DISCOURSE WITHOUT SCIENCE: INCLUSION AT RISK
DISCURSO SIN CIENCIA: LA INCLUSIÓN EN RIESGO
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202508051042
Yandre Karoline Costa Mourão1
RESUMO
Este artigo investiga como a ausência de formação docente em neurociência impacta o discurso pedagógico em contextos de inclusão, especialmente no atendimento a crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Com base em um estudo de caso realizado em uma instituição de educação infantil no sul do Pará, foram analisadas as falas, práticas e representações de professores sobre aprendizagem e funcionamento cerebral. A análise evidencia que a ausência de formação especializada não apenas fragiliza as práticas pedagógicas, mas também conforma um discurso empobrecido, com lacunas conceituais, uso de jargões imprecisos e confusão entre neurociência e senso comum. O texto propõe um deslocamento do foco: não basta analisar o que os professores fazem, é compreender como pensam e falam — e o que isso revela sobre a inclusão.
Palavras-chave: Neurociência, discurso pedagógico, inclusão escolar, formação docente, TEA.
ABSTRACT
This article investigates how the absence of teacher training in neuroscience impacts the pedagogical discourse in contexts of inclusion, especially in the care of children with Autism Spectrum Disorder (ASD). Based on a case study carried out in an early childhood education institution in the south of Pará, teachers’ speeches, practices and representations about learning and brain functioning were analyzed. The analysis shows that the absence of specialized training not only weakens pedagogical practices, but also shapes an impoverished discourse, with conceptual gaps, use of imprecise jargon, and confusion between neuroscience and common sense. The text proposes a change of approach: it is not enough to analyze what teachers do, but we must understand how they think and speak, and what this reveals about inclusion.
Keywords: Neuroscience, pedagogical discourse, school inclusion, teacher training, ASD.
RESUMEN
Este artículo investiga cómo la ausencia de formación docente en neurociencia impacta en el discurso pedagógico en contextos de inclusión, especialmente en la atención a niños con Trastorno del Espectro Autista (TEA). A partir de un estudio de caso realizado en una institución de educación inicial del sur de Pará, se analizaron los discursos, prácticas y representaciones de los docentes sobre el aprendizaje y el funcionamiento cerebral. El análisis muestra que la ausencia de formación especializada no solo debilita las prácticas pedagógicas, sino que también configura un discurso empobrecido, con vacíos conceptuales, uso de jerga imprecisa y confusión entre neurociencia y sentido común. El texto propone un cambio de enfoque: no basta con analizar lo que hacen los docentes, sino que hay que entender cómo piensan y hablan, y qué revela esto sobre la inclusión.
Palabras clave: Neurociencia, discurso pedagógico, inclusión escolar, formación docente, TEA.
1. Introdução
Imagine um professor diante de uma criança que se comunica com gestos repetitivos, evita contato visual e reage com intensidade a certos sons. Agora imagine que esse mesmo professor nunca teve contato com os fundamentos básicos da neurociência, tampouco com estratégias pedagógicas ancoradas em evidências sobre o funcionamento cerebral. O que acontece quando a escola exige inclusão, mas não oferece formação?
Este artigo parte de uma inquietação que se repete, silenciosa, nas salas de aula da educação infantil: como a ausência de formação em neurociência molda – ou limita – o discurso pedagógico em contextos de inclusão? Em vez de mais um texto que reafirma os benefícios da plasticidade cerebral ou da estimulação sensorial (tão amplamente disseminados quanto repetidos), propomos aqui uma análise crítica: quando falta formação, o que emerge no lugar do conhecimento? Discurso vazio? Improviso? Repetição de mitos neuroeducacionais?
Realizamos um estudo de caso em uma instituição pública de educação infantil no município de Marabá-PA, onde observamos práticas docentes, estratégias de ensino para crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e o próprio vocabulário utilizado por educadoras ao falarem de aprendizagem e cérebro. Nossa abordagem combinou observação etnográfica, entrevistas e análise discursiva. O objetivo: entender não só o que se faz, mas como se pensa — ou se evita pensar — sobre neurociência e inclusão.
