REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8179974
Edilson Martins
Resumo
O presente artigo tem o objetivo de identificar subsídios que possam contribuir para os debates sobre as configurações e as finalidades dos sistemas de educação pública. Para tanto, recorre-se a conceitos, fatos históricos e processos como municipalização, descentralização e regime de colaboração da gestão da educação pública. Tais processos, no entanto, estão amparados por uma legislação que, ainda, não se mostrou eficiente na superação dos desafios demandados pela educação pública.
Palavras-chave: Sistema de Educação. Configurações. Finalidades. Conferência Nacional de Educação.
Abstract
This article aims to seek subsidies that can contribute to debates on the configurations and purposes of public education systems. public education, such processes, supported by legislation that, still, has not proved efficient in overcoming the challenges demanded by public education.
Keywords: Education System. Settings. Purposes. National Education Conference.
Introdução
A tentativa de recorrer a subsídios que possam auxiliar na compreensão das configurações e das finalidades dos sistemas de educação pública nos impõe refletir sobre a legislação vigente, as instituições, os movimentos sociais, suas relações e tensões. Estes, na condição de política social, não estão dissociados dos processos históricos, econômicos, sociais e culturais, os quais, de certa forma, regulam a vida em sociedade.
Convém ressaltar que os processos relacionados à educação pública foram forjados no contexto de sobreposição de uma classe sobre as outras, nas quais os interesses são colocados em desequilíbrio de forças, direcionando os contornos das políticas de educação pública do país para o atendimento dos interesses impostos pelo capital. Por consequência, há a produção de resultados excludentes, visto que não atende, a contento, às demandas apresentadas pela maioria da população, tal como destacado por Lima (2014, p. 19):
A prática de uma educação excludente, levada a efeito durante muitas décadas, resultou no acúmulo de um grande contingente de analfabetos e em uma taxa média de escolarização não condizente com os direitos das crianças e dos jovens e, consequentemente, abaixo do desejável para o desenvolvimento do país.
A citação acima evidencia as consequências de uma política educacional excludente, vivenciada por décadas que, conforme destacado pelo autor, tem servido de plataforma para o desenvolvimento de debates e estudos que buscam compreender as causas e efeitos desse fenômeno.
A despeito do cenário de desigualdades no campo educativo, registram-se alguns avanços nos marcos jurídico-normativos, tais como a Constituição Federal de 1988 (CF de 1988), a Lei de Diretrizes e Bases nº 9.394/96 (LDB nº 9.394/96) e o Plano Nacional de Educação (PNE). Nesse sentido, destacamos a busca por um novo marco de interdependência federativa e de medidas para efetivá-lo, considerando a necessária superação da desigualdade entre os entes federados, sem prescindir do papel da União na proposição de políticas e diretrizes para a organização da educação nacional.
Esses e outros marcos jurídicos-normativos foram construídos em um contexto histórico de lutas, sustentado por concepções e conceitos que se revelam através de princípios e finalidades. Na tentativa de compreender esses princípios e finalidades, recorremos a alguns conceitos, categorias, fatos históricos, movimentos de descentralização, regimes de colaboração e de materialização de articulação da educação, os quais podem auxiliar no entendimento das implicações que são inerentes aos sistemas de educação pública e na consolidação do Sistema Nacional de Educação (SNE).
Para tanto, apoiamo-nos em indicativos de estudos conduzidos por autores como Agesta (1986), Aranha (2006), Cardozo, Lima e Lima (2014), Carnoy (2002), Dourado, Oliveira e Santos (2007), Frigotto (2010), Gadotti (1994), Guareschi (1989), Saviani (2010), Soares e Machado (2018), e Sousa (2013), dentre outros, além da legislação que dispõe sobre a temática em debate.
Perímetros conceituais de educação e de sistema
Para auxiliar na compreensão do que vem a ser educação, Jaeger (1995, p. 3) sinaliza que “todo povo que atinge certo grau de desenvolvimento inclina-se naturalmente à prática da educação”. Mas, qual educação? É preciso observar os pressupostos conceituais, legais e o campo de abrangência da educação, uma vez que os conceitos dessa área se alargam e podem nos levar a entendimentos que fogem do contexto aqui proposto.
O significado acerca da educação é de tamanha abrangência ao ponto de Brandão (1985) afirmar que ninguém escapa da educação. Em todos os momentos da vida, de uma forma ou de outra, somos emaranhados pela educação. No entanto, cabe ressaltar que, mesmo com a abrangência do que vem a ser a compreensão sobre educação, esta não se estende a ponto de ser confundida com o sinônimo de conhecimento.
Nessa perspectiva, destacamos que os princípios que respaldam o termo educação estão intimamente relacionados com os referenciais éticos e morais construídos e valorizados por uma determinada sociedade. O conhecimento pode estar relacionado com atividades que vão de encontro aos princípios adotados pela educação.
Sobre a função da educação em relação ao conhecimento, Dowbor (2001) entende que a educação, na sua função integradora, deve fazer a gestão do conhecimento, e este servir como capital humano. Nesse particular, a educação se coloca como essencial frente às finalidades que o conhecimento deve ter enquanto prática social.
Não existe aqui a intenção de sermos reducionistas, pois o propósito é apontar alguns elementos conceituais sobre educação no sentido de posicionar tal conceito em direção à educação promovida na e pela escola, articulada pelos sistemas de educação. Estes, na condição de política social, não se afastam dos valores e da cultura da sociedade.
