DIREITO ANTIDISCRIMINATÓRIO: A QUESTÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

ANTI-DISCRIMINATION RIGHT: THE ISSUE OF VIOLENCE AGAINST WOMEN

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7603019


Thalles Ferreira Costa1


RESUMO: Os números de violência contra a mulher são crescentes no Brasil. Os crimes são revestidos das mais perversas circunstâncias. A razão fundamental da motivação para tais crimes é o patriarcado. O patriarcado é um sistema violento de domínio do homem sobre todos os aspectos da vida. O poderio masculino se espraia por todas as relações sociais, impondo subordinação e opressão. Um dos efeitos primordiais do sistema é, sem dúvidas, a “reificação” da sexualidade feminina. Deste modo, sob o manto do patriarcado reificante, as mulheres são grupos vulneráveis submetidos às mais diversas ordens de desigualdade. O presente artigo busca traçar as características do patriarcado. Busca-se, igualmente, explicitar as características do patriarcado brasileiro. Por fim, busca traçar um paralelo entre patriarcado e “reificação”. Conclui-se que o conhecimento desse fundamento deve ser inserido na educação e amplamente divulgado, porquanto é requisito primordial para prevenir as violências contra a mulher. Utilizou-se de pesquisa bibliográfica, com método exploratório. 

PALAVRAS-CHAVE: patriarcado, reificação, violência, mulher

ABSTRACT: The numbers of violence against women are increasing in Brazil. Crimes are coated with the most perverse circumstances. The fundamental reason behind such crimes is patriarchy. Patriarchy is a violent system of male dominance over all aspects of life. Male power spreads across all social relations, imposing subordination and oppression. One of the main effects of the system is, without a doubt, the “reification” of female sexuality. Thus, under the mantle of reifying patriarchy, women are vulnerable groups subjected to the most diverse orders of inequality. This article seeks to outline the characteristics of patriarchy. It also seeks to explain the characteristics of Brazilian patriarchy. Finally, it seeks to draw a parallel between patriarchy and “reification”. It is concluded that knowledge of this foundation must be inserted in education and widely disseminated, as it is a fundamental requirement to prevent violence against women. Bibliographical research was used, with an exploratory method.

KEYWORDS: patriarchy, reification, violence, woman

1. O PATRIARCADO E A “REIFICAÇÃO”

José Saramago (1988), no conto “A ilha desconhecida”, nos apresenta um homem que foi bater à porta do rei pedindo-lhe um barco. O rei, espantado, perguntou porque o homem queria um barco, ao que o homem respondeu: “para ir à procura da ilha desconhecida”. O presente trabalho é a busca pela “ilha desconhecida”. Expliquemos. O movimento feminista, em especial na metade da década de 1970, contribuiu para disseminação da consciência de problemas sociais que afetam, sobretudo, populações pobres do sul marginalizado. É que, nessa quadra histórica, o movimento feminista foi alçado à prática ético-política direcionada a questões voltadas para a pobreza, à crescente violência, a condição da mulher negra, a falta de representatividade das mulheres no cenário político e a relação predatória que estabelecemos com o meio ambiente. Todavia, a despeito da aceitação e do endosso da população a essas questões, temos que as práticas sexistas, misóginas e violentas contra as mulheres ainda persistem. Movido pela curiosidade epistemológica, pretendeu-se, neste momento, conhecer o sistema que engendra e perpetua as violências contra as mulheres: o patriarcado e as práticas de “reificação”.  O conhecimento desses pontos exige, conforme profetiza José Saramago, que saímos da ilha para conhecer a ilha. 

O patriarcado é um sistema ideológico em que a construção social do masculino assume a função de parâmetro universal para o estabelecimento de todas as relações de uma determinada comunidade. A partir do estabelecimento dessa universalização, que tem seu marco inicial na era neolítica (há dez mil anos), os homens passaram a exercer, frequentemente, poder absoluto sobre todos os aspectos da vida das mulheres. 

