REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7261955
David Junior Justiniano Evangelista1
Evellin Fernandes de Menezes2
Micaele Duarte Amaecing3
Acsa Liliane Carvalho Brito Souza4
RESUMO
A presente pesquisa busca discorrer a respeito do direito de retificação nos documentos de pessoas não binárias e os desafios enfrentados na sociedade, para tanto, traçou-se a metodologia qualitativa, com a abordagem de revisão de literatura, realizada pela leitura de doutrinas, jurisprudências, artigos científicos, e dentre outros meios de informação, a pesquisa se dividiu em três seções, a primeira discorre sobre gênero, orientação e identidade, na segunda seção, é apresentado a fundamentação da autodeterminação sexual, na qual, se apresenta algumas conquistas que foram ocorrendo para os sujeitos que não se identificam como cisgênero, na última seção, discute-se sobre essa retificação, ao final, conclui-se pela possibilidade de alteração da identidade de gênero e também pela própria alteração do nome, sem a necessidade de intervenção judicial, realizando-se no próprio cartório.
Palavras-chave: Não-binária; Documentos; Direito.
ABSTRACT
The present research seeks to discuss the right of rectification in the documents of non-binary people and the challenges faced in society, for that, a qualitative methodology was drawn, with the approach of literature review, carried out by reading doctrines, jurisprudence, scientific articles, and among other means of information, the research was divided into three sections, the first discusses gender, orientation and identity, in the second section, the rationale of sexual self-determination is presented, in which some achievements that have been occurring are presented. for subjects who do not identify as cisgender, in the last section, this rectification is discussed, in the end, it is concluded by the possibility of changing the gender identity and also by changing the name itself, without the need for judicial intervention, carried out in the registry office itself.
Keywords: Non-binary; Documents; Right.
1. INTRODUÇÃO
As pessoas não binárias são aquelas que não se identificam com o gênero masculino, bem como com gênero feminino, sua identidade de gênero não se encaixa 100% dentro do binário de gênero.
Nesse sentido, ainda há muito preconceito com todas aquelas pessoas que não se encaixam dentro da heteronormatividade, é comum notícias de violência, por exemplo, contra homossexuais, transgênero e etc, os quais por muitas vezes se encontram às margens da sociedade.
Contudo, merece destaque o fato de que quando se fala em dignidade humana, há uma série de direitos a serem garantidos, e dentre eles a autodeterminação sexual, por este motivo, a presente pesquisa busca discutir sobre os direitos de retificação nos documentos de pessoas não binárias e os desafios enfrentados na sociedade.
Com isso, a pergunta a ser respondida nesta pesquisa é: há direito de retificação nos documentos de pessoas não binárias? Ao passo que o objetivo geral é discutir sobre os direitos de retificação nos documentos, e ainda, os desafios a serem enfrentados.
Os objetivos específicos aqui delimitados foram: analisar o que vem a ser gênero, analisar a conquista de direitos dos sujeitos que não se identificam como cisgênero e por fim discutir sobre a retificação nos documentos.
A metodologia aqui empregada foi a qualitativa tendo como método a revisão de literatura, realizada por meio de doutrinas, jurisprudências, artigos científicos e dentre outras fontes de informação.
2. GÊNERO, ORIENTAÇÃO, IDENTIDADE
As questões relacionadas ao gênero refletem o modo como diferentes povos, em diversos períodos históricos classificam as atividades de trabalho tanto na esfera pública quanto privada, assim como os atributos pessoais e os encargos destinados a homens e mulheres no campo religioso, político, de lazer, sexualidade e etc.
Insta ressaltar que, cada sujeito é único:
Somos todos diversos. Mesmo que pontos de nossa biologia sejam comum aos outros, a experiência vivenciada sobre o corpo é de fato bem singular para cada um. A imagem apresentada de nossos corpos podem ser utilizadas para nos distinguir, seja pelo próprio sexo ou pelas características físicas que trazemos que, de certo modo, nos classificam desde o nosso nascimento. Nosso sexo biológico não faz parte de nossas escolhas, o mesmo se configura a partir da terceira semana de gestação, e posteriormente conforme a identificação deste nos é informado a qual sexo pertencemos, com o propósito que nos enquadremos dentro das perspectivas dos padrões de comportamento, de acordo com as representações sociais de cada um (FERREIRA, 2018, p. 3).