Pressupondo que o pensar, o articular, o executar e o avaliar da educação não estão dissociados das múltiplas intencionalidades políticas e sociais, por vezes utilizadas como instrumentos de dominação de um grupo social sobre outros, ou seja, pelo grupo dominante, essas ações visam reproduzir seus interesses e sua ideologia a partir de uma concepção produtivista, regulada por valores hegemônicos, com desígnio de manutenção do poder e exploração de um grupo sobre o outro (GUARESCHI, 1989).
Tomamos como referência, neste caso, os postulados conceituais de educação no seu sentido formal, mais restrito, como os propostos pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) (2013), que descrevem a educação como um processo continuado de desenvolvimento com base no ensino e na aprendizagem. A educação faz parte do currículo dos estabelecimentos de ensino, sejam eles públicos ou privados, orientados por parâmetros legais (BRASIL, 2013). No caso do Brasil, esses parâmetros estão dispostos na CF/1988, na LDB nº 9.394/96 e outros dispositivos regulatórios (BRASIL, 1996a, [2020]).
Tais dispositivos definem os princípios que orientam a concretização da educação formal que devem ser adotados pelas unidades subnacionais. Esses princípios estão contemplados no artigo 205 da CF/1988 e confirmados no artigo 3º da LDB nº 9.394/96 da seguinte forma:
I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;
III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas;
IV – respeito à liberdade e apreço à tolerância;
V – coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
VI – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
VII – valorização do profissional da educação escolar;
VIII – gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino;
IX – garantia de padrão de qualidade;
X – valorização da experiência extra-escolar;
XI – vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais;
XII – consideração com a diversidade étnico-racial;
XIII – garantia do direito à educação e à aprendizagem ao longo da vida;
XIV – respeito à diversidade humana, linguística, cultural e identitária das pessoas surdas, surdo-cegas e com deficiência auditiva. (BRASIL, [2020], não paginado).
Portanto, os princípios destacados acima regulamentam a educação e os próprios sistemas que incluem os processos que normatizam e dão configuração e finalidades às políticas de educação no país. Esses procedimentos vêm sendo construídos ao longo de um período histórico, calcados em alicerces ideológicos de dominação e reprodução de desigualdade. Nesse sentido, registramos alguns antecedentes que foram marcantes na caminhada da construção da educação brasileira.
Os antecedentes devem ser analisados de acordo com alguns pressupostos, incluindo os seguintes: a verticalização da responsabilização pela educação; o papel do Estado em garantir a educação como direito social; a influência burguesa e do próprio capital sobre as diretrizes da educação, referendadas pelos organismos e agências internacionais. Sobre este último, Carnoy (2002) afirma que as reformas fundadas nos imperativos financeiros, antes de tudo, buscam reduzir os gastos públicos com a educação, levando em conta princípios da competitividade de aprimoramento das tarefas educativas que restringem o uso dos fundos públicos.
Os três aspectos destacados anteriormente parecem ser um traço marcante das políticas de educação básica pública do país. A esse respeito, Frigotto (2010) compreende que a influência da cultura burguesa nos planos, diretrizes e estratégias educacionais vem se configurando em avanços tímidos na educação pública enquanto condição de direito social, dada a sua característica mercantil. Esse cenário impulsiona a consolidação de políticas educacionais baseadas na teoria do capital humano como noções de sociedade do conhecimento e qualidade total, na qual os resultados são vistos sem considerar as condições em que foram construídos.
É no conjunto desses enfrentamentos e dessas tensões que pretendemos traçar uma linha de ponderações sobre as configurações e as finalidades dos sistemas de educação e suas implicações na educação básica pública. Seguindo os argumentos de Aranha (2006, p. 24), dentre outros autores, “As questões de educação são engendradas nas reações que se estabelecem entre as pessoas nos diversos segmentos da comunidade. A educação não é, portanto, um fenômeno neutro, mas sofre efeitos do jogo do poder”.
Nessa perspectiva, para compreender esse fenômeno, há de se considerar as tensões e os interesses que estão em disputa nos arranjos que se relacionam com a educação. As referências conceituais sobre sistema e educação são abrangentes e diversas. Neste estudo, limitar-nos-emos ao entendimento de sistema, quando atrelado às ciências sociais. Sobre essa vertente, o sistema serve de base instrumental e metódica para a compreensão das inter-relações das partes de um todo em determinado contexto social.
Agesta (1986, p. 1127) assim define sistema:
Entende-se por sistema o conjunto de coisas que ordenadamente entrelaçadas contribuem para determinado fim; trata-se, portanto, de um todo coerente cujos diferentes elementos são interdependentes e constituem uma unidade completa.
Ainda no campo das ciências sociais, o termo sistema é utilizado para nomear diferentes organizações sociais e várias atuações do Estado, de modo que podemos encontrar: sistema econômico, sistema político, sistema educacional etc. Sousa (2013) compreendeu o sistema como um conjunto de elementos que se articulam e convergem para a estruturação de princípios que integram o próprio sistema. Esses princípios se ancoram na organização, na autonomia, na sinergia e na totalidade para ter uma intencionalidade e/ou finalidade. A esse respeito, Bordignon (2009, p. 28) alerta:
Esses princípios fundantes não esgotam toda a riqueza de características de um sistema, mas estabelecem os parâmetros para sua organização. Em síntese, um sistema articula e organiza um conjunto de instituições e normas, formando um todo sinérgico. As normas constituem o elemento articulador, organizador, que estabelece a coerência da ação de cada parte no todo em vista de sua finalidade.
