REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8253275
Adelaide Barros Caminha1
Vanessa Vieira da Silva2
Guilherme Lopes Duarte Oliveira3
Luidd de Sousa Monteiro4
INTRODUÇÃO
Já em Mímesis e Modernidade (1980), livro equivalente a uma “virada teórica” em sua carreira intelectual, Luiz Costa Lima referia-se a um “controle da arte” (1980, p. 77) que incidia, na modernidade, sobre poéticas como as de Baudelaire e Rimbaud. O autor apenas esboçava uma ideia a ser desenvolvida quatro anos depois na primeira edição de O controle do Imaginário –Razão e Imaginação nos Tempos Modernos, onde passa a articular, em filão histórico, a reflexão sobre a categoria de mímesis com a ideia de controle, ambos inaugurados no livro de 1980.
Privilegiando a continuidade que há entre estes dois livros, este artigo objetiva evidenciar a relação entre ficção literária e verdade pelo prisma do controle do imaginário investigado pelo teórico. Na primeira seção, trataremos de demonstrar que a temática do controle veio a tomar, no livro de 1984, maior amplitude através da percepção do distinto modo como os poetólogos do renascimento vieram a entender a mímesis antiga, bem como o papel da verdade neste modo de entendê-la, levando à compreensão do texto ficcional como um “falso aceitável” por ser tratado como oposto a uma verdade de ordem religiosa, diante da qual ele deveria também curvar-se. Em seguida, na segunda seção, tentaremos de demonstrar que o controle moderno permanece baseado no mesmo empenho de tornar a ficção literária um “falso aceitável” e que, portanto, permanece sendo produto de um modo de enxergá-la pelo prisma da verdade, da qual ela deveria aproximar-se. Neste momento, intentaremos evidenciar a importância do modo como Costa Lima nos permite pensar a substancialização da verdade enquanto naturalização de afirmações que, de tão repetidas, provocam o esquecimento do caráter de construção que possuem.
O CONTROLE RELIGIOSO DO IMAGINÁRIO
Notando a centralidade do vocábulo latino imitatio (imitação), termo que supostamente traduziria mímesis, para o renascimento italiano, Luiz Costa Lima observava que esta redução de sentido transformava amímesis em agente de um controle do imaginário no período que partia do século XIV até o século XVII (LIMA, p.77, 1995), intuição que o levaria à delimitação de um tipo específico de controle: o religioso.
Antes, contudo, de passarmos para esta primeira modalidade de controle do imaginário investigado pelo teórico, procuraremos demonstrar que os motivos pelos quais a mímesis veio a ser reduzida à imitação no renascimento estão intimamente ligados à temática da verdade, em nome da qual o controle se manifestava pela voz dos preceptistas do período.
Em Mímesis e Modernidade (1980), o teórico intentara evidenciar que na Antiguidade grega circulavam duas possibilidades de sentido para o verbo miméisthai (imitar). A primeira, era o sentido cotidiano de “fazer-se semelhante a”, isto é, “imitação”; a segunda, por sua vez, era demonstrada por uma pesquisa de Herman Koller. Conforme o ensaio do autor analisado por Costa Lima em 1980 e retomado em Vida e Mímesis (1995), a mais antiga atestação de miméisthai remeteria ao Hino de Delos e, segundo indicariam fragmentos de Píndaro e Ésquilo, se ligava à dança e à música.( LIMA, 1995, p. 63)
Ainda, por meio da análise de dados linguísticos, Koller teria chegado à conclusão de que “mimos” designava o ator de uma certa dança destinada ao culto de Baco e mímesis (resultado de mimesthai), a dança pela qual o indivíduo poderia passar pela cura (LIMA, 1980, p.52). Conforme o ensaio de Koller comentado pelo teórico brasileiro, esta remota prática da mímesis é que serviu para os pitagóricos do século V a.C desenvolverem a mímesis como o conceito central de uma filosofia da expressão dos estados anímicos através da dança e da música. Inserida nesta filosofia, a mímesis passava a ter uma função terapêutica e, enquanto “dançada”, não se realizava como submissa a um modelo, mas antes pressupunha um “pôr”, em vez de “expor”, um apresentar, em vez de “representar” (LIMA, p.65, 1995).
