REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202507231012
Ariany Lis Rossi Martins Moreira
RESUMO
Este relato de experiência tem como objetivo apresentar a aplicação da biblioterapia no contexto escolar, por meio do Projeto Ratione, na cidade de São José do Rio Preto (SP). Através da proposta intitulada Folheios, foram realizados encontros biblioterapêuticos com adolescentes do 8º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio, abrangendo mais de 500 estudantes em quatro escolas públicas estaduais. A prática revelou-se potente na promoção da escuta, acolhimento e expressão simbólica, além de ampliar a compreensão dos adolescentes sobre si mesmos, suas emoções e seus vínculos sociais.
Palavras-chave: biblioterapia; adolescência; saúde mental; literatura; escola.
1. INTRODUÇÃO
A adolescência é um período crucial do desenvolvimento humano, marcado por intensas transformações físicas, emocionais e sociais. No contexto escolar, esse processo se intensifica, tornando a escola um espaço privilegiado de intervenção preventiva e de promoção da saúde mental. Com base nessa premissa, o Projeto Ratione, desenvolvido por meio do Núcleo de Avaliação Psicológica (NAP) da Vara da Infância e Juventude de São José do Rio Preto (SP), surgiu como uma iniciativa voluntária e interdisciplinar com foco em ações de prevenção, bem-estar e sustentabilidade. Atuando em escolas públicas estaduais, o projeto visa atender jovens em situação de vulnerabilidade social, com base nas avaliações realizadas pelo NAP com adolescentes em conflito com a lei.
Foi nesse contexto que, no último ano da graduação em Psicologia, por meio do estágio em Psicologia Jurídica, fui convidada pela psicóloga judiciária Dra. Priscila Silveira Duarte, a propor uma intervenção voltada ao universo da leitura que atendesse as demandas existentes nas escolas atendidas. A partir disso, idealizei o Folheios, braço do Projeto Ratione voltado para a aplicação da biblioterapia com adolescentes do 8º ano ao 3º ano do ensino médio, já tendo estado presente em quatro escolas estaduais da cidade: E.E. Parque Nova Esperança, E.E. Antônio de Barros Serra, E.E. Professor José Felício Miziara e E.E. Alberto Andaló.
A biblioterapia, embora seja uma prática antiga e difundida internacionalmente desde o início do século XX, ainda é pouco conhecida em larga escala no Brasil (pelo uso do próprio termo). Trata-se de uma prática que utiliza a leitura e o compartilhamento de histórias como ferramentas terapêuticas para promover a saúde emocional, incentivar a reflexão e fortalecer vínculos interpessoais. Mais do que “ler livros”, a biblioterapia implica uma escuta amorosa, acolhedora e ativa, capaz de acessar afetos e proporcionar alívio simbólico por meio das palavras.
2. OBJETIVOS
Este artigo tem como objetivo apresentar um relato de experiência da atuação biblioterapêutica no contexto do Projeto Ratione, discutindo os efeitos observados nos adolescentes participantes, os desafios da prática em ambiente escolar e as possibilidades da literatura como recurso terapêutico no fortalecimento emocional e relacional dos jovens. Nesse sentido, como já disse Rubem Alves (2000), “os livros não mudam o mundo. Os livros mudam as pessoas. As pessoas mudam o mundo.”
3. O PROJETO RATIONE E O SURGIMENTO DO FOLHEIOS
O Projeto Ratione foi idealizado e coordenado pelo Núcleo de Avaliação Psicológica (NAP) da Vara da Infância e Juventude de São José do Rio Preto (SP), com o intuito de responder a uma necessidade urgente identificada a partir do trabalho técnico do próprio NAP: implementar ações preventivas e de apoio a crianças e adolescentes que praticaram atos infracionais. Composto por uma equipe voluntária e interdisciplinar formada por estudantes e profissionais de diversas áreas – como Psicologia, Direito, Pedagogia e Medicina – o Ratione atua em escolas públicas estaduais como um espaço fértil de socialização, escuta e formação cidadã.
As ações são orientadas por três pilares fundamentais: Bem-Estar, Desenvolvimento e Sustentabilidade. Nesse sentido, são desenvolvidas palestras, oficinas, intervenções educativas e rodas de conversa com foco na promoção do bem-estar físico, emocional e mental, bem como práticas que estimulem hábitos saudáveis e sustentáveis.