No caso do sistema de educação, este apresenta descompasso a respeito da compreensão do que venha ser, considerando a sua funcionalidade. O sistema de educação pode ser entendido como um aglomerado de escolas, sem intenção sistematizada de suas ações, como esclarece Saviani (2008, p. 381).
[…] é preciso considerar que o conceito de sistema não se resume à ideia de rede de escolas. Para lá dessa acepção, o termo sistema denota um conjunto de atividades que se cumprem tendo em vista determinada finalidade. E isso implica que as referidas atividades são organizadas segundo normas decorrentes dos valores que estão na base da finalidade preconizada. Assim, o sistema implica organização sob normas próprias (o que lhe confere um elevado grau de autonomia) e comuns (isto é, que obrigam a todos os seus integrantes).
Os enunciados descritos por Saviani (2008), quando observados na prática, tendem a não se materializar, conforme o disposto na legislação. De fato, o que acontece nos sistemas de educação apresenta dicotomia ou diferenciação na implementação e nas finalidades da educação, revelando fragilidades na articulação dos próprios sistemas e com os outros sistemas de educação de diversos municípios, do estado e até com o sistema nacional de educação.
Dessa forma, compreendemos que algumas inquietações e questionamentos permeiam a constituição do SNE do país, dentre os quais destacamos os seguintes: o Brasil dispõe mesmo de um Sistema Nacional de Educação? Caso não haja, os outros sistemas das unidades subnacionais são fidedignos nas suas ações, sendo que o primeiro normatiza e regulamenta os demais?
Sobre a existência de um Sistema Nacional de Educação no país, Gadotti (1994, p. 10) afirma que:
De fato, não existe propriamente, no Brasil, um sistema nacional de educação, pois os vários ‘subsistemas’ funcionam frequentemente como estruturas justapostas. Não há articulação entre eles, não há um conjunto harmônico de relações entre partes e todo. O artigo 211 da Constituição institui o ‘regime de colaboração’, que necessita ser um verdadeiro regime de articulação das diversas instâncias do governo. Um sistema nacional pressupõe a articulação e não a justaposição, nem a anulação de um sistema por outro.
As condições de relação entre os sistemas de educação, segundo o autor, inibem outro elemento advindo da fragilidade de articulação entre os sistemas de educação, que é o regime de colaboração. Por outro lado, a LDB nº 9.394/96, ao dispor sobre a incumbência dos entes federados na organização da educação, destaca que:
Art. 9. A União incumbir-se-á de: inciso II – organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais do sistema federal de ensino e o dos Territórios;
Art. 10. Os Estados incumbir-se-ão de: inciso I – organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais dos seus sistemas de ensino;
Art. 11. Os Municípios incumbir-se-ão de: inciso I – organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais dos seus sistemas de ensino, integrando-os às políticas e planos educacionais da União e dos Estados. (BRASIL, 1996a, não paginado).
Para efeito da lei que normatiza a educação nacional, fica clara a existência do sistema nacional, estaduais, municipais e distrital de educação. Subsidiado na legislação e nos resultados de pesquisas e análises desenvolvidas por estudiosos a respeito do tema, compreendemos que, para se caracterizar um sistema de ensino, implica tratar da existência de unidades escolares, departamentos executivos, normativos e de controle que se articulam entre si, a fim de alcançar um objetivo comum preestabelecido, organizado conforme entendimento apresentado por Menezes e Santos (2001, p. 59).
Os órgãos responsáveis pela educação, em nível federal, são o Ministério da Educação (MEC) e o Conselho Nacional de Educação (CNE). Em nível estadual, a Secretaria Estadual de Educação (SEE), o Conselho Estadual de Educação (CEE), a Delegacia Regional de Educação (DRE) ou a Subsecretaria de Educação. E, por fim, em nível municipal, existem a Secretaria Municipal de Educação (SME) e o Conselho Municipal de Educação (CME).
A partir da citação, compreendemos que a União, estados, municípios e Distrito Federal, para se caracterizarem como sistema de educação, precisam das suas respectivas instituições oficiais, o que, por si só, não basta, pois precisa cumprir suas finalidades. Dentre os entendimentos conceituais sobre sistema de educação, optamos pelos enunciados de Saviani (2014), que diz que o sistema de educação é compreendido como uma unidade de vários aspectos de educação, mobilizados intencionalmente e reunidos para formar um conjunto coerente que opera eficazmente no processo de educação da população do país.
Movimentos de descentralização e regime de colaboração da gestão da educação pública
Reconhecemos a importância de outros momentos que permearam a construção da educação brasileira, a exemplo dos períodos jesuítico, pombalino e a chegada da família real ao Brasil em 1808. As ponderações a respeito de algumas passagens históricas, relativas à educação, têm início com o destaque ao Decreto imperial de 1827. Esse decreto se constituiu na primeira lei brasileira que tratava exclusivamente da educação e, além de outras normativas, trazia a formalização dos primórdios das diretrizes legais da descentralização da educação, dispondo sobre a criação de escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos. Contudo, o decreto não assegurava as condições de funcionamento das escolas, ficando sob a tutela dos presidentes das províncias, por meio de audiência das respectivas câmaras (BRASIL, 1827).