Na lição de Maria Miess, “o patriarcado é um sistema social, cultural, econômico e político global que determina a vida da mulher desde o nascimento até a morte” (MIESS, 2022, p. 25). É, portanto, a demonstração e a institucionalização da totalidade da dominação masculina. Sugere, assim, que homens têm poder absoluto em todas as instâncias importantes da sociedade, e exercem o conjunto dos poderes morais, políticos e econômicos. Os homens, ainda, codificam comportamentos, bem assim tomam decisões que envolvem toda a sociedade. É um sistema de dominação masculina, que tem como característica, essencialmente, a “reificação” da sexualidade, do corpo e da força de trabalho das mulheres. A codificação de comportamentos e as condutas reificantes assentam-se na arquitetura do edifício social, que pode ser distinguido, numa perspectiva materialista, em infraestrutura ou alicerce e a superestrutura, onde repousa a ideologia, instrumento que conduz ou permite a “reificação” enquanto prática de coisificação e objetivação do humano. É a ideologia, segundo Marta Harnecker (HARNECKER, 1971, p. 99/100):

dá coesão aos indivíduos em seus papéis, em suas funções e em suas relações sociais. A ideologia impregna todas as atividades do homem, compreendendo entre elas a prática econômica e a prática política (…). Está presente nas atitudes e nos juízos políticos, no cinismo, na honestidade, na resignação e na rebelião. Governa os comportamentos familiares dos indivíduos e suas relações com os demais homens e com a natureza. Está presente em seus juízos acerca do ‘sentido da vida’ e assim por diante. A ideologia se acha a tal ponto presente em todos os atos e gestos dos indivíduos que chega a ser indiscernível de sua ‘experiência vivida’ e, por isso, toda análise imediata do ‘vivido’ está profundamente marcada pela ação da ideologia. Quando se pensa estar diante de uma percepção obscura e nua da realidade ou de uma prática pura, o que ocorre, na verdade, é que se está diante de uma percepção ou de uma prática “impura”, marcada pelas estruturas invisíveis da ideologia. Como não se percebe a ação, a tendência é para tomar a percepção das coisas e do mundo por percepção das “coisas mesmas”, o que não ocorre sob a ação deformadora da ideologia.

O sistema de dominação masculina é uma criação histórica que perpassa todas as culturas. Deste modo, homens e mulheres, em todas as épocas e espaços, contribuíram para sua formação. Inicialmente, o locus de sua criação, organização e reprodução foi a família patriarcal, que definia as regras, valores e costumes. O embrião das famílias pode ser encontrado com o advento da transição do nomadismo para o sedentarismo, durante a era neolítica da pré-história. É que, com o desenvolvimento do arado, emergiu a criação de técnicas de caça, agricultura, domesticação e moradias, o que viabilizou o surgimento de vidas sedentárias. A figura masculina ganhou especial destaque nesse cenário, porquanto o homem passou a dominar, de modo exclusivo, a produção de suprimentos e, sobretudo, os seus excedentes. Ainda, a cultura sedentária forneceu ao homem conhecimentos importantes sobre a reprodução humana. Certo de sua importância capital no processo, o homem passou a dominar a vida sexual da mulher, exigindo-lhe fidelidade. A fidelidade visava garantir a paternidade e a proteção de bens. A mulher ficou restrita, portanto, ao ambiente doméstico.

As definições da essência do masculino e do feminino, bem assim os papéis sociais impostos a homens e mulheres eram apreendidos no seio familiar, afetando, contudo, as feições do próprio Estado. É que as expectativas no exercício dos papéis, não raras as vezes, foram colocadas nas leis e códigos vigentes. A família, antes mesmo da criação da civilização ocidental, regulou aspectos da sexualidade das mulheres e, também, suas formas de trabalho e interações sociais. A formação das famílias objetivava, primeiramente, o aumento do patrimônio, colocando os sentimentos e laços afetivos em segundo plano. Aqui já conseguimos vislumbrar uma conduta reificante. Assim, a domesticação da mulher é consequência imediata da ganância masculina em assegurar a posse e herança de sua descendência. A circunstância de que a maternidade é certa e a paternidade incerta foi (e ainda continua sendo) um assombro ao modelo patriarcal. A reificação da sexualidade feminina, bem assim seu rigoroso controle, impôs uma dinâmica especial ao patriarcado, pois contribuiu para sistematização de uma divisão sexual do trabalho e a construção de papéis marcados de gênero.

