REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.6755206
Autora:
Lívia Barreto Canoves
Até o advento da Segunda Guerra Mundial, o papel do texto constitucional era marcantemente político, já que as constituições não tinham força normativa. Contudo, a partir do que a doutrina convencionou chamar de neoconstitucionalismo, o Estado passou a se submeter não mais apenas ao império da lei, mas, também, e principalmente, às normas constitucionais.
Pedro Lenza, citando Luís Roberto Barroso, explica que há essencialmente três marcos fundamentais que definem o “novo” direito constitucional: o marco histórico, evidenciado pelas Constituições do pós-guerra e busca pela redemocratização; o marco filosófico, que se pauta no pós-positivismo, que procura empreender uma leitura moral do Direito, sem que se recorra a categorias metafísicas; e o marco teórico, representado pela ideia de força normativa da constituição, envolvendo uma nova dogmática da interpretação constitucional e a constitucionalização dos direitos fundamentais, cuja proteção passa a caber ao Poder Judiciário (LENZA, 2019).
Nesse cenário, a relevância do papel das cortes constitucionais é ampliada, tendo em vista o fato de que a força normativa da constituição promove uma filtragem constitucional de todos os ramos do direito, permitindo que as leis e atos normativos tenham sua validade questionada perante o Poder Judiciário, caso estejam em desacordo com a constituição.
Segundo Luís Roberto Barroso (2018), as Supremas cortes e tribunais constitucionais em todo o mundo desempenham, ao menos potencialmente, três grandes papéis ou funções: o papel contramajoritário, o papel representativo e o papel de vanguarda iluminista.
Através do primeiro, viabiliza-se a invalidação de leis e de atos normativos provenientes dos Poderes Executivo e Legislativo. O papel representativo, por sua vez, sobressai quando as cortes constitucionais atuam para atender demandas sociais que não foram satisfeitas pelo Poder Legislativo, bem como para integrar a ordem jurídica, em razão de omissão inconstitucional do legislador. Por fim, excepcionalmente e com parcimônia, autoriza-se que as Supremas cortes promovam avanços civilizatórios e “empurrem a história”, concretizando o seu papel de vanguarda iluminista (BARROSO, 2018).
Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (2016) esclarecem, no entanto, que o atual estágio do constitucionalismo gera uma tensão com a democracia. Para os autores,
É intuitivo que o giro de materialização da Constituição limita o âmbito de deliberação política aberto às maiorias democráticas. Como cabe à jurisdição constitucional a última palavra na interpretação da Constituição, que se apresenta agora repleta de valores impositivos para todos os órgãos estatais, não surpreende que o juiz constitucional assuma parcela de mais considerável poder sobre as deliberações políticas de órgãos de cunho representativo. Com a materialização da Constituição, postulados ético-morais ganham vinculatividade jurídica e passam a ser objeto de definição pelos juízes constitucionais, que nem sempre dispõem, para essa tarefa, de critérios de fundamentação objetivos, preestabelecidos no próprio sistema jurídico (BRANCO, MENDES, 2016, p. 53-54).
É fato que o fenômeno da judicialização vem em franca ascensão, o que significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário (BARROSO, 2012).
Entretanto, por não serem eleitos, os juízes não gozam da legitimidade democrática inerente aos Poderes Executivo e Legislativo, o que, muitas vezes, gera críticas quando atuam para invalidar normas jurídicas ou mesmo para suprir omissões destes Poderes, chegando, em alguns casos, a interferir em Políticas Públicas.
Segundo Luís Roberto Barroso (2012), porém, a judicialização é fruto do reconhecimento da importância, para as democracias modernas, de um Judiciário forte e independente. Ademais, vivemos uma crise de representatividade e de funcionalidade dos parlamentos em geral. E, para completar, muitas vezes, os próprios atores políticos optam por não decidir sobre certas questões polêmicas, em relação às quais exista desacordo moral razoável na sociedade, preferindo que o Judiciário seja a instância decisória.
Assim sendo, temos, de um lado, críticas ao crescente poder atribuído aos juízes em tensão com a representatividade do regime democrático e, de outro, o fato de que o fenômeno da judicialização apresenta diversas causas, sendo fruto, inclusive, de certa desilusão em relação à política majoritária.
Todo esse contexto se relaciona intimamente com o ativismo judicial, expressão cunhada nos Estados Unidos para caracterizar um período em que ocorreu uma revolução em relação a práticas políticas norte americanas, a partir de uma jurisprudência progressista em matéria de direitos fundamentais (BARROSO, 2012).
Vale ressaltar que, nos Estados Unidos, a expressão “ativismo judicial” ganhou uma conotação negativa, segundo Barroso (2012), tendo relação com uma espécie de atuação imprópria do Poder Judiciário. Para o autor, todavia, a ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais. Há interferência nas funções atribuídas aos outros Poderes Constitucionais, mas nem sempre se pode falar que existe confronto, visto que algumas hipóteses de atuação judicial visam suprir omissões inconstitucionais.
Ainda conforme Barroso (2012), a judicialização é um fato no desenho institucional brasileiro, enquanto que o ativismo judicial é uma escolha de interpretação da Constituição.
Normalmente, ele se instala – e este é o caso do Brasil – em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que determinadas demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. O oposto do ativismo é a autocontenção judicial, conduta pela qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes. A principal diferença metodológica entre as duas posições está em que, em princípio, o ativismo judicial legitimamente exercido procura extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, inclusive e especialmente construindo regras específicas de conduta a partir de enunciados vagos (princípios, conceitos jurídicos indeterminados). Por sua vez, a autocontenção se caracteriza justamente por abrir mais espaço à atuação dos Poderes políticos, tendo por nota fundamental a forte deferência em relação às ações e omissões desses últimos (BARROSO, 2012, p. 10).