Os achados foram contundentes: embora as professoras demonstrem interesse em compreender seus alunos, o que se verifica é uma carência profunda de formação que impacta diretamente não só a prática, mas o repertório conceitual com o qual se interpreta o comportamento infantil. Em muitos casos, estratégias pedagógicas são atribuídas a “intuições” ou “experiências passadas”, e o discurso sobre o cérebro aparece diluído em expressões vagas como “ele tem a mente mais fechada” ou “o sistema nervoso dele é diferente”.
Este trabalho se propõe, portanto, a avançar a discussão entre neurociência e educação para além da superfície. Ao invés de reforçar consensos, buscamos interrogar silêncios. Mais do que descrever práticas, interessamo-nos por como o saber (ou a ausência dele) configura o discurso e, consequentemente, a inclusão escolar.
Ao tratar da inclusão apenas como diretriz normativa ou como prática de acolhimento afetivo, corre-se o risco de obscurecer os mecanismos epistemológicos que sustentam — ou comprometem — sua efetividade. Quando a formação docente ignora os fundamentos do neurodesenvolvimento, o que resta é uma pedagogia baseada em improvisos, reforçada por discursos institucionais que promovem uma inclusão mais simbólica do que concreta. O professor se vê, então, diante de um paradoxo: pressionado a incluir, mas desprovido das ferramentas conceituais necessárias para reconhecer, interpretar e intervir com intencionalidade nas trajetórias de aprendizagem de crianças com necessidades específicas. É nesse descompasso entre a exigência institucional e a formação insuficiente que se estrutura a base problemática do discurso pedagógico contemporâneo.
2. Referencial Teórico
Não é novidade que os estudos que abordam a neurociência são antigos. Mas o que permanece em aberto é como esse saber se transforma – ou se perde – quando chega à prática docente sem mediação formativa adequada. Esta pesquisa não busca apenas reafirmar a importância da neurociência na aprendizagem, mas questionar o que acontece quando ela é ausente, distorcida ou mal compreendida no discurso de quem ensina.
A formação docente é, nesse sentido, um eixo central. Como mostram Tardif (2014) e Nóvoa (2009), o saber do professor é construído por múltiplas camadas: saberes experienciais, curriculares, pedagógicos e científicos. Quando a camada científica — neste caso, os fundamentos da neurociência — é negligenciada, o discurso educacional se fragiliza, cedendo espaço a mitos, achismos ou práticas que não dialogam com as reais necessidades das crianças.
Autores como Tokuhama-Espinosa (2010) alertam para a proliferação de neuromitos em salas de aula: crenças pseudocientíficas sobre o cérebro, como a ideia de que usamos apenas 10% de sua capacidade, ou que crianças com TEA têm “bloqueios mentais” intransponíveis. Tais ideias, embora bem intencionadas, muitas vezes orientam práticas pedagógicas equivocadas, mascaradas por uma roupagem científica superficial.
A ausência de formação consistente em neurociência repercute não apenas nas ações, mas principalmente no discurso. Como observamos no campo, é comum que professores tentem explicar o comportamento de crianças com TEA por meio de termos vagos como “mente diferente” ou “cérebro atrasado”, sem compreender os mecanismos de neuroplasticidade ou os fundamentos do desenvolvimento cognitivo. O resultado é um ensino baseado em tentativas, sem clareza conceitual ou estratégia embasada.
Immordino-Yang (2016), propõe uma neurociência educacional, que não pode ser aplicada de forma direta, mas deve ser mediada por formação docente reflexiva, capaz de interpretar, contextualizar e adaptar conhecimentos científicos à realidade da sala de aula.
Ademais, segundo Frith (2008), um dos riscos da aplicação mal orientada da neurociência na educação é a patologização do comportamento. Professores mal formados tendem a identificar comportamentos atípicos como necessariamente patológicos, o que compromete a construção de um ambiente inclusivo e respeitoso às singularidades.