Foi neste contexto que nasceu o Folheios, núcleo do projeto voltado exclusivamente para a aplicação da biblioterapia com adolescentes, idealizado por mim como estagiária de Psicologia Jurídica. O nome, derivado da ação simbólica de folhear páginas de livros, representa o gesto de abertura à escuta, ao acolhimento e à transformação subjetiva por meio das narrativas. Os encontros do Folheios são organizados de forma semanal ou quinzenal, sempre acompanhados de atividades complementares de escuta e elaboração emocional.
4. DESENVOLVIMENTO DAS ATIVIDADES E EXPERIÊNCIAS EM CAMPO
A preparação de cada encontro começa semanas antes da atividade em si, exigindo grande busca e embasamento de campo. A escuta das demandas da escola e das características específicas de cada turma guia a escolha dos textos, dos jogos e das atividades manuais aplicadas, sempre fundamentadas nos princípios da biblioterapia. Trata-se de uma curadoria sensível, embasada em objetivos socioemocionais e psicológicos, costurada com pesquisa, criatividade e disponibilidade genuína para o encontro.
Ao chegar às escolas, percebo como o apoio institucional impacta diretamente na fluidez da proposta. Em alguns contextos, somos acolhidos com entusiasmo — professores, coordenadores, diretores e outros profissionais da educação demonstram interesse e, em algumas ocasiões, participam das rodas. Em outros, no entanto, sentimos certa resistência. Há quem veja a atividade como uma punição para turmas “difíceis” ou como uma solução mágica para conflitos acadêmicos e comportamentais. Nesses momentos, mais do que nunca, é necessário o acolhimento também dos adultos.
Cada início de grupo é um recomeço. Os alunos, em geral, chegam desconfiados, esperando uma aula tradicional, uma palestra ou mais um conteúdo obrigatório que vá “contar nota”. A surpresa é perceptível já nos primeiros minutos: olhares curiosos, risos tímidos, e o encantamento pelo inesperado. Aos poucos, o grupo se forma — ou a “comunidade leitora” se constrói ali, na partilha do texto, na escuta amorosa, nos silêncios e barulhos que também comunica. Como afirma Dufour (2005, p. 34):
“todos nós temos necessidade de ouvir e contar histórias, não apenas como diversão, mas para compreender o que elas têm para nos dizer. Porque o interessante das histórias é que elas falam; falam de nós, dos outros e de nossas relações com os outros.”
Há encontros que permanecem comigo, onde me percebo refletindo sobre os impactos que deixamos com os grupos. Como o de um aluno com síndrome de Down, que chegou à atividade invisibilizado por uma colega que, em voz alta, questionava sua presença, insinuando que ele não conseguiria participar. No entanto, com as adaptações necessárias e o espaço para ser ele mesmo, o aluno com sua maneira singular se envolveu com a proposta. Ele transforma o ambiente e aqueles que estão ao seu redor, onde os tratamentos para com ele se apresentam de forma gentil, sendo um local em que ele escolheu estar.
Em outro grupo um adolescente, que escondia ser analfabeto, chamou a atenção pela forma intensa como escutava as histórias e os relatos do grupo. Participando ativamente, com os olhos atentos, os gestos discretos e as palavras cheias de sentido e emoção. Sua presença era ativa, mesmo sem ler uma linha. Com ele, mais uma vez, a biblioterapia mostrou que vai além das páginas escritas: ela se dá também nas histórias narradas, nos áudios, nos olhares, nas pausas e no silêncio partilhado. Sousa (2021, p. 60), grande nome contemporâneo da biblioterapia no Brasil elucida, “limitar a biblioterapia aos livros é deixar de fora uma parcela muito significativa da sociedade que, por questões sociais e culturais, não têm capacidade de decodificar o material escrito e impresso nos livros.”
E há, ainda, a desesperança silenciosa que paira em muitos dos alunos. O brilho apagado nos olhos, as frases marcadas por um certo cansaço do mundo, a ausência de sonhos ou de planos. Quando essas emoções emergem — muitas vezes por meio das metáforas literárias —, a roda se transforma num espaço de acolhimento onde é possível nomear dores, reconhecer-se no outro e, quem sabe, iniciar uma travessia para fora do desamparo. Sendo assim, “é preciso oferecer alternativas, esperança, semear campos de delicadeza, nortes sensíveis para promover uma revolução sutil e a literatura é um dos potentes veículos nesse sentido” (SEIXAS, 2019, p.182).