Na década seguinte, em 1834, foi instituído o Ato Adicional que, além de instituir a monarquia, trazia consigo outras providências sobre a gestão dos serviços públicos, entre elas a que transferia para as assembleias provinciais as responsabilidades da instrução pública, fortalecendo os primórdios do processo de descentralização de parte dos serviços públicos, no caso da educação, iniciado pelo decreto imperial de 1827 (BRASIL, 1834).
Essa regulamentação à época já trazia consigo a desresponsabilização do poder central na efetivação dos serviços públicos, e a educação estava no centro dessas decisões, as quais influenciaram a manutenção das condições precárias. Como consequência, impossibilitou-se a existência de uma rede organizada de escolas. É interessante ressaltar que, nesse momento histórico, já havia garantia legal de gratuidade da instrução primária para todos os brasileiros.
A descentralização das ações da educação ganhou força com a Constituição da República de 1891, ao transferir para os estados maiores as responsabilidades pela educação dos seus cidadãos (BRASIL, 1891). No entanto, os efeitos práticos desse ato não se traduziram em melhorias efetivas para a educação das camadas populares, especialmente para as pessoas de regiões mais pobres. Somente a transferência de responsabilidades, sem as devidas condições técnicas, financeiras e instrumentais, fazia com que a população mais carente permanecesse relegada a segundo plano, convivendo com índices alarmantes de analfabetismo.
Tal como afirma Romanelli (1978, p. 43), “[…] a educação e a cultura tomando impulso em determinadas regiões do sudeste do Brasil, sobretudo em São Paulo, e o restante dos estados seguindo sem transformações profundas”. Essa situação se faz presente na atualidade, em alguns sistemas de educação, quando analisada a qualidade ou o desempenho, considerando a localização geográfica desses sistemas (conforme demonstrado na figura 1, p. 13).
O advento do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, representou um marco enquanto proposição para a educação ao aglutinar as necessidades de uma elite intelectual em torno de um projeto exitoso de política pública de educação. Entre as proposições do Manifesto estava a de criar um sistema de organização escolar, no qual a escola deveria ser única, obrigatória, pública, laica, gratuita e que todos os professores deveriam ter formação universitária. O Manifesto propunha que a educação se tornasse uma obrigação do Estado e que todos tivessem acesso a ela desde as séries iniciais à formação superior.
O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova defendia que:
A organização da educação brasileira unitária sobre a base e os princípios do Estado, no espírito da verdadeira comunidade popular e no cuidado da unidade nacional, não implica um centralismo estéril e odioso, ao qual se opõem as condições geográficas do país e a necessidade de adaptação crescente da escola aos interesses e às exigências regionais. Unidade não significa uniformidade. A unidade pressupõe multiplicidade. (MANIFESTO…, 2006, p. 8).
Impulsionado pelas proposições do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, na década seguinte, foi elaborada e promulgada a Constituição de 1934, legislação que estabeleceu as disposições para a criação dos sistemas de ensino, do Conselho Nacional e estaduais de educação e do Plano Nacional de Educação. A educação foi colocada como um direito de todos, tal como expresso no artigo 149 da Carta constitucional:
Art. 149 – A educação é direito de todos e deve ser ministrada, pela família e pelos Poderes Públicos, cumprindo a estes proporcioná-la a brasileiros e a estrangeiros domiciliados no País, de modo que possibilite eficientes fatores da vida moral e econômica da Nação, e desenvolva num espírito brasileiro a consciência da solidariedade humana. (BRASIL, 1934, não paginado).
Destaca-se ainda que a lei, visando à possibilidade do desenvolvimento econômico, teve um alinhamento mais voltado para o ensino médio e o superior, sendo que o ensino primário deveria ser público e de frequência obrigatória para os que estivessem em idade escolar.
A Constituição Federal de 1946, no tocante à educação, trouxe normas programáticas para a descentralização dos encargos educacionais da esfera da União para os estados e Distrito Federal, reconhecendo explicitamente os sistemas estaduais de ensino. Com influência advinda da Carta Brasileira da Educação Democrática, organizada pela Associação Brasileira de Educação (ABE) e aprovada pela Conferência Brasileira de Educação, realizada no Rio de Janeiro de 22 a 28 de junho de 1945, dentre as contribuições, a mais profunda é a possibilidade de os estados organizarem os seus respectivos sistemas, podendo ir do pré-escolar às instâncias superiores.
Ainda vislumbrando a possibilidade de melhoria da educação, foi elaborada e aprovada a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promulgada em 20 de dezembro de 1961, pelo então presidente João Goulart, após dezesseis anos de tramitação. Essa lei trouxe alguns avanços, conforme se pode listar: tratava da formação mínima para professores; contemplou a regulamentação dos conselhos de educação; enfatizou o Plano Nacional de Educação como instrumento de articulação dos sistemas de educação, dando corpo ao processo de descentralização das ações de educação e, consequentemente, à transferência de responsabilidades pela implementação das políticas públicas de educação para os estados (BRASIL, 1961).
Após dois anos de promulgação da primeira LDB do Brasil, aconteceu o golpe militar, em 30 de março de 1964, que se alongou por 20 anos, período marcado pela restrição de liberdades civis e democráticas. Nesse interstício, ocorreram alguns fatos marcantes na educação: foi implementada a Lei nº 5.692/71, que reservou às camadas mais pobres o ensino profissionalizante, deixando o ensino superior para as famílias oriundas das classes mais abastadas, adequando-se ao momento de forte repressão social; acentuou-se o processo de descentralização da educação, ancorado no movimento de municipalização, como possibilidade de diminuir os altos índices de analfabetos.
