EDUCAÇÃO PARA A SOBREVIVÊNCIA HUMANA: LIÇÕES DA BIOÉTICA GLOBAL DE VAN RENSSELAER POTTER E DA PEDAGOGIA DE PAULO FREIRE

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7831448


Viviane Hanshkov


RESUMO

Este artigo tem como objetivo analisar os pontos convergentes entre a bioética global de Van Rensselaer Potter e a pedagogia de Paulo Freire sobre educação para a sobrevivência humana. Por meio de uma pesquisa bibliográfica, de caráter analítico-interpretativo, buscou-se responder como a bioética global de Potter e a pedagogia de Paulo Freire convergem para a educação voltada para a sobrevivência humana e transformação social. Como resultado, verificou-se que os pensamentos de Potter e Freire têm convergência quanto ao caráter dialógico que deve estar presente no processo educativo, que requer um diálogo horizontal entre educador e educando, uma nova forma de ser e pensar para o enfrentamento dos desafios sociais e políticos e para a preservação dos valores da vida e do futuro. 

PALAVRAS-CHAVE: bioética, educação, sobrevivência humana, Potter, Freire.

ABSTRACT

This article aims to analyze the converging points between Van Rensselaer Potter’s global bioethics and Paulo Freire’s pedagogy about education for human survival. Through a bibliographical research, with an analytical-interpretative character, we sought to answer how Potter’s global bioethics and Paulo Freire’s pedagogy converge towards education focused on human survival and social transformation. As a result, it was found that Potter and Freire’s thoughts converge on the dialogic character that must be present in the educational process, which requires a horizontal dialogue between educator and student, a new way of being and thinking to face social challenges. and political and for the preservation of the values of life and the future.

KEYWORDS: bioethics, education, human survival, Potter, Freire.

1 INTRODUÇÃO

A educação, consagrada como direito fundamental e integrante da Declaração Universal dos Direitos Humanos [1], é um instrumento de mudança e transformação social, quando voltada para a expansão da personalidade e para o desenvolvimento humano. O processo de aprendizagem pode não só transformar o indivíduo, mas a realidade que o cerca. Desenvolver as capacidades individuais e coletivas, por meio da educação, é pensar na sobrevivência da humanidade, a qual precisa ser sustentável e mais justa diante dos desafios ambientais, sociais, econômicos e políticos.

A educação para essa sobrevivência sustentável requer uma nova forma de ser e de pensar, assim como propõem Paulo Freire, com sua pedagogia libertadora, e Van Rensselaer Potter com a bioética global. A intenção deste trabalho é refletir e analisar como ambos convergem para uma educação voltada para o desenvolvimento humano, construindo uma sobrevivência humana aceitável, de forma a extrair lições de suas teorias.

Como exemplo de transformação social pela educação, a experiência de Angicos servirá de referência às perspectivas deste trabalho. Angicos, cidadezinha de 10.000 habitantes no Rio Grande do Norte, foi um projeto de alfabetização de adultos em 40 horas, que nasceu de acordos e alianças políticas entre países do continente americano, a partir de 1960, em prol do desenvolvimento social e econômico, que tinha dentre seus objetivos a eliminação do analfabetismo.

Segundo Antonia Terra (CALAZANS, TERRA, 1994), a proposta de uma nova educação, como a da experiência de Angicos, adiante denominado método Paulo Freire, só foi possível devido à conjuntura política e social da época, a dizer que havia interesses políticos nas urnas e eleições que estavam próximas. 

Antonia Terra (CALAZANS, TERRA, 1994) relata que Angicos inaugurou o conceito de dialogismo na aprendizagem. Foi a primeira experiência, na história da educação, de relação dialógica entre professor e aluno, em que são valorizados tanto o conhecimento e a fala do professor, quanto a cultura e a fala do aluno, num processo em que ambos ensinam e aprendem e constroem o saber. O saber erudito e formal unido ao saber popular revolucionou as perspectivas de educação e o processo de aprendizagem, constituindo-se uma nova proposta educacional e uma alternativa de mudança nas políticas de ensino.

“Angicos nasceu de um ideal aliado a uma possibilidade de realização. Brotou de um somatório de sonhos, de recursos, de vontades contraditórias e de políticas mais amplas” (CALAZANS, TERRA, 1994, p.10).

