ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO À CULTURA DE DOMINANTE. A PARTIR DE BELL HOOKS, POLICARPO DA SILVA E OSWALD DE ANDRADE

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7226665


Autoria de:

Tatiane Carvalho Nascimento1


O artigo tem o objetivo de apresentar os obstáculos culturais enfrentados pelas mulheres intelectuais, em especial as negras, na contemporaneidade a partir do artigo “Intelectuais Negras” (Hooks, 1995). Como também pensar em estratégias de enfrentamento das questões apresentadas a partir de situações semelhantes vividas por outros escritores. O livro “O Piolho Viajante” (SILVA, século XIX) e O Manifesto da Poesia Pau-Brasil (ANDRADE, 1924) fazem uma crítica ao modelo cultural hegemônico e excludente de toda manifestação contrária às regras e padrões preestabelecidos culturalmente.  Esta pesquisa propõe uma discussão em relação ao papel do intelectual, os possíveis obstáculos que este encontrará e os caminhos que poderá percorrer para alcançar seus objetivos. 

Palavras-chave: mulher; negra; intelectual; obstáculos culturais.    

1. INTRODUÇÃO 

A atividade intelectual historicamente não foi reservada às mulheres, muito menos às negras. Durante séculos o pensamento patriarcal impregnou as culturas em diversas partes do mundo. As mulheres foram proibidas de exercer atividades intelectuais e a estas foram reservadas as atividades do lar, sem o poder de contestar, sempre subservientes ao comando masculino. Mas, apesar de tantos avanços e conquistas sociais o preconceito e o machismo ainda permanecem no imaginário coletivo. Muitas famílias reproduzem antigos modelos que atrapalham as mulheres, e em especial as negras, no desenvolvimento de seus estudos e de sua atividade intelectual. A cultura dominante ao longo da história entravou algumas manifestações políticas, mas esse fator não intimidou alguns revolucionários na conquista de seus direitos e no desenvolvimento de suas potências. Uma tarefa algumas vezes árdua, mas que traz recompensa incalculável tanto para quem vive quanto para quem virá posteriormente.   

Hooks em seu estudo sobre o trabalho intelectual de mulheres negras revela os obstáculos culturais (na seção 2), materiais e psicológicos (na seção 3), sanções sociais (na seção 4), na seção 5, há uma apresentação de estratégias utilizadas por Bell Hooks, Antônio Manuel Policarpo da Silva e Oswald de Andrade para resolver conflitos com o  poder hegemônico e na seção 6 as considerações finais.  

2. OBSTÁCULOS CULTURAIS  

Hooks, em seu artigo, lista uma série de obstáculos vividos por ela e pelas mulheres que fizeram parte de sua pesquisa. Um dos primeiros foi a falta de incentivo em relação ao trabalho intelectual dentro da própria família e pela comunidade de que faziam parte. Para eles, o intelectual é alguém que está desligado do mundo real, egocêntrico, frio, egoísta, preocupado com as próprias ideias, destituídos de sentimentos e alienados da comunidade.  

A mulher, em especial a negra, segundo a consciência social coletiva foi criada para ser servidora abnegada, para atuar no trabalho doméstico e na criação dos filhos, símbolo de nutrição, aquela que alimenta, cuida, tem senso de compromisso com a comunidade, como também símbolo de fertilidade, natureza selvagem, incontrolável, dotada de sexo, erotismo primitivo, desenfreado, corpos sem mente.  

3. OBSTÁCULOS MATERIAIS E PSICOLÓGICOS 

Um dos obstáculos materiais vividos por grande parte das mulheres, em particular as negras, é ter de trabalhar dentro e fora de casa. Quando sobra tempo, têm de escolher entre ficar com a família, amigos e a se dedicar ao trabalho intelectual. Ao usufruir o tempo reservado para a leitura já estão cansadas e sem energia, para mães solteiras ainda existe a dificuldade de se concentrar intensamente para pensar e escrever, mesmo que desejem se dedicar a essas atividades. As negras de origem pobre e operárias possuem espaço limitado para estudar e o número grande de pessoas na família torna o tempo solitário impossível.   

Em relação aos obstáculos psicológicos, elas sentem uma série de sensações que são fruto de sua criação que bloqueiam e atrapalham sua dedicação ao trabalho intelectual. Possuem a sensação de que a vida não é bem vivida se não for vivida em comunidade. O medo do isolamento desta por causa do senso de compromisso estabelecido com a comunidade e a culpa em relação ao tempo passado longe dos outros. Entre outras dificuldades está a falta de hábito para conviver com o isolamento, dificuldade de criar espaço para uma escrita solitária e de reivindicar o trabalho intelectual como digno de atenção básica. 