Em contextos de inclusão, essa fragilidade teórica se torna ainda mais evidente. A criança com TEA, frequentemente já marcada por diagnósticos biomédicos, passa a ser vista sob o prisma da “deficiência neurológica”, sem que o professor disponha de ferramentas para compreender como adaptar a linguagem, os estímulos e as relações. A falta de repertório gera um vazio interpretativo — e o vazio é sempre preenchido por improviso ou reprodução de discursos prontos.
A negligência quanto à formação docente em neurociência e inclusão não pode ser interpretada como falha individual. O que se observa é o efeito de políticas que tratam a formação do professor como favor pessoal, e não como dever do Estado. Como argumenta Freitas (2012), há uma transferência da responsabilidade estatal para o esforço pessoal do professor, convertendo a formação em uma questão de escolha, e não de estrutura. Essa lógica reforça desigualdades históricas e sustenta uma pedagogia da improvisação.
Essa lacuna formativa também compromete a capacidade do professor de diferenciar manifestações do desenvolvimento infantil dentro de um espectro de diversidade. Em vez de reconhecer ritmos e estilos de aprendizagem singulares, muitos docentes tendem a enquadrar comportamentos atípicos como desvios ou “problemas” a serem corrigidos. Como aponta Skliar (2003), a escola ainda opera sob um paradigma de normalização, e isso é intensificado quando o vocabulário pedagógico carece de noções fundamentais sobre o funcionamento cerebral. Sem compreender os mecanismos que sustentam a aprendizagem, prevalece a tentativa de ajustar a criança ao modelo escolar — e não o contrário.
A ausência da neurociência no vocabulário docente é também um reflexo de como o conhecimento científico é produzido e circula socialmente. Bourdieu (2001) argumenta que o capital cultural é desigualmente distribuído e que o acesso à linguagem especializada é um dos mecanismos de distinção entre os campos. No caso da docência, isso se traduz na distância entre o que é produzido nas universidades e o que chega à formação básica dos professores. A linguagem da neurociência, por vezes hermética, não é “traduzida” de forma acessível para os espaços escolares, o que resulta em um fosso entre teoria e prática que acaba por inviabilizar o diálogo real entre ciência e educação.
Além disso, há o risco de que, mesmo quando a neurociência é introduzida nos discursos escolares, ela seja instrumentalizada de forma superficial ou normativa. O uso acrítico de conceitos como “plasticidade cerebral”, “funções executivas” ou “neurodesenvolvimento” pode reforçar um tecnicismo descolado da realidade concreta da sala de aula. Como alerta Chervel (1990), a linguagem escolar tende a apropriar-se de conceitos científicos apenas como rótulos legitimadores, sem que haja, de fato, compreensão ou apropriação crítica dos mesmos. Fica evidente que formar professores exige mais do que repassar conteúdos — é preciso fomentar compreensão conceitual profunda e diálogo entre áreas do conhecimento.
Portanto, é fundamental compreender que a linguagem não é apenas um instrumento de comunicação, mas um estruturante da prática pedagógica. Perrenoud (2000) destaca que o modo como o professor fala sobre o aluno revela sua concepção de aprendizagem, suas crenças e expectativas. Quando a linguagem está empobrecida, restrita a termos genéricos ou equivocados, a própria ação docente se limita. Em contextos inclusivos, isso se torna ainda mais crítico, pois é justamente nesse cenário que o educador precisa mobilizar um repertório amplo, sensível e cientificamente fundamentado para reconhecer, valorizar e potencializar a singularidade de cada criança.
Por fim, esta pesquisa parte da premissa de que a formação em neurociência não deve ser um apêndice técnico no currículo docente, mas uma lente de leitura do desenvolvimento humano. Sem ela, o discurso pedagógico se torna frágil, e a inclusão escolar corre o risco de se tornar um ato meramente burocrático, sem potência transformadora.