Em setembro de 1962, teve início o processo de alfabetização de adultos em 40 horas utilizando a proposta pedagógica e metodológica do Professor Paulo Freire. Os primeiros passos foram pesquisar a realidade econômica e social da população, levantar o universo vocabular, levantar o perfil socioeconômico da população e matricular os alunos. Havia 75% de analfabetos entre a população com idade superior a 14 anos (CALAZANS, TERRA, 1994).

“Segundo o relatório do Secern, a pesquisa verificou que a população era acomodada, conformada, indiferente e fatalista” (CALAZANS, TERRA, 1994, p.150).

Antonia Terra, ao comentar o artigo escrito por Paulo Freire para a Estudos

Universitários, sob o título “O Professor universitário como educador”, relata que para ele “o homem é um ser cultural, que discerne e transcende o tempo” (CALAZANS, TERRA, 1994,

p.152). O professor precisa ter consciência dos problemas sociais e políticos a sua volta, não é mero transmissor de conhecimento, mas um recriador de comunicação e formador de sujeitos da sociedade. O docente, consciente da realidade, deve estabelecer um diálogo com seus alunos, num processo de busca de conhecimento, em que todos são sujeitos da história e, por isso, a construção do saber deve estar integrada à realidade temporal, espacial e contextual, e só é possível pelo diálogo (apud CALAZANS, TERRA, 1994).

Baseado nesta concepção, o programa de alfabetização em Angicos estava pautado em debates em forma de diálogos, com objetos e problemas reais e acompanhados de material audiovisual, transformando uma questão existencial em um pensar crítico. Assim, o objetivo era atingir um diálogo ativo e crítico, desafiando os alunos a tomarem uma posição crítica perante sua realidade e, pela conscientização, alcançarem uma educação libertadora.

Conforme narrado por Antonia Terra (CALAZANS, TERRA, 1994), em todas as reuniões que os educadores e colaboradores faziam, durante o programa, havia uma orientação uníssona que era dialogar sempre. O dialogismo estava presente no Círculo de Cultura ou Círculo de Debates, entre educadores e alunos, numa interação em que interlocutores têm igual importância e valor, prescindindo das cartilhas do método convencional.

No método Paulo Freire, segundo afirma Antonia Terra (CALAZANS, TERRA, 1994),  a alfabetização não era um fim, mas um meio para adquirir pensamento crítico, cultura e uma aprendizagem e visão global acerca da realidade e do mundo. O método partia do pensamento indutivo e, através de processos psicológicos, possibilitava atitudes intuitivas e participação ativa dos alunos, já que a relação entre professor e aluno era coletiva e dialógica. O processo de aprendizagem nesta metodologia propiciava um engajamento local, regional e nacional, o que levou Paulo Freire a escrever o artigo “Conscientização e alfabetização – uma nova visão do processo”. 

O método Paulo Freire, portanto, baseado na realidade local, construía uma conscientização política global, pela qual o aluno se descobria como sujeito da sociedade e como construtor ativo do mundo, de forma a valorizar o conhecimento e se interessar por outras formas de saber.

A pedagogia de Freire não se contenta em apenas ensinar a ler e escrever, mas busca uma mudança no indivíduo, na compreensão que ele tem de si mesmo e do mundo. Por meio de um método participativo, os educandos se envolviam com o processo de conscientização e se comprometiam com o processo de aprendizagem. Pela aprendizagem dialógica é possível transformar os níveis de conhecimento e a formação sociocultural, bem como transformar a si mesmo (AUBERT et al., 2010).

Com a valorização do processo de conhecimento contextualizado, o método Paulo Freire assumia a perspectiva do educando e isso permitia adaptar os conteúdos às situações reais e concretas que existiam na vida do aprendiz, que faziam parte do seu cotidiano e de forma contextualizada às circunstâncias biopsicossociais. O processo educativo com tais premissas epistemológicas possibilitava uma educação libertadora e comprometida com o desenvolvimento humano. Essas premissas estão presentes tanto na pedagogia de Paulo Freire, quanto na bioética global de Potter, cujos fundamentos teóricos são verdadeiras lições para a humanidade. 