Cada roda tem sua forma, sua intensidade, seu tempo. Não há receita. Há sim princípios que guiam, mas a prática se reinventa a cada grupo. Algumas atividades são adaptadas, outras nascem ali, pela escuta atenta do momento presente. Aprendi que, no contexto escolar, o improviso sensível também é ferramenta terapêutica. A biblioterapia se revela como um espaço simbólico potente, capaz de gerar mudanças significativas na percepção que os adolescentes têm de si mesmos e dos outros.
Mais de 500 estudantes – de acordo com retrospectiva realizada em 2024 pelo Projeto Ratione – durante esse um ano de Folheios, já participaram das atividades oferecidas, confirmando a importância da literatura como ferramenta viva de escuta, expressão e transformação emocional e social.
5. REFLEXÕES DA TRAVESSIA: A PALAVRA COMO CUIDADO E RESISTÊNCIA
A prática da biblioterapia, no contexto escolar, vem se mostrando não apenas possível, mas profundamente necessária. Em tempos em que a escuta é escassa e a palavra, muitas vezes usada como arma, oferecer um espaço onde a literatura atua como ponte entre mundos internos e externos é uma ação de cuidado — e de resistência.
Ao longo dessa jornada, percebo cada dia mais como a leitura compartilhada, o afeto na escuta e a liberdade na expressão são capazes de ressignificar experiências, abrir horizontes e criar possibilidades. Os adolescentes, frequentemente desacreditados de si mesmos, encontram nas histórias um espelho, uma metáfora ou um abrigo. Há quem crie poemas de dor que nos fazem chorar, descubra sua voz ao comentar um trecho, se perceba pertencente pela primeira vez ao se ver acolhido em uma reflexão e compreenda a importância de se estar em grupo.
“A leitura nos permite encontrar uma família de alma. Os espaços coletivos de leitura tiram cada um da sua solidão, fazem-no compreender que esses tormentos são compartilhados pelos que estão a seu lado, mas também por aqueles que encontra nas páginas lidas ou por quem as escreveu” (SEIXAS, 2019, p.183- 184).
6. CONCLUSÃO
Nesse contexto, a biblioterapia cumpre um papel essencial: cria espaços simbólicos onde o adolescente pode habitar-se. Um espaço onde não precisa performar, competir, resistir ou silenciar. Pode apenas ser — com seus medos, suas dúvidas, seus sonhos e suas dores. E ali, no entrelaçamento das vozes, algo se transforma.
Esse trabalho também evidencia o quanto a escola ainda é, apesar de tudo, um território possível de cuidado. Mas para que isso aconteça, é preciso romper com a lógica da produtividade e das soluções imediatas, as expectativas instantâneas. A biblioterapia não se propõe a “resolver turmas-problema”. Ela propõe um caminho, nem sempre linear, de escuta, vínculo e elaboração. E isso demanda tempo, presença e disposição para o encontro.
Sigo nesta caminhada com o coração aberto e a escuta atenta, porque cada história partilhada me atravessa; cada resistência, cada abertura, cada silêncio significativo molda também minha forma de ser psicóloga. O Folheios é, antes de tudo, um convite contínuo ao mergulho, um espaço onde as palavras não curam sozinhas, mas onde, juntas, podem inaugurar novas formas de existir. E é por isso que, enquanto me for possível, sigo: folheando páginas, escutando vozes, e ajudando histórias a se reescreverem.
REFERÊNCIAS
ALVES, Rubem. A alegria de ensinar. Campinas: Papirus, 2000.
DUFOUR, Michel. Contos para curar e crescer. São Paulo: Ground, 2005.
FREITAG, Vera Lúcia; BADKE, Marcio Rossato (org). Práticas integrativas e complementares do SUS: o (re)conhecimento de técnicas milenares no cuidado à saúde contemporânea. Curitiba: Nova Práxis Cultural, 2019.
SOUSA, Carla. Biblioterapia & Mediação Afetuosa da Literatura. Florianópolis: Edição da autora, 2021.