Na atualidade, o conceito de gênero que se encontra corrente nas páginas de jornal e também nos textos que orientam as políticas públicas, emergiu de um diálogo entre o movimento feminista e suas teóricas e pesquisadoras de diversas disciplinas, tais como: história, sociologia, antropologia, demografia e dentre outras.
Neste viés, o conceito de gênero segundo Judith Butler é:
[…] o conceito de gênero tem como medida um instrumento expresso principalmente pela cultura e pelo discurso que inscreve o sexo e as diferenças sexuais fora do campo social, isto é, o gênero aprisiona o sexo em uma natureza inalcançável à nossa critica e desconstrução (ABÍLIO, 2016, p. 128).
Ou seja, o gênero basicamente aprisiona a pessoa a seguir determinadas regras e comportamentos impostos de forma indireta pela sociedade, assim, uma pessoa do sexo feminino deve se portar de um jeito diferente daquele que é do sexo masculino.
Neste sentido também, o conceito de gênero se encontra atrelado ao corpo:
O mundo social constrói o corpo como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão e de divisão sexualizantes. Esse programa social de percepção incorporada aplica-se a todas as coisas do mundo e, antes de tudo, ao próprio corpo, em sua realidade biológica: é ele que constrói a diferença entre os sexos biológicos, conformando-a aos princípios de uma visão mítica do mundo, enraizada na relação arbitrária de dominação dos homens sobre as mulheres, ela mesma inscrita, com a divisão do trabalho, na realidade da ordem social. (BORDIEU, 2011, p. 20).
De acordo com o autor, a distinção presente no corpo entre os sexos age como uma justificativa natural da diferença social construída, ocorrendo com o passar do tempo uma naturalização da noção do sexo como algo inato ao sujeito humano.
A crença entre masculino e feminino embora ainda muito presente na atualidade, não se torna mais efetiva, visto que, existem pessoas que desafiam as convenções de performances de gênero fugindo do padrão na forma de agir e também de se portar, construindo a sua identidade de gênero em contraposto com o seu sexo biológico.
Dessarte, a identidade de gênero pode ser entendida como:
[…] a profunda e sentida experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos (PRINCIPIOS, 2007, p. 7 apud ABÍLIO, 2016, p. 128).
Ou seja, a identidade de gênero é vista como uma identificação mais próxima de um determinado gênero, podendo ou não corresponder ao atribuído no nascimento do indivíduo.
Complementando a discussão:
Gênero se refere a formas de se identificar e ser identificada como homem ou como mulher. Orientação sexual se refere à atração afetivossexual por alguém de algum/ns gênero/s. Uma dimensão não depende da outra, não há uma norma de orientação sexual em função do gênero das pessoas, assim, nem todo homem e mulher é “naturalmente” heterossexual (JESUS, 2012, p. 12).
Assim, conforme expõe a autora é possível notar que, gênero é diferente de orientação sexual, deste modo, uma pessoa transgênero da mesma forma que as cisgênero podem ter qualquer orientação sexual.
Mediante o apresentado, resta claro que, o gênero feminino e masculino não são os únicos existentes na sociedade moderna, visto que, existem pessoas que se identificam com um gênero ou outro que vão muito além do até então conhecido.
A imagem um e dois apresenta os símbolos de trinta e dois gêneros existentes:
Imagem 01 – Símbolos de gênero
Estas duas imagens demonstram a diversidade existente de gêneros no mundo, ficando evidente que o feminino e o masculino não são os únicos gêneros existentes.
2.1 GÊNERO BINÁRIO X GÊNERO NÃO BINÁRIO
O gênero binário se manifesta quando os corpos são polarizados no binarismo, dentre as diversas áreas e saberes da sociedade, com isso, as características secundárias de corpos femininos e corpos masculinos, como pelos, seios, e quadris, passam a determinar o que é ser homem e o que é ser mulher.
Cumpre ressaltar que, uma característica da construção sociocultural dos gêneros que merece atenção e tal estrutura apresenta e se constrói de forma binária, ou seja, tendo como possibilidades o masculino e o feminino.
Pode-se compreender então, que o binário de gênero se trata de uma relação oposicional, em formato de identidade e alteridade, sendo a formação de binários oposicionais uma herança metafísica ocidental, na qual a dualidade se constitui entre o eu (identidade) e o outro (alteridade).