A possibilidade de entender mimesthai como imitação, sentido mais cotidiano na Grécia antiga, tornava a imitatio renascentista menos aleatória. Todavia, devemos nos indagar, por que a acepção de imitação se perpetuou, deixando para trás aquela que supunha a capacidade da mímesis apresentar algo antes não existente?
Costa Lima oferece uma resposta, atribuindo duas razões propulsoras para a perpetuação do sentido “imitação”. Aprimeira, meta-histórica, consiste no “[…] privilégio que a percepção mantem para a aceitação geral do que se acata como verdadeiro.” (2013, p. 106), isto explicaria a “[…] inclinação para identificar o produto da mímesis como algo semelhante ao já existente antes de sua execução” (Ibid. p. 106), impulsionando o sentido cotidiano de mímesis e subordinando esta ao que se percebe como verdadeiro.
O termo “percepção” remete à distinção de dois modos de assumir a consciência da realidade, quais sejam, a própria percepção e a imaginação, tal como elaborada por Sartre no livro “O imaginário” comentado por Costa Lima em Por que Literatura (1969). Mas que significa este privilégio da percepção? Vejamos. Segundo a análise de Costa Lima a respeito da distinção sartreana, a percepção, mais rica em detalhes, supõe a presença do objeto diante do sujeito, de modo que o saber acerca dele se forma lentamente pela perscrutação de suas diversas faces (LIMA, 1969, p. 14). Ela assume extrema importância na formação da imagem mental “comum”, cotidiana , que, através da nossa imaginação, se atualiza de modo imediato e se caracteriza pelo fato de que “[…] em nada nos enriquece pois depende de um saber anterior” (Ibid., p. 19) oriundo da percepção. Disto podemos concluir o primeiro ponto central para nossa discussão: a maneira mais frequente de formarmos imagens supõe a subordinação da mesma a um saber prévio, tamanha é a centralidade da percepção em nossa consciência.
Contudo, o que ainda mais nos interessa é que, utilizando-se dessas contribuições de Sartre, Costa Lima delimita a especificidade da imagem artística. Esta seria concretizada pela recriação do que ocorre na imagem mental comum, ultrapassando-a, uma vez que tal recriação não se confundiria com a tentativa de repetição de um saber prévio. A imagem artística antes enriquece, transtorna a realidade, evidenciando um ato criativo. A relação da imagem artística com a percepção da realidade é, pois, complexa: nem a repete, nem dela está apartada.
Com isto, chegamos ao segundo ponto central para a nossa discussão: a razão meta-histórica destacada por Costa Lima aponta para a tendência que temos de, diante da complexa relação existente entre imagem artística e realidade, reduzir aquela à semelhança que possui com um saber prévio derivado de nossa percepção- o que inclui o que tomamos por verdade-, modalidade de consciência da realidade que prepondera no nosso cotidiano.
Enquanto a primeira razão era identificada como “meta-histórica”, a segunda, por sua vez, é plenamente histórica. Esta trata-se da afinidade e aceitação do platonismo pelo pensamento cristão em formação, cujo resultado será uma concepção de verdadeiro derivado de uma imagem da verdade identificada com Deus (LIMA, 2013, p. 107). Ora, se, naturalmente, tendemos a nos manter presos ao que nossa percepção nos oferece de saber acatado como “verdadeiro” a partir do que se põe diante de nós, a segunda razão propulsora apenas vem a contribuir para a subordinação dos produtos miméticos, entre os quais se insere a literatura, a uma verdade que virá a ser, com a dominância do cristianismo, de natureza religiosa
Ademais, importa notar, numa perspectiva histórica, que a tensão entre o exercício da imaginação, concretizado em produtos artísticos, e a verdade é um fenômeno antigo. Segundo o teórico, em passagem de Limites da Voz (2005), “Desde a Antiguidade clássica, o tratamento da mímesis deu lugar a uma dicotomia […]” (LIMA, 2005, p. 231) que, evitando transcrever a longa passagem, podemos sintetizar da seguinte maneira: reconhecimento do poder de ação específico da imagem artística versus sua subordinação a uma verdade substancializada, isto é, tomada como existente por si, imposta independentemente dos caprichos individuais.