4. SANÇÕES SOCIAIS  

Ser dona de uma capacidade intelectual não era vantagem para a mulher e em especial a negra. A cultura fazia o papel de reprimi-las mesmo sem as pessoas terem consciência plena do que estavam fazendo.  Se demonstrasse sinal de inteligência desde criança, eram castigadas, abusadas, desvalorizadas pela sua família negra. Julgadas incapazes de mobilidade social, incompetentes, inferiores e desqualificadas. O pensamento independente era visto com desconfiança. Elas corriam o risco de serem encaradas como loucas, estranhas, até sofriam ameaças de terem seus livros queimados ou escondidos, caso colocassem o trabalho intelectual acima do doméstico e comunitário.  

Para a autora, tais sanções podem ser percebidas ainda hoje nos meios acadêmicos na adoção de um estilo de escrita pelas negras, muitas vezes são associadas a aliança política, sofrem também questionamentos em relação à capacidade acadêmica. O trabalho de experiência concreta é mais valorizado do que as formas de trabalho intelectual não produzido para comercialização de um público de massa.  

5. ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO À CULTURA DOMINANTE. 

5.1. Bell Hooks 

Depois de sua experiência dolorosa em razão da falta de incentivo ao exercício intelectual ela buscou nesta atividade ajuda para lidar com a infância dolorosa. Distanciou-se da infância como estratégia de sobrevivência, buscou na vida intelectual um refúgio, um abrigo, o que permitiu sua atuação sobre as coisas, uma compreensão da realidade e a construção de uma identidade subjetiva. Observou em suas pesquisas que muitas negras utilizaram a estratégia de negar sua capacidade intelectual, passaram a ser acadêmicas e não intelectuais para não ter de transgredir de fronteiras (ideias e cultura política). 

A autora defende uma resistência ativa através de trabalho intelectual para garantir o direito a ser intelectual, um trabalho mental ativista em defesa da humanidade dos negros de sua habilidade e capacidade de raciocinar logicamente, pensar coletivamente e escrever lucidamente. Mas, para que haja um trabalho essencialmente intelectual é necessário descolonizar a mente, ser um pensador criativo, dominador e explorador de ideias. Propõe, além disso, não buscar nas estruturas e nem em quem não acredita no trabalho, aceitação, pois o reconhecimento virá de lugares não convencionais. Enfrentar o isolamento e não entrar no modelo burguês, adotar um estilo que apenas agrade a academia é alienar-se, segundo Bell.   

Para ela o que resta fazer é acreditar em si mesmo e na importância do trabalho, apoiar os que chegam, conquistar seu espaço na criação de grupos, trocar conhecimento com não intelectuais, aproximar-se da comunidade, ligar-se ao mundo de fora da academia para enriquecer o senso de comunidade. Utilizar o trabalho intelectual como motivação e defesa para a realização pessoal em função do coletivo, o que, para ela, enaltece fundamentalmente a vida. 

5.2. Antônio Manuel Policarpo da Silva 

Na obra de Policarpo “O Piolho Viajante” o piolho viaja pela cabeça de 72 hospedeiros e conta ao leitor sobre o que se passa nelas e no dia-a-dia de seus donos. Dessa forma, é possível perceber os tipos sociais existentes na sociedade portuguesa do século XIX com os diversos elementos que ajudam nas suas caracterizações.  

Foi publicada em folhetos semanais ou mensais, e escrita de maneira ligeira e popular, sem muita preocupação de estilo. Preenchia o tempo ocioso dos leitores, divertia, ironizava os costumes, informava e era bem vendida para o povo. No século XIX com a forte influência do pensamento racional científico esse tipo de narrativa era considerada “ingênua” e “grosseira”, pois não obedecia ao padrão literário da época e passou a ser reconhecida pela elite letrada como literatura marginal, secundária, sem valor.             

Policarpo, mesmo limitado ao contexto social em relação à falta de reconhecimento institucional, consegue produzir sua obra e conquistar um grande público. Isso demonstra a presença de um poder, pois ele age, interfere e altera o curso de uma sequência. O autor conquistou o seu próprio espaço e reconhecimento sem ter de se adequar ao que para a época era literatura de qualidade. Com o passar dos anos a própria academia reconheceu o seu valor literário, este reconhecimento mostra que o padrão de valorização das formas simbólicas é mutável que recebe influência do meio social e do tempo.    

 Atualmente “O Piolho Viajante” é não é apenas um importante documento de estudo para a literatura em relação aos debates em torno de romance, gênero, formas e temáticas, serve também como retrato histórico e como ponto de partida para uma reflexão sobre a contemporaneidade. 

5.3. Oswald de Andrade 

No Manifesto da Poesia Pau-Brasil ele fala de uma redescoberta do Brasil, de um país que deve ser visto de dentro pra fora, avesso ao pedantismo e que valoriza a originalidade nativa. Faz crítica ao processo de industrialização como cópia e perda da originalidade. Propõe uma reação à cópia, à cultura europeia que invadiu as terras brasileiras e massacrou as influências culturais pertencentes aos povos da terra, aos indígenas. Em alguns trechos, Oswald deixa evidente sua estratégia antropofágica, que é mergulhar em si mesmo, em suas referências culturais, auto-valorização do que foi reprimido, resgate da cultura nativa.  

