DA (IN)APLICABILIDADE DA SUPRESSÃO DAS HORAS “IN ITINERE” AOS CONTRATOS DE TRABALHO FIRMADOS ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI 13.467/2017

uma perspectiva com base na lógica jurídica da Súmula n.º 191 do Tribunal Superior do Trabalho.

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7087013


Autor:
Marcelo Scarin Jantorno,
advogado trabalhista inscrito na OAB/SP n.º 316.240 com ampla experiência na área, tendo atuado em escritórios de renome na capital do Estado de São Paulo, atualmente com banca própria.
Pós graduado em direitos humanos e direito tributário.


Resumo: O presente artigo busca traçar uma perspectiva jurisprudencial sobre o tema da aplicabilidade imediata da supressão das horas “in itinere” pela reforma trabalhista aos contratos de trabalho firmados antes da sua vigência e a lógica jurídica aplicada pelo C. TST quando da revisão do teor Sumula n.º. 191 do Tribunal Superior do Trabalho.

Abstract: This article seeks to draw a jurisprudential perspective on the subject of the immediate applicability of the suppression of “in itinere” hours by the labor reform to employment contracts signed before its validity and the legal logic applied by the C. TST when reviewing the content of jurisprudential precedent nº 191 of the Superior Labor Court.

Keyword: horas “in itinere” – reforma trabalhista – direito adquirido – Súmula n.º. 191 do C. TST – eletricitários;

1 – Introdução

O objetivo do presente trabalho não é abordar as hipóteses de aplicação do instituto em questão e suas polêmicas, nem mesmo criticar o teor da Súmula que preenche o tema. O ponto nevrálgico é a alteração promovida pela Lei n.º 13.467/2017, a chamada reforma trabalhista, tendo extinguido as hipóteses de pagamento as horas “in itinere” do ordenamento jurídico trabalhista e a sua aplicabilidade imediata aos contratos de trabalho firmados anteriormente à sua vigência. 2 – Das horas “in itinere”

O termo, do latim, “horas in itinere” é utilizado para definir o período de tempo em que o empregado leva no percurso de ida e retorno do trabalho. Em uma tradução livre pode-se entender como horas de itinerário, de trajeto.

A CLT, em seu artigo 58, §2º, parte final, dispunha que “O tempo despendido pelo empregado até o local de trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de transporte, não será computado na jornada de trabalho, salvo quando, tratando-se de local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o empregador fornecer a condução.” [2]. Logo, para certas situações de trabalho a legislação trabalhista previa o cômputo do tempo de percurso na jornada de trabalho dos empregados. O Tribunal Superior do Trabalho havia há muito editado enunciado de súmula para disciplinar e dar contornos ao instituto em questão, qual seja, a Súmula de n.º. 90, que data desde o ano de 1969 [1].

A nova redação do §2º do art. 58 da CLT agora prevê expressamente que “O tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador.” [3]. Com isso, tem-se que em nenhuma hipótese haverá pagamento das horas de trajeto, ao menos em decorrência de lei.

3 – Da aplicabilidade imediata e integral da nova redação do art. 58, §2º da CLT

Em conjunto com outras alterações, o tema gerou cizânia doutrinária quanto sua aplicação intertemporal em relação aos contratos vigentes. Primeira corrente, à qual respeitosamente não encampo, defende a imediata supressão do pagamento, com fulcro na aplicabilidade imediata da lei.

É que a CLT, em razão da regra de intertemporalidade prevista em seus artigos 912 e 915 [4], determina que os dispositivos de caráter imperativo terão aplicação imediata às relações iniciadas, mas não consumadas, antes da vigência desta Consolidação. No mesmo sentido, sustenta que a aplicação somente aos contratos firmados após a vigência da reforma violaria a isonomia, criando desproporção entre empregados na mesma função – art. 5º da CF/88 [5].

Para esta corrente, não haveria que se falar em violação do direito adquirido, direito fundamental previsto na Constituição Federal – art. 5º, XXXVI [6], tratando-se de mera expectativa de direito conforme regra geral estabelecida pelo texto do art. 6º da LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro [7]. Por fim, a corrente também tem amparo nas razões da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que ao analisar a aplicação de legislação nova a situações jurídicas em andamento pacificou o entendimento de que inexiste para o servidor público direito adquirido à imutabilidade de regime jurídico.

4 – Da inaplicabilidade aos contratos de trabalho firmados antes da lei n.º 13.467/2017

Não obstante os atraentes argumentos desta corrente, uma segunda corrente que entende pela inaplicabilidade da nova regra aos contratos em curso parece mais apropriada e lógica, principalmente com relação ao posicionamento já adotado pelo Tribunal Superior do Trabalho em situação semelhante.

Como dispõe a melhor doutrina, o contrato de trabalho é fonte formal de direito, estabelecendo patamar mínimo que não pode ser alterado lesivamente pelo empregador. Esse é o chamado princípio da inalterabilidade lesiva do contrato de trabalho, positivado no artigo 468 da CLT, disciplinando que nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.

Para certas categorias de trabalhadores as horas “in itinere” refletiam uma parcela considerável da jornada e, conseqüentemente, da remuneração do obreiro. É o caso, a exemplo, dos trabalhadores canavieiros que ocupam inúmeros postos de trabalho no interior do Estado de São Paulo. Não raro estes trabalhadores percorrem cerca de duas horas por trajeto, em ônibus do empregador, até alcançar o posto efetivo de trabalho denominado de “roça”. Vê-se que a remuneração da hora “in itinere” é condição que realmente incorpora de forma determinante o contrato desde seu início, compondo relevante parcela da jornada e a base salarial do empregado. A sua supressão acarretaria não só a retirada desta parcela, mas uma alteração em cascata de diversas outras verbas.