3. Metodologia
Este estudo adota uma abordagem qualitativa de caráter interpretativo, fundamentada na análise do discurso e na observação participante em contexto real de ensino. O objetivo central não é apenas descrever práticas pedagógicas, mas compreender como os professores discursivizam o aprendizado, o desenvolvimento e o comportamento de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) à luz – ou à sombra – da ausência de formação em neurociência.
A investigação foi realizada em um Núcleo de Educação Infantil (NEI) da rede pública municipal de Marabá-PA. A instituição atende crianças de três a cinco anos de idade, organizadas em turmas de creche e pré-escola. Dentro deste cenário, foi escolhida uma turma da Pré-Escola I, composta por 22 crianças, entre elas um aluno com diagnóstico formal de TEA.
Optamos por um estudo de caso com inserção etnográfica: durante cinco dias letivos, acompanhamos de forma imersiva a rotina pedagógica da turma, com foco na atuação da professora regente e da auxiliar pedagógica. Foram realizadas observações sistemáticas, registros de campo e entrevistas semiestruturadas com a professora, com o objetivo de captar não apenas o que se faz, mas como se fala, se compreende (ou se evita) a neurociência no cotidiano escolar.
Além disso, aplicamos um questionário que investigou aspectos da formação profissional, carga horária, uso de estratégias adaptativas e compreensão teórica sobre desenvolvimento neurológico e aprendizagem infantil. A análise dos dados considerou tanto os conteúdos objetivos quanto às expressões linguísticas, metáforas, silêncios e ambivalências presentes no discurso docente.
A escolha por este recorte metodológico se justifica pela natureza discursiva do problema investigado. Inspirados em Fairclough (2001), compreendemos o discurso como prática social e ideológica, capaz de revelar estruturas invisíveis de poder, saber e exclusão. Nesse sentido, interessa-nos menos a aplicação de protocolos técnicos e mais a compreensão das representações mentais que os educadores constroem – e expressam – sobre o cérebro, o aprender e o aluno atípico.
A professora observada possui formação em Pedagogia e especialização em Educação, Diversidade e Direitos Humanos. Atua há dois anos na instituição, com experiência de seis a dez anos na docência. A auxiliar pedagógica, por sua vez, está em formação inicial e foi contratada via serviço terceirizado, sem preparo específico para atuar em contextos de inclusão.
O aluno com TEA, foco central da análise, apresentou dificuldades de comunicação verbal, resistência às atividades escolares e forte dependência de mediação adulta. Durante o período de observação, foram registradas interações pedagógicas que evidenciaram tanto o esforço da professora em promover a inclusão quanto os limites impostos pela ausência de formação especializada. Chamou atenção, sobretudo, o vocabulário utilizado para descrever o comportamento da criança: termos como “complicado”, “fechado”, “muito diferente” surgiam com frequência, muitas vezes sem ancoragem em referências científicas.
Ao longo das observações, buscou-se compreender como essas representações influenciam as decisões pedagógicas, a forma como o planejamento é estruturado, a escolha dos recursos didáticos e o tipo de expectativa construída em relação ao potencial de aprendizagem da criança com TEA.
Além da observação e da escuta atenta, o processo metodológico envolveu uma postura reflexiva contínua. Partindo do entendimento de que todo pesquisador interfere no campo que investiga, adotamos um posicionamento ético e crítico, buscando evitar leituras moralizantes sobre as práticas docentes. A intenção não foi identificar “erros”, mas compreender os efeitos da formação (ou da sua ausência) sobre o discurso que estrutura a ação pedagógica. Nesse sentido, mais do que apontar falhas, o estudo propõe uma escuta sensível aos limites formativos impostos pelas políticas educacionais e pelas condições concretas de trabalho docente.
Durante a construção do corpus empírico, um dos elementos mais relevantes foi o contraste entre o discurso formal da instituição — presente nos documentos de planejamento e nas falas institucionais — e o discurso espontâneo das professoras durante as interações cotidianas. Esse descompasso revelou a existência de uma distância entre a inclusão prevista nos documentos oficiais e aquela que se efetiva (ou não) na linguagem, nos gestos e nas decisões pedagógicas. A análise desses contrastes discursivos permitiu evidenciar os mecanismos simbólicos que sustentam ou fragilizam o processo inclusivo.