2 LIÇÕES DA BIOÉTICA GLOBAL DE POTTER 

Potter (2016) ao falar do futuro e do progresso humano, reflete sobre a definição de progresso que, sendo ele um movimento para alcançar um objetivo, então é necessário pensar qual é esse objetivo e para onde a humanidade quer ir e por qual caminho pretende chegar. É nesse sentido que Potter propõe que o progresso e a sobrevivência dependem de uma ponte para o futuro. 

Para isso, segundo Potter (2016), precisamos de educação e de mais pessoas educadas. Sua principal tarefa é compreender que existe o conhecimento e que este pode ser tornar perigoso quando aplicado erroneamente. É preciso associar as ciências às humanidades. Uma vez descoberto o conhecimento, é preciso encontrar a sabedoria para lidar com novos conhecimentos que têm impactos sobre a humanidade e sua sobrevivência. 

Faz parte da árvore do conhecimento ter consciência do que sabe e também do que não sabe, sendo ideal para o desenvolvimento das capacidades humanas o ambiente que induz o indivíduo a procurar o conhecimento continuamente, bem como desafios físicos e mentais, e respostas adaptativas (POTTER, 2016). A evolução cultural ocorre quando o conhecimento armazenado com conceitos, imagens e abstrações é recriado e modificado consciente ou inconscientemente.

Potter (2016) define a sabedoria como a disciplina para a ação, ou seja, é a capacidade de usar o conhecimento para o bem social, para o melhoramento da sobrevivência da espécie humana e meio ambiente. É promover a sobrevivência com melhor qualidade de vida. Para isso, a civilização mundial terá de fazer um pacto ou acordo pautado em valores comuns, sobretudo reconhecendo que sua sobrevivência requer assumir obrigações perante as gerações futuras.

Potter (2018), ao refletir sobre o termo “sobrevivência”, focaliza a questão do futuro no tempo e quanto à forma de existência no planeta. Descreve os cinco tipos de sobrevivência que se aplicam ao indivíduo, às comunidades, às organizações e corporações e aos governos. Em sua visão, há cinco adjetivos que categorizam a sobrevivência: mera, precária, idealista, irresponsável e aceitável.

A mera sobrevivência é aquela em que se tem abrigo e alimento, contudo não há bibliotecas, engenharia, ciência, hospitais, história escrita. A sobrevivência precária está abaixo da mera sobrevivência, sendo o retrato da fome e da desnutrição, da morte por inanição tal como ocorre na África, das doenças e infestações parasitárias (POTTER, 2018).  

A sobrevivência idealista, que Potter (2018) prefere não chamar de ideal, é aquela em que grande parte da sociedade tem segurança econômica e as pessoas se sentem motivadas, pelo conhecimento e consciência ética que têm, a pensar no futuro planetário, no sentido de buscar a eliminação dos principais problemas que afligem a humanidade, como as doenças sexualmente transmissíveis, doenças parasitárias, desemprego, poluição ambiental, inflação, erosão do solo, num exercício interdisciplinar de democracia. Para isso, Potter (2018) diz que é necessário escutar a voz tanto da minoria quanto da maioria e destaca uma conclusão feita por Aldo Leopold (1987, p. 225) em um de seus ensaios: “O mecanismo de operação é o mesmo para qualquer ética: aprovação social para ações certas; desaprovação social para ações erradas”.

A sobrevivência irresponsável, segundo Potter (2018), é o inverso da sobrevivência idealista, ou seja, é o não reconhecimento de obrigações perante o futuro e nenhum desejo de ajudar os outros em detrimento do interesse próprio. “No campo da agricultura, é irresponsável usar práticas agrícolas que aceleram a erosão do solo, ou usar técnicas de bombeamento de poços profundos que provocam o rebaixamento progressivo do nível freático” (POTTER, 2018, p. 76).