O reconhecimento da especificidade da arte entrava em tensão com a teoria substancialista da verdade porque “[…] o que é percebido – desde que se esteja certo que não se trata de uma ilusão, que não somos vítimas de nossa imaginação (grifo do autor) – é classicamente tomado por verdadeiro ou, no mínimo, por lastro do verdadeiro.” (Ibid, p. 231). A tensão existente entre os dois constituintes da oposição é evidente, pois, se, segundo a observação do teórico, a substancialização da verdade na época clássica – em que se inclui o renascimento- continha em si uma oposição à capacidade imaginativa a nos tornar vítimas de ilusão, como esta substancialização poderia contribuir para o florescimento de uma direção de pensamento que realçasse a autonomia e divergência da imagem quanto a seu suposto referente encarado como a verdade a qual ela remeteria?
Desse cenário decorre que o poder de ação da imagem artística aparecia, já na antiguidade grega, como um problema para a teoria da verdade de ordem substancialista – isto é, recordemos, verdade como declaração do que é sem interferência do agente ou da forma como este a recebe. Esta tensão se resolverá no empenho de subordinar a mímesis à verdade:
À medida que o pensamento clássico venceu os “pré-socráticos”, a tradição substancialista da verdade passou a ditar a interpretação legitimada da mímesis. Mímesis tomada como imitatio e, por conseguinte, adequação a um modelo, ou seja, a um percebido ou perceptível – não importa o quanto o modelo está próximo ou idealiza o percebido –real, empírico, dado (LIMA, 2005, p.231).
Empenho este que, conforme a razão histórica antes vista, passará a contar com o cristianismo já bem aclimatado na ambiência do renascimento, de cujos autores levarão Costa Lima a intuir a presença de um controle do imaginário:
[…]muito embora o Cinquecento italiano tenha oferecido uma extensa teorização sobre o poético, tanto mais lia seus autores mais me convencia de que partiam de um veto escandaloso: o veto à própria ficção […] Tendo ganho direito de residência, a questão, como se risse de quem a tivera, desdobrou-se noutra: qual o interesse a que o suposto veto responderia? Por que seria ele consumado justamente por aqueles que se dedicavam ao poético? (LIMA, 2007, p. 25)
Dessa forma, é partindo da análise dos poetólogos do renascimento que Costa Lima procura evidenciar a presença de um controle que se manifestava pela insistência dos textos poéticos não colidirem com a verdade religiosa. Tal controle supunha duas operações:
[…} eleger-se a imitatio dos antigos- no que já podiam se inspirar em um Horácio- como critério ímpar e, ao mesmo tempo, conceder-se à palavra poética uma posição a priori inferior. Assim se evitava a “concorrência” quanto à verdade teológica e se impedia a valorização dos produtos poéticos que não se sujeitassem a modelos socialmente preestabelecidos (Ibid, p. 45)
Assim, procurava-se subordinar o texto ficcional aos padrões da retórica- daí a inspiração em Horácio- pressupondo–se a inferioridade da palavra poética. Mas, por que ela era considerada inferior? Isto se torna compreensível se levarmos em conta que a ficção era caracterizada por sua oposição à verdade, sendo, pois, confundida com o falso (Ibid, p. 53). Enquanto falsidade, para legitimar-se, ela deveria tornar-se domesticada aproximando-se da verdade sem poder, contudo, a ela igualar-se. É nesse sentido que o verossímil do texto poético passa a ser entendido como “[…] um não-verdadeiro, embora semelhante à verdade” (LIMA, 1995, p. 86):
Tanto poderíamos então dizer que o verossímil é obrigado a se mover em um círculo vicioso- nasce do fictício, por isso dele se exige que, pela semelhança com a verdade, disfarce seu traço espúrio, e, porque o disfarça, estampa sua bastardia – como que assim manifesta seu limite próprio (Ibid, p.86)
Enquanto em Aristóteles a mímesis ainda possuía uma liberdade de ação evidenciada pelo reconhecimento do efeito específico que a imagem artística possui por não igualar-se a um referente – […] as coisas que observamos ao natural e nos fazem pena agradam-nos quando as vemos representadas em imagens muito perfeitas como, por exemplo, as reproduções dos mais repugnantes animais e de cadáveres (ARISTÓTELES, 2008, p. 72) – Costa Lima observa que a leitura que fará os tratadistas italianos de sua Poética consistirá justamente em aproximar a mímesis da verdade religiosamente orientada, ao mesmo tempo igualando-a ao falso. (LIMA, 2007, p.48).