Vale destacar que esta pesquisa está ancorada em um compromisso ético com a valorização da prática docente. A análise crítica do discurso aqui proposta não busca deslegitimar os saberes experienciais das professoras, mas tensioná-los à luz da ausência de formação neurocientífica. A intenção é visibilizar os efeitos dessa lacuna no modo como se compreende e se nomeia o aluno atípico. Ao revelar essas camadas discursivas, pretendemos ampliar o debate sobre a formação docente, aproximando ciência, linguagem e inclusão como campos interdependentes no exercício cotidiano da educação infantil.
Em síntese, esta metodologia busca não confirmar uma hipótese, mas trazer à luz os efeitos da ausência de formação neurocientífica no discurso e na prática de professoras que vivenciam, cotidianamente, os dilemas da inclusão escolar.
4. Resultados e Discussão
Ao longo das observações realizadas, um padrão se tornou evidente: a ausência de formação em neurociência não apenas limita a prática pedagógica – ela distorce o modo como o professor enxerga a criança, o processo de aprendizagem e até o seu próprio papel como educador. Esse impacto não é técnico; é simbólico, discursivo, ideológico.
Apesar da dedicação da professora, seu discurso sobre o aluno com TEA carecia de fundamentação teórica, recorrendo a metáforas imprecisas, (“ele tem uma mente fechada”, “o sistema nervoso dele é mais lento”) e uma evidente dificuldade de conectar comportamento a mecanismos cognitivos reais. Em vez de falar em estimulação sensorial, plasticidade sináptica ou desenvolvimento de funções executivas, o que se ouviu foram descrições baseadas em juízo comportamental (“ele é muito complicado”, “não quer participar”).
Expressões utilizadas | Ausência conceitual associada | Consequência prática |
“Ele é complicado” | Falta de noção de função executiva | Baixa expectativa pedagógica |
“Cérebro diferente” | Ausência de noção de neurodiversidade | Ações genéricas e imprecisas |
“Sistema nervoso lento” | Falta de base em neuroplasticidade | Práticas desmotivadoras |
Esse vocabulário revela mais do que desconhecimento: ele expõe uma lacuna formativa que afeta diretamente a qualidade da inclusão. Sem domínio de noções fundamentais sobre neurodesenvolvimento, o educador corre o risco de recorrer a narrativas que estigmatizam ou subestimam a complexidade do aluno atípico. Em alguns momentos, a criança com TEA era tratada como “coitadinho”, em outros como “irritante” ou “imprevisível”. Não havia mediação científica entre o comportamento e a resposta pedagógica.
Tal como argumenta Frith (2008), a ausência de mediações conceituais cria um vácuo interpretativo, que o professor preenche com sua própria carga emocional, social e moral. Em vez de atuar como mediador da aprendizagem, ele se torna, muitas vezes, prisioneiro de suas percepções. Isso se agrava quando o discurso institucional (da Secretaria de Educação, por exemplo) também é silente ou permissivo quanto à qualificação neurocientífica.
Mesmo diante das limitações, a professora buscava alternativas. Utilizava reforço positivo, adaptava atividades e procurava apoio familiar. Mas essas ações, embora bem intencionadas, eram empíricas, não sistematizadas, e em alguns casos reforçavam dependência em vez de autonomia. O uso de estratégias como o brinquedo “montamonta” como recompensa era eficaz no curto prazo, mas carecia de fundamentação sobre como isso impactava as funções cognitivas ou as redes neurais envolvidas na aprendizagem da criança.
Outro dado relevante foi a atuação da auxiliar pedagógica — ainda em formação, sem capacitação específica. Sua presença era mais operacional do que educativa. Isso amplia o problema: o modelo de inclusão observado depende do improviso de profissionais que não foram preparados para lidar com a complexidade do neurodesenvolvimento.