Potter (2018) ainda enfatiza que os piores resultados de uma sobrevivência irresponsável são a ignorância, a superstição e o analfabetismo, que impedem a esperança de um futuro melhor para as próximas gerações. Se crianças não puderem ler, escrever e desenvolver o pensamento crítico e um entendimento ético sobre o mundo natural, não poderão se tornar ou escolher líderes comprometidos com a sobrevivência do planeta. Potter

(2018, p.79) destaca uma frase dita por Leopold: “Talvez o obstáculo mais sério que impede a evolução de uma ética da terra seja o fato que nosso sistema educacional e econômico é direcionado para um afastamento, e não uma aproximação, de uma consciência intensa da terra.” 

Por fim, Potter (2018) conceitua a sobrevivência aceitável e cita o livro “Construindo uma Sociedade Sustentável” de Lester R. Brown, que segundo Potter, insistiu na necessidade de reflexão e ação acerca da preservação do mundo natural para uma sobrevivência aceitável, que o autor chamou de “sociedade sustentável”.  Potter relata que o livro de Brown é para ele uma descrição da sobrevivência aceitável e cita o que, para o autor, seria um resumo da situação atual: “Não herdamos a terra de nossos pais; nós a tomamos emprestada de nossos filhos” (apud POTTER, 2018, p.80).

3 LIÇÕES DA PEDAGOGIA DE PAULO FREIRE

Freire (2022a) propõe uma educação problematizadora, baseada na dialogicidade. A educação, segundo Freire, tem duas dimensões: ação e reflexão. A ação, ao excluir ou minimizar a reflexão, impede o diálogo e os homens não se fazem no silêncio, mas pronunciando o mundo por meio das palavras, do trabalho, da prática verdadeira. Ao pronunciar o mundo, o diálogo não se circunscreve entre o educador e o educando, mas abrange o refletir e o agir perante a realidade e o mundo em que vive, dando significação às coisas e transformando-as, não sendo mero receptor de ideias.

Freire (2022a) explica que o diálogo é um ato de criação e recriação e, por isso, precisa de amor. Para pronunciar o mundo é preciso amar o mundo e as pessoas, pois o amor é compromisso e coragem, é comprometer-se com a libertação. A libertação, por sua vez, é amorosa e dialógica. Não há diálogo, ainda, se não houver humildade. Se o diálogo parte do princípio de que somente uma categoria de homens pode pronunciar o mundo e se sente autossuficiente, será uma farsa. O homem dialógico, segundo Freire (2022a), é um homem que tem fé, amor, esperança e confia no diálogo horizontal. O diálogo é incompatível com a negação do humanismo, com a manipulação paternalista e com a intenção de silenciar o povo.

Na visão de Freire (2022a), a ordem injusta decorrente da desumanização não deve eliminar a esperança, mas restaurá-la e fortificá-la para que possa recuperar a humanidade. A esperança é alimentada pelo diálogo, não vazio e estéril, mas o que leva ao pensamento crítico e à transformação da realidade.

Segundo Freire (2022a), não há educação verdadeira sem diálogo, e a prática da liberdade decorre da dialogicidade. Esse diálogo exige inquietação sobre o conteúdo programático da educação, que não deve ser uma doação ou imposição, mas uma construção sistematizada e organizada dos elementos criados e debatidos pelo educador com o educando, e não depositados no educando pelo educador.

Freire (2022b) critica a posição de observador imparcial, pois este estaria distante da posição ética. Explica que o observador assim observa sob uma perspectiva ou ponto de vista e, nem sempre a razão ética está nesse ponto de vista, que pode demonstrar um acerto, mas não deve ser absoluto. Na prática educativa, educadores e educandos precisam entender o papel da eticidade e não podem escapar de seu rigor, deixando a ética universal do ser humano em segundo plano. A transgressão de princípios éticos não pode ser aceita, ainda que seja possível, pois é um desvalor.

A ética universal do ser humano é uma marca da natureza humana e necessária à convivência humana (FREIRE, 2022b). “Não podemos nos assumir como sujeitos da procura, da decisão, da ruptura, da opção, como sujeitos históricos, transformadores, a não ser assumindo-nos como sujeitos éticos” (FREIRE, 2022b, p. 19). No domínio de tais condutas e ações encontram-se a ética e a responsabilidade.