Desse modo, enquanto imitatio, a mímesis perde a dignidade que ainda tivera com a Poética aristotélica, isto é, o reconhecimento de seu efeito específico, bem como a carga semântica que possuíra com os pitagóricos, quando era associada à dança e à música, para passar a ser entendida como imitação de modelos. Por consequência, a ficção literária passou a ser entendida como imitatio da verdade e do uso das figuras (imitação retórica) (Ibid, p. 56), fazendo-se nada mais que ornamento, adorno, ou, melhor, um falso aceitável.
Queremos, neste ponto do trabalho, chamar atenção para a “substancialização da verdade” anteriormente citada. Herança platônica (LIMA, 2014, p.270), segundo o autor, a concepção de uma verdade natural, imanente às coisas, veio a ser reforçada pelo cristianismo que, como vimos, orientava o que se acatava como verdade no renascimento:
Ora, dentro da tradição do pensamento grego clássico, que se estende pelo Ocidente, desde o ocaso do império romano, pela influência decisiva da cristianização, a verdade assume um teor substancialista: a verdade está inscrita nas coisas, é a elas imanente. A maneira direta da legitimação do ficcional supõe aquele dispositivo oposicional, em que “verdade” é o termo de orientação (LIMA, 2014, p. 269).
Podemos nos indagar, agora, se na modernidade, quando já não houver a crença predominante em verdades eternas, legadas por um Deus e depostas como imanentes às coisas, a legitimação da ficção enquanto “falso aceitável” é descartada. Nossa resposta consistirá em ser negativa e iniciaremos embasando-a através de uma reflexão sobre a naturalização da cultura tematizada por Costa Lima:
A ambiência social nos atravessa como se fosse nossa própria natureza. Cultura, classe, camada, meio profissional parecem-se então a roupas muito leves, tão leves que a pele não sente que as transporta. Melhor, roupas que se tornam a própria pele, da qual não nos imaginamos despossuídos. Então julgamos que nossos hábitos, condutas e práticas são nossos simplesmente porque pertencemos à humanidade (LIMA, 1980, p. 85).
Ora, a manutenção de uma substancialização da verdade enquanto polo orientador da análise da ficção literária não depende de seu caráter religioso, pois, como nos sugere Costa Lima (2014, p. 275), esta concepção platônica de verdade como substância, isto é, como imposta independentemente da subjetividade do sujeito, ainda pode ser mantida se não nos damos conta do caráter de construção das verdades enquanto ferramentas sociais; em outras palavras, quando naturalizamos as práticas de verdade, considerando-as dadas a toda a humanidade independentemente de fatores sociohistóricos. Parece válido dizermos: a substancialização das verdade deriva da naturalização e aceitação de determinada maneira de ver o mundo de modo que se esqueça e não se questione seu caráter de construção. Esta noção de verdade enquanto ferramenta social, é assim formulada pelo teórico:
Essa outra concepção de verdade não tem outra base senão a de adequação entre seus enunciados e valores socialmente assentados. Ou seja, o bem e o mal não são “verdades” transcendentais mas apenas exigências pragmáticas de uma sociedade (LIMA, 2014, p. 274)
Isto nos servirá como matéria para tornar viável nossa formulação, a ser melhor desenvolvida na seção seguinte, segundo a qual o controle moderno da literatura continuará a legitimando como “falso aceitável”, isto é, como aquilo que não alcança a verdade buscada (agora científica), mas que pode assemelhar-se à verdade socialmente aceita. A mudança de quadro é clara: se a verdade, no contexto dos poetólogos renascentistas, se inseria em um mundo assegurado pelo divino, a situação será outra quando se configurarem os contornos da centralidade do sujeito e a natureza se dessacralizar. Evidenciaremos, adiante, de que maneira a ficção literária ainda permanece sendo reduzida, nesta nova ambiência, a um falso aceitável.
