DESAFIOS BIOÉTICOS NO TELEATENDIMENTO EM SAÚDE EM TEMPOS DE PANDEMIA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202507242110


Prof. Dr. José Antonio Cordero1
Prof. Dra. Nara Macedo Botelho1
Allan Oliveira de Lira2
Gabriela Borborema do Amaral2
Jessica Ramos Tavares2
Marcia Helena Ribeiro de Oliveira2
Sarah Manuele Cuimar dos Santos2


Resumo

As crescentes estatísticas, que evidenciaram cerca de 500 mil mortes em menos de seis meses de pandemia pelo novo coronavírus (COVID 19), implicaram em mudanças nos atendimentos de saúde em todo o mundo. Uma das tecnologias empregadas foi o teleatendimento, que apesar de disponível há décadas, destacou-se significativamente pelo seu uso na linha de frente assistencial. Trata-se de uma reflexão direcionada aos desafios bioéticos do teleatendimento em saúde, separados em pilares, encontrados no enfrentamento da COVID-19 em curso no Brasil. Para a revisão de literatura foi utilizado o mecanismo de busca avançada da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), com os seguintes descritores/palavras-chaves: telemedicina OR telessaúde AND covid-19 OR coronavírus. Os preceitos bioéticos da beneficência, não maleficência, autonomia e justiça foram discutidos no contexto do teleatendimento em saúde. Constatou-se que o uso do teleatendimento em saúde traz vários avanços e desafios para a assistência, o que exige a constante reflexão a respeito dos conceitos bioéticos incutidos nesse modelo de atenção. O processo de implementação da teleconsulta precisa contemplar a viabilidade da cobertura para o acesso a lugares remotos, a construção de estrutura legal e jurídica, a análise do impacto orçamentário e do custo-efetividade, além da elaboração de indicadores clínicos no que tange a segurança do paciente. A reflexão dos conceitos bioéticos no teleatendimento em saúde deve ocorrer de forma contínua não só pelo profissional como pelo sistema de saúde e educacional envolvido na formação para atender a esse novo modelo assistencial em conformidade com os preceitos bioéticos.

Descritores: telemedicina; telessaúde; covid-19; coronavírus; bioética.

Abstract

The growing statistics, which showed about 500 thousand deaths in less than six months of the new coronavirus pandemic (COVID 19), implied changes in health care worldwide. One of the technologies employed was teleservice, which despite being available for decades, stood out significantly for its use on the healthcare front line. This paper consists in a reflection directed to the bioethical challenges of telemedicine, separated into pillars, found in the confrontation of COVID-19 in Brazil. For the literature review, the search engine of the Virtual Health Library (VHL) was used, with the following keywords: telemedicine OR telehealth AND covid-19 OR coronavirus. The bioethical precepts of beneficence, non-maleficence, autonomy and justice were discussed in the context of telemedicine. The use of telemedicine brings several advances and challenges for health assistance, which requires constant reflection on the bioethical concepts instilled in this model of care. The telemedicine implementation process needs to contemplate the feasibility of coverage for remote access places, the construction of a legal and juridical structure, the analysis of budgetary impact and cost-effectiveness, in addition to the development of clinical indicators regarding the patient security. The reflection of the bioethical concepts in the telemedicine must occur continuously, not only by the professional but also by the health and educational system involved in the training to meet this new care model in accordance with the bioethical precepts.

Keywords: telemedicine; covid-19; coronavirus; bioethics.