Uma outra perspectiva. 

A outra, a de Paolo Ucello criou o naturalismo de apogeu. Era uma ilusão ótica. Os objetos distantes não diminuíam. Era uma lei de aparência. Ora, o momento é de reação à aparência. Reação à cópia. Substituir a perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra ordem: sentimental, intelectual, irônica e ingênua.  (Correio da Manhã, 18 de março de 1924; p.8)     

Nesse trecho Oswald fala sobre a proposta Pau-Brasil mostra uma reação á cópia, uma crítica à industrialização e a necessidade de resgatar o sentimento, a atividade intelectual, a ingenuidade, características que começaram a ficar escassas após a absorção da cultura moderna, até a arte passou a perder a sua originalidade.   

Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores. (Revista de Antropofagia, Ano I, n°I, maio de 1928; p.15) 

Aqui ele também faz uma crítica ao pensamento programável ao mundo reversível e objetivo. As ideias cadaverizadas, podres vermes, estáticas, mortas. Contra o pensamento parado que não avança, que apenas repete, a favor do dinamismo. Retrata o indivíduo como sujeito alienado, vítima do sistema, das injustiças, esquecido de suas conquistas interiores, do seu potencial. Na página 18 ele ainda complementa: “Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada” pode-se dizer que Oswald é favor do intelectual, um ser que atua a favor da resignificação, da descoberta de si e da experiência pessoal renovada, que dá movimento ao que se tornou estático, imutável, absoluto.  

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

As características sociais dos contextos dentro dos quais os indivíduos agem e interagem não são simplesmente restritivas e limitadoras, são também produtivas e capacitadoras. Uma delas é o exercício do poder, que é a capacidade de agir na busca de seus próprios objetivos e interesses, o poder de agir, intervir e alterar o curso de uma sequência de eventos.  

 Hooks, Policarpo e Oswald passam por questões semelhantes em relação ao enfrentamento de uma cultura dominante e excludente. Eles possuem ideias revolucionárias que propõem a abertura de pensamento na sociedade em que fazem parte. Hooks é discriminada por ser mulher, negra e por querer ser uma intelectual; Policarpo desvalorizado pela sua escrita criativa, crítica e popular; Oswald propõe o resgate da cultura nativa, da brasilidade.    

As estratégias utilizadas por eles percorre um caminho parecido, uma delas é o desinteresse em ser reconhecido pelas instituições de poder e de ingressá-las. Desejam a conquista de um espaço próprio na sociedade aproximando-se da comunidade que os oferecem apoio, possuem uma linguagem avessa ao pedantismo e o desejo de aproximarse do coletivo para ajudá-lo no desenvolvimento de suas faculdades intelectuais e da invenção. Mas, para o alcance dos objetivos, na visão deles, é importante à construção de sua própria identidade, de seu estilo, resgatar os valores que foram empoeirados pela cultura de mercado, hegemônica e elitista.   

Esses autores exerceram e exercem em épocas e sociedade distintas um papel relevante, a implantação da alteridade, da conquista de um outro espaço de produção e interação social alternativo e respeitado. A busca pela humanização de uma cultura predominantemente técnica e excludente, críticos culturais a favor de uma sociedade mais justa, suportável e menos alienada.  

As experiências de Oswald e Policarpo revelam que a vida em sociedade, portanto é um processo dinâmico, assim como há o previsível há também o imprevisível, o improviso, o acaso, as ramificações, o diferente, consequência de inquietações, manifestações e conquistas coletivas.  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

ANDRADE, Oswald de. Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifesto da Poesia Pau-Brasil, 1924. p.4-19. 

BIGNOTO, Cilza Carla. 2002. Unicamp. O Piolho Viajante. Disponível em: http://www.unicamp.br/iel/memoria/MargensdoCanone/Piolho/index2.htm > Acesso: 11 de setembro de 2014.  

HOOKS, Bell. Intelectuais Negras. Tradução Marcos Santarrita,1995. p.464- 478. 

MESQUITA, Antônio Pedro. 2009. Universidade de Lisboa – Portugal. O Pensamento Socialista em Portugal no século XIX. Disponível em: http://www.ufsj.edu.br/portal2repositorio/File/revistaestudosfilosoficos/art7-rev3.pdf >Acesso:11 de setembro e 2014. 

SALES, Germana Maria Araújo. 2007. Universidade Federal do Pará. Circulação de Romances no século XIX. Disponível em: http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/sem17/COLE_1360.pdf > Acesso: 11 de setembro de 2014. 

THOMPSON, John B. Capítulo III. O conceito de cultura. Ideologia e cultura moderna: Teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. p.163 – 215.   


1Artigo apresentado ao professor Dr. Roberto Henrique Seidel como requisito de nota para a disciplina Literatura e Cultura Política do Programa de Pós-graduação em Crítica Cultural da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).