O CONTROLE DO IMAGINÁRIO DE BASE CIENTÍFICA
Na modernidade, atualizada decisivamente com o Iluminismo francês no século XVIII, temos um novo quadro em que a natureza se “dessacraliza” e já não há uma codificação pré-estabelecida a fazer dela uma mediadora entre homem e Deus (LIMA, 2017, p. 121). Agora, a relação encaminha-se para a ênfase em apenas dois termos: a subjetividade e a natureza, o que equivale a dizer que a verdade deixa de ser assegurada por Deus e passa a ser perscrutada pela subjetividade, núcleo de onde deve partir o conhecimento. Eis, aí, a sagração do sujeito autocentrado.
A construção deste segundo edifício, o da razão moderna, contudo, é paulatino, iniciando-se ainda em fins do século XVII e se desenrolando ao longo do século XVIII. Para ele, contribuíram a ascensão do capitalismo; a constituição dos Estados-nação; a centralidade das ciências; a dessacralização da história e da natureza; e, no plano da filosofia, o empirismo de John Lock, o racionalismo de Descartes, bem como a filosofia transcendental de Kant.
No século para o qual direcionaremos nossa atenção, o XIX, a busca pela verdade científica implicava uma aversão ao exercício da imaginação indicada pela orientação que a historiografia passa a tomar em decorrência de sua inspiração no modelo da ciência e do serviço que procura prestar aos Estados nacionais:
Por sua vez, a crença no progresso se conjugava com o primado da ciência, preparado desde o século anterior, e entendida como o discurso da objetividade, do ultrapasse dos caprichos individuais. Acrescentava-se aos dois fatores a importância então assumida pelos Estados nacionais. A aglutinação desses elementos pesou em definitivo sobre a produção historiográfica do século, a qual se tornava, se não guiada por um esquema evolutivo […], pelo menos extremamente ligada ao nacional e profundamente ciosa de sua objetividade científica. Daí o privilégio do fato, do documento, que se entendia como capaz de restituir a integralidade da vida como foi.” (LIMA, 2007, p.44).
Dessa maneira, a História se fazia essencialmente política e factual, encarando a si mesma como ciência na medida em que caracterizava-se pela crença no fato, isto é, numa qualidade inscrita nos acontecimentos históricos que supunha, por sua vez, a crença na neutralidade do historiador capaz de resgatá-lo por sua investigação. Ao historiador caberia, portanto, fixar os fatos capazes de sustentar a história das nações e de devolverem a totalidade dos períodos históricos. Desse modo, sobre Leopold von Rank, figura importantíssima da historiografia moderna, diz Costa Lima:
Não importa saber quem escreve a História, qual sua posição e como ela motiva seu ponto de vista. O historiador é aquele que, da observação e investigação de fatos particulares, chega “a uma visão universal dos acontecimentos, a um conhecimento das relações objetivamente existentes (Ranke, L. v.: 1830, 59). O historiador, em suma, é um cientista porque observa e diz objetivamente o que foi (LIMA, 2007, p. 132).
Mas, o decisivo nesta auto-imagem da historiografia moderna é que sob ela se mantinha “[…] a face escarninha, debochada, inescrupulosa da arte” (Ibid, p.134), recalcada ante o preço a ser pago por seu praticante. Isto era exemplificado, por Costa Lima, com Jules Michelet que, não recalcando o filão poético da História, punha na sua escrita uma intensidade dramática, aproximando-a de um “texto-plural” capaz de provocar prazer, o que o levava a ser hostilizado por seus contemporâneos.