Conforme explica Freire (2018b), a existência humana envolve a linguagem, a cultura e a comunicação em diferentes níveis e, dependendo da complexidade e do quão espiritualizado o mundo, ao homem é possível embelezar ou enfear o mundo, cabendo-lhe decidir, romper, escolher e agir, sendo estes, portanto, atributos da ética. “Só os seres que se tornarem éticos podem romper com a ética” (FREIRE, 2022b, p. 51).

Freire (2022b, p. 53) deixou clara sua posição quanto a ser gente, quando afirma “minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta, mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também da história”.

É o reconhecer-se como ser inacabado que faz com o indivíduo se sinta inserido no mundo e num processo contínuo de busca de conhecimento. Quando se tem consciência do próprio inacabamento, a responsabilidade é assumida ao mesmo tempo em que a eticidade se torna presente. É por isso que não é possível dissociar os saberes instrumentais e a formação técnica e científica da formação ética (FREIRE, 2022b). Ainda, segundo Freire (2022c, p. 157), “nenhuma sociedade se afirma sem o aprimoramento de sua cultura, da ciência, da pesquisa, da tecnologia, do ensino”.

Para que o ser humano compreenda que está inserido no mundo em permanente movimento, significa tratar de sua realidade, de seus sonhos, de suas vontades, de seus medos. Significa estar com os outros, poder falar, cantar, filosofar e se politizar. Essa consciência do inacabado e incompleto é que torna o ser humano educável (FREIRE, 2022b).

A consciência de ser inacabado, conforme explica Freire (2022b), é que ligou o ser humano à ética e esta, por sua vez, lhe revelou o dever de tratar os outros com dignidade e respeito, sendo a atitude contrária considerada uma transgressão. Na relação entre educador e educando não há espaço para transgressão, a qual ocorre quando o professor ironiza o aluno, desrespeita sua curiosidade e sua inquietude, quando sufoca sua liberdade e agride sua autonomia. A dialogicidade verdadeira, segundo Freire (2022b), é instrumento para que todos ensinem e aprendem com e pelas diferenças, sem desrespeito e autoritarismo, e sem transgredir a ética. 

Freire (2022c, p.83) diz que “a educação é um ato político”. Em sua concepção, a democracia só é vivenciada em sua plenitude se as pessoas tiverem respeitado o seu direito de falar, de pensar criticamente, de pensar diferente, de ter voz e de atuar na sociedade. Atuar ou ser sujeito da sociedade é criar relações com os outros, com as coisas e objetos, é ter experiência histórica e social a partir da experiência existencial. 

A partir da curiosidade se experimentam as coisas e se faz descobertas. “Fazer ciência é descobrir, desvelar verdades em torno do mundo, dos seres vivos, das coisas, que repousam à espera do desnudamento (…)” (FREIRE, 2022C, p. 105). 

Para conviver com as diferenças e compreendê-las com respeito, é preciso tolerância, que, para Freire (2022c) é uma virtude. No processo educativo é preciso unir tolerância à humildade e à amorosidade. O professor deve ensinar, não como mero transmissor de conhecimento, mas como cocriador do conhecimento junto com seu aluno, pois ambos o criam e o recriam permanentemente. 

4 METODOLOGIA

Para a elaboração deste trabalho foi realizada uma busca sistematizada do conhecimento sobre o tema, mediante consulta ao banco de dados da Scielo e base de dados do Periódicos CAPES e Google Acadêmico, usando como palavra-chave “Freire e Potter”, e o período dos últimos 5 anos, contudo, não havendo resultados, o período foi expandido para 2007 a 2022. Foram filtrados os artigos em português, espanhol e inglês, periódicos revisados por pares e com acesso livre ou aberto. Após leitura dos resumos, foram selecionados para revisão os artigos que se relacionaram ao problema da pesquisa, tendo como fonte teórica as obras de Paulo Freire e Van Rensselaer Potter.

5 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Ao analisar a bioética de Potter e a pedagogia de Freire, Barrera (2018) estabelece interações entre elas e comenta que ambas buscam compreender a situação social complexa em que se encontra a humanidade, tentando resgatar o ser humano e a sociedade para o centro da vida e para a transformação.