Introdução

Em decorrência das crescentes estatísticas que evidenciaram cerca de 500 mil mortes em menos de seis meses de pandemia pelo novo coronavírus (COVID 19), mudanças nos atendimentos de saúde ocorreram em todo mundo, substituindo proporcionalmente atendimentos presenciais pelo emprego de tecnologias digitais que permitissem o distanciamento social envolvido no contágio entre os indivíduos, em especial na relação profissional da saúde e o doente.¹

Uma das tecnologias empregadas foi o teleatendimento em saúde, que apesar de disponível há décadas, destacou-se significativamente seu uso pela linha de frente assistencial a partir da pandemia da COVID-19, tanto como ferramenta de proteção para pacientes e profissionais da saúde, quanto como estratégia de prevenção ao colapso do sistema de saúde.²

Desde o século XX, a telemedicina é um dos grandes exemplos que ressaltam a potencialidade dessa ferramenta digital, na redução virtual das distâncias geográficas entre o doente e o profissional médico que o avalia, sendo referenciado pela primeira vez na literatura médica em 1950, quando casos radiográficos foram discutidos intermediados por telefonia.³

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), telemedicina consiste na prestação de serviços de saúde, onde a distância é um fator crítico, por profissionais de saúde utilizando tecnologias de informação e comunicação para o intercâmbio de informações válidas para o diagnóstico, tratamento e prevenção de doenças e agravos. É utilizada também na pesquisa, avaliação e formação contínua dos profissionais de saúde, objetivando melhorar a saúde em âmbito individual e coletivo.⁴

No Brasil, a prática deste modelo de atenção não era integralmente  regulamentada até o ano de 2020. O Conselho Federal de Medicina (CFM) e os Conselhos Regionais de Medicina (CRM) contrapunham a utilização da telemedicina, destacando o desrespeito ao Art. 37 do Código de Ética Médica: “prescrever tratamento e outros procedimentos sem exame direto do paciente”.5,6

Com a epidemia de COVID-19 em curso, o CFM reconheceu a possibilidade e o caráter ético da utilização da telemedicina, em nível de excepcionalidade e enquanto durar a batalha de combate ao contágio da COVID-19, nos seguintes termos: teleorientação, telemonitoramento, e  teleinterconsulta.5, 6

Em seguida, a Portaria nº 467/2020, de 23 de março de 2020, dispondo sobre as ações de telemedicina na operacionalização das medidas de enfrentamento da epidemia, autoriza sua prática nos âmbitos público e privado, podendo esta, ser empregada – com caráter de excepcionalidade – em ações que contemplem o atendimento pré-clínico, de suporte assistencial, de consulta, monitoramento e diagnóstico, no âmbito do SUS e saúde suplementar.7

Abrangendo ainda mais suas prerrogativas, em 15 de abril de 2020 foi sancionado pelo presidente em exercício, na forma da Lei nº 13.989/2020, autorizando o uso da telemedicina em quaisquer atividades da área de saúde no Brasil, incluindo a teleconsulta, enquanto durar a crise da COVID-19.7

Contudo, apesar de o teleatendimento em saúde ser atualmente regulamentado e estar presente através da telemedicina desde 2002, muito ainda se discute sobre essa metodologia, como por exemplo, as formas de desenvolvimento e indicação, remuneração dos profissionais envolvidos, respeito aos quesitos éticos e bioéticos, principalmente no que tange a proteção de dados dos pacientes,8 ocasionando possíveis riscos à qualidade, segurança e continuidade do atendimento, fragilizando, por conseguinte, a relação profissional-paciente.9

Enquanto novas tecnologias e novos modelos de cuidado constantemente continuam a surgir, as responsabilidades éticas profissionais fundamentais não sofreram modificações essencias e seus conflitos também não desapareceram.9 Dentro deste complexo cenário, o objetivo deste artigo é discutir os dilemas bioéticos do teleatendimento em saúde, dentro do contexto brasileiro, em especial na atual pandemia COVID-19.

Método:

Trata-se de uma reflexão direcionada aos desafios bioéticos, separados em pilares, encontrados no enfrentamento da COVID-19 em curso no Brasil. Para o embasamento teórico foi realizada ampla revisão da literatura mundial e análise de documentos oficiais nacionais e estaduais relacionados à estratégia de combate à COVID-19 no Brasil. A partir desse extenso material e do conhecimento advindo da disciplina de Bioética do Programa de Mestrado em Ensino em Saúde da Universidade do Estado do Pará, os autores levantam a discussão do referencial teórico, aliado às suas próprias experiências em serviço.

