news nas redes sociais.  Dentre algumas medidas da proposta está a obrigação das redes sociais de exclusão de contas falsas, moderação de conteúdo publicado e armazenamento de dados de comunicações nas redes sociais.

A União Europeia, por meio do Código de Práticas contra Desinformação, também buscou tratar e combater a disseminação de fake news no âmbito europeu, a partir de diversas medidas, como: i) afastar subsídios financeiros a plataformas de fake news; ii) diminuir a visibilidade das fake news e aumentar o acesso a conteúdos confiáveis; iii) priorizar priorizar fontes de informações autênticas, legítimas e investir em novas tecnologias; iv) promover transparência em propagandas e conteúdos publicitários; v) remover contas falsas e regular a atividade dos bots nas plataformas e redes sociais.[38]

Conforme lecionam Jonatas Machado e Iolanda Rodrigues de Brito, as medidas de combate às fake news devem se pautar nos princípios da reserva de lei das restrições à liberdade de expressão e de proibição do excesso, à luz do princípio da proporcionalidade. Isto é, a medida deve ser adequada e necessária para proteger fins legítimos de interesse público, como os direitos da personalidade, a segurança e  a própria democracia, além de ser proporcional em sentido estrito, ou seja, essas medidas não podem acarretar danos maiores do que a própria disseminação das fake news.[39]

Neste sentido, as medidas propostas têm sido alvo de inúmeras críticas ao redor do mundo. O primeiro ponto que merece destaque é a delegação do poder de decidir ou de moderar o conteúdo publicado às redes sociais. Em outras palavras, a legislação conferiu ao Facebook, Twitter, Instagram, entre outros, o poder (e a obrigação) de decidir o que pode ou não ser dito, o que é verdade e mentira, enfim, o poder de limitar a liberdade de expressão dos usuários.

Ainda que se esteja diante de um caso de fake news e da possível limitação da liberdade de expressão (na sua acepção individual) em benefício do direito transindividual à informação (acepção coletiva), seria proporcional e razoável delegar à empresa de big data realizar a competência desse controle?

Neste cenário, o Facebook, por exemplo, criou o Oversight Board, uma espécie de Suprema Corte de moderação de conteúdo, composta por 19 (dezenove) experts, entre acadêmicos, profissionais de instituições sem fins lucrativos, cientistas políticos e um prêmio Nobel da paz, que julgam os casos de remoção de publicações e de contas na plataforma[40]. No entanto, a iniciativa já tem inúmeras críticas, uma vez que de mais de 300 mil casos, apenas 12 foram julgados, e não há muita transparência nos fundamentos das decisões. Além disso, a própria plataforma relata que a “Corte” não obedece a normas internas das jurisdições estatais, mas a normas internacionais de direitos humanos, porém sem qualquer consentimento dos Estados envolvidos, o gera mais dúvidas em relação à competência e legitimidade das decisões.  

É bem verdade que as novas tecnologias de divulgação da informação, somadas à celeridade e ao alto grau de capilaridade das redes sociais, desafiam os meios de controle tradicionais da liberdade de expressão, nomeadamente o Poder Judiciário, que em geral, não está preparado para atuar na mesma velocidade. 

Porém, a garantia de um controle imparcial é fundamental para a manutenção dos direitos essenciais à democracia, como a liberdade de expressão e informação. Garantia esta que corre sérios riscos caso o controle da informação seja repassado a uma empresa privada, que é controlada por acionistas evidentemente interessados no lucro. Ou seja, não se pode combater um ataque a direitos humanos, atacando outros direitos humanos.

Neste sentido, Matteo Monti, assertivamente, destaca que, pese embora as plataformas precisem assumir responsabilidades e serem integradas nas medidas de combate às fake news, a elas não pode ser delegada integralmente a mediação de conteúdo publicado pelos cidadãos, na medida em que isso acarreta o risco de privatização da censura.[41] 

Ademais, é de suma importância que qualquer legislação ou medida adotada pelo Estado sobre a matéria especifique claramente o tipo de fake news que objetiva afastar. Como visto em tópico anterior, o termo possui diferentes significados, razão pela não é recomendável utilizar conceitos amplos ou ambíguos que permitam eventual abuso de autoridade pelo Estado ou por qualquer figura que exerça o controle acerca do conteúdo das informações.

 Neste contexto, a Lei Anti-Fake News da Malásia, por exemplo, criminalizou a circulação de fake news, definida como “notícias, informações, dados e relatórios que são parcial ou totalmente falsos” ainda que não cause danos. 

