REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202501311924
Laerte Poras Junior
Tuane Virginia Tonon
Resumo
A manifestação de vontade do Paciente através de tatuagem de não reanimação exige do Médico atenção e cuidado no momento de deliberar por acolher ou não a autonomia de vontade do Paciente, em especial quando necessárias medidas de intervenção para resguardar a vida. Como a premissa ética primária do profissional médico consiste em adotar todos os meios disponíveis para promoção da saúde do Paciente, pergunta-se: seria uma decisão acertada respeitar e atender o desejo isolado de não reanimação exarado em uma tatuagem sem ter em mãos outras informações como o estado de saúde desse indivíduo e seu potencial estado de terminalidade? Evidencia-se, assim, que a manifestação isolada de vontade se torna muito frágil para resguardar a segurança do Profissional Médico em descumprir o seu dever-legal de aplicar todos os meios necessários para resguardar a saúde, sem qualquer confirmação complementar do próprio paciente, pois é possível que uma tatuagem tenha deixado de refletir o real desejo do Paciente e este ainda a mantenha por questões alheias à sua vontade, como, por exemplo, falta de recursos financeiros para inutilizá-la. Por isso, torna-se imperiosa existência de outras fontes de manifestação de vontade de não reanimação, principalmente para assegurar o profissional médico na tomada de sua decisão, evitando a sua responsabilização ética, moral, cível e penal pela omissão de ato médico.
Palavras-chave: diretrizes, autonomia, terminalidade, não- reanimação, responsabilização, tatuagem, expressão, ética, bioética, decisão
1. Introdução
As pesquisas, novas tecnologias e evolução da medicina trazem a discussão sobre o prolongamento da vida em confronto ao direito do Paciente de ter uma morte digna e de sua livre escolha.
A Resolução 1.805/2006, do CFM, reconhece que “na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal.”.
Em contraponto, há o limite de atuação do médico permeado no artigo 32, da Res. 2.217/2018, do CFM, ao vedar ao profissional deixar de usar todos os meios disponíveis de promoção da saúde. Ou seja, mesmo diante de Paciente em estado terminal, o médico deve adotar todos os tratamentos reconhecidos em favor do Paciente, respeitando a sua autonomia.
O direito à vida é exercido em conjunto com o princípio da dignidade da pessoa humana, que resguarda ao cidadão a possibilidade de livre escolha por medidas de (não)prolongamento da existência. Surgem, assim, as Diretrizes Antecipadas de Vontade, que asseguram o direito de o paciente terminal escolher os tratamentos a que deseja ou não ser submetido
O artigo 41, do Código de Ética Médica, veda o médico “Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.”. E o parágrafo único diz que “Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal.”.
Por sua vez, o CFM publicou a Resolução 1995/2012, que define “diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.”
Denota-se, portanto, a inexistência de regime jurídico e forma legal pré- estabelecida para tratar das diretrizes antecipadas de vontade e, por inexistir formalidade para o Paciente expressar a sua autonomia de vontade, várias formas são adotadas, e uma delas é a tatuagem, demonstrando-se a necessidade de discussão, inclusive sobre a eficácia de tatuagem de não reanimação, confrontando, assim, com a possibilidade destes meios representar eutanásia passiva1 ou a ortotanásia2.
2. Da metodologia: uma breve análise dos princípios bioéticos
Considerando a temática em estudo e a carência de disciplina legislativa, invoca- se, para fins de discussão acerca da responsabilidade do profissional de saúde em caso de não reanimação de paciente a partir do espectro da existência de uma tatuagem com essa manifestação, princípios da bioética, justamente em razão da força hermenêutica.
Segundo ensina Eduardo Dantas,
Necessário se faz compreender que o princípio da autonomia interpreta os melhores interesses do paciente exclusivamente a partir do ponto de vista do próprio enfermo, sem levar em conta o valor objetivo que a medicina reconhece a cada situação, o que pode levar – por óbvio – a concordâncias com a opinião médica, técnica, científica, ou mesmo à absoluta discordância com o caminho proposto. O modelo autonômico tomará por baliza o juízo de valor próprio e específico de cada indivíduo, em função de seus ideais, crenças e formação, respeitando assim o direito do paciente à autodeterminação.
Daí ser importante verificar a autonomia em conexão com outros preceitos jurídicos para completa validade do ato, que deve manter especial atenção ao grau de consciência do indivíduo e sua capacidade civil no momento de exercício de sua autonomia.
Em crítica, Eduardo Almeida3 pontua que a autonomia “não pode ser considerada apenas como possibilidade inerente, mas somente como capacidade efetiva, materializada nas escolhas morais da vida social.”, complementando que “uma pessoa autônoma é um indivíduo capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais e de agir em direção a esta deliberação, considerando os valores morais do contexto no qual está inserido.”.
Portanto, o Paciente deve estar em pleno exercício das suas capacidades cognitivas, sendo fundamental que o médico, ao colher o desejo do paciente, certifique- se das condições sociais e psíquicas a que é exposto.
Assim, a tatuagem pode representar a autonomia do Paciente, entretanto, muito se discute acerca da segurança jurídica abarcada em referida expressão, que não possui validade jurídica plena, ante a impossibilidade de constatação das condições a que o cidadão estava exposto no momento de sua realização. Ou seja: a tatuagem ainda reflete o real desejo do Paciente? Foi realizada em um momento emocional específico passível de arrependimento? Já estava com desejo de retirar ou retificar essa mensagem e espera, por exemplo, insuficiência de recursos financeiros?