A revisão da literatura foi realizada inicialmente com foco nas possibilidades de uso da telemedicina/telessaúde no enfrentamento da pandemia pela COVID-19. Para tal, foi utilizado o mecanismo de busca avançada da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), no dia 04 de abril de 2021 (reatualizada em 24 de abril de 2021), que incluiu as bases bibliográficas MEDLINE, LILACS, PAHO-IRIS, BDENF – Enfermagem, base da Secretaria Estadual de Saúde de SP, Coleciona-SUS, com os seguintes descritores/palavras-chaves: telemedicina OR telessaúde AND covid-19 OR coronavírus. A pesquisa foi ainda refinada para direcionar ao aspecto bioético, limitando os artigos que continham as seguintes palavras ou termos em qualquer trecho do artigo: bioética OR ética OR beneficência OR não maleficência OR justiça OR autonomia. Foi então colocado o filtro para artigos somente dos anos de 2020 e 2021 e nos idiomas inglês, espanhol e português. Desta forma, estavam elegíveis para esta pesquisa de literatura 81 artigos.

Com vistas a levantar e discutir as estratégias relacionadas à telessaúde desencadeadas no Brasil, foram examinados os planos de contingência nacional e estaduais contra a epidemia e as normativas publicadas pelo Governo Federal desde a decretação da situação de Emergência em Saúde Pública de importância Nacional , disponibilizados em pasta específica sobre coronavírus do Ministério da Saúde (Coronavírus COVID-19. https://coronavirus.saude.gov.br/, acessado em 24/Abr/2020).7 Foram ainda verificadas as páginas eletrônicas dos conselhos federal e estaduais de medicina, considerando-se que parte destas normativas impacta diretamente na prática médica, cuja regulamentação específica está a cargo destes órgãos.5,6

Resultados e Discussão

Princípio da Bioética da Beneficência

A beneficência, enquanto princípio, constitui uma ferramenta para o processo de estudo e de decisão sobre diversas questões bioéticas com que o profissional de saúde enfrenta em seu cotidiano. Significa “fazer o bem”, de modo que o profissional de saúde ao se deparar com um paciente deverá reconhecer sua dignidade, autonomia e totalidade, visando oferecer o melhor tratamento não só do ponto de vista técnico, mas também no reconhecimento de suas necessidades físicas, psicológicas, sociais e espirituais. O profissional de saúde deve sempre desejar o melhor para o seu paciente, tanto no restabelecimento de um agravo, prevenção de doenças e promoção da saúde.10

Dessa forma, o princípio da beneficência no teleatendimento em saúde no contexto da pandemia da COVID-19 se aplica por permitir um maior alcance de atendimentos em saúde em um momento em que o distanciamento social, o medo do contágio e da impossibilidade de aglomeração se impõem. Assim, permite não só o atendimento médico e multiprofissional como também a transmissão de informação, o repasse de orientação e o acolhimento do paciente que muitas vezes se encontra isolado e sem suporte familiar ou social, inclusive proporcionando uma diminuição na demanda para a assistência secundária.11

A beneficência das teleconsultas se aplicam também no auxílio interprofissional, uma vez que as diversas especialidades podem trocar experiências e informações por meio digital, como por exemplo a telerradiologia.12 A flexibilidade de horários e a aproximação profissional-paciente em um contexto de isolamento social associado a possibilidade de intervenções precoces que poderiam evitar o agravamento dos quadros ou a percepção de fatores de risco corroboram para a que o princípio bioético da beneficência possa ser exercido por meio das teleconsultas.13

Nesse cenário, o acesso à saúde é um dos principais benefícios que a teleconsulta possibilita.8 Ainda mais no Brasil, um país de dimensões continentais, em que a população tem enormes desafios de acesso aos serviços de saúde. O teleatendimento veio para redirecionar esse fluxo e permitir que mesmo de lugares longínquos, os pacientes possam ter acesso aos mais diversos profissionais, não só no tratamento, mas também na prevenção e promoção da saúde.14