A edificação do patriarcado como esse sistema totalitário centra-se, fundamentalmente, em dois aspectos essencialmente interligados: a) no modo em que se estabeleceram relações de trabalho (ou no modo como se deu a divisão sexual do trabalho) e; b) na apropriação primitiva e violenta da capacidade reprodutiva da mulher. No período neolítico, as mulheres eram encarregadas das tarefas da casa, da educação dos filhos, bem assim do cuidado com a terra e preparo dos alimentos. A historiadora Gerda Lerner ressalta, ainda, que no referido período, o progresso da agricultura incentivou o intercâmbio de mulheres entre tribos (LERNER, 2019). É que uma sociedade com mais mulheres poderia produzir mais filhos, que poderiam trabalhar na produção e no acúmulo de excedentes. É notório, portanto, o poder e “direitos” que os homens tinham sobre as mulheres. As mulheres eram tratadas como recursos e objetos a serviço da vontade masculina. O exemplo mais marcante foi, sem dúvidas, os casamentos arranjados em benefício de famílias.

Seguindo a marcha histórica de dominação, como reflexo das conquistas tribais, os homens passaram a escravizar mulheres. Consequentemente, apropriaram-se de seus corpos e de sua prole. Os serviços sexuais constituíam, de modo encarnado e visceral, aspecto da mão de obra feminina. Os filhos das escravas eram propriedade absoluta dos senhores. Percebe-se, assim, que a escravidão de mulheres, precedeu a formação da sociedade de classes e sua respectiva opressão. Gerda Lerner ensina, nesse ponto, que “as diferenças de classes foram, em seu início, expressas e constituídas em termos de relações patriarcais” (LERNER, 2019, p.262). Todavia, registra que a classe não pode ser analisada separadamente do gênero. É que a classe é expressa em termos relacionados ao gênero (LERNER, 2019). Voltaremos a esse ponto no tópico seguinte.

Houve, ainda, sociedades em que as filhas de famílias pobres eram negociadas e vendidas para casamentos ou prostituição, tudo com o objetivo de manter, economicamente, as próprias famílias. Os homens mediam tais negociações e eram, exclusivamente, os beneficiados com o produto desse comércio de mulheres. Nasce, assim, o que conhecemos como acúmulo de propriedade privada. Nessa esteira, Lerner lembra que a “escravização de mulheres de tribos conquistadas tornou-se não apenas um símbolo de status, mas permitiu que conquistadores acumulassem riqueza tangível por meio da venda ou negociação de produtos de trabalho escravo” (LERNER, 2015).

Nesse contexto, nota-se a cristalização de um sistema de objetificação não da mulher em si, mas de sua sexualidade e de sua capacidade reprodutiva. A amplitude de liberdade das mulheres é, portanto, mais restrita do que a liberdade dos homens. As mulheres sempre estiveram relegadas às trocas e mercadorias de casamento. Os homens, por sua vez, são os beneficiários diretos dessas transações. O referido cenário acentuou a solidificação de papéis de gênero. A manifestação mais próxima é, sem dúvida, a atribuição da figura de caçadores e guerreiros aos homens. O estabelecimento desse papel consolidou o homem como o detentor do poder sobre todas as pessoas de tribos conquistadas. Em uma perspectiva de divisão de classes temos que a posição da mulher é consolidada por meio de suas relações sexuais, enquanto a posição dos homens é fundada nas suas relações com os meios de produção. Os homens que detêm os meios de produção também, conjuntamente, exploram as mulheres sexualmente. Lerner nos conta que na Antiga Mesopotâmia, na Antiguidade clássica e em sociedades escravocratas, os homens dominantes também adquiriam, como propriedade, o produto da função reprodutiva” (LERNER, 2019, p. 265). Os filhos das mulheres eram usados como trabalhadores, negociados para casamentos ou vendidos como escravos. Os senhores, desse modo, apropriaram-se da vida dos filhos das mulheres. Ao que se constata, para as mulheres, o pertencimento a uma classe era, fundamentalmente, mediado por seus vínculos sexuais. Isso porque era por intermédio do homem que a mulher alcançava os recursos imprescindíveis à sua subsistência, solidificando sua total dependência e subordinação. Essa característica tornou o patriarcado pungente e fortalecido, porque implicava exercício de violência. A base da violência, da opressão e da exploração das mulheres é, sem dúvida, a reificação de sua sexualidade e de sua capacidade reprodutiva – que se tornaram objeto de comércio exercido por homens. 