A análise dos discursos nas entrevistas revelou ainda um aspecto silencioso, mas impactante: o medo da inadequação. A professora expressou receio de “não estar fazendo certo”, “não conseguir ajudar de verdade”, ou “errar com ele”. Esse medo não é infundado. Ele é o efeito colateral da lacuna formativa: quando o professor não compreende os fundamentos neurológicos da aprendizagem, ele se culpa ou desiste. Isso é, em si, um fator de exclusão.
Paradoxalmente, é justamente a criança com TEA quem mais precisa de um educador seguro, informado, capacitado. Quando isso não acontece, a prática pedagógica se reduz a um jogo de tentativas — e a inclusão vira uma promessa não cumprida.
Não se trata apenas de usar ou não certos termos neurocientíficos, mas de perceber que certas categorias – como atenção executiva, memória de trabalho ou cognição social – sequer existem no habitus linguístico do professor. Como sugere Perrenoud (2000), a linguagem não apenas descreve a prática: ela a estrutura. Quando o léxico pedagógico é limitado, o pensamento também se limita, e isso tem efeitos diretos na maneira como se ensina, se acolhe e se inclui.
Fica claro, diante dos resultados, que considerar a neurociência um diferencial formativo é um equívoco: trata-se, na verdade, de uma urgência educacional. Seu impacto não está apenas na aplicação de estratégias, mas na qualificação do discurso pedagógico, na forma como se compreende a criança e se organiza a mediação entre ela e o conhecimento.
A repetição de expressões vagas ou imprecisas também evidenciou uma ausência de repertório teórico que compromete não apenas o diagnóstico da situação de aprendizagem, mas a própria construção de expectativas sobre o aluno. Quando o professor não tem acesso a conceitos como autorregulação, modulação sensorial ou integração funcional, tende a construir explicações baseadas no senso comum ou na moralidade. Isso ficou evidente quando, diante da recusa da criança em participar de uma atividade, a justificativa dada foi “ele só faz quando quer”, revelando uma leitura comportamental centrada no juízo de vontade e não em possíveis barreiras neurofuncionais.
Outro ponto relevante foi a forma como o tempo e o espaço escolares eram organizados em função da suposta “dificuldade” do aluno com TEA. Observou-se, por exemplo, que ele era retirado de atividades coletivas em nome de seu “bem-estar” ou por “não conseguir acompanhar”. Tais decisões, embora muitas vezes justificadas como cuidadosas, acabam por reforçar práticas segregadoras. Não se transforma o espaço pedagógico — rebaixa-se o que se espera da criança. Isso demonstra que o discurso da inclusão, quando dissociado de uma compreensão neurocientífica mínima, pode gerar exclusão sob a aparência de cuidado.
Por fim, destaca-se que, em nenhum momento durante as entrevistas ou observações, emergiu uma menção direta à neurociência como área de conhecimento necessária à formação docente. Esse silenciamento revela o grau de invisibilidade dessa dimensão nos discursos educacionais cotidianos. A neurociência parece estar ausente não por oposição, mas por esquecimento; não por rejeição, mas por desconhecimento. Isso reforça a ideia de que o discurso pedagógico, quando privado de mediações científicas, tende a operar por mitos, julgamentos e improvisos — o que compromete seriamente os princípios da educação inclusiva.
5. Considerações Finais
O discurso pedagógico que emerge em contextos de inclusão, quando desprovido de formação em neurociência, não é neutro. Ele carrega incertezas, repetições, metáforas frágeis e, muitas vezes, uma tentativa angustiada de nomear o que não se compreende. O que esta pesquisa evidenciou, com clareza, é que a ausência de formação especializada não apenas limita o fazer docente — ela distorce o pensar docente.