Entretanto, alguns dilemas bioéticos ou limitações encontradas nesse percurso do teleatendimento podem e devem ser destacados. A impessoalidade do meio virtual pode dificultar o bom estabelecimento da relação profissional-paciente, o que reforça a necessidade do profissional que atua por meio da teleconsulta de desenvolver habilidades de humanização de seu atendimento, com acolhimento e empatia.12,13,15 Tais habilidades devem ser reforçadas e aprimoradas durante a sua formação, logo a educação em saúde deve nortear e estar ciente desse novo modelo de atendimento em saúde.16

A restrição de avaliações físicas e complementares de exames também se enquadram em limitações do teleantedimento em saúde no que tange à beneficência em sua totalidade e integralidade.17 Desta forma, muitos profissionais que atuam em teleconsultas dispondo de poucos recursos de exame físico, acabam realizando uma avaliação mais superficial, com supervalorização de exames complementares e ficam sujeitos a mais erros diagnósticos. Desta forma a habilidade de realização de uma boa anamnese em saúde e o desenvolvimento de outras tecnologias que possam aproximar o exame físico e a extração de dados complementares é fundamental para que este modelo de atendimento se fortaleça.

A postura profissional no que tange o esclarecimento do paciente e a adequada utilização de plataformas virtuais com preservação do sigilo profissional também são fundamentais para a teleconsulta.8,14 A valorização do prontuário eletrônico, não só para o acompanhamento como para o respaldo profissional são fundamentais para a adequação da teleconsulta enquanto modelo de atendimento em saúde.15

Princípio da Não-Maleficência

Como já foi falado neste artigo a telemedicina não é uma ferramenta que surgiu devido à nova realidade da pandemia do COVID-19, ela já vem sendo utilizada há alguns anos, porém não se pode negar que seu uso foi otimizado em grande escala em razão do cenário mundial atual.18

Perante isso, a telemedicina e a telessaúde têm ajudado cada vez mais pacientes e profissionais de saúde, porém os mesmos cuidados bioéticos utilizados na consulta presencial, devem ser transportados para a consulta remota.19

A não maleficência, é o princípio bioético no qual a ação do profissional de saúde sempre deve causar o menor prejuízo ou agravo à saúde do paciente.20 E não seria diferente na teleconsulta no contexto da COVID-19. Esse é um grande desafio, pois é uma doença nova, ainda com muitas lacunas de conhecimento, teorias que não foram comprovadas e linhas de tratamento diferentes.

Então, quando um profissional de saúde atende um paciente via teleconsulta, primeiramente tem que avaliar se aquele paciente tem condições físicas e psicológicas de receber esse tipo de atendimento, pois algumas vezes o paciente terá que ser encaminhado para uma consulta presencial para ser avaliado, para poder ter a real dimensão do quadro do paciente e não causar danos ao mesmo.

Outro ponto é o politratamento com o uso de múltiplos medicamentos, muitos dos quais se desconhece a ação benéfica em relação ao vírus.21 Então será que o paciente não vai se prejudicar mais do que se beneficiar utilizando muitos medicamentos? Será que seu organismo vai estar preparado para esse tratamento?

Quanto ao teleatendimento em saúde, a relação profissional-paciente necessita ser melhor regulamentada, compreendendo que entre eles vai existir a presença da máquina e que o sigilo das informações deve ser mantido com total segurança, tendo em vista o respeito e a garantia de privacidade que todo homem e toda mulher têm direito.19 Então, será que o paciente vai se sentir confortável nesse tipo de relação, ou não vai conseguir ser totalmente transparente como se fosse em uma consulta presencial e confidencial?

A nova era que se estabelece com o uso da telemedicina traz vários benefícios e pontos positivos para a saúde em geral, mas constantemente temos que estar revendo nossos conceitos para não ferir esse princípio bioético muito importante: de fazer “tudo” pelo paciente sem trazer nenhum maleficio para o mesmo.