Nesse ponto, é importante destacar que existe uma corrente de pensamento que, acertadamente, inclui o acesso sexual ao corpo feminino na teoria política do contrato social. É o que defende Carol Pateman. Ao falar sobre o contrato sexual que estabelece o patriarcado moderno e a dominação masculina sobre as mulheres, Pateman (1993, p. 16-17) afirma que o contrato social original é um pacto sexual-social, mas a história do contrato sexual tem sido omitida/sufocada. Além da liberdade está em jogo “a dominação dos homens sobre as mulheres e o direito masculino de acesso sexual regular a elas”. Portanto, o contrato social é uma história de liberdade e o contrato sexual é uma história de sujeição, sendo que o contrato original cria ambas: a liberdade e a dominação. Nas palavras da autora:

 […] O pacto original é tanto um contrato sexual quanto social: é sexual no sentido de patriarcal – isto é, o contrato cria o direito político dos homens sobre as mulheres -, e também sexual no sentido do estabelecimento de um acesso sistemático dos homens aos corpos das mulheres. O contrato original cria o que chamarei, seguindo Adrienne Rich, de “lei do direito sexual masculino”. O contrato está longe de se contrapor ao patriarcado; ele é o meio pelo qual se constitui o patriarcado moderno (PATEMAN, 1993, p. 17).

Pateman (1993, p. 18) pretende deixar claro que o contrato sexual na sociedade patriarcal faz parte do contrato original, e ignorá-lo seria ignorar metade do contrato original. A sociedade civil patriarcal está dividida em duas esferas, a pública e a privada, mas só se presta atenção a uma delas. “A história do contrato social é tratada como um relato da constituição da esfera pública da liberdade civil. A outra esfera, a privada, não é encarada como sendo politicamente relevante.” Como se propagou, erroneamente, a ideia de que o contrato social é algo distinto do sexual, este último se restringiria à esfera privada, razão pela qual o patriarcado não diria respeito ao espaço público, não tendo para ele nenhuma relevância. Para contra-argumentar este raciocínio equivocado, Pateman (1993, p. 18-19) aduz que,  

ao contrário, o direito patriarcal propaga-se por toda a sociedade civil. O contrato de trabalho e o que chamarei de contrato de prostituição, ambos integrantes do mercado capitalista público, sustentam o direito dos homens tão firmemente quanto o contrato matrimonial. As duas esferas da sociedade civil são separáveis e inseparáveis ao mesmo tempo. O domínio público não pode ser totalmente compreendido sem a esfera privada e, do mesmo modo, o sentido do contrato original é desvirtuado sem as duas metades interdependentes da história. A liberdade civil depende do direito patriarcal (PATEMAN, 1993, p. 18-19).

As estruturas patriarcais contaminam toda a sociedade, não estando adstrita ao espaço privado, mas também impregnam o Estado. A divisão social em duas esferas serve apenas para fins analíticos, todavia, para ser possível a compreensão do todo social, são inseparáveis. O contrato original possui um caráter masculino, que se caracteriza como um contrato entre homens, o qual possui como objeto as mulheres, em que as diferenças sexuais são convertidas em diferenças políticas, de modo que a uma parte é garantido o direito de liberdade, e à outra, o dever de sujeição, sendo o patriarcado daí decorrente uma forma de expressão do poder político, razão pela qual devem ser analisados conjuntamente (PATEMAN, 1993). 

Ao analisar o patriarcado como um sistema político, que como tal se estende às famílias, às relações trabalhistas, sexuais e a outras esferas, passou a ser possível enxergar até onde se estendia o controle e domínio sobre as mulheres, popularizando-se a ideia de que o pessoal é político. A partir de então, as mulheres passaram a perceber que aquilo que pensavam ser problemas individuais eram na verdade experiências comuns a todas, resultado de um sistema opressor (GARCIA, 2015).

Com a afirmação o pessoal é político, pretende-se dizer que o que acontece na relação entre os sexos na vida pessoal não é imune à dinâmica de poder e “que nem o domínio da vida doméstica, pessoal, nem aquele da vida não-doméstica, econômica e política, podem ser interpretados isolados um do outro”. Na teoria política a vida familiar é pressuposta e não discutida, tendo sido encargo do feminismo problematizar as relações de poder nas famílias, como se vê a seguir: 

Ainda que nem sempre explicitado, “o pessoal é político” na verdade tornou-se a afirmação que sustentou o que a maioria das pensadoras feministas estava dizendo. Feministas de diferentes tendências políticas, e em uma variedade de disciplinas, revelaram e analisaram as conexões múltiplas entre os papéis domésticos das mulheres e a desigualdade e segregação a que estão submetidas nos ambientes de trabalho, e a conexão entre sua socialização em famílias generificadas e os aspectos psicológicos de sua subordinação. Desse modo, a família se tornou, e vem se mantendo desde então, central à política do feminismo e um foco prioritário da teoria feminista. (OKIN, 2008, p. 314). 