Não há dúvidas de que esse tipo de legislação dá margem ao exercício de censura por governos autoritários, servindo de ferramenta para restringir a divulgação de críticas e informações contrárias aos interesses estatais. Tanto é assim que, após denúncias de abusos e censura à imprensa, que inclusive levaram à prisão de um cidadão dinamarquês, a lei acabou por ser revogada em 2018.

Em relatório sobre a matéria, o High level Expert Group on Fake News and Online Disinformation (HLEG) da Comissão Europeia[42] sugere algumas medidas para o combate efetivo à desinformação, tais como: (i) organizações independentes de checagem de fatos; (ii) incentivos ao jornalismo de qualidade; (iii) o uso de inteligência artificial de verificação de fatos; (iv) a limitação do anonimato na internet; (v) alteração do sistema de algoritmos das redes sociais; (vi) prevenção de uso inadequado de dados pessoais, especialmente para fins eleitorais; (vii) políticas educacionais sobre a mídia e as fake news.

Assim, os Estados devem buscar medidas de combate às fake news que sejam céleres, eficazes e adequadas ao ambiente digital, mas que não comprometam os direitos humanos, podendo para isso contar com o apoio da sociedade civil e, principalmente, com a contribuição das empresas de big data.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do presente trabalho, buscou-se traçar um panorama acerca da situação atual em que a sociedade democrática vive um conflito constante entre política e verdade, mediante o rompimento das fronteiras entre a verdade de fato e a mentira.

Ao contrário do que ocorria nos regimes totalitários, na era da pós-verdade, o mundo comum, isto é, a realidade partilhada pelos indivíduos em sociedade, é atacado não por uma realidade alternativa una e coerente imposta pelo Estado, mas por inúmeras delas.

Ademais, demonstrou-se como as fake news promovem a distorção do processo de formação da opinião pública e, assim, acabam por violar a acepção transindividual do direito à liberdade de expressão e informação.  No mesmo sentido, a manipulação da esfera pública prejudica o exercício do direito ao voto livre e a eleições honestas.

Por sua vez, é necessário não perder de vista que o combate às fake news não pode servir de tranpolim para o exercício da censura e da restrição do exercício da liberdade de expressão e de informação.

Sob qualquer ângulo que se analise a questão, o combate à disseminação de fake news e a superação da desinformação coletiva exige uma política educacional, que conscientize a população sobre a importância de buscar meios de acesso à informação de qualidade e previna a disseminação de notícias falsas.

Em outras palavras, as medidas de combate às fake news devem ter por objetivo principal a preservação dos direitos humanos, seja o direito humano transindividual à informação adequada, ao exercício livre e consciente dos direitos políticos, o direito às eleições livres e honestas, seja o direito individual à liberdade de expressão.

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[1] PLATÃO, A República. Livro IV, 493c apud ALLONNES, Myriam Revault d‟. A verdade frágil: o que a pós-verdade faz ao nosso mundo comum. Edições 70, 2020, p. 34.

[2] MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Penguin – Companhia das Letras, 2010, e-book. Tradução: Maurício Santana Dias. p. 68.

[3] Idem.

[4] ARENDT, Hannah. Verdade e Política. Artigo publicado originalmente emThe new Yorker, 1967 e integrado no livro Between Past and Future, editado no ano seguinte. Tradução: Manuel Alberto.

[5] Idem.

[6] ARENDT, Hannah. Verdade e Política. Artigo publicado originalmente emThe new Yorker, 1967 e integrado no livro Between Past and Future, editado no ano seguinte. Tradução: Manuel Alberto.

[7] Idem.

[8] MERENDA, Federica. Reading Arendt in the era of fake News In Democracy and Fake News Information Manipulation and Post-Truth Politics. Serena Giusti and Elisa Piras (Ed.). Routledge, 2021, p. 21.

[9] PLATÃO, A alegoria da caverna: A República, 514ª-517c, tradução: Lucy Magalhães in MARCONDES, Danilo. Textos básicos de filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

[10] ARENDT, Hannah. Op. Cit.

[11] ALLONES, Myriam Revault d‟. A Verdade Frágil: o que a pós-verdade faz ao nosso mundo comum, Edições 70, 2020, p. 65.

[12] MERENDA, FEDERICA.Op. Cit., p. 24.

[13] MACHADO, Jonatas E. M.; RODRIGUES DE BRITO, Iolanda A. S. Liberdade de expressão, informações falsas e figuras públicas, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. 95, n. 1, 2019, p. 63. 14 Idem p. 65.