Ora, a análise de Michelet revelava, para o teórico, que na escrita da História do século XIX havia uma tensão entre o veio poético e a busca pela objetividade científica. Ademais, revelava que esta tensão resolvia-se pela repressão da indesejada dimensão poética por meio da qual a História supostamente se relacionaria com a ficção e teria sua cientificidade prejudicada (LIMA, 2007, p. 136-137). A ficção literária, pois, era concebida enquanto oposta à almejada verdade científica a que caberia se subordinar o discurso histórico. Ela seria, então, veículo do falso, do enganoso imaginariamente formulado.
Esta feição moderna da História é de extrema importância, pois se ela pressupunha a ficção literária como o falso/ilusório, contudo, a tornava valorizável na condição de que ela servisse ao Estado. Tal função social será atribuída à literatura pelas Histórias da Literatura que, segundo Costa Lima, surgem como um ramo da História política, compartilhando do seu projeto de fazer a ciência- uma vez que a História política via si mesma como ciência – servir ao Estado (Ibid., p.137).
Desse modo, a História moderna irá interferir tanto nos estudos da literatura como em sua produção. Quanto ao primeiro caso, “[…] a maneira mais sistemática de estudar a literatura consistia em desdobrá-la em uma diacronia nacional” (Ibid, p.448) engendrada pelas Histórias da Literatura, cujo objetivo seria demonstrar o progresso em direção ao clássico nacional, ao mesmo tempo procurando servir a uma pedagogia do cidadão:
O Estado Moderno torna-se então objeto de uma ‘teleologia imanente’ (Jauss), mostrando-se como um organismo que se desenvolve graças ao progresso da consciência. Um difuso hegelianismo e o cientificismo se congraçam e se misturam nesta educação do bom cidadão, a ser incrementada pelo ensino da História e da história da literatura (LIMA, 2007, p.138).
Do ponto de vista da produção da literatura, o romance será o gênero que melhor se adaptará ao projeto de pedagogia do cidadão, “[…] estabelecendo-se como uma paralela à história legitimada” (Ibid. p. 141) – com a ressalva de que ele possuía o defeito de não servir ao alcance de uma verdade científica – enquanto o poema será marginalizado como hermético, arrastando “[…] para o poço a ficção que nele sequer se vê” (Ibid, p .141).
Neste quadro, o romance será valorizado enquanto optar pelo realismo que procurará aproximar-se do cotidiano e das direções dominantes em seu tempo (Ibid., p. 122), no qual se inseria ainda uma busca por aproximar-se da escrita “científica” e linear da história, isto é, escrita capaz de dizer sobre momentos históricos tais como de fato teriam sucedido : “Historiografia e literatura “narrativa” se mantêm agora em contato justamente através da face que mais ressalta em ambas: a face dominante do cientificismo e do serviço que ele presta ao Estado” (LIMA, p. 2007, p.137).
O controle, atentemos, além de uma base moral, agora envolve a centralidade da ciência, cujos padrões serviam como modelo para a História. Esta, ao incluir em seu projeto a educação do cidadão, possibilitava, por meio das Histórias da literatura, um espaço de refúgio para a mesma. Por que de refúgio? Porque, como veremos, o “estigma da ficção”, segundo teórico, incidia sobre a forma de literatura que procurava valer-se de valores próprios, distintos dos dominantes burgueses (Ibid, p.122).
De agora em diante, intentaremos evidenciar este controle moderno por meio da análise da crítica literária do século XIX. Iniciemos notando que se o romance antes assume uma “[…] linha coerente com Fielding do que com Sterne”, mostrando-se como “um sucursal da história” (Ibid, p. 448), é porque o controle marginalizava aquelas produções não adequadas aos valores vigentes, tal como demonstra a “repúdia generalizada” da crítica por Tristam Shandy, de Sterne, em decorrência da obra não apresentar a linearidade narrativa que a tornaria semelhante à escrita da história (LIMA, 2013, p.150).