O patriarcado moderno deixou de ser paternal, deixando de se estruturar no parentesco e no poder dos pais, passando a se pautar na subordinação das mulheres aos homens enquanto homens, ou enquanto fraternidade, criando assim o patriarcado fraternal moderno. Tal conclusão decorre do fato de “o poder de um homem enquanto pai é posterior ao exercício do direito patriarcal de um homem (marido) sobre uma mulher (esposa)”, devendo-se abandonar a acepção de poder paterno do direito patriarcal e passar a compreendê-lo como direito sexual (PATEMAN, 1993, p. 18).

Ao encontro deste entendimento, Delphy (2009, p. 173) afirma que o termo patriarcado mudou de sentido, inicialmente por volta do século XIX, com as primeiras teorias dos “estágios” da evolução das sociedades humanas, e posteriormente no final do século XX, com a “segunda onda” do feminismo surgida na década de 1970 no Ocidente. De acordo com esta nova acepção feminista, o termo patriarcado significa “uma formação social em que os homens detêm o poder, ou ainda, mais simplesmente, o poder é dos homens”. Ele é, assim, quase que sinônimo de “dominação masculina” ou de opressão das mulheres”, distinguindo-se deles em virtude de duas características: por um lado designa um sistema e não relações individuais; por outro lado, as feministas opuseram a distinção de patriarcado e capitalismo, deixando claro que não se trata da mesma coisa, para explicitar que a subordinação das mulheres não é uma consequência exclusiva do capitalismo, um não se reduzindo ao outro.

Na lição de Saffioti o patriarcado é uma relação civil, que confere direitos sexuais aos homens sobre as mulheres e, ainda, configura um tipo hierárquico de relação que invade todos os aspectos da vida social. Por fim, tem uma base material, corporifica-se e representa uma estrutura de poder baseada tanto na ideologia quanto na violência (SAFFIOTI, 2015, p. 60). A partir da construção do masculino e do feminino, temos que não há comunidade alguma sem gênero. Dessa solidificação, desde as sociedades de caça e coleta, advém uma divisão orgânico-social do trabalho, conhecida como divisão sexual do trabalho. Naquelas sociedades, como dito anteriormente, a caça cabia aos homens e a coleta às mulheres. Saffioti destaca que a caça respondia muito pouco pela efetiva subsistência da família, porque era incerta. Todavia, havia uma distribuição igualitária das tarefas (SAFFIOTI, 2015). A transição para sociedades desiguais foi produto dos fatores elencados acima, quais sejam: a produção de excedentes na agricultura e o domínio do homem sobre a capacidade reprodutiva da mulher. Assim, é possível vislumbrar uma relação simbiótica entre formação do patriarcado e capitalismo, o que desenvolvemos no tópico seguinte.