A transformação é o que dá sentido à aprendizagem ou, como preconiza Aubert et al. (2010), a aprendizagem existe para a transformação, a fim de promover mais igualdade e reduzir as desigualdades. Partindo da experiência de Angicos, é possível ver essa transformação acontecer por meio da educação, onde indivíduos analfabetos e arrolados como acomodados e fatalistas, ganharam autoconfiança e se reconheceram como sujeitos da sociedade, com a consciência despertada e libertada.

Da análise de Sanchez (2013) sobre as teorias de Potter e Freire, é possível extrair as seguintes premissas coincidentes:

a) incerteza do conhecimento, reconhecendo que o conhecimento pode estar errado ou incompleto;

b) sabedoria para gerir o conhecimento e agir adequadamente com humildade e responsabilidade;

c) caráter dialógico da educação em busca da verdade, com base em relações horizontais de poder e na problematização contextualizada;

d) transdisciplinaridade do processo educativo, com diferentes saberes em busca da verdade e pessoas de diferentes culturas;

e) a conscientização e o desenvolvimento humano contribuem para o desenvolvimento social, local e global.

A incerteza do conhecimento, como um aspecto em comum entre Potter (1988) e Freire (1969), é confirmada na análise de Delgado Diaz (2010), que explica que para Potter há uma incerteza perante o futuro e a sobrevivência a longo prazo e para as futuras gerações, que requer a busca pela sabedoria. Freire reconhece a incerteza sob o aspecto antropológico, ressignificando a educação pela emancipação, abordando o lado político da educação. Ao emancipar-se pela educação, o indivíduo não elimina a incerteza, mas poderá administrá-la pelo processo de aprendizagem contínua e permanente.

Ambos, segundo Sanchez (2013), reconhecem a incerteza como elemento da produção do conhecimento, no sentido de que cientistas e educadores não têm o conhecimento ou verdade absoluta e, por isso, suas teorias podem falhar ou estar erradas e, para corrigi-las, precisam de outras perspectivas e do conhecimento alheio. Assim, o conhecimento alheio deve ser respeitado e nenhum conhecimento pode ser ignorado ou subestimado, sendo indispensável agir com humildade e responsabilidade.

Tanto Freire quanto Potter, na análise de Sanchez (2013), têm teorias e propostas antagônicas ao modelo clássico de produção do conhecimento. Ambos criticam a relação de poder e dominação que não reconhecem a necessidade de considerar a diferença de culturas, saberes, credos, concepções e ideias sobre a realidade. Ambos defendem o caráter democrático do sistema educacional, no qual não há superioridade ou dominação de uns sobre outros, e todos os saberes merecem ser respeitados já que todos são atores sociais. O círculo de debates aplicado em Angicos é um exemplo desse caráter democrático e relação de poder horizontal.

No mesmo sentido, Delgado Diaz (2010) baseado no pensamento de Paulo Freire, afirma que o problema educacional está ligado ao poder, que determina a inclusão e exclusão social. Educação está atrelada ao poder, assim como a dominação determina a reprodução social e a exclusão. Assim, ele conclui que a educação tem problemas metodológicos e pedagógicos, contudo os principais problemas são éticos e políticos, que permeiam contextos em que persistem a miséria, a exclusão social, a concentração de poder e a pobreza.

Segundo Barrera (2018), tanto para Potter quanto para Freire, a desumanização da sociedade exige reflexões profundas que tenham por fim melhorar o ser e o estar na vida e isso requer um diálogo de saberes que leve a um processo de transformação e de conscientização sobre o cuidado com a vida e os seres vivos. Ambos trabalham pela e para a vida e defendem que o indivíduo deve se capacitar para sua própria sobrevivência e para cuidar da natureza.

Para a bioética, a educação deve ser humanista e exige um ambiente propício à pesquisa e que permita a construção do conhecimento, por meio do diálogo interdisciplinar, a partir de fatos reais e dilemas típicos da humanidade, num processo interativo de aprendizagem, onde são levados em consideração as circunstâncias socioeconômicas e culturais (BARRERA, 2018).