[14] Idem p. 65.

[15] GREIFENEDER, Rainer; JAFFÉ, Mariela; NEWMAN, Eryn J.; SCHWARZ, Norbert. (Eds.). The Psychology of Fake News: Accepting, Sharing, and Correcting Misinformation, Routledge, 2021, e-book, p. 3. 16 Idem.

[16] Idem

[17] Ver: https://www.nytimes.com/2018/03/17/us/politics/cambridge-analytica-trump-campaign.html. Acesso em 09/04/2021.

[18] UNITED KINGDOM. House of Commons Digital, Culture, Media and Sport Committee. Disinformation and „fake news‟: Interim Report. Fifth Report of Session 2017–19. HC 363 Published on 29 July 2018, p. 7. Disponível em: https://publications.parliament.uk/pa/cm201719/cmselect/cmcumeds/363/363.pdf. Acesso em 07/07/2021.

[19] Idem, p. 8.

[20] Conforme, por exemplo, artigos 11° e 13.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia e artigos 18° e 27° da Declaração Universal dos Direitos Humanos. 

[21] UNIÃO EUROPEIA. European Commission Communication. EU Code of Practice on Disinformation, 2018. Disponível em: https://digitalstrategy.ec.europa.eu/en/policies/codepracticedisinformation. Acesso em 07/07/2021.

[22] Idem.

[23] MACHADO, Jonatas E. M.; RODRIGUES DE BRITO, Iolanda A. S. Op. Cit., p. 59.

[24] ALLONES, Op. Cit., p. 22.

[25] FRIDLUND, Patrik. Post-truth Politics, Performatives anda the Force. Jus Cogens (2020) 2:215–235.

[26] ECO, Umberto. O Fascismo eterno. Record, 1ª ed., 2018, p. 56.

[27] Ver: https://news.mit.edu/2018/studytwitterfalsenewstravelsfastertruestories0308. Acesso em 08/04/2021.

[28] HAIDT, Jonathan. The Righteous Mind: Why Good People Are Divided By Politics And Religion. Penguin Books, 2013.

[29] LOVELESS, Matthew. Information and Democracy: Fake News as na emotional weapon. In Democracy and Fake News Information Manipulation and Post-Truth Politics. Serena Giusti and Elisa Piras (Ed.). Routledge, 2021, p. 67.

[30] BRONNER, Gérald. La démocracie des crédules, Paris, PUF, 2013. 31 LOVELESS, Matthew. Op. Cit., p. 66.

[31] LOVELESS, Matthew. Op. Cit., p. 66.

[32] MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de expressão: dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Coimbra, 2002.

[33] ARENDT. Hannah. Verdade e Política. Artigo publicado originalmente emThe new Yorker, 1967 e integrado no livro Between Past and Future, editado no ano seguinte. Tradução: Manuel Alberto.

[34] KAKUTANI, Michico. A morte da verdade: notas sobre a mentira na era Trump. Tradução: André Czarnobai e Marcela Duarte. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018, e-book, posição 151.

[35] CURINI, Luigi; Pizzimenti, Eugenio. Searching for a Unicorn: Fake news and the electoral behavior. In Democracy and Fake News Information Manipulation and Post-Truth Politics. Serena Giusti and Elisa Piras (Ed.). Routledge, 2021, p. 87.

[36] KAKUTANI. Op. Cit. posição 158.

[37] O conteúdo é considerado “manifestamente ilegal” caso contituam as ofensas descritas nas seções 86, 86a, 89a, 91, 100a, 111, 126, 129 to 129b, 130, 131, 140, 166, 184b em conexão com 184d, 185 to 187, 241 or 269 do Código Criminal Alemão e que não seja justificada.

[38] MONTI, Matteo. The EU Code of Practice on Disinformation, . In Democracy and Fake News Information Manipulation and Post-Truth Politics. Serena Giusti and Elisa Piras (Ed.). Routledge, 2021, p. 215.

[39] MACHADO, Jonatas E. M.; RODRIGUES DE BRITO, Iolanda A. S. Op. Cit., pp. 56-57.

[40] THE ECONOMIST. Free speech and social media Rule of thumb. April 17th 2021, pp. 33-34. [41] MONTTI, Mateo. Op. Cit., p. 221.

[42] Ver: https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/library/final-report-high-level-expert-group-fake-news-and-onlinedisinformation. Acesso em 10/04/2021.


¹Advogada. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra. Pós-graduada em Direito Tributário pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas