REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7741053
Manuel Hermeto Vasconcelos Junior1
Introdução
A ascensão nacionalista, encampada nos últimos anos em diferentes partes do globo, está provocando uma relativa reconfiguração da balança de poder mundial, à medida que a liderança dos meios multilaterais e de cooperação é relativizada por países como os EUA, e novos atores assumem a gestão de processos geopolíticos em áreas tradicionais como o Oriente Médio (Rússia na Síria) ou Sudeste Asiático (China encampando processo multilateral de comércio –RCEP).
A eleição de Donald Trump, em 2016, nos EUA, talvez, seja um dos principais símbolos desse movimento. O presidente americano capitaneou a liderança de uma pauta conservadora-nacionalista (bandeiras de sua campanha) e ao assumir a gestão de uma das principais potências globais, o tema nacionalista, automaticamente, ganhou força e eco pelo mundo. Sob a marca “America First”, Trump voltou seu capital político para demandas internas de certos grupos da sociedade estadunidense ou agiu de modo bem parcial em demandas externas. Isso gerou afastamento da liderança daquele país em algumas controvérsias chaves (posicionamento pró-judaico na questão israelo-palestina, retirada de tropas do Afeganistão e da Síria etc) do tabuleiro geopolítico internacional, aumentando o papel já protagonista de atores internacionais como Rússia, China, Turquia e, por algumas vezes, França, nesses cenários.
Esse afastamento deveu-se, principalmente, ao esforço norte-americano direcionado para as políticas internas, e a postura ‘soma-zero na política externa’, por vezes prolatada com desígnios de confrontação e rispidez, quase incomuns na postura diplomática dos EUA. Procedimento tal que afasta aliados tradicionais americanos, além de retirar Washington de mesas de negociações politicamente relevantes, como a Guerra na Síria ou a questão de Nagorno-Karaback. Nesse sentido, está havendo: uma presença maior da Rússia e da Turquia em disputas no mundo árabe e no Mediterrâneo, como na Crimeia ou mesmo na Guerra Civil da Líbia; uma presença econômica e militar chinesa na África e no Leste asiático; além de uma participação transversal francesa nas diferentes discussões e embates internacionais (LANDISMAN; CONNORS, 2005).
Ressalte-se que essa onda nacionalista não se limitou aos EUA, ela é presente em países da Europa central (Polônia, Hungria, Eslováquia), da América do Sul(Brasil, Colômbia, Equador) e em alguns países asiáticos, onde também tem um efeito de enfraquecimento da liderança regional de alguns países (Tailândia com a Monarquia sendo contestada em virulentos protestos, Líbano: manifestações de rua querem mudanças políticas em meio a crises econômicas) à medida que os discursos ufanistas sobrepõem a cooperação e as soluções que prezam pelos benefícios mútuos entre os envolvidos. Esse enfraquecimento deve-se à contestação do status quo vigente, já que os argumentos nacionalistas tentam sobressair-se (NATHAN, 2021).
Nesse sentido, o presente artigo buscou problematizar essa aparente nova configuração da balança de poder mundial como efeito da ascensão recente de nacionalismos, mormente nos EUA. Para isso, o ensaio trouxe uma discussão conceitual e histórica do tema nacionalismo, além de sua trajetória ao longo do período contemporâneo, com destaque para levantes nacionais dos séculos XX e XXI. Após essa contextualização, o presente trabalho relacionou esse panorama atual de aviltamento de protecionismo nacional com as definições históricas e com as consequências dessa conjuntura para a geopolítica contemporânea.
1. Definição e contextualização histórica de nacionalismo
Pelo viés das relações internacionais e da ciência histórica, o nacionalismo é uma ideia e um movimento que promove os interesses de uma determinada nação (SMITH, 2013), especialmente com o objetivo de obter e manter a soberania nacional (autogoverno) sobre sua pátria. O nacionalismo sustenta que cada nação deve governar a si mesma, livre de interferências externas (autodeterminação), e que uma nação é a base natural e ideal para uma política (FINLAYSON, 2014) sendo a única fonte legítima de poder (soberania popular) (YACK, 2012). Além disso, visa construir e manter uma identidade nacional única, com base em características sociais compartilhadas de cultura, etnia, localização geográfica, idioma, política, religião, tradições e crença em uma história singular compartilhada (TRIANDAFYLLIDOU, 1998); além de almejar promover a unidade nacional ou a solidariedade. Nessa linha, o nacionalismo busca preservar e fomentar as culturas tradicionais e os reavivamentos culturais associados a movimentos nacionalistas (SMITH, 1981). Também incentiva o orgulho pelas conquistas nacionais e está intimamente ligado ao patriotismo. Ao longo da história, os povos tiveram uma ligação com seu grupo de parentesco e de tradições, com autoridades territoriais e com sua pátria, mas o nacionalismo não se tornou um conceito amplamente conhecido até o final do século XVIII (KOHN, 2018).
Nesse contexto, ressalta-se que, além da vastidão explicativa do conceito de nacionalismo, existem várias definições de “nação”, que levam a diferentes tipos de nacionalismo. O nacionalismo étnico define a nação em termos de etnia, herança e cultura compartilhadas, enquanto o nacionalismo cívico define a nação em termos de cidadania, valores e instituições compartilhados e está ligado ao patriotismo constitucional. A adoção da identidade nacional em termos de desenvolvimento histórico tem sido muitas vezes uma resposta de grupos influentes insatisfeitos com as identidades tradicionais devido ao descompasso entre sua ordem social definida e a experiência dessa ordem social por seus membros, resultando em uma anomia que os nacionalistas procuram resolver (MOTYL, 2001).
Essa anomia resulta em uma sociedade que busca reinterpretar a própria identidade, retendo elementos considerados aceitáveis e removendo elementos considerados inaceitáveis, para criar uma comunidade unificada. Esse desenvolvimento pode ser o resultado de questões estruturais internas ou o resultado do ressentimento por um grupo ou grupos existentes em relação a outras comunidades, especialmente poderes estrangeiros que são (ou não são considerados) controladores. Nesse contexto, símbolos, bandeiras, hinos, línguas, mitos e outros dispositivos de identidade nacional são altamente instrumentalizados pelas abordagens nacionalistas. Nessa esteira, o nacionalismo foi um importante motor dos movimentos de independência, como a Revolução Grega (a de 1830) a Revolução Irlandesa, o movimento sionista, que criou Israel, e a dissolução da União Soviética. Todos esses levantes tiveram suas facções moderadas e radicais.
Durante a Revolução Industrial, houve o surgimento de uma economia integrada e abrangente, além de uma esfera pública nacional, onde o povo britânico começou a se identificar com o país em geral, ao invés das unidades menores de sua província, cidade ou família (BEAUD, 1994). Nesse contexto, o surgimento precoce de um nacionalismo patriótico popular ocorreu, em meados do século 18 quando foi ativamente promovido pelo governo britânico e pelos escritores e intelectuais da época (. Símbolos, hinos, mitos, bandeiras e narrativas nacionais foram assiduamente construídos por nacionalistas e amplamente adotados) (NEWMAN, 1997). Além disso, as convulsões políticas do final do século 18 associadas às revoluções americana e francesa aumentaram maciçamente o apelo generalizado do nacionalismo patriótico.
O desenvolvimento político do nacionalismo e a pressão pela soberania popular culminaram com as revoluções étnicas/nacionais da Europa. Durante o século 19, o nacionalismo tornou-se uma das forças políticas e sociais mais significativas da história; e é normalmente listado entre as principais causas da Primeira Guerra Mundial (HORNE, 2012). As conquistas de Napoleão dos estados alemão e italiano, entre 1800 e 1806, desempenharam um papel importante no estímulo ao nacionalismo e nas demandas por unidade nacional. Nesse sentido, o historiador inglês J. P. T. Bury argumenta:
Entre 1830 e 1870, o nacionalismo havia feito grandes avanços. Inspirou grande literatura, acelerou o estudo e criou heróis. Mostrou seu poder tanto para unificar quanto para dividir. Isso levou a grandes conquistas de construção e consolidação política na Alemanha e na Itália; mas era mais claramente do que nunca uma ameaça aos impérios otomano e habsburgo, que eram essencialmente multinacionais. A cultura europeia havia sido enriquecida pelas novas contribuições vernáculas de povos pouco conhecidos ou esquecidos, mas ao mesmo tempo essa unidade estava ameaçada pela fragmentação. Além disso, os antagonismos fomentados pelo nacionalismo contribuíram não apenas para guerras, insurreições e ódios locais – eles acentuaram ou criaram novas divisões espirituais em uma Europa nominalmente cristã (BURY, 1960, p. 245).
Nessa conjuntura de convulsão das nacionalidades, o século XIX deixa uma herança permanente para o século XX. As revoluções dos anos 1820, 1830 e a grande onda revolucionária de 1848 (Primavera dos Povos), juntamente com as unificações italiana e alemã, concluídas no final dos 1860’s, são símbolos do anseio nacional, que se no século XVIII era algo em ascendente desenvolvimento, no século XIX, é uma instituição consolidada que delineou as principais disputas entre potências, além das divisões imperialistas da Ásia e da África. É esse ambiente de nacionalismos exaltados que inaugura o século XX. Para referenciar Hobsbawm, na Era dos Extremos, o nacionalismo que se consolida no século XIX, como ferramenta indissociável do Estado, que agora se transforma em Estado-nação, é instrumentalizado, com seus símbolos, padrões educacionais e econômicos como ferramenta da estabilidade do Capitalismo, sempre tão sedento por previsibilidade e mecanismos de contenção das massas. Nada como uma doutrina alienante, para servir a esses propósitos.
Ressalte-se que houve algumas importantes manifestações nacionalistas ao longo do século XX, com destaque para as independências afro-asiáticas, o movimento sionista e a secessão das ex-repúblicas iugoslavas e soviéticas. Esse espaço de análise não permite uma pormenorização de cada caso, contudo leve-se em conta que os movimentos do século XX parecem ter certos parâmetros incomuns com seus antecedentes no século XIX. Os movimentos nacionais continuam sendo instrumentos de um jogo de poder que estava além dos interesses de nação vislumbrados pelos agentes de cada grupo. Em alguns momentos, por interesses das grandes potências, mormente no contexto da Guerra Fria, as guerras entre árabes e israelenses ou as de independência afro-asiática (Indochina, Argélia) serviam à balança de poder internacional e à busca de áreas de influência no globo, por parte dos países protagonistas; ora de sistemas comunistas, ora de sistemas capitalistas, ou mesmo servindo de suporte aos nazi- fascistas, como o levante da população alemã dos Sudetos (TCHECOSLOVÁQUIA, 1939). Novamente os nacionalismos parecem instrumentalizados para servir a uma conjuntura geopolítica e econômica que transpassa as nações sedentas por independência. Direcionamentos de ações, padronização da formação de lideranças em países centrais, eram (e são) alguns dos métodos operacionalizados para usar o nacionalismo como ferramenta de uma política global, restrita à liderança de poucos atores, o que confirma, também no século XX, a tese de Hobsbawm a respeito da instrumentalização do nacionalismo.
Nesse breve apanhado sobre nacionalismos nos séculos XIX e XX, verifica-se que os pleitos por uma nação foram causas de graves embates e definições geopolíticas nas diferentes partes do globo. O que soa como uma aparente contradição já que o nacionalismo é caracterizado por um esforço de atores internos ao território; contudo, efetivamente, os embates nacionais, em geral, trazem consequências para a balança de poder mundial à medida que os territórios e sociedades são divididos por zonas de influência entre as potências globais. No século XXI, as demandas nacionalistas continuam sobressaltadas, em territórios (alguns) e circunstâncias (algumas) diferentes, mas com desígnios semelhantes, relacionados à reafirmação de um grupo sócio-histórico ou a delimitação territorial.
Fato um pouco distinto no século XXI, para os padrões contemporâneos, parece ter sido o discurso ufanista advindo de uma grande potência, EUA de Trump, uma vez que esse ator da geopolítica global, na maioria das vezes, externava seus interesses em lógicas mais abrangentes que as restrições dos conceitos nacionalistas; para Washington, historicamente, era a gestão global de lançamento de zonas de influência que prevalecia. Esse aspecto nacionalista explícito pode ter gerado um distanciamento norte-americano de certas contendas internacionais, à medida que o discurso “American First” (MEAD, 2017), já aventado em outros momentos da história norte-americana, praticamente inviabiliza a neutralidade de um negociador. Essa conjuntura demonstra certos abalos nas configurações da balança de poder, com novos e velhos atores se sobressaindo em alguns cenários geopolíticos, em um efeito diferente, e porque não dizer inesperado, do nacionalismo (KISSINGER, 2012).
2. O caso dos EUA de Trump
A campanha presidencial dos Estados Unidos em 2016 viu a ascensão sem precedentes de Donald Trump (MEAD, 2017), um empresário sem experiência política que concorreu com uma plataforma populista/nacionalista e lutou para obter o apoio de figuras políticas convencionais, mesmo dentro de seu próprio partido. Os slogans de Trump “Make America Great Again” e “America First” exemplificam o repúdio de sua campanha ao globalismo e sua visão fortemente nacionalista. Sua inesperada vitória na eleição foi vista como parte da mesma tendência que provocou a votação do Brexit. Em 22 de outubro de 2018, duas semanas antes das eleições de meio de mandato, o presidente Trump proclamou abertamente que era um nacionalista para uma multidão que aplaudia em um comício no Texas em apoio à reeleição do senador Ted Cruz, que já foi um adversário. Em 29 de outubro de 2018, ele equiparou o nacionalismo ao patriotismo, dizendo “Estou orgulhoso deste país e chamo isso de ‘nacionalismo’ (BARNETT, 2017).
Posturas ultranacionalistas não são exatamente uma novidade na história norte-americana. A Doutrina do Destino Manifesto, que orientou a marcha expansionista dos americanos no século XIX, é símbolo dos anseios da então jovem nação de projetar seus objetivos nacionais sob uma perspectiva bioceânica. Compras de territórios (Alaska da Rússia, Lousiana da França), negociações diretas (Wisconsin da Grã Bretanha) ou a recorrente guerra de conquista (Texas, Novo México e Califórnia ou Porto Rico), foram posturas que impulsionaram o crescimento das Treze Colônias da margem do oceano Atlântico até o Pacífico, sem contar as ocupações ultramarinas no sudeste asiático e Polinésia (Filipinas, Guam, Ilhas Marshall etc). Esse expansionismo era instrumentalizado em ideias racialmente excludentes, ligadas à doutrina europeizante do Fardo do Homem Branco, de que os EUA teriam uma missão civilizatória diante de povos “pouco organizados socialmente”, interpretação retirada de teorias como o darwinismo social e as perspectivas de Spencer sobre o imperialismo em fins do século XIX. Sob essa perspectiva, justificava-se a imposição das leis advindas de Washington, a perseguição e extermínio de comunidades silvícolas ou a ocupação de uma porção considerável do território mexicano. Todas essas medidas desdobravam-se sob um desígnio de orgulho dos americanos de estarem integrando territórios e sociedades “não-civilizadas” à perspectiva de estado-nação dos EUA, que se auto intitulavam missionários sociais e políticos de um mundo civilizado (REMOND, 2002).
No século XX, o nacionalismo dos EUA reveste-se, no pós-SGM, da ideia de “inimigo comum” para mobilizar as diferentes nações em torno de um projeto global que, na verdade, representava interesses da Política Externa de Washington (KENNAN; LUKACS, 1976). O inimigo seria a expansão do socialismo soviético, que a partir de alguns instrumentos (Doutrina Truman, Telegrama X, Macarthismo) criou-se uma retórica securitária internacional que buscava impor os EUA como a polícia de defesa do mundo diante das ameaças políticas de Moscou. Os Estados Unidos, em verdade, defendiam sua hegemonia global e sua ampliação de área de influência por intermédio de uma verdadeira demonização de seu algoz político: o comunismo soviético, era um ideário nacional utilizado como objetivo internacional do mundo ocidental. As condicionantes de posturas liberais aos europeus para que recebessem os recursos do Plano Marshal, a “terceirização” (Doutrina Nixon) do enfrentamento ao comunismo através do suporte a ditaduras na América Latina, são algumas das medidas que os EUA tentaram para operacionalizar seus objetivos unilaterais externos por meio da adesão de outros países a essas mesmas metas, manipulando uma retórica de bipolaridade maniqueísta na Guerra Fria.
Mesmo com esses históricos posicionamentos nacionalistas, o debate interno sempre incluiu uma adesão a uma postura mais isolacionista, nos moldes do “Splendid Isolation” dos britânicos no século XIX. Até a consolidação da nação bioceânica, apesar da postura expansionista no entorno continental, os EUA consideravam sua política externa isolacionista, em que a Doutrina Monroe (América para os Americanos-1823) era o símbolo principal, no qual os americanos delimitavam, perante os europeus, a sua área de influência; além disso não intervenham em zonas de poder europeia e almejavam postura recíproca, o que foi tacitamente respeitado, incluindo cooperação expansionista na “Open Door Policy” no Japão e na China (BUCKNALL, 1989).
Desse modo, os norte-americanos consideravam-se isolados em suas pretensões externas, focados somente nos anseios continentais, em busca da estruturação do estado-nação. Essa política é interrompida, em fins do século XIX, com a vitória dos EUA na guerra hispano-americana, sob as diretrizes do Big Stick (Corolário Roosevelt), em que Washington projeta poder sob o Atlântico diante de antigas colônias europeias (Filipinas, Guam) e busca participação nas aberturas forçadas de China e Japão, por exemplo. Nos anos 1930, a Política da Boa Vizinhança de Franklin Delano Roosevelt, após a tentativa de retorno ao isolamento no pós Primeira Guerra, sepulta definitivamente a neutralidade norte-americana diante do sistema internacional, mas isso não significava um abandono ou a relativização dos interesses nacionalistas. Washington sempre buscou conjugar suas intenções de política externa com os interesses internos, em uma espécie de gênese política que projetava a nação como referência de pátria aos demais entes do globo. Nesse sentido, no pós-SGM, não era cabível posturas isolacionistas já que os americanos se tornaram a grande potência militar e econômica do mundo (HAMILTON, 1945).
No século XXI, eventos como o ataque terrorista de 11 de setembro e a crise financeira de 2008 incentivaram as posturas de fechamento político e econômico dos países, mormente nos EUA, epicentro desses momentos críticos. Após os ataques terroristas da Al-Qaeda, Washington, sob a justificativa de segurança nacional, regula severamente a entrada de pessoas, mercadorias e serviços e expõe uma retórica “nós e eles” que se propaga pela sociedade norte-americana. Esse cenário leva a sumarização de posturas protecionistas, alavancadas após a crise financeira de 2008 em que o intervencionismo econômico do estado é a regra, juntamente com o fomento a atividades empreendedoras internas, em detrimento da cooperação comercial externa, que seria uma das responsáveis pela crise (UCHOA, 2018). Essa conjuntura de valorização de instituições nacionais e do mercado interno é ascendente, para parte da sociedade dos EUA nos anos 2010, principalmente das antigas áreas industrializadas do país, que sofreram com as sucessivas crises econômicas e com a globalização (Detroit, Wisconsin etc) (OTOBONI, 2020). Diante dessa realidade, o discurso nacionalista recebe inúmeros adeptos na sociedade e na política; e uma ala do partido Republicano, mais radicalizada à direita sintetiza parte das demandas sociais, relacionadas à frustração com o globalismo e com as posturas de cooperação internacional dos EUA. Nesse cenário, lança-se como candidato à presidência da república em 2016 Donald Trump, que tem slogans: “American First” e “American Great Again”, simbolizando a maioria dos anseios nacionalistas citados, o que leva a uma radicalização da política norte-americana na segunda metade dos anos 2010. Acrescente-se que esse nacionalismo radical apresenta algumas posições xenófobas e discriminatórias que rivalizam segmentos da sociedade nos EUA (ZARETSKY, 2020).
3. O Nacionalismo de Trump e a reconfiguração da Balança de poder mundial
Além do cenário interno nos EUA, a ascensão de Donald Trump tem grandes impactos na Balança do Poder Mundial. O anti-multilateralismo, definido como globalismo pelos trumpistas, a confrontação comercial e política com China e com a Rússia, bem como o distanciamento da tradicional aliança atlântica com a Europa, são elementos que parecem relativizar, de uma maneira até então não observada, a ordem global pós-SGM. Esse cenário de uma aparente busca de hegemonia unilateral, em uma postura avessa à cooperação, ao soft power e ao win-win, a gestão Donald Trump, diante da criação de assimetrias de relacionamento, parece impulsionar novas coligações e alianças entre potências; e faz surgir novas lideranças em cenários geopolíticos e quimeras globais que tradicionalmente tinham os EUA como nação mediadora.
Com os chineses, a administração Trump, logo de início, marcou uma das maiores guerras comerciais da contemporaneidade, o que foi motivo para diferentes aproximações e reconfigurações econômico-financeiras ao redor do globo (RATNER, et al. 2019). A guerra de tarifas norte-americana, desencadeada a partir de 2017, visava à redução do déficit do Comércio Exterior diante de Pequim. Para isso, começou com tarifas sobre aço, produtos industrializados e disseminou-se nos mais diferentes itens da balança comercial sino-americana, provocando uma migração de fluxos financeiros e comerciais para outros países e regiões, uma vez que os chineses buscavam compensar suas possíveis perdas. Nessa conjuntura, o fluxo das commodities latino-americanas para a China tem grande ascensão entre 2019 e 2020, incluindo o Brasil; há assinatura e reuniões bilaterais mais recorrentes entre europeus e chineses, incluindo assinatura de acordos de facilitação de investimentos em 2021. Adicione-se que a Nova Rota da Seda chinesa desdobra-se mais intensamente na África, no Leste Europeu e no Mediterrâneo, incluindo acordos bilionários com Grécia e Itália. Verifica-se que a guerra comercial, ainda que tenha obtido alguns de seus objetivos de curto prazo (redução do déficit), impulsionou novas conexões econômico-políticas que podem ter efeitos de longo prazo na balança de poder mundial, principalmente por envolverem áreas tradicionais da influência norte-americana, como a África (ajuda humanitária) e o Mediterrâneo europeu (presença de bases da OTAN).
A confrontação com os chineses não se limitou ao campo econômico, há também inúmeras controvérsias geopolíticas, mormente no que concerne a temas envolvendo o Sudeste Asiático, agenda de Direitos Humanos e o princípio da autodeterminação dos povos. Nessa seara, os Estados Unidos contestam a ‘linha dos nove traços no Mar do Sul da China e a política de dois sistema, um só país a respeito de Taiwan e Hong Kong; realizando, inclusive, exercícios militares afrontosos nos limites marítimos das áreas supracitadas, as quais a China considera que fazem parte de seu território, levando a uma escalada de tensões retóricas e políticas, o que envolve direta ou indiretamente, os países da região em uma espécie, para alguns analistas, de ressurgimento da Guerra Fria. Os Estados Unidos de Trump também contestaram as políticas chinesas, ditas segregacionistas, contra a etnia islâmica uigures no Noroeste daquele país, o que Washington chegou a classificar como crime contra a humanidade (ZIETLOW; MARTINS, 2017).
O Governo Trump teve uma postura ambígua com a Rússia, mas tentou prevalecer o nacionalismo. Desde os rumores de intervenção russa, a favor de Trump, nas eleições de 2016, até a renúncia de acordo de regulação de armas nucleares (START) a administração norte-americana ora apresentava uma relação de proximidade com Moscou, ora de confrontação. De qualquer maneira, a instabilidade e a indefinição, somada à postura da retórica belicosa, já referenciada de Trump, em defesa do nacionalismo, por vezes, deu condições para os russos assumirem papel proeminente em diferentes tabuleiros geopolíticos. Nesse sentido, Vladimir Putin teve encontros amistosos, onde foram firmados diversos acordos de cooperação com a Coreia do Norte (EUA teve encontros de poucos resultados em 2017 e 2018, incluindo a interrupção antecipada na cúpula de Cingapura). A Rússia instalou uma base militar no conflito sírio e foi um dos fatores principais para que a balança de forças tendesse para Assad e a guerra civil fosse se transformando em um conflito congelado; em contrapartida, em 2018, EUA retiraram tropas da Síria, desguarnecendo a aliança com os curdos que ficaram à mercê das forças turcas de Erdogan, o que gerou redução do protagonismo americano e maior ascendência russo-turca na região, que, inclusive, compartilham patrulhas de combate, nas principais vias do território sírio (MOTYL, 2017)
O Nacionalismo norte-americano recente também abalou as relações com os europeus. Em 2017, nas primeiras cimeiras com os líderes europeus, Trump já contestava a baixa participação orçamentária das nações europeias na OTAN (WELLE, 2018) e ameaçava realizar a realocação de tropas norte-americanas dentro do continente, o que poderia comprometer a segurança hemisférica (WELLE, 2020). Além disso, no campo econômico-comercial, incluiu os europeus na guerra tarifária, o que provocou a busca de novas parcerias econômicas pela UE, como no caso do acordo de livre-comércio com o Japão, com o Reino Unido e a intensificação das conexões africanas. Sob os auspícios do nacionalismo “American First”, verifica-se que a administração Trump abalou um dos principais pilares da ordem internacional pós-SGM: a parceria transatlântica EUA-Europa. Ao relativizar o discurso de cooperação, os EUA incentivaram tratativas sobre um exército europeu, paralelo à OTAN, bem como discursos de Ângela Merkel e Emanuel Macron de que a OTAN precisa ser refundada, sob o risco de ter perdido o objetivo existencial e a capacidade de gerenciar crises dentro e fora do bloco. Adicione-se a essa crise da relação bilateral as punições mútuas contra grandes conglomerados capitalistas (Amazon, Facebook, Boeing, General Motors etc) em meio a uma guerra tarifária, que inicialmente abrangia componentes relacionados ao aço e ao alumínio e depois se estendeu para inúmeros segmentos comerciais. Esses exemplos demonstram que uma postura nacionalista de Washington, tendo a prevalência de um modelo de poder mais unilateral, gera relativas descontinuidades em parcerias aparentemente consolidadas, como a do Ocidente (Europa-EUA), o que provoca novas configurações na geopolítica e nas relações de liderança no cenário internacional (SHAPIRO, 2018).
Apesar disso, a marca da política de Trump não está em descompasso com grande parte da história dos Estados Unidos, como já citado, contudo está descartando os princípios-chave da política externa dos EUA desde a Segunda Guerra Mundial, favoráveis a uma linha de pensamento mais antiga sobre o papel dos Estados Unidos no mundo. É um retorno a um tempo antes da Segunda Guerra Mundial – a uma iteração anterior do excepcionalismo americano e um tipo mais antigo de política. A hostilidade à participação dos EUA em pactos internacionais, o protecionismo econômico, a aversão à promoção da democracia, o nacionalismo tingido de racismo, a tentação isolacionista – esses aspectos da abordagem “América em primeiro lugar” de Trump estão fora do manual que ancorou a política externa para a maioria dos História dos EUA antes do ataque japonês a Pearl Harbor.
A ascensão política de Trump repousava claramente em sua habilidade de apelar a um eleitorado insatisfeito, prometendo voltar no tempo para um Estados Unidos mais soberano, mais branco, mais industrializado e mais geopolítico. No entanto, seu esforço para reorientar a estratégia dos EUA usando uma versão anterior de excepcionalismo está destinado ao fracasso. Seus instintos isolacionistas e seu ataque ao multilateralismo, à globalização, à promoção da democracia e à imigração provocaram uma oposição apaixonada em casa e no exterior. E por um motivo simples: uma grande estratégia elaborada para o século XIX é inadequada para o século XXI. Em que pese essas observações, Trump abriu um importante debate sobre o papel dos Estados Unidos no mundo, mas a solução para as dificuldades não é retroceder. Nesse sentido, o que os Estados Unidos precisam é de uma versão atualizada de excepcionalismo para os novos tempos – e uma grande estratégia à altura, em que o nacionalismo intransigente parece pouco eficiente.
Considerações Finais
O presente artigo buscou problematizar a aparente nova configuração da balança de poder mundial como efeito da ascensão recente de ufanismos, mormente nos EUA. Para isso, externou-se uma delimitação conceitual de nacionalismo, além de sua trajetória ao longo do período contemporâneo, com destaque para levantes nacionais dos séculos XX e XXI.
Desse modo, verificou-se que o século XXI está delineando-se por uma conjuntura de ressurgimento de conceitos nacionalistas, contudo estes apresentam uma certa peculiaridade dos elementos prevalecentes na contemporaneidade. Conceitos como o terrorismo e os fundamentalismos religiosos, por vezes, têm trajetória coincidente no que se refere à busca da contestação do status quo social e políticos dos países e da ordem em que estão inseridos. A emergência de novos global players na seara internacional, mormente os BRICS, impõe também outros conceitos aos desdobramentos do nacionalismo no mundo. Essa conjuntura, que inclui um aumento de protecionismo econômico em cenários como a crise financeira de 2008, traz novos aspectos ao soerguimento nacional no século XXI, que incluem uma retórica confrontacionista da ordem multilateral (fundada no pós-SGM), e uma postura crescentemente unilateral, com argumentos econômicos que, em algumas oportunidades, travestem posições discriminatórias diante de fluxos migratórios e de discursos contra a liberdade religiosa. Essa ascensão nacionalista do século XXI tem um momento simbólico, e porque não dizer de síntese do quadro atual, na eleição de Donald Trump em 2016, em que o novo presidente americano passa a defender os interesses de Washington, de forma escancarada, em prejuízo (literal) de qualquer outro país e onde a ordem pós-1945 é apresentada como uma estratégia comunista de domínio global, que oporia a tese liberal-capitalista.
A distinção nessa conjuntura do século XXI era o discurso explicitamente ufanista advindo de uma grande potência: EUA de Trump, uma vez que esse ator da geopolítica global, na maioria das vezes, externava seus interesses em lógicas mais abrangentes, principalmente após a SGM, ao invés das restrições dos conceitos nacionalistas; para Washington, era a gestão global de zonas de influência que prevalecia. Esse aspecto nacionalista explícito parece ter gerado um distanciamento norte-americano de certas contendas internacionais, à medida que o discurso “American First” praticamente inviabiliza a neutralidade de um negociador. Essa conjuntura demonstra certos abalos nas configurações da balança de poder, com novos e velhos atores se sobressaindo em alguns cenários geopolíticos, em um efeito diferente, e porque não dizer inesperado, do nacionalismo. Como ocorreu nos citados exemplos, entre outros: saída dos EUA do Acordo de Paris (sob Trump, mas retomado por Biden em 2021), inviabilização da Organização Mundial do Comércio, saída da Parceria Transpacífico, negociação com Taleban para saída do Afeganistão, retirada de tropas na Guerra na Síria, negociações infrutíferas com a Coreia do Norte, demonstração de força contra os chineses no Mar do Sul da China, saída do acordo Nuclear com o Irã, busca de protagonismos nas Rotas do Ártico. Essas medidas nacionalistas ou anti-multilateralismo, como verificou-se, provocaram certo isolamento norte-americano e um impulso nacional interno, contudo com efeitos que não demonstraram grande efetividade, o que se comprova com a não-reeleição de Donald Trump em 2020.
Essas posições ultranacionalistas não são exatamente uma novidade na história norte-americana. A Doutrina do Destino Manifesto que orientou a marcha expansionista dos americanos no século XIX é símbolo dos anseios da então jovem nação de projetar seus objetivos nacionais sob uma perspectiva bioceânica. Já no século XXI, eventos como o ataque terrorista de 11 de setembro e a crise financeira de 2008 incentivam as posturas de fechamento político e econômico dos países, mormente nos EUA, epicentro desses momentos críticos. Além do cenário interno nos EUA, a ascensão de Donald Trump tem grandes impactos na Balança do Poder Mundial. Mas o que se verifica é que tais posicionamentos, sejam históricos ou hodiernos, tiveram poucos efeitos benéficos ao mundo e aos Estados que os capitaneiam, já que a ordem global de paz necessita de mecanismos de cooperação, mormente em uma conjuntura de globalização e de interdependência política e econômica. Prova disso, foi a reprovação da sociedade norte-americana da postura isolacionista de Trump ao não reelegê-lo em 2020, optando, em sua maioria, no projeto clássico do Partido Democrata de apoio ao multilateralismo e à cooperação, que são instrumentalizados de forma menos confrontacionista para servirem aos interesses nacionais, em uma espécie de nacionalismo cooperativo entre as nações. É o que Joe Biden parece querer viabilizar desde sua eleição.
Nesse sentido, a política externa de Biden tem se concentrado em colocar a democracia como base da estratégia americana – enraizado no fato de que a supremacia da democracia está mais ameaçada do que em qualquer outro momento, pela ascensão de posturas ultranacionalistas que, por vezes, desprezam direitos individuais e políticos (Invasão do Capitólio, Leis anti-migração na Europa e anti-LGBT na Hungria, Polônia etc). Considerando que muitas das controversas relações internacionais de Trump foram com os aliados mais próximos dos Estados Unidos, Biden está priorizando consertar essas alianças como escudos em uma falange democrática global. Ele procurou amenizar as disputas diplomáticas e comerciais com a Europa para criar uma frente única mais pragmática contra a Rússia e a China e trabalhou com aliados em Bruxelas para aprimorar e refundar a parceria transatlântica. Verifica-se que o governo presente nos EUA busca uma reestruturação dos pilares multilaterais por percebê-los como valores efetivamente nacionais e mais benéficos tanto interna quanto externamente, à medida que permitem a proeminência norte-americana pelo exemplo de força de poder democrática, o que o credencia, conforme a emergência pós-1945, como grande mediador das quimeras geopolíticas. O nacionalismo é, desse modo, um elemento distintivo que dificulta negociações estatais e inviabiliza solução de conflitos políticos, sociais e econômicos no sistema internacional.
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2The Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP; /ˈɑːrsɛp/ AR-sep) is a free trade agreement first initiated by Indonesia between the Asia-Pacific nations of Australia, Brunei, Cambodia, China, Indonesia, Japan, Laos, Malaysia, Myanmar, New Zealand, the Philippines, Singapore, South Korea, Thailand, and Vietnam.
3No século XIX, a doutrina do destino manifesto (em inglês: Manifest Destiny) era uma crença comum entre os habitantes dos Estados Unidos que dizia que os colonizadores americanos deveriam se expandir pela América do Norte. Ela expressa a crença de que o povo americano foi eleito por Deus para civilizar o seu continente. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Doutrina_do_destino_manifesto, consulta: 01.09.21.
4“The White Man’s Burden” (“O Fardo do Homem Branco”) é um poema escrito pelo poeta inglês Rudyard Kipling. Foi publicado originalmente na revista popular McClure’s em 1898, com o subtítulo The United States and the Philippine Islands. “The White Man’s Burden” foi escrito a respeito da conquista estadunidense das Filipinas e outras ex-colônias espanholas.[2]. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Fardo_do_Homem_Branco, consulta em: 01.09.21.
5Pacto de investimentos entre União Europeia e China aprofunda laços econômicos, InfoMoney, disponível em: https://www.infomoney.com.br/economia/pacto-de-investimentos-entre-uniao-europeia-e-china-aprofunda-lacos-economicos/. acesso em: 30 jul. 2022.
6Ver: https://civilrights.org/trump-rollbacks/, 03.09.21
1Servidor Público da União; Bacharel em Direito e em Relações Internacionais (UnB), Curso Superior em Gestão de Segurança Pública; Especialista em relações Internacionais (UNILA), mestrando em Relações Internacionais (UNILA); pesquisador nas áreas de História do Brasil, História Mundial, Política Internacional, Economia, Geografia e Direito Internacional. otefis.dcc@gmail.com (61-982744890).