No caso do Brasil, é possível falar em três formas de patriarcalismo: o primeiro é oriundo dos povos originários que viviam o período denominado neolítico superior, marcado por uma rígida divisão de tarefas; o segundo, proveniente do Ocidente Cristão, se baseava na crença de que a mulher é pecadora e responsável pela expulsão de todos do paraíso; o terceiro, por fim, procedente “das Áfricas”, é caracterizado pela poligamia, pelo tabu da esterilidade e pelo rigoroso sistema de controle da sexualidade feminina. Os povos originários no Brasil, por ocasião da chegada dos Europeus, viviam o período neolítico superior, ou seja, divisão de tarefas bastante definidas. Os homens eram responsáveis pelas guerras, caça, pesca, liderança tribal, relações externas, construção das aldeias, canoas, armas, produção do fogo e derrubada das matas. Às mulheres estava destinado o plantio, a colheita, o preparo de alimentos, a limpeza, organização do ambiente e o cuidado com crianças e velhos.  Após, com o início da colonização, surge a necessidade de constituição de famílias. Todavia, o número de mulheres europeias era insuficiente. Deste modo, os europeus subjugaram sexualmente as índias. Aqui fica evidente a vertente sexual do contrato social. Com a chegada dos Europeus no Brasil introduziu-se o patriarcado cristão, representado pela visão de inferioridade e submissão das mulheres. O pano de fundo na Europa era o movimento de “caça às bruxas” e a Inquisição. À época já se contava com vários escritos que firmavam a ideia de que a mulher era um ser diabólico, a quem se atribuía a responsabilidade pela expulsão do paraíso. Ainda, tem-se concepção médica que descrevia o corpo feminino como inferior ao corpo masculino. Contava-se que a mulher era um ser lunar, noturno, diabólico. Os médicos recorreram a inúmeras metáforas com a finalidade de propagar comparações que colocavam as mulheres em situação de menoridade e submissão aos homens. Por fim, proveniente “Das Áfricas” veio a herança da presença do homem forte e poderoso, praticante da poligamia e preocupado em perseguir e expulsar mulheres estéreis dos vilarejos, marcando um rigoroso controle da sexualidade feminina. 

Segundo a historiadora Mary Del Priore (PRIORE, 2020, p. 15):

“Embora o continente africano não forme um bloco uno, as escravizadas vinham de nações organizadas em clãs, onde a poligamia era corrente e onde viviam submissas aos códigos de conduta de uma sociedade hierarquizada, estruturada segundo rígidos padrões de comportamento e tradições religiosas. Nelas, o chefe poderoso era aquele que sabia amparar generosamente, reunindo todos os membros de uma família numerosa. Privilégios e poderes ficavam nas mãos dos homens, cuja importância era definida pelo número de filhos que engendraram. “Papai” ou “Bigman”, era o chefe. Cada um poderia ter quantas esposas conseguisse sustentar, e cada esposa viveria na única perspectiva da maternidade, tão valorizada quanto o vínculo entre as pessoas e os espíritos ancestrais”.

Para além desses patriarcas, a Igreja Católica, a partir do Concílio de Trento (1535/1537), cuidou de consolidar os papéis sexuais dentro do sacramento do matrimônio. O casamento tinha a finalidade de controlar as populações. A relação com a Igreja permeia, então, a formação das famílias que estavam se constituindo no primeiro momento da colonização, sob o mote dos três patriarcados citados acima. O matrimônio, frise-se, tinha uma única e exclusiva finalidade: a procriação. Nesse contexto, cabia à mulher o papel de ser mãe. É um cenário de adestramento absoluto da sexualidade feminina. Lamentavelmente, o patriarcado conta com a cooperação de mulheres. Os instrumentos utilizados para obter a referida cooperação são: a doutrinação de gênero e, sobretudo, a ausência de uma educação com perspectiva de gênero. Nesse ponto, Lerner preceitua: “Há milênios as mulheres participam do processo da própria subordinação por serem psicologicamente moldadas de modo a internalizar a ideia da própria inferioridade”. (LERNER, 2019, p. 268). 

Como descrito, há diversas teorias que analisam o patriarcado. Contudo, o fundamento principal deste rigoroso sistema é compartilhado por todas as teorias, qual seja: o patriarcado é uma forma de organização hierárquica e desigual dos sexos. Essa organização foi capaz de naturalizar desigualdades que foram sendo construídas ao longo da história em cada comunidade, com o objetivo precípuo de conferir aos homens o poder e controle sobre todos os aspectos da vida humana, em especial sobre a vida das mulheres. Nesse ponto da discussão, convém registrar um ponto importante: é preciso conhecer o patriarcado e questioná-lo, desvelando, portanto, sua naturalização. A partir do conhecimento e identificação do patriarcado, através da educação, a comunidade, em especial crianças e adolescentes, poderão criar mecanismos de ruptura com o que está rigidamente colocado. Isso porque quando se afirma que é natural que a mulher se ocupa do espaço doméstico, deixando livre para o homem o espaço público, está-se, rigorosamente, naturalizando um resultado da história” (SAFFIOTI, 1987, p. 11). O silêncio e a omissão no que toca às consequências nefastas do patriarcado é o caminho mais célere e violento para legitimar a suposta superioridade do homem. A naturalização dessa divisão deve ser questionada e combatida. 