Princípio da Autonomia

Para que uma determinada ação seja denominada autônoma, ela deve ser intencional, informada e livre de coerção.22 Nesse sentido, muitos autores argumentam que a ausência de interação e contato pessoal com o paciente pode colocá-lo em uma situação mais passiva, uma vez que o uso da tecnologia pode representar uma sobrecarga indevida para um paciente vulnerável que não possui o conhecimento adequado sobre o seu uso e suas implicações.23

A relação com o paciente se estabelece definitivamente quando, diante de uma consulta de saúde, o profissional concorda em diagnosticar e tratar o paciente, e o paciente concorda em ser tratado independentemente de o atendimento ter sido presencial ou não.23,24 Neste caso, os pacientes devem ser informados não apenas sobre questões relacionadas a prescrição do tratamento, mas também sobre as características inerentes que este tipo de atendimento apresenta.25

Nas questões relacionadas à confidencialidade das informações prestadas, é fundamental a utilização do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), cuja característica principal é justamente proteger a autonomia dos pacientes, no qual atestam estar cientes de suas condições, como sujeitos de pesquisa ou submetendo-se a procedimentos médicos e não-médicos considerados invasivos.25,26

Esse documento torna o paciente ou seu representante legal ciente de sua condição clínica, prognóstico, efeitos adversos, riscos e alternativas de tratamento, nos quais, as informações pertinentes a determinado paciente só poderão ser reveladas aos profissionais envolvidos no atendimento se forem autorizados pelo paciente ou seu familiar legal, mediante a assinatura no consentimento esclarecido supramencionado.27

 Diante desse novo contexto de virtualidade, algumas autoridades propõem normatizações de repercussão internacional pautadas nos princípios universais dos pacientes para se nortear a atuação nessa nova modalidade de assistência. Um dos documentos pioneiros nessa prática refere-se à “Declaração de Tel Aviv”, que define sobre as responsabilidades e normas éticas da telemedicina.28

Embora o TCLE seja amplamente usado e exigido na pesquisa em seres humanos, quando se trata das medidas terapêuticas instituídas a nível assistencial, especificamente ao teleatendimento, verificam-se na literatura ainda grandes entraves frente ao ato de assegurar a confiabilidade de manutenção da autonomia na prática médica e não médica,29 principalmente no que tange ao desconhecimento ou enfraquecimento de implementação dessas ferramentas de forma eficiente e eficaz.

No reconhecimento da autonomia e seus paradigmas envolvidos no teleatendimento em saúde, Filho e Hossne30 ressaltam que se por um lado, o paciente hoje possui maior facilidade de informação e diálogo com profissional da saúde que o consulta, por outro, percebe-se originar resistências e dificuldades, se este profissional se sentir testado pelo paciente quanto ao seu conhecimento e atualização, podendo gerar uma situação de desconfiança mútua.31  

Para além das possibilidades e aplicações já mencionadas do teleatendimento em saúde, cabe considerar que sua implementação deve ser um processo planejado, o qual precisa contemplar a viabilidade da cobertura da rede para acesso a lugares remotos, a construção do arcabouço legal e jurídico para sua efetivação, análise do impacto orçamentário e da avaliação de custo-efetividade, além da elaboração de indicadores clínicos no que tange à segurança do paciente.

Princípio da Justiça

O uso da telemedicina durante a pandemia de COVID-19 foi estimulado devido as barreiras geográficas e a proteção dos profissionais de saúde e seus familiares. O Brasil é o quinto maior país do mundo em extensão territorial e apresenta um dos maiores e mais completos sistemas de saúde pública, o qual garante o acesso universal, integral e gratuito aos seus cidadãos. Apesar de conter um sistema de saúde tão complexo e acessível à população, há grandes desigualdades na sua distribuição pelo território brasileiro.32

Como em qualquer estratégia, há vantagens, desvantagens e limitações. A população em situação de vulnerabilidade, como viver em ambientes rurais remotos, estaria em desvantagem. Portanto, condições que possam prejudicar a população historicamente mais vulnerável devem ser consideradas em profundidade ao estabelecer políticas de saúde.33