O ativismo judicial pode apresentar duas faces opostas entre si. O maior poder criativo conferido aos juízes pode levá-los a fazer prevalecer entendimentos subjetivos, em detrimento de dispositivos legais, usurpando a competência legislativa ordinária, violando a separação de Poderes e consequentemente ferindo o Estado Democrático de Direito, caracterizando a face negativa; contudo, viabiliza a correção de defeitos e omissões do legislador, concretizando o princípio da dignidade da pessoa humana (CARVALHO, 2019).
O agente público está obrigado a sacrificar o mínimo de direitos fundamentais, sendo que, em razão de sua dimensão objetiva, a atividade de interpretação deve promover a maior realização e preservação possível de tais direitos. Para Farias, Netto e Rosenvald (2017), quanto mais valioso o direito, mais aceitável é o ativismo judicial.
Conforme exposto, apesar das inúmeras críticas à postura mais ativa do Poder Judiciário, tendo em vista a Separação de Poderes, princípio fundamental da República Federativa do Brasil, conforme prevê o artigo 2º da Constituição Federal, grande parte da doutrina pátria não aceita que a omissão dos Poderes Executivo e Legislativo seja um instrumento para que não sejam garantidos direitos fundamentais dos cidadãos.
Nesse sentido, as possibilidades relativas ao ativismo judicial guardam íntima conexão com a proteção do ser humano e a promoção de seus direitos, notadamente quando existe uma omissão dos Poderes Públicos.
Na decisão em medida cautelar tomada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 45, o Relator, Ministro Celso de Mello, afirmou expressamente que, embora não se inclua no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário a atribuição de formular e implementar políticas públicas, a referida incumbência, excepcionalmente, poderia lhe competir, quando os Poderes Legislativo e Executivo, responsáveis pelo encargo, quedarem-se inertes, comprometendo a eficácia e a integridade dos direitos individuais e coletivos, ainda que previstos em normas constitucionais de princípios programáticos.
É preciso ressaltar, no entanto, que há limites à atuação judicial. Conforme defende a doutrina pátria, corroborada pelo Supremo Tribunal Federal, trata-se de uma atividade criativa que deve ser exercida com parcimônia e em casos excepcionais.
A doutrina norte-americana, no tocante à interpretação constitucional e poder criativo do julgador, possui antiga contraposição entre as correntes interpretativistas e não-interpretativistas.
Segundo Dirley da Cunha Jr. (2012), a corrente interpretativista, que se fundamenta no princípio democrático e na vontade do legislador, apregoa que o juiz não pode criar o Direito, indo além do que o texto normativo lhe permitir, sob pena de substituir as decisões políticas pelas decisões judiciais.
Por outro lado, a corrente não interpretativista defende um ativismo judicial na tarefa de interpretar a Constituição, sendo possível a utilização de valores substantivos dos juízes, a exemplo de igualdade e justiça, pois a eles cabe a concretização de todos os valores constitucionais. Trata-se, pois, de uma postura substancial-concretista, que exige um posicionamento mais proativo dos magistrados, a fim de realizar os fins constitucionais (CUNHA JR., 2012).
Ainda de acordo com referido autor,
A criação judicial do Direito, como consequência da expansão e do crescimento do Judiciário, e da nova interpretação constitucional, afigura-se como uma autêntica revolta contra o “formalismo” que imperava nos Estados de inspiração liberal, época em que a atividade do juiz cingia-se tão somente a declarar mecanicamente o direito, valendo-se apenas dos instrumentos da lógica dedutiva, sem envolver, nessa declaração, sua impressão ou valoração pessoal. E isso era natural, uma vez que, no Estado Liberal, o Direito dependia essencialmente do legislador. Todavia, no Estado Social moderno, da sociedade de massas, o Direito “não sobrevive, não se aperfeiçoa, não evolui nem se realiza sem o juiz”. Daí uma constatação óbvia: não há monopólio legislativo na formulação do Direito. Se não se reconhecesse ao juiz também essa função de criar o Direito, não poderia ele cumprir sua missão, que é a de compor conflitos (CUNHA JR., 2012, p. 208).
Conforme se vê, a doutrina moderna reconhece as controvérsias que giram em torno da criação do Direito pelos julgadores, bem como as críticas que pairam sobre o ativismo judicial. No entanto, constata-se que o magistrado não é um ser totalmente neutro, ou mera “boca da lei”, conforme defendia a tripartição de Poderes clássica, desenvolvida por Montesquieu.
Ao contrário, a criação da norma jurídica se perfaz a partir da interpretação do texto legal, sendo o juiz um de seus legítimos intérpretes.
Ademais, a experiência vem demonstrando que os Poderes Legislativo e Executivo, embora gozem de legitimidade democrática, muitas vezes se abstêm de atuar, deixando de concretizar os direitos fundamentais dos cidadãos. Quando isso ocorre, a atuação do Poder Judiciário não se mostra apenas possível, mas, também, necessária, visto que todos os Poderes estão subordinados aos valores e às normas constitucionais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BARROSO, Luís Roberto. Contramajoritário, Representativo e Iluminista: Os papeis dos tribunais constitucionais nas democracias contemporâneas. Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 9, N. 4, 2018, p. 2171-2228. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/30806/21752>. Acesso em: 22 nov. 2020.
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2016.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 05 out. 1988.
CARVALHO, Wilson César. Ativismo judicial e o STF. Revista Âmbito Jurídico. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-constitucional/ativismo-judicial-e-o-stf/>. Acesso em: 22 nov. 2020.
CUNHA JR., Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2012.
FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil. Volume Único. 1ª ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2017.
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