Após esse período, teve início o processo de redemocratização do país com o efetivo engajamento da participação popular no movimento em defesa das Diretas já, ou seja, da eleição direta para todos os cargos públicos. Nesse contexto, foram defendidas várias iniciativas de fortalecimento da pressão popular, as quais defendiam, dentre outras bandeiras, a da elaboração de uma nova Constituição.
No caso da educação, foi realizada em 1986 a IV Conferência Brasileira de Educação, quando foi produzido um documento intitulado Carta de Goiânia, o qual apresentou propostas significativas para a educação enquanto direito social. As proposições contempladas na carta indicavam a preocupação dos educadores com a educação do país:
Atendendo ao convite das entidades organizadoras – ANDE (Associação Nacional de Educação), ANPED (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação) e CEDES (Centro de Estudos Educação e Sociedade) – seis mil participantes, vindos de todos os estados do país, debateram temas da problemática educacional brasileira, tendo em vista a indicação de propostas para a nova Carta Constitucional. Os profissionais da educação declaram-se cientes de suas responsabilidades na construção de uma Nação democrática, onde os cidadãos possam exercer plenamente seus direitos, sem discriminação de qualquer espécie. Então, por isso, empenhamos em debater, analisar e fazer denúncias dos problemas e impasses da educação brasileira e, ao mesmo tempo, em colocar sua capacidade profissional e sua vontade política para a superação dos obstáculos que impedem a universalização do ensino público de qualidade para todo o povo brasileiro. (CARTA…, 1986, p. 145).
Parece notório que as diretrizes propostas no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova e, particularmente, as defendidas pela da Carta de Goiânia conseguiram fazer com que suas intencionalidades chegassem até a assembleia constituinte. Mesmo com tais contribuições e apesar de algumas críticas, a CF/1988 se estabeleceu como um aparato legal que propiciou grandes conquistas no que se refere aos direitos sociais, sobretudo aos dispositivos postos no capítulo III da seção I, artigos 205 a 214, que tratam especificamente da educação (BRASIL, [2020]).
A CF/1988 estabelece no seu artigo 205 que:
[…] a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (BRASIL, [2020], não paginado).
Esse artigo é enfático ao colocar a educação como direito e determinar de quem é o dever, além de dispor dos objetivos da educação.
A constituição de 1988 colocou os princípios da descentralização e municipalização na gestão das políticas sociais, reconhecendo o Município como instância administrativa. No campo da educação (artigo 211), oportunizou a possibilidade de organização de seus sistemas de ensino em colaboração com a União, os estados e o Distrito Federal. Os municípios deviam manter cooperação técnica e financeira com a União e com os estados, através dos programas de educação infantil e de ensino fundamental (Art. 30. VI). O município, por meio da colaboração e através de seu órgão administrativo, pode administrar seu sistema de ensino ao definir normas e metodologias pedagógicas que se adaptem melhor às suas peculiaridades.
Na década de 90, a municipalização da educação se fortaleceu com o apelo da população local, a qual exigia, cada vez mais, a melhoria da educação pública, a criação da LDB nº 9.394/96 e a implementação da Emenda Constitucional nº 14 de 1996, que instituiu o FUNDEF, regulamentado pela Lei nº 9.424/96. O FUNDEF passou a funcionar em 1998, estabelecendo nos parâmetros o financiamento do Ensino Fundamental. Souza (2010) afirma que a municipalização tem sido uma das estratégias privilegiadas, por meio da qual se procura imprimir nova racionalidade aos respectivos sistemas municipais de educação.
Outro mecanismo assegurado na legislação e que busca fortalecer o município na efetivação das políticas e programas educacionais é o regime de colaboração. Logo, instâncias do governo assumem responsabilidades conjuntas pelas políticas e programas educacionais, inclusive no financiamento, como indicado no artigo 211 da CF/1988 e especificado no artigo 8º da LDB nº 9.394/96. Tal mecanismo está presente ainda no artigo 7º do PNE, que diz que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios atuarão em regime de colaboração, visando ao alcance das metas e à implementação das estratégias, objeto do referido plano.
À luz do Projeto de Lei Complementar – PLP nº 235/2019, que tramita na Câmara dos Deputados e que instituiu o SNE, são fixadas normas para a cooperação entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios nas políticas, programas e ações educacionais, em regime de colaboração.
O documento introdutório da Base Nacional Comum Curricular – BNCC concluiu que, para alcançar seus objetivos, depende-se do adequado funcionamento do regime de colaboração legitimado pelo pacto federativo, assegurado por um conjunto de regras criadas para dividir as competências e organizar o funcionamento dos entes federados, como disposto nos artigos 21, 22, 23 e 24 da CF/1988.
Movimentos de materialização do sistema nacional articulado de educação
Mesmo com lacunas existentes na educação pública brasileira, são perceptíveis os avanços na garantia do direito à educação depois do processo de redemocratização do país, materializados pela promulgação da CF/1988 e após a Lei nº 9.394/96, que estabeleceu as diretrizes e bases da educação nacional. No entanto, a partir da análise até aqui desenvolvida, inferimos que esses avanços não foram suficientes para alcançar a concretização de um sistema nacional e articulado de educação, considerando os aspectos do federalismo brasileiro e as regulações das unidades subnacionais.
A esse respeito, Saviani (2010, p. 382) compreende que:
A construção de um Sistema Nacional de Educação nada tem de incompatível com o regime federativo. Ao contrário, eu diria que a forma própria de responder adequadamente às necessidades educacionais de um país organizado sob o regime federativo é exatamente por meio da organização de um Sistema Nacional de Educação.