Do outro lado, surge a questão da não binariedade, que transgrediram à imposição social dada ao nascimento, ultrapassando os limites dos polos e se fixando e fluindo em diversos pontos da linha que os liga e também ao mesmo tempo, os distancia. É elementar entender que existe uma multiplicidade das identidades não-binárias de gênero:
Quadro 01 – Identidades não-binárias
Identidade não-binária | Significado |
Bigênero | São pessoas que são totalmente de dois gêneros, sem que ocorra uma mescla bem delimitada entre os dois. |
Agênero | Identidade na qual os indivíduos vivenciam a ausência de gênero. |
Demigênero | As pessoas leem suas identidades como sendo parcialmente femininas ou masculinas e parcialmente alguma identidade não-binária. |
Pangênero | Identidade que se refere a uma grande gama de gêneros que pode ultrapassar a finitude do que se entende por gênero. |
Há de mencionar que as expressões dessas identidades serão extremamente variadas, divergindo de individuo a individuo, assim como, de contexto a contexto.
3. FUNDAMENTOS DA AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL E A REALIDADE VIVENCIADA CONTRA OS NÃO HETEROSSEXUAIS
A forma de identificar a relação sexual com o fim meramente reprodutivo, visão que se encontrou arraigada na sociedade brasileira, sendo influenciada pelos princípios religiosos, perdurou até o fim do século XIX.
Com as modificações que foram ocorrendo na sociedade, passou-se a encarar a sexualidade como uma forma de atingir o bem-estar, pautado pelos avanços da psicanálise do estudioso Sigmund Freud, assim a sexualidade passou a se relacionar como fonte de prazer (BRASIL e GERASSI, 2018).
Todo este processo de evolução sobre a sexualidade, iniciou um gradual aumento da autonomia do sexo em relação à moral e à religião até chegar as diversas concepções da atualidade.
A Constituição de 1988 extirpa quase em sua totalidade a distinção entre os gêneros presente à época no ordenamento civil, já que incompatível com o princípio da isonomia. Entretanto, a questão da colocação do transexual enquanto sujeito de direitos e garantias individuais não reside na equiparação entre os sexos prevista no inciso I, mas sim de uma possibilidade de autodeterminação do sexo e identidade de gênero, cuja proibição inviabilizaria a eficácia das garantias previstas no caput de referido dispositivo constitucional.
A liberdade sexual (seja no campo da autodeterminação identitária já supramencionada, seja no campo do exercício da sexualidade) é, antes de tudo, liberdade que, se desrespeitada, constitui verdadeiro óbice a uma vida digna (BRASIL e GERASSI, 2018, p. 9).
Nota-se assim, que a liberdade de autodeterminação sexual se encontra respaldada no próprio direito fundamental da liberdade, assim em um Estado democrático de direito, a autodeterminação sexual deve prevalecer sob pena de violação dos direitos humanos.
[…]o direito à autodeterminação sexual é decorrente da interação entre os direitos fundamentais de liberdade, de igualdade, de vedação de discriminação em razão da identidade sexual, da proteção da dignidade da pessoa humana e do direito à saúde, todos expressos diretamente na Constituição Federal. Diante de tais circunstâncias, a pessoa poderá se desvincular do padrão biológico preestabelecido e desenvolver de maneira plena seu processo de autoconhecimento (PEREIRA, 2019, p. 88).
Conclui-se assim que o direito à autodeterminação sexual é de suma relevância para a eficácia dos preceitos da dignidade humana, estando presente na Constituição de 1988.
3.1 A VIOLÊNCIA
A violência contra as sexualidades e identidades não heterossexuais e não binárias é praticamente uma epidemia social no Brasil. Neste contexto Peixoto (2018) expõe que:
Conforme o Relatório 2017 de mortes LGBTs, produzido pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), houve um aumento exorbitante, sendo 30% a mais que o ano de 2016. “A cada 19 horas um LGBT é barbaramente assassinado ou se suicida vítima da LGBTfobia, o que faz do Brasil o campeão mundial de crimes contra as minorias sexuais” (PEIXOTO, 2018, p. 9).