Freire também propõe uma educação baseada nas necessidades integrais da pessoa, que permita interações entre teoria e prática, com base no contexto da realidade e das estruturas sociais, visando proporcionar liberdade como poder de transformação (BARRERA, 2018)

Segundo Barrera (2018), tanto Potter quanto Freire afirmam que a educação é um processo humano que exige interação, o qual permita reflexão, consciência do mundo real onde habitam as pessoas. A interação se dá por meio de um diálogo conciliatório e legítimo, gerador de debate, em que valores humanos como justiça, autonomia e liberdade sejam objeto do pensamento crítico.

Ambos acreditam que humanizar o conhecimento é colocá-lo a serviço da humanidade, é usar o conhecimento para melhorar a condição humana. Essa humanização do conhecimento, assim como ocorreu em Angicos, requer a adaptação de conteúdos, da aprendizagem, das pedagogias, para que se ajustem à realidade social do indivíduo e ao seu contexto de vida, para que assim se sinta comprometido com a vida e com os direitos humanos. Somente tendo um conhecimento responsável e crítico sobre a própria realidade é que o educando e agente da sociedade assumirá o compromisso de transformá-la (BARRERA, 2018).

Para Delgado Diaz (2010), tanto Potter (1988) quanto Freire (1969), além de reconhecerem a incerteza do conhecimento, valorizam e exigem a humildade cognitiva, o ato de encarar de forma crítica o conhecimento e a dualidade ciência-valor, propondo uma renovação no ensino e na educação, de forma a possibilitar, com responsabilidade, uma ação transformadora da sociedade e da humanidade.

Ao criticar a dualidade ciência-valor, Potter (1988) reforça a necessidade de uma mudança no objeto da ciência, no sentido de que não lhe cabe dizer somente como é o mundo, mas explicar como usar o conhecimento em benefício da humanidade. Observa que Freire (1969) também enfatiza a importância do pensar na relação ciência-valor, que deve estar associada às circunstâncias sociais e históricas, voltada para o desenvolvimento social e embasada no diálogo, que é o recurso capaz de gerar transformação (apud DELGADO DIAZ, 2010).

Potter (1988), defendendo uma ciência humilde e responsável, sinaliza a incorporação da questão ética em seu objeto, enquanto Freire (1969), propondo uma pedagogia responsável, preconiza a visão crítica da realidade e a problematização do mundo social, de forma a construir e reconstruir novas visões e novas relações que permeiem o pedagógico, o político, o ético e o estético. Nesse sentido, ambos propõem uma nova educação, que seja dialógica, contextualizada, libertadora quanto à ética e à política, crítica e responsável quanto a sua capacidade de transformação. Enquanto para Potter (1988) a ciência exige humildade para reconhecer que é possível estar errado, para Freire (1969) a humildade é necessária para reconhecer que o ser humano é um ser inacabado e, por isso, precisa da ação educativa (apud DELGADO DIAZ, 2010). 

Sanchez (2013), ao analisar as teorias de Potter e de Freire, identificou coincidências acerca do desenvolvimento e sobrevivência humana. Freire, sob a perspectiva do oprimido, propõe desenvolver o conhecimento e despertar valores para alcançar a libertação perante o que lhe oprime e impede a condição humana. Para Freire, o desenvolvimento humano decorre da evolução econômica, política e social da sociedade. Potter, no mesmo sentido, traz a concepção de mera sobrevivência e sobrevivência miserável que decorrem das relações sociais que fazem parte da realidade dos países, muitas vezes decorrentes do mau uso do conhecimento. Para Potter, o desenvolvimento humano está presente nas diferentes dimensões do ser humano que têm longo alcance e precisam do apoio das ações econômicas, políticas e sociais de curto prazo (SANCHEZ, 2013).

Na visão de Delgado Diaz (2010), Freire (1969) reconhece o ponto de vista dos oprimidos, não para apontar vantagem ou desvantagem cognitiva, mas para reconhecê-lo como sujeito social em sua especificidade e potencialidades, dimensionando a educação dialógica, onde todos ensinam e todos aprendem. Assim se forma uma pedagogia orientada para o outro, solidária ao outro.

O desenvolvimento das potencialidades de cada um, rumo ao desenvolvimento humano, só será possível mediante um diálogo de saberes, pois a verdadeira sabedoria será alcançada mediante o diálogo entre todo conhecimento conquistado pela humanidade, entre os diversos saberes. A conquista da sobrevivência humana depende do diálogo reflexivo, presente na ética do discurso de Potter e na educação problematizadora de Freire (SANCHEZ, 2013).