Nessa perspectiva, a organização e a instituição do regime federativo do país tendem a não se estabelecer como um entrave na consolidação de um sistema nacional articulado de educação. As tentativas de consolidação da articulação têm sido discutidas, porém sua regulamentação e efetivação parecem distantes.
Destaca-se que a iniciativa de viabilizar um sistema nacional de educação foi aprovada com a Emenda Constitucional nº 59, que deu uma nova redação a vários artigos da Constituição Federal relacionados à educação. Dentre eles, está o artigo 214, que estabelece o plano nacional de educação e que objetiva articular o sistema nacional de educação, tal como no destaque abaixo:
Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a:
I – Erradicação do analfabetismo;
II – Universalização do atendimento escolar;
III – Melhoria da qualidade do ensino;
IV – Formação para o trabalho;
V – Promoção humanística, científica e tecnológica do País.
VI – Estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto. (BRASIL, 2009, não paginado).
Essa nova redação traz mudanças expressivas, pois altera o prazo de vigência do plano nacional de educação de dois para dez anos, faz menção ao sistema nacional de educação e estabelece a meta de aplicação dos recursos públicos em educação vinculado ao Produto Interno Bruto (PIB)1.
Ainda no sentido de consolidar um sistema nacional de educação, foi realizada a CONAE 2010, instituída pela Portaria Normativa nº 10, de 3 de setembro de 2008, que teve como tema “Construindo o Sistema Nacional Articulado: O Plano Nacional de Educação, Diretrizes e Estratégias de Ação”, que ocorreu no período de 28 de março a 1º de abril de 2010. Essa Conferência se constituiu em um marco histórico no debate da educação por sua postura participativa, mobilizando representação do governo e da sociedade civil em torno da defesa de uma política social muito relevante. Serviu de espaço de avaliação do PNE 2001/2010 e de tomada de decisão para a elaboração do PNE 2011/2020, concluindo sua elaboração em 2014. Assim, o PNE 2011/2020 se tornou no PNE 2014/2024.
O atraso nas discussões do PNE resultou em uma lacuna de quatro anos sem objetivos, metas e estratégias para a educação. Tal situação permite perceber o tamanho do descaso com a educação pública do nosso país. O Documento Final da CONAE (2010) corrobora essa constatação, apontando outro descaso com a educação.
Uma das evidências do menosprezo à educação nacional pode ser encontrada na estrutura de financiamento que permeou toda a sua história: o financiamento da educação nunca foi efetivamente concebido a partir das necessidades reais de crianças, adolescentes, jovens e adultos. Ao contrário, sempre foi estabelecido um quantum possível de recursos e, a partir dele, identificavam-se quais setores, níveis, modalidades e segmentos sociais seriam priorizados. Tal situação não favoreceu o sentido de Sistema Nacional. (BRASIL, 2010, p. 19-20).
O Documento Final da Conferência Nacional de Educação (2010) ratifica essa disposição ao destacar o entendimento de que é responsabilidade do Estado oferecer as condições necessárias para garantir a educação com o direito social inalienável2.
A CONAE 2010 teve como objetivo primário a mobilização social em prol da educação. A Conferência elencou cinco desafios para a educação naquele momento: construir o Sistema Nacional Articulado de Educação; promover de forma permanente o debate nacional, estimulando a mobilização em torno da qualidade e valorização da educação; garantir que os acordos e consensos produzidos na Conferência Nacional de Educação (2010) fossem cumpridos; propiciar condições para que as políticas educacionais se estivessem em consonância com princípios legais; e que a educação tivesse seus fundamentos alicerçados na garantia da universalização e da qualidade social em todos os seus níveis e modalidades, bem como na democratização de sua gestão (BRASIL, 2010).
O contexto da educação pública, na contemporaneidade, indica que os desafios postos pela Conferência Nacional de Educação (2010), ainda não foram superados a contento, tomando como exemplo o desafio de “Criar um Sistema Nacional Articulado de Educação”. O Artigo 13° da Lei nº 13.005, que instituiu o PNE, indica que o Sistema Nacional de Educação deveria ter sido criado até 2016 (BRASIL, 2014), porém, isso não se confirmou.
Esse desafio continua sendo uma discussão relevante para o país ao oferecer clareza sobre a efetividade das ações de cooperação federativa e do regime de colaboração, inclusive aperfeiçoando as funções supletivas e redistributivas da União, via regulamentação específica. A Conferência Nacional de Educação (2010) no seu documento final aborda a questão da ausência do SNE e dos ganhos que se poderia ter com a sua efetivação.
A ausência de um efetivo sistema nacional de educação configura a forma fragmentada e desarticulada do projeto educacional ainda vigente no País. Assim, a sua criação passa, obrigatoriamente, pela regulamentação do regime de colaboração, que envolve as esferas de governo no atendimento à população em todas as etapas e modalidades de educação, em regime de corresponsabilidade, utilizando mecanismos democráticos, como as deliberações da comunidade escolar e local, bem como a participação dos/das profissionais da educação nos projetos político-pedagógicos das instituições de ensino. (BRASIL, 2010, p. 22).
Diante das colocações contempladas no documento final da Conferência Nacional de Educação (2010), em particular acerca da necessidade de efetivação do SNE como passagem para a melhoria da qualidade social da educação, os debates sobre esse ponto tendem a não se exaurirem enquanto política pública.