A região Norte do Brasil, apresenta vulnerabilidade em relação as demais, com indicador de 1,4 médicos para cada mil habitantes, os quais enfrentam mais dificuldades em ter acesso a tais profissionais. Essa região apresenta a floresta Amazônica como parte do seu território e uma população mista, muitos povos nativos e ribeirinhos moram em regiões cercadas por rios, o que dificulta o acesso para atendimento médico.  No atual contexto da pandemia, os dados epidemiológicos da COVID-19 na região norte e nas comunidades indígenas nos apresenta à vulnerabilidade social e econômica ao qual estão inseridas e é um alerta para a tomada de decisões, visto que é uma realidade observada há vários anos, demonstrando o maior risco de mortes e possível extermínio destes povos com a chegada de doenças.32

O processo de interiorização da circulação do vírus expõe a profunda desigualdade que persiste nas comunidades historicamente vulneráveis. Por isso é importante destacar e alertar que a presença física de profissionais de saúde nestes territórios pode aumentar o risco de contágio para a população local.  Portanto, a inserção da telemedicina é uma promissora alternativa para a melhor distribuição dos serviços de saúde. Por meio desta, torna-se possível levar atendimento médico a indivíduos geograficamente isolados; democratizando o acesso a saúde, proporcionando a população uma melhor qualidade de vida.32

Apesar de todos os benefícios advindos da telemedicina, um fator que demonstra a desigualdade social e dificulta o seu uso é o fato de que cerca de 30% dos brasileiros não possuem acesso à internet, tornando seu uso frágil por necessitar de internet para a sua execução, a qual é considerada uma ferramenta essencial para a prática da cidadania, de acordo com o art. 7º da lei nº 12.965/2014, que estabelece o Marco Civil da Internet.34

Além disso, pacientes que apresentem quadros graves, comorbidades ou distúrbios cognitivos e motores estarão restritos quanto ao uso de tecnologia, logo, a telemedicina estará limitada para tais casos.34 A reflexão quanto ao acesso do teleatendimento em saúde deve perpassar os conceitos de justiça e equidade, de forma que o planejamento em saúde deve ser orientado pelas necessidades individualizadas de cada paciente.

Conclusão

A nova era que se estabelece com o uso do teleatendimento em saúde traz vários avanços e desafios para a assistência, o que exige a constante reflexão a respeito dos conceitos bioéticos incutidos nesse modelo de atenção. Esse formato deve ser cada vez mais incluído na formação dos profissionais de saúde, para que novas competências, habilidades e atitudes sejam desenvolvidas e aprimoradas voltadas para essa nova realidade.

O processo de implementação da teleconsulta precisa contemplar a viabilidade da cobertura da rede para acesso a lugares remotos, a construção do arcabouço legal e jurídico para sua efetivação, análise do impacto orçamentário e da avaliação de custo-efetividade, além da elaboração de indicadores clínicos no que tange à segurança do paciente.

Apesar do teleatendimento em saúde reduzir geograficamente os laços tradicionais de acessibilidade a profissionais qualificados de saúde, pelo custo-benefício, proporciona a redução de tempo de espera para consultas, transporte de ambulâncias para os grandes centros de referências em tecnologia, contempla todos os níveis de atenção à saúde, em contrapartida, ainda não substitui o olhar, o contato físico de avaliação, o toque, o aperto de mão, a reação feliz do paciente ao entrar em contato com o profissional da saúde.

Que o teleatendimento permita o renascimento da humanização em saúde e que os profissionais, ainda que com olhos virtuais consigam enxergar o paciente em sua plenitude respeitando os preceitos bioéticos.

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1Professores Titulares da Universidade do Estado do Pará e docentes do Mestrado em Educação em Saúde da Amazônia da Universidade do Estado do Pará (UEPA).

2 Discentes do Mestrado em Educação em Saúde da Amazônia da Universidade do Estado do Pará (UEPA).