Resta muito claro que o Brasil se encontra arraigado no preconceito contra qualquer sujeito que não se enquadre na heterossexualidade, ou seja, há muito ainda o que evoluir, o dado a seguir demonstra a clara preocupação e o medo de qualquer pessoa declarada LGBTQIA+ de sair nas ruas.
Ressalta-se também que o STF enquadrou a homofobia e transfobia como crimes de racismo ao reconhecer omissão legislativa:
1. Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”); 2. A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero; 3. O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito (STF, ADO 26/ DF, 2019).
Embora possa perceber que até exista um aparato judiciário e politicas públicas que visam acolher a população LGBTQ+ ainda existem muitas questões a serem superadas, principalmente o preconceito arraigado.
3.2 A CONQUISTA DE DIREITOS
As uniões homoafetivas foram, ao longo do tempo, alvo de diversos debates na jurisprudência e também na doutrina, havendo algumas divergências jurisprudenciais quando se tratava do assunto.
Até pouco tempo, prevalecia o entendimento do Superior Tribunal de Justiça – STJ que identificava as uniões homoafetivas como sociedades de fato e não como uniões estáveis, devido a Constituição Federal expressar que a União estável era reconhecida somente entre homem e mulher.
Uma jurisprudência que merece destaque, antes de apresentar o novo entendimento jurisprudencial é a decisão de 2001 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DO PATRIMÔNIO. MEAÇÃO. PARADIGMA. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária. Nelas remanescem consequências semelhantes às que vigoram nas relações de afeto, buscandose sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevados sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do relacionamento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica. Apelação provida, em parte, por maioria, para assegurar a divisão do acervo entre os parceiros. (RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de Justiça, AC 70001388982, Relator Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis, 2001).
Nota-se na decisão o reconhecimento da união estável de homossexuais, se trata de uma decisão avançada para o período histórico, visto que, era um momento ainda muito preconceituoso sobre a homoafetividade.
Retornando a questão do reconhecimento da união estável homoafetiva, destaca-se que foi por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (4.277) e uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (132), que o direito ao reconhecimento da união estável foi efetivo, onde os pedidos eram de que, houvesse a interpretação do artigo 1.723 do Código Civil de forma a englobar os casais homoafetivos.
Ao julgar procedentes as duas ações que pediam o reconhecimento da relação entre pessoas do mesmo sexo, os ministros decidiram que a união homoafetiva deve ser considerada como uma autêntica família, com todos os seus efeitos jurídicos. Os ministros destacaram que é importante que o Congresso Nacional deixe de ser omisso em relação ao tema e regule as relações que surgirão a partir da decisão do Supremo (HAIDAR, 2011).
No âmbito do direito de família, o reconhecimento da União Estável foi essencial para a conquista de direitos dos casais homoafetivos, entretanto, ainda havia outros direitos a serem conquistados.
Insta ressaltar que, foi por intermédio dessa decisão do STF que finalmente os homossexuais puderam se casar, nesse sentido em 2013 o Conselho Nacional de Justiça traz a resolução 175: “Art. 1º É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo” (CNJ, 2013).
Antes da Resolução, os casais tinham a necessidade de ingressar com uma ação na justiça para que a união fosse reconhecida, e muitas vezes ela era negada, por isso, a resolução é um marco para o direito de família homoafetivo.
Dentro da adoção homoafetiva, ainda pairam algumas polêmicas, em algumas decisões jurisprudenciais, os magistrados se pautavam na fundamentação de que não havia entidade familiar frente aos casais homossexuais, e por esse motivo havia negação da adoção.
Mas aos poucos, algumas decisões favoráveis à adoção homoafetiva passaram a estar presentes, e assim, o Supremo Tribunal Federal passou a trazer que, a união homoafetiva é família, não devendo haver empecilhos para a adoção:
A legislação não veda a adoção de crianças por solteiros ou casais homoafetivos, tampouco impõe, nessas hipóteses, qualquer restrição etária. Ademais, sendo a união entre pessoas do mesmo sexo reconhecida como uma unidade familiar, digna de proteção do Estado, não se vislumbra, no contexto do ‘pluralismo familiar’ (REsp 1.183.378/RS, DJe 1.º.02.2012), pautado nos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, a possibilidade de haver qualquer distinção de direitos ou exigências legais entre as parcelas homoafetiva (ou demais minorias) e heteroafetiva da população brasileira. Além disso, mesmo se se analisar sob o enfoque do menor, não há, em princípio, restrição de qualquer tipo à adoção de crianças por pessoas homoafetivas. Isso porque segundo a legislação vigente, caberá ao prudente arbítrio do magistrado sempre sob a ótica do melhor interesse do menor, observar todas as circunstâncias presentes no caso concreto e as perícias e laudos produzidos no decorrer do processo de adoção. Nesse contexto, o bom desempenho e bem-estar da criança estão ligados ao aspecto afetivo e ao vínculo existente na unidade familiar, e não à opção sexual do adotante (STF, Recurso Extraordinário 846.102, ministra Carmen Lucia, D.P : 05/08/2014).