A falta de conhecimento acerca do patriarcado é um projeto que tem como objetivo manter as mulheres subordinadas. A mudança, partindo da apropriação do conhecimento, é necessária. Esse sistema de dominação, que tem sido causa de violências atrozes sobre o corpo das mulheres, deve ter seus pressupostos, valores e definições combatidos. Acredita-se que é possível, por meio da educação, espraiar uma consciência de igualdade absoluta para além do gênero. Isso demanda: a) a compreensão das mulheres de que pertencem a um grupo subordinado; b) o pertencimento a esse grupo é causa de violação de direitos e injustiças; c) a compreensão de que essa subordinação não é natural, mas imposta pela sociedade, pelo poder e, essencialmente, pelo capitalismo; d) que todos, homens e mulheres, em especial crianças e adolescentes em idade escolar, desenvolvam senso de irmandade; e) a união das mulheres em torno de objetivos e metas com vistas a mudar a situação; f) a criação de uma visão alternativa para o futuro, pautada na preservação do meio ambiente, na subsistência e no respeito mútuo e; g) o conhecimento da rede legal, nacional e internacional, de proteção dos direitos humanos das mulheres.

Por fim, é imprescindível salientar que a violência é o instrumento mais contundente do patriarcado. É que a violência direta foi o meio pelo qual as mulheres, o meio ambiente e os países do sul global foram coagidos a servir aos homens, principalmente homens brancos e europeus. Segundo o MIESS “sem tal violência, o Iluminismo europeu, a modernização e o desenvolvimento não teriam acontecido” (MIESS, 2022, p. 32). No continente europeu, durante o Iluminismo, podemos constatar a brutal perseguição e matança de mulheres tidas como bruxas, tudo como forma de controlar corpos rebeldes que resistiam aos cercamentos e consolidação da acumulação da propriedade privada em escala mundial. MIESS destaca que se descobriu nesse período “tortura usadas para forçar uma mulher a confessar que havia praticado feitiços para prejudicar um vizinho ou que tinha cooperado ou dormido com o diabo” (MIESS, 2022, p. 33). Ainda hoje o uso da violência é visível, como podemos detectar no estupro de mulheres durante conflitos armados e o crescente número de assassinatos perpetrados contra mulheres em nome das mais diversas causas, quais sejam: disputa de territórios, tráfico de drogas, proteção da honra, desemprego entre outras.

Com essa consideração é importante traçar a relação entre dominação, opressão e violência contra as mulheres e sistema capitalista. É que o capitalismo está fundamentalmente ligado ao patriarcado, não como legado, mas como necessidade (ARRUZZA, 2015). Sob o ponto de vista do marxismo clássico, a educação transformadora e emancipatória das mulheres, está ligada à luta de classes e não pode estar dissociada da ruptura do sistema capitalista de produção. É que, segundo Saffioti (SAFFIOTI, 1975, p. 35):

O aparecimento do capitalismo se dá, pois, em condições extremamente adversas à mulher. No processo de individuação inaugurado pelo modo de produção capitalista, a mulher contaria com uma desvantagem social de dupla dimensão: no nível superestrutural, era tradicional uma subvalorização das capacidades femininas traduzidas em termos de mitos justificadores da supremacia masculina e, portanto, estrutural, à medida que se desenvolviam as forças produtivas, a mulher vinha sendo progressivamente marginalizada das funções produtivas, ou seja, perifericamente situada no sistema de produção (…) o único feminismo radical do ponto de vista político é o feminismo socialista, pois ser radical significa tomar as coisas pela raiz. Ainda que concorde com a afirmação de Marx, de que a raiz das coisas é o homem, leva-se o raciocínio da estratégia de luta proposta um poco mais adiante. O ser humano é, efetivamente, a raiz de todas as coisas, mas a raiz das desigualdades presentes nas sociedades regidas pelo patriarcado-racismo-capitalismo reside exatamente na já referida simbiose.

É preciso, portanto, conhecer a fusão entre patriarcado e capitalismo. É que um projeto de transformação das condições das mulheres requer considerar importante uma unidade dialética entre a relação entre dominação, opressão e violência e capitalismo e questões étnico-raciais, isso como forma de apreensão das contradições que constituem a realidade concreta.

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1Mestrando em Direito e Políticas Públicas pela UNISC/RS. Especialista em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global pela PUC/RS. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Acre.