Comparando os pensamentos de Freire (1969) e Potter (1988), Delgado Diaz (2010) explica que ambos coincidem quanto à necessidade de uma mudança educacional, Potter preconizando uma educação bioética-política e comprometida com o futuro e a sobrevivência, e Freire chamando à atenção para uma educação da autonomia libertadora. Esses pensamentos são fontes que contribuem para um novo conhecimento e um novo saber, que têm a mesma direção que é a expansão e mudanças do conhecimento humano.

A educação libertadora é uma ressignificação da educação, conforme preceitua Barrera (2018), é a consolidação de uma educação dialógica e proativa, que permite ao aprendiz refletir sobre as circunstâncias de sua realidade e se reconhecer como sujeito dono de seu próprio ser.

Sanchez (2013), ao tratar dos fundamentos teóricos de Potter e Freire, afirma que a educação universitária segue o modelo tradicional e unidirecional, ou seja, o professor é o sujeito ativo e o aluno o sujeito passivo, o professor explica e o aluno faz ou responde perguntas. Nesse contexto, há pouca adaptação à realidade e às circunstâncias em que o conteúdo é ensinado, sem muita atenção às diversidades de cultura e saberes.

Na visão de Sanchez (2013), o pensamento de Potter se distancia deste paradigma clássico e exige mudanças no processo de ensino-aprendizagem, tal como propõe Paulo Freire em sua pedagogia baseada no diálogo, com respeito mútuo entre professor e aluno, ou educadores e educandos, por meio da adaptação dos conteúdos às especificidades e necessidades do aluno.

A educação para alcançar autonomia e sabedoria exige um ideal comum, que é compreender o seu caráter democrático, dialógico, interdisciplinar e político. Seus ideais serão alcançados quando colocado o conhecimento em benefício da sobrevivência humana, ou seja, é preciso educar para a sobrevivência (SANCHEZ, 2013).

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Há importantes pontos de convergência entre as teorias de Potter e Freire, que parecem direcionar, em comum acordo, para uma educação voltada ao desenvolvimento humano e, por sua vez, que seja capaz de sustentar a sobrevivência da humanidade, nos moldes do que Potter denomina sobrevivência aceitável. A educação, para ambos, tem um poder transformador não só sobre o indivíduo, mas sobre o presente e o futuro.

É possível concluir que experiências como a de Angicos demonstram que movimentos sociais e novas forças sociais, como embriões de transformação, podem emergir a partir da educação e, ainda nos dias de hoje, evidenciam a necessidade de um diálogo de saberes acerca do problema educacional. Angicos mostra que o processo de aprendizagem pode ser simples e eficaz, quando escorado em valores como humildade, empatia, respeito e sob a dialogicidade.

Um diálogo efetivo tem de romper as lógicas da dominação e quebrar os ideais clássicos de racionalidade, pois é essencial aprender com todos e com as diferenças culturais e comportamentais. Nesse sentido, tanto Freire quanto Potter deixaram lições para servirem de norte ou direção, ambos centrados no desenvolvimento humano como ponte para o futuro. 

REFERÊNCIAS

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CHAPARRO BARRERA, Alida. Cultura de paz desde las aulas. Un encuentro entre Potter y Freire. Sociedad y Economía,  n. 35, p. 178-197,  Dec. 2018 . Disponível em: https://doi.org/10.25100/sye.v0i35.7293. Acesso em: 04  Set. 2022.  

DELGADO DIAZ, Carlos Jesús. Diálogo de saberes para una reforma del pensamiento y la enseñanza en América Latina: Morin, Potter, Freire. Estudios 93, v. VIII, pp. 23-44, 2010. Disponível em: https://uh-cu.academia.edu/CDelgadoD%C3%ADaz . Acesso em: 23 mai. 2022.

FERNANDES, Calazans; TERRA, Antonia. 40 Horas de Esperança. O método Paulo Freire: política e pedagogia na experiência de Angicos. Editora Ática: São Paulo, 1994.

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[1] Disponível em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf . Acesso em 09 out. 2022.