Ao investigar uma instituição pública de educação infantil, observamos que a prática inclusiva, embora presente no discurso institucional, esbarra em um campo semântico empobrecido. Termos como “mente difícil”, “diferente” ou “complicado” substituem categorias cognitivas precisas como disfunções executivas, hiperresponsividade sensorial ou déficit na teoria da mente. Esse esvaziamento de sentido compromete a elaboração de estratégias, a leitura do comportamento infantil e, em última instância, o próprio direito à educação com qualidade. A prática observada sugere o que Saviani (2008) chamou de ‘inclusão cínica’: aquela que se declara nos documentos, mas se esvazia na realidade pedagógica. A escola afirma incluir, mas não fornece as ferramentas, nem as formações necessárias para que isso ocorra. A professora acolhe, mas sem repertório. O aluno frequenta, mas não participa. Trata-se de uma inclusão performática – visível nos relatórios, invisível na aprendizagem.
A inclusão, sem formação, torna-se uma performance — visível, mas ineficaz. E quando o professor não possui as ferramentas conceituais adequadas, ele se transforma num improvisador solitário, tentando acolher com o coração o que deveria também ser sustentado pela ciência.
Por isso, a principal implicação desta pesquisa é clara: formação em neurociência não é um detalhe técnico — é condição para o exercício ético e eficaz da docência em contextos inclusivos. Mais do que um curso eventual, trata-se de incorporar à formação docente inicial e continuada uma perspectiva crítica e transdisciplinar sobre o funcionamento do cérebro, do comportamento e da aprendizagem.
Recomenda-se que políticas públicas educacionais assumam esse desafio como estrutural: não há inclusão real sem professores preparados para compreender o que se passa na mente e no corpo de seus alunos. A ampliação do acesso à formação neurocientífica, aliada à revisão curricular dos cursos de pedagogia e à criação de redes de apoio formativo entre escola e universidade, são caminhos viáveis e urgentes.
Mais do que uma lacuna conceitual, o que se revela é uma forma de epistemicídio cotidiano: o silenciamento de saberes científicos que poderiam empoderar o professor e garantir o direito à aprendizagem de crianças atípicas. Quando a neurociência não chega à prática, não é apenas o professor que perde repertório — é a criança que perde oportunidades. A ausência de formação em neurodesenvolvimento é, portanto, uma forma sutil, mas persistente, de negação de direitos.
Além disso, a análise empreendida permite afirmar que o discurso pedagógico não é apenas reflexo da formação recebida, mas também um produto das condições de trabalho, do ethos institucional e da historicidade do campo educacional. Pressionado por metas, sobrecarregado por demandas e isolado em sua prática, o professor muitas vezes ressignifica a inclusão como um desafio intransponível. Isso alimenta um ciclo vicioso: quanto menos se compreende, menos se tenta transformar — e quanto menos se transforma, mais se aceita o status quo da exclusão disfarçada.
Esse estudo convida, portanto, à construção de uma ecologia formativa onde a neurociência não seja um conteúdo isolado, mas um eixo transversal na formação e na prática pedagógica. Aproximar a ciência da sala de aula exige mais do que novas disciplinas: requer novos vínculos entre universidade e escola, novas linguagens para traduzir o conhecimento e, sobretudo, um novo pacto ético que reconheça o professor não como técnico executor, mas como sujeito epistêmico que precisa de instrumentos robustos para pensar, agir e resistir em defesa de uma inclusão efetiva e transformadora.
Por fim, esta pesquisa não pretende oferecer soluções prontas, mas sim provocar desconforto epistemológico. Se professores continuam enfrentando crianças que não “se encaixam” e, em resposta, apenas acumulam termos imprecisos e improvisações, então algo precisa mudar — não na criança, mas no modo como nos preparamos para ensinála.
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1Titulação mais alta: Pós-Graduação – Instituição de vínculo: UEPA – E-mail: yandrekaroline@gmail.com – ORCID: https://orcid.org/0009-0002-7781-0055 / Endereço para correspondência: Rua A17 Quadra 55 Lote 07 – Bairro Amazônia – Parauapebas (PA) – CEP 68515-000.