Nesse sentido e contra o argumento de que o que se pretende é algo semelhante à garantida de regime jurídico, o próprio Supremo Tribunal Federal, em acórdão que tratou sobre a impossibilidade de garantia de regime jurídico ressalvou justamente os casos em que a alteração implicasse na redução salarial (STF – ADI: 4461 AC, Relator: ROBERTO BARROSO; data de julgamento: 11/11/2019, julgado pelo Tribunal Pleno; data de publicação: 04/12/2019) [8].

Não se trata ainda, a nosso ver, de mera expectativa de direito, mas de efetivo direito adquirido, posto que o direito ao recebimento das horas “in itinere” para estes trabalhadores preenchia todos os requisitos para sua efetivação, não podendo a lei retroagir para extirpá-lo – art. 5º, XXXVI da CF/88 [9].

5 – Da perspectiva jurisprudencial com base na lógica jurídica da alteração da Súmula n.º. 191 do C. TST

Em que pese parcela do Tribunal Superior do Trabalho tenha formado jurisprudência acolhendo a aplicação imediata da alteração legislativa para todos os contratos de trabalho, não é a primeira vez que a jurisprudência se depara com a situação que discute as mesmas razões jurídicas, tendo concluído de maneira diversa naquela oportunidade. É o que ocorreu quando da discussão referente à base de cálculo do adicional de periculosidade dos eletricitários.

No ano de 2012 entrou em vigor a Lei n.º 12.740, alterando a base de cálculo do adicional de periculosidade desta categoria. Anteriormente, os eletricitários eram disciplinados pela Lei. n.º 7.369/85, que dispunha que a alíquota do adicional de periculosidade incidiria sobre todas as parcelas de natureza salarial . Após a Lei n.º 12.740, o referido adicional de periculosidade passou a incidir somente sobre o salário básico. A alteração gerou a mesma divergência valorativa quanto à aplicação imediata ou não da nova legislação aos contratos já vigentes.

Ao final, neste caso dos eletricitários houve uma evolução jurisprudencial que culminou na revisão do texto da Súmula n.º. 191 do Tribunal Superior do Trabalho, no ano de 2016, justamente para fixar que a alteração legislativa somente seria aplicável aos contratos firmados após a lei em questão. Confira o item III [10]:

Súmula nº 191

ADICIONAL DE PERICULOSIDADE. INCIDÊNCIA. BASE DE CÁLCULO (cancelada a parte final da antiga redação e inseridos os itens II e III) – Res. 214/2016, DEJT divulgado em 30.11.2016 e 01 e 02.12.2016 I – O adicional de periculosidade incide apenas sobre o salário básico e não sobre este acrescido de outros adicionais.
II – O adicional de periculosidade do empregado eletricitário, contratado sob a égide da Lei nº 7.369/1985, deve ser calculado sobre a totalidade das parcelas de natureza salarial. Não é válida norma coletiva mediante a qual se determina a incidência do referido adicional sobre o salário básico. III – A alteração da base de cálculo do adicional de periculosidade do eletricitário promovida pela Lei nº 12.740/2012 atinge somente contrato de trabalho firmado a partir de sua vigência, de modo que, nesse caso, o cálculo será realizado exclusivamente sobre o salário básico, conforme determina o § 1º do art. 193 da CLT.

Pacificou o C. Tribunal Superior do Trabalho que o adicional de periculosidade daqueles eletricitários que já tinham seu contrato de trabalho ativo antes da vigência da Lei 12.740/2021 permaneceria sendo calculado da maneira mais favorável, incidindo sobre a totalidade das verbas de natureza salarial.

Vê-se, portanto, que no caso da supressão jurídica das horas in itinere” a lógica jurídica é exatamente a mesma, ou seja, uma supressão legislativa que resulta na alteração lesiva do contrato de trabalho, em especial no que toca à remuneração e jornada de trabalho.

Percorrendo o mesmo caminho, entendemos que não haveria outra conclusão possível além da jurisprudência do C. TST quanto às horas “in itinere” ser pacificada no mesmo sentido. Se assim não ocorrer, deveria ao menos ser novamente proposta uma revisão do verbete sumular em questão para que seja aplicada a nova legislação pertinente também aos contratos anteriores. Caso contrário estaríamos frente a uma falha sistêmica que viola frontalmente a segurança jurídica, demonstrando a falta de uniformidade na formação dos precedentes por parte da Corte Superior Trabalhista.

Referência bibliográfica:

[1] Silva, Homero Batista Mateus da – Comentários à Reforma Trabalhista / Homero Batista Mateus da Silva. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, página 35;

[2], [3] e [4] BRASIL. Decreto-lei nº 5.452, de 1 de maio de 1943. Aprova a consolidação das leis do trabalho. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm;

[5], [6] e [9] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm;

[7] BRASIL, Decreto – Lei nº. 4.657, de 4 de setembro de 1942 – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/Del4657compilado.htm;

[8] Em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=751544353;

[10] Em https://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/Sumulas_com_indice/Sumulas_Ind_151_200.html#SUM191