Em 2014, no ensaio de consolidação do sistema nacional de educação, aconteceu a segunda edição da CONAE, no período de 19 a 23 de novembro de 2014, cujo tema foi “O PNE na Articulação do Sistema Nacional de Educação: Participação Popular, Cooperação Federativa e Regime de Colaboração”. Esse evento, coordenado pelo Fórum Nacional de Educação (FNE), se caracterizou por ser um espaço de deliberação e participação coletiva na tentativa de colocar a educação como um bem público e um direito social. Para tanto, a CONAE 2014 definiu como objetivo geral para orientar o desenvolvimento das discussões:
Propor a Política Nacional de Educação, indicando responsabilidades, corresponsabilidades, atribuições concorrentes, complementares e colaborativas entre os entes federados e os sistemas de ensino. E como objetivos específicos: 1. Acompanhar e avaliar as deliberações da Conferência Nacional de Educação/2010, verificando seu impacto e procedendo às atualizações necessárias para a elaboração da Política Nacional de Educação. 2. Avaliar a tramitação e a implementação do PNE na articulação do Sistema Nacional de Educação SNE e no desenvolvimento das políticas públicas educacionais. (BRASIL, 2015, p. 11).
Observa-se que a CONAE 2014 tinha objetivos de avaliar as políticas de educação, tomando como referência o PNE 2001/2010, e deveria se organizar no sentido de articular o Sistema Nacional de Educação (SNE). Para tal propósito, seriam necessários a participação popular, a cooperação federativa e o regime de colaboração.
Acolhendo como menção o tema da CONAE 2014 e as estratégias que auxiliariam na concretização da articulação do SNE, parece haver ambiguidade na efetivação dessa articulação. Em uma das estratégias, participação popular, há o registro de participação popular nas conferências municipais, regionais, estaduais e nacional, o que não significa dizer que essa participação se estenda ao acompanhamento e monitoramento da implementação das metas e estratégias do PNE e dos planos das unidades subnacionais. Por outro lado, as estratégias, a cooperação federativa e o regime de colaboração tendem a não ser claros até mesmo no que tange à legislação da educação, como aponta Cavalcanti (2016, p. 136).
Essa pressuposta imprecisão entre o termo ‘normas de cooperação’ e ‘regime de colaboração’, tende ao desaparecimento no texto da LDB nº 9.394/1996, quando no seu Artigo 8º, o termo “regime de colaboração” é apresentado como a forma de os entes federados organizarem seus sistemas de ensino, associado, por um lado, à competência da União de coordenação da política nacional de educação, que se expressa na função de articulação dos diferentes níveis e sistemas e da função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais, e por outro, à liberdade dos entes federados para organizarem seus sistemas de ensino.
A análise da autora expõe a mesma carência registrada no Artigo 211 da CF/1988, quanto destaca a necessidade de que o regime de colaboração seja regulamentado por lei específica. Assim, a materialização das estratégias, cooperação federativa e regime de colaboração, como pressupostos para o PNE 2014/2024, promovem a articulação do SNE.
A falta de regulamentação do SNE atinge primeiro as unidades federativas, que se veem sem apoio ou assumindo funções que, às vezes, não são suas, mas, sobretudo, impactam nos estudantes. Estes, diante da falta de clareza na articulação da política de educação, ficam submissos a processos educativos com lacunas que prejudicam a sua organização e desenvolvimento.
O FNE, entendendo a carência da regulamentação dos dispositivos constitucionais, que tratam da cooperação federativa e do regime de colaboração, lançou em 01/04/2016 um documento propositivo para o debate ampliado sobre o assunto, conforme destacado a seguir:
O presente Documento constitui-se, pois, em um ponto de partida para organizar e avançar no debate junto ao MEC e à outros órgãos e agentes do campo da educação, mediante proposição mais estruturada em termos conceituais e operacionais, nesse momento de finalização do prazo para envio ao Legislativo de Projeto de Lei complementar que trate da institucionalização do SNE no contexto da cooperação federativa e colaborativa em educação. (BRASIL, 2016a, p. 1).
O documento resultou de uma organização sistematizada dos aspectos discutidos na CONAE 2010/2014. No desdobramento dos seus artigos, propõe regulamentar princípios, finalidades, objetivos, conceitos, estrutura, organização e funcionamento do SNE, além de definir ações e instrumentos integrados de planejamento e avaliação da educação.
As fragilidades apresentadas na concretização do SNE para que a cooperação federativa e o regime de colaboração sejam incorporados, não é por falta de amparo legal, pois a CF/1988, no Art. 23, Parágrafo Único, destaca que “Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional” (BRASIL, [2020], não paginado). As contradições sobre um eficiente SNE estão vinculadas à inexistência de leis complementares que normatizam a sua funcionalidade.
Os ensaios de efetivação do SNE, via CONAE, continuam depois do golpe de 2016 em meio à turbulência política e administrativa, quando se iniciaram os desmontes de várias conquistas sociais já implementadas. Frigotto e Ramos (2017) são categóricos em afirmar que o golpe de 2016 tinha como objetivo encurtar a cobertura das políticas públicas, incluindo as de educação. O congelamento do investimento público por vinte anos é um exemplo cabal desse desmonte.