Agora alteremos nosso foco para a poesia, onde o controle se manifestará repudiando a literatura subversiva com agudeza esclarecedora. A análise, feita em Mímesis e Modernidade (1980), da relação entre a poesia moderna e a ambiência dada pela ascensão do capitalismo, da ciência e da consolidação do Estado-Nação, nos ajuda a tornar ainda mais evidente a necessidade de adequação da literatura às representações sociais vigentes no século XIX. Ante a ambiência social supracitada, o poeta não era convocado senão para um sacerdócio que impunha à literatura uma função religiosa de sublimação (Id., 1980, p. 104). Assim, pelo poeta, seja ele o convencional ou um de qualidade (Victor Hugo, por exemplo), perpassava “[…] a mesma insistência na necessidade de encontrarem-se abrigos e refúgios” (Ibid., p. 107)
Para chegar ao ponto central, contudo, devemos nos perguntar pela relação existente entre este romantismo e ambiência social do século XIX. Esta análise é legada por Costa Lima em resposta à pergunta central do segundo ensaio presente no livro de 1980: qual o papel que, no interior da modernidade, a burguesia desempenha e como ela se relaciona com as instituições da arte?
O ponto central de sua resposta consiste em notar que à transformação econômica, com ênfase no capital, empreendida pela burguesia, correspondia seu projeto político de subversão do critério de legitimidade do poder. Este não mais seria justificado enquanto exercício de um mantado divino ou de um direto hereditário, “[…] mas como a resultante do reclamo público” ( LIMA, 1980, p.113). Ou seja, agora é a opinião pública quem passa a respaldar o poder político.
Delineando este quadro histórico, o autor observa com Habermas que, enquanto no antigo regime eram as autoridades eclesiásticas e estatais que possuíam o “monopólio da interpretação” seja da filosofia, da arte ou da literatura especificamente, a “[…] burguesia ensejará pelos salons e pelos cafés um primeiro público baseado na paridade de seus membros” (Ibid, p.114). Contudo, a suposta paridade é contrariada quando a opinião pública, tal como transparecia nos jornais do século XIX, mostra seu caráter de classe, convertendo a imprensa em “[…] porta de entrada, na publicidade, de interesses privados privilegiados” (Ibid, p. 116).
No que tange à crítica literária neste século XIX, “são os amadores esclarecidos” que assinam suas colunas. Eram eles os mandatários-pedagogos que prestigiavam ou desprezavam as obras. Sua posição, vale ainda notar, era curiosa: a crítica se fazia, ao mesmo tempo, mandatária do público e sua pedagoga (Ibid, p. 114). Ou seja, enquanto mandatário do público, o julgamento do crítico só tinha validade enquanto se conformasse à opinião pública, mas ao mesmo tempo é nele que “se organiza o julgamento dos leigos”, de maneira que a espera de sua coluna era convertida na espera da abertura de uma discussão.
Entretanto, e eis o que nos importa, que sucederá neste século XIX, perguntava o teórico brasileiro, quando a crítica se deparar com autores cujos valores e processos de composição feriam a base das representações sociais do público e, em vez de harmoniosos melodistas, “[…] disserem das sardas dos mendigos e falar das sarjetas?” (Ibid., p. 115). Já não mais diante de Victor Hugo, mas defronte a um Baudelaire ou Rimbaud, a crítica construída “nos moldes da publicidade burguesa”, se divorciará de uma poética hoje muito admirada “[…] porque esta passa a formular valores ante os quais os convivas dos cafés torcerão seus finos narizes” (Ibid., p.115).
Dessa maneira, a crítica literária se fazia agente do controle do imaginário, marginalizando a produção de poetas e romancistas que não se coadunassem com as verdades do público a que se destinava. Segundo o que procuramos evidenciar anteriormente, a literatura só escapava desta marginalização ao refugiar-se no realismo disseminador dos valores vigentes e ao qual, segundo Costa Lima, se aclimataria o “romantismo usual” (LIMA, 2007), enquanto expressão da subjetividade, passando, através das Histórias da Literatura, a contribuir para a educação do cidadão.