3. Da discussão: Tatuagem de não reanimação e a terminalidade da vida
Para avanço da discussão, necessária a análise da terminalidade da vida e formas de implementação. Observe-se, por cautela, que tratar de morte digna é dever do estudioso compreender as condições a que o Paciente é exposto e a regulamentação sobre o tema, dentro da conceituação médico-científica.
Entende-se por paciente terminal, aquele exposto a uma doença terminal, progressiva e incurável, com prognóstico de vida de aproximadamente 6 meses. Por outro lado, a denominação de paciente em fim de vida é destinada àquele que está enfrentando quadro de falência de órgãos, período que normalmente perdura por cerca de 72 horas.
A bioética tem papel essencial neste campo de estudo, tornando a terminalidade da vida algo natural, entregando conforto e dignidade ao Paciente no livre exercício de sua autonomia.
Por sua vez, consta da exposição de motivos para construção regulamentar da Resolução 1.805/2006, o reconhecimento do Conselho Federal de Medicina de importantes reflexões que são atreladas à evolução científica, em verdadeiro confronto com a dignidade do paciente terminal. Transcreve-se:
…
O poder de intervenção do médico cresceu enormemente, sem que, simultaneamente, ocorresse uma reflexão sobre o impacto dessa nova realidade na qualidade de vida dos enfermos. Seria ocioso comentar os benefícios auferidos com as novas metodologias diagnósticas e terapêuticas. Incontáveis são as vidas salvas em situações críticas, como, por exemplo, os enfermos recuperados após infarto agudo do miocárdio e/ou enfermidades com graves distúrbios hemodinâmicos que foram resgatados plenamente saudáveis por meio de engenhosos procedimentos terapêuticos.
…
Despreparados para a questão, passamos a praticar uma medicina que subestima o conforto do enfermo com doença incurável em fase terminal, impondo-lhe longa e sofrida agonia. Adiamos a morte às custas de insensato e prolongado sofrimento para o doente e sua família. A terminalidade da vida é uma condição diagnosticada pelo médico diante de um enfermo com doença grave e incurável; portanto, entende- se que existe uma doença em fase terminal, e não um doente terminal. Nesse caso, a prioridade passa a ser a pessoa doente e não mais o tratamento da doença.
Daí se extrai o reconhecimento do Conselho Federal de Medicina da responsabilidade do profissional de saúde estar atrelada ao atendimento das melhores condições ao Paciente e não à doença, quando na esfera de Paciente Terminal.
Ocorre que o estudo da temática de terminalidade da vida, a partir do recorte da tatuagem de não reanimação, não pode ser avaliado genericamente, mas sim a partir da vida pregressa do Paciente tatuado, em especial diagnóstico prévio de doença terminal, sob pena de o médico infringir normas éticas que o proíbem expressamente de abreviar a vida do Paciente.
Conclui-se que, em casos que o Paciente tatuado é acometido de uma parada cardiorrespiratória proveniente de questões que não guardam relação com doença terminal, a tatuagem não é suficiente para afastar o dever-legal do profissional de agir; entretanto, havendo doença terminal comprovadamente diagnosticada, bastaria para não responsabilização do médico.
4. Conclusão
As tatuagens representam, portanto, um norte ao profissional médico para conduta a ser adotada, como manifestação de vontade do Paciente hábil para o isentar de responsabilidade por eventual omissão de ato médico, seja no aspecto cível, seja no penal. Entretanto, é preciso cautela.
As tatuagens de não reanimação expressam a vontade do Paciente, entretanto, encontram uma resistência diante da medicina baseada em evidências, à medida que o ponto celeuma da presente discussão é a sua utilização diante de casos em que a terminalidade não é constatada a partir de quadro clínico cientificamente comprovado, mas de hipotética previsão.
Denota-se que essas tatuagens não representam a efetiva constatação de que o Paciente esteja em quadro de doença incurável ou terminal, hipótese em que, se assim o fosse, ter-se-ia discutido previamente com o médico assistente e registrado em prontuário médico, superando a avaliação da validade jurídica da opção do paciente por este meio.
O momento em que o Paciente precisa ser reanimado pode derivar de diversas situações concretas que conduzem o médico a respeitar ou não a tatuagem e seus dizeres. Isto porque, segundo Código de Ética Médica, é expressamente vedado ao profissional abreviar a vida do Paciente, mesmo que a pedido.
Assim, a constatação da irreversibilidade da vida é a chave para a observância ou não da manifestação de vontade exarada na tatuagem de não reanimação.
1 Considera-se eutanásia passiva a cessação de ações que tenham por fim prolongar a vida do Paciente, enfermo e incurável, ainda que tecnicamente possível.
2 Considera-se ortotanásia a prática de evitar interferência científica, permitindo ao paciente uma morte digna.
3 ALMEIDA, Eduardo Henrique Rodrigues. Dignidade, autonomia do paciente e doença mental. Revista Bioética, 2010, p. 384
BIBLIOGRAFIA
DADALTO, LUCIANA. A necessidade de um modelo de Diretivas Antecipadas de Vontade para o Brasil: estudo comparativo dos modelos português e franceses. Belo Horizonte: Revista M., jul./dez., 2016, v. 1, n. 2,p.19
SILVÉRIO E.L., Silvério G.A., Kaiper J.A., Pereira L.W., Kist L.F. A ordem de não reanimar no Brasil. Anais de Medicina da Universidade do Oeste de Santa Catarina. 2015. Disponível em: https://portalperiodicos.unoesc.edu.br/anaisdemedicina/article/view/9436
1 Considera-se eutanásia passiva a cessação de ações que tenham por fim prolongar a vida do Paciente, enfermo e incurável, ainda que tecnicamente possível.
2 Considera-se ortotanásia a prática de evitar interferência científica, permitindo ao paciente uma morte digna.