Em meio a esses acontecimentos e em conformidade com a Lei nº 13.005/2014 e, ainda, com o Decreto nº 8.752, de 9 de maio de 2016, foi convocada a 3ª CONAE com o tema “A consolidação do sistema nacional de educação – SNE e o Plano Nacional de Educação – PNE: monitoramento, avaliação e proposição de políticas para a garantia do direito à educação de qualidade social, pública, gratuita e laica” (BRASIL, 2016b, não paginado). Essa Conferência teve como objetivo geral
[…] monitorar e avaliar o cumprimento do PNE, corpo da lei, metas e estratégias, propor políticas e ações e indicar responsabilidades, corresponsabilidades, atribuições concorrentes, complementares e colaborativas entre os entes federativos e os sistemas de educação. (BRASIL, 2018, p. 5).
Apresentou, como objetivos específicos, acompanhar e avaliar as deliberações da CONAE 2014; monitorar e avaliar a implementação do PNE 2014/2024; e monitorar e avaliar a implementação dos planos estaduais, distrital e municipais de educação, os avanços e os desafios para as políticas públicas educacionais (BRASIL, 2015).
A CONAE 2018, na perspectiva de consolidação do SNE e do PNE, desnudou desafios recorrentes da educação pública e oportunizou frequentes debates sobre a matéria, visto que o termo consolidação remete à concretização, solidificação ou materialização de uma determinada ação. De acordo com o posicionamento de alguns estudiosos, citados anteriormente, essa consolidação ainda não se efetivou. O Documento Final da CONAE 2018 visava que os debates ocorreram da seguinte forma:
Espera-se, portanto, que haja bastante aprofundamento acerca das discussões que envolvem a implementação do PNE e a instituição do SNE, seus conceitos estruturantes e seus objetivos estratégicos, por meio dos colóquios, palestras, mesas de interesse e plenárias, que se realizarão com pluralidade, representatividade e espírito democrático em todos os espaços. Assim, as deliberações adotadas deverão ser a expressão do consenso e do rico debate processado. (BRASIL, 2018, p. 10).
Os encaminhamentos sugeridos pela CONAE 2018 não se processaram a contento, considerando que os aspectos, pluralidade, representatividade e espírito democrático foram inibidos diante das restrições à participação de segmentos da sociedade civil organizada. Esse fato foi regulamentado pela Portaria do Ministério da Educação nº 577, de 27 de abril de 2017, que motivou a criação de uma outra instituição e uma conferência paralela. Esses foram alguns dos motivos alegados para a criação do Fórum Nacional Popular de Educação (FNPE) e da Conferência Nacional Popular de Educação (CONAPE) 2018.
Os conflitos de interesse e a falta de vontade política tendem a inviabilizar a consolidação do SNE. Esse fato teve consequências nas relações que se estabeleceram entre as unidades federativas, como pontua Ronca e Alves (2015). A existência de diretrizes regulatórias, como apontada no artigo 23 da CF/1988, seria fundamental para os avanços das políticas educacionais ao estabelecer novos marcos para as ações e relações dessas políticas (BRASIL, [2020]). Torna-se simbólico e repetitivo que as tentativas de implementar um sistema nacional articulado de educação esbarram na falta de regulamentação e, principalmente, de vontade política.
As superações dos gargalos das políticas educacionais, como possibilidade de garantia de direitos, e com o declínio da garantia de qualidade social, têm provocado intensos debates (com participação popular ou não) sobre essa política. Como resultado, parte desses debates fomentou as diretrizes da educação pública e o processo de descentralização, além da definição de autonomia por parte dos entes federados.
As reflexões feitas nesta amostragem indicam que as estratégias adotadas para a melhoria da qualidade social da educação, via regime de colaboração, apresenta dificuldades em sua implementação, as quais vão além da legislação. Para superá-las, é crucial inverter a lógica do trabalho individualizado para o trabalho coletivo, no qual todos se apoiem mutuamente. É preciso que a política seja explícita nas ações e decisões coletivas, consolidando-se como uma das principais estratégias de articulação do PNE, PEE e PME para a consolidação do SNE.
Considerações finais
As reflexões feitas até então não exaurem as questões sobre as configurações e finalidades dos sistemas de educação pública. No entanto, os ensaios reflexivos apontam para demandas que necessitam de empenho do poder público e da sociedade como um todo em torno da busca de alternativas que vislumbrem a melhoria da educação.
Os debates e as ações propositivas conduzidos pelas CONAEs 2010, 2014 e 2018 não se mostram eficientes na construção e consolidação do SNE, uma vez que as lacunas que impedem a efetivação do SNE permanecem abertas. No entanto, parece salutar que as indicações apontadas no documento propositivo do FNE, assim como as sugestões recomendadas por organizações ligadas à educação, citadas no último tópico, tendem a se constituir em alternativas que assegurem a articulação entre os sistemas públicos de educação.
É possível que o regime de colaboração se torne um instrumento prático na concretização de ações articuladas e colaborativas na educação. Para tanto, comprometimento político, qualificação técnica dos profissionais, engajamento dos atores locais, eficácia no fluxo de informações e controle social são imprescindíveis para o fortalecimento da capacidade dos entes federados planejarem, executarem e avaliarem as políticas educacionais de maneira conjunta e articulada.
1 PIB é a soma de todos os bens e serviços finais produzidos por um país, estado ou cidade, geralmente em um ano. Todos os países calculam o seu PIB nas suas respectivas moedas.
2 Direitos que não podem ser restringidos ou revogados pelas leis humanas. Às vezes chamados direitos naturais, os direitos inalienáveis “fluem da nossa natureza como pessoas livres.
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