A adoção é vista assim, como mais um direito que os casais homoafetivos conseguiram, podendo se casar e constituir uma família, realizando o planejamento familiar.
Outra conquista a ser mencionada é a possibilidade de alteração do gênero constante no registro civil do transexual, que independe da realização de cirurgia de adequação de sexo.
Assim, fica claro que, muitos direitos foram garantidos principalmente com a chegada da Constituição Federal de 1988 e também do Código Civil de 2002, no entanto, são muitas as lutas ainda a serem vencidas, principalmente no que se refere ao preconceito.
4. DA RETIFICAÇÃO DE DOCUMENTOS DE PESSOAS NÃO-BINÁRIAS
A retificação de documentos se torna algo extremamente relevante para aqueles que não se identificam com o nome ou ainda, com o gênero que nasceram, por isso, quando se fala nessas alterações, é possível compreender a sua própria importância e relevância.
Neste aspecto, os transexuais já vinham buscando a garantia de mudar o gênero e o seu nome nos documentos, esse pedido chegou até o STF em 2018, que teve a seguinte ementa:
EMENTA Direito Constitucional e Civil. Transexual. Identidade de gênero. Direito subjetivo à alteração do nome e da classificação de gênero no assento de nascimento. Possibilidade independentemente de cirurgia de procedimento cirúrgico de redesignação. Princípios da dignidade da pessoa humana, da personalidade, da intimidade, da isonomia, da saúde e da felicidade. Convivência com os princípios da publicidade, da informação pública, da segurança jurídica, da veracidade dos registros públicos e da confiança. Recurso extraordinário provido. 1. A ordem constitucional vigente guia-se pelo propósito de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, voltada para a promoção do bem de todos e sem preconceitos de qualquer ordem, de modo a assegurar o bem-estar, a igualdade e a justiça como valores supremos e a resguardar os princípios da igualdade e da privacidade. Dado que a tutela do ser humano e a afirmação da plenitude de seus direitos se apresentam como elementos centrais para o desenvolvimento da sociedade, é imperativo o reconhecimento do direito do indivíduo ao desenvolvimento pleno de sua personalidade, tutelando-se os conteúdos mínimos que compõem a dignidade do ser humano, a saber, a autonomia e a liberdade do indivíduo, sua conformação interior e sua capacidade de interação social e comunitária. 2. É mister que se afaste qualquer óbice jurídico que represente restrição ou limitação ilegítima, ainda que meramente potencial, à liberdade do ser humano para exercer sua identidade de gênero e se orientar sexualmente, pois essas faculdades constituem inarredáveis pressupostos para o desenvolvimento da personalidade humana. 3. O sistema há de avançar para além da tradicional identificação de sexos para abarcar também o registro daqueles cuja autopercepção difere do que se registrou no momento de seu nascimento. Nessa seara, ao Estado incumbe apenas o reconhecimento da identidade de gênero; a alteração dos assentos no registro público, por sua vez, pauta-se unicamente pela livre manifestação de vontade da pessoa que visa expressar sua identidade de gênero. 4. Saliente-se que a alteração do prenome e da classificação de sexo do indivíduo, independente de dar-se pela via judicial ou administrativa, deverá ser coberta pelo sigilo durante todo o trâmite, procedendo-se a sua anotação à margem da averbação, ficando vedada a inclusão, mesmo que sigilosa, do termo “transexual” ou da classificação de sexo biológico no respectivo assento ou em certidão pública. Dessa forma, atende-se o desejo do transgênero de ter reconhecida sua identidade de gênero e, simultaneamente, asseguram-se os princípios da segurança jurídica e da confiança, que regem o sistema registral. 5. Assentadas as seguintes teses de repercussão geral: i) O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação da vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa. ii) Essa alteração deve ser averbada à margem no assento de nascimento, sendo vedada a inclusão do termo ‘transexual’. iii) Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, sendo vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial. iv) Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar, de ofício ou a requerimento do interessado, a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos. 6. Recurso extraordinário provido (RE 670422, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 15/08/2018, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-051 DIVULG 09-03-2020 PUBLIC 10-03-2020).