Com esta volta do nosso olhar para a crítica literária no século XIX, não procuramos senão demonstrar que o controle do imaginário, enquanto negociação política que lamina o que, entretanto, não se proíbe, torna-se evidente pela própria relação da crítica com a literatura divergente do que se tomava por verdade, seja esta relativa a códigos estéticos, morais ou políticos. Era dessa divergência que emergia seu repúdio por alguns representantes da tradição da negatividade como Baudelaire e Flaubert.
A literatura seria aceitável apenas enquanto próxima de modos predominantemente burgueses de ver o mundo, isto é, enquanto procurasse aproximar-se do que se tomava por verdade. Na passagem abaixo, Costa Lima não poderia ser mais claro:
O êxito do romance dos séculos XVIII e XIX dependera de respeitar uma rede de representações homogêneas- dizemos ‘respeitar’ porque nisso já entrava o papel do controle-, que possibilitava ao leitor encontra-se e reconhecer-se nas peripécias do indivíduo fictício. Contudo, se a própria conjuntura histórica permitia aquela experiência, o saber que presidia sua decodificação punha o gênero em uma posição secundária: o romance não captava a verdade, que se reservava ao exercício das ciências (LIMA, 2007, p.179).
Que significa toda esta configuração senão que a literatura era, ao mesmo tempo, tomada como veículo do falso pela História e pressionada pelo controle, nesta apoiado, a aproximar-se das verdades socialmente aceitas pela burguesia? Dizíamos anteriormente que este modo de encarar a ficção literária não dependia de uma verdade de ordem religiosa à qual ela se contraporia. Foi o que demonstramos nesta seção: enquanto tomada como equivalente ao falso pelas teorias da História moderna, ela simultaneamente era pressionada pelas fontes de controle a adequar-se às verdades dominantes, naturalizadas e impostas como se fossem substanciais, de modo que, seja ao ceder ou sucumbir a este controle, ela se fazia um “falso aceitável”.
Era, pois, em defesa da verdade dominante que o controle se manifestava repudiando a literatura questionadora e pressionando a produção literária a adequar-se aos padrões de produção privilegiados. Com isto, temos ainda o ganho de iluminarmos a principal consequência do controle do imaginário, qual seja, a de tornar o discurso ficcional “[…] apenas ilustração do que decretamos ser o mundo” (LIMA, 2007, p.9).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossa proposta de leitura, feita pelo prisma do controle religioso e científico do imaginário, consistiu em evidenciar que a ficção literária como um “falso aceitável” é uma constante que perpassa o renascimento e a modernidade. Tal leitura, ressaltemos agora, entra em consonância com uma antiga observação de Luiz Costa Lima, segundo a qual há uma convergência no pensamento ocidental em direção à caracterização da arte como subordinação à uma verdade eleita como núcleo do mundo (LIMA, 2011), bem como com a “razão meta-histórica” antes vista, conforme a qual tendemos a subordinar as imagens artísticas à percepção de algo já existente que adquire o status de verdade.
Por fim, através dessa leitura, evidenciamos, ainda, que o controle do imaginário possui a principal consequência de pressionar um dos produtos do imaginário, a ficção literária, a tornar-se ilustração das maneiras dominantes de conceber o mundo, apontando para o principal problema enfrentado pela literatura “subversiva”: o de sua comunicação, uma vez que, não adequando-se às verdades dominantes, tem o reconhecimento de sua qualidade prejudicado.
REFERÊNCIAS
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LIMA, Luiz Costa. Vida e mímesis. 1. ed. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
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LIMA, Luiz Costa. Representação Social e Mímesis. In: LOUREIRO, T. C.; PINTO, A. M. (org.). Escritos de Véspera. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011. p. 286-310
1Graduanda do curso de Licenciatura em Letras Português da Universidade Federal do Piauí (UFPI)
2 Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Piauí(UFPI)
3 Graduando do curso de Licenciatura em Letras Português da Universidade Federal do Piauí (UFPI)
4 Graduando do curso de Filosofia da Universidade Federal do Piauí (UFPI)