A discussão foi sobre o direito subjetivo à alteração do nome e também da classificação de gênero no assento de nascimento, existindo possibilidade independentemente de cirurgia de procedimento cirúrgico de redesignação, nesse sentido, apresentou-se que o transgênero tem direito à alteração de seu prenome e também de sua classificação de gênero no registro civil, não exigindo-se nada além de sua manifestação da vontade, que pode ser exercida tanto pela via judicial, como pela administrativa.
Dentro deste contexto, é possível observar que nasce a própria possibilidade de se discutir a respeito da alteração de gênero quando se fala das pessoas não-binárias.
Por exemplo, no Rio Grande do Sul, sujeitos não binários, que não se identificam nem como homens e nem como mulheres, podem alterar prenomes e gêneros no registro de nascimento, nesse sentido, a mudança deve ocorrer conforme a identidade autopercebida, sendo independente de autorização judicial, com isso, a expressão não-binário, pode ser incluída no registro por meio de requerimento realizado em cartório (IBDFAM, 2022).
Na Bahia, também já é possível essa alteração, assim sendo, pessoas não-binárias podem alterar nome e gênero em registro de nascimento sem a necessidade de autorização judicial, ou seja, é uma busca pela dignidade humana e a autodeterminação sexual (MP BAHIA, 2022).
Em Agosto de 2019, houve a divulgação de um guia para retificação do registro civil de pessoas não cisgêneras, que disciplina que o direito ao nome e a identificação de gênero, trata-se na atualidade de um direito fundamental da pessoa humana, sendo aceito pela jurisprudência brasileira.
Assim sendo, não é preciso passar por um processo judicial e nem mesmo ter a decisão de um juiz para que a alteração venha a ocorrer, tudo pode ser feito no cartório, desde que todos os documentos sejam apresentados, além de não ser preciso apresentar qualquer tipo de laudo ou exame, muito menos ter que comprovar a cirurgia de redesignação sexual ou outro tipo de modificação corporal.
Vale mencionar também, a possibilidade de alteração do nome e do gênero de forma direta no cartório em que foi registrada, conforme o provimento número 73/2018 da Corregedoria Nacional de Justiça, buscando prezar pela autonomia da pessoa requerente, que deve declarar diante o registrador, a vontade de proceder à adequação da identidade por meio da averbação do prenome, do gênero, ou ainda, de ambos.
Com isso, é possível observar uma série de modificações extremamente relevantes para as pessoas não binárias, garantindo o seu direito de autodeterminação.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme foi possível observar ao longo desta pesquisa, os direitos das pessoas que se identificam com outros gêneros foram sendo conquistados aos poucos, contudo, ainda é uma realidade o preconceito vivenciado, fruto de uma sociedade a qual evolui a passos lentos.
Neste sentido, observa-se que essas pessoas ainda são vitimas frequentes da violência, ao passo que ganham direitos, ainda não conseguem a aceitação de uma parcela da sociedade.
Além disso, há de mencionar que aquelas pessoas não-binárias, possuem o direito de retificar seus documentos, com o fim, de colocar no campo de gênero, a terminologia não-binário, é um direito básico desses sujeitos, e que visa garantir a própria dignidade humana e o princípio da autodeterminação sexual.
Contudo, ainda são diversos os caminhos a serem trilhados, principalmente quando se fala da aceitação social, a educação precisa frisar o respeito e o combate ao preconceito.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. RE 670422, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 15/08/2018, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-051 DIVULG 09-03-2020 PUBLIC 10-03-2020.
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RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de Justiça, AC 70001388982, Relator Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis, 2001.
1, 2, 3Acadêmico de Direito. Artigo apresentado a Faculdade Interamericana de Porto Velho-UNIRON, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito Porto Velho, 2022.
4Prof. Orientador. Professor de Direito.