ATENÇÃO PRIMÁRIA NO CONTEXTO DA SAÚDE DA CRIANÇA: ASPECTOS QUE INTERAGEM NO COTIDIANO DAS PRÁTICAS 

PRIMARY ATTENTION IN THE CHILD HEALTH CONTEXT: ASPECTS THAT INTERACT IN THE DAILY PRACTICE

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7625321


Vinícius Costa Maia Monteiro
Victor Guilherme Pereira da Silva Marques
Jocasta Maria Oliveira Morais
Fátima Raquel Rosado Morais
Mariel Wágner Holanda Lima
Hedney Paulo Gurgel de Moraes
Híngridy Barbosa Gurgel de Moraes
Olga Maria Castro de Sousa
Aryanne Katiuska da Silva Souza
Alvim João Faust
Victor Guilherme Pereira
Joyce Batista de Medeiros Fonseca
Felipe Magdiel Bandeira Montenegro
Wesley da Silva Paiva
Teresinha de Jesus Pereira
Izabella Savergnini Deprá


RESUMO 

Introdução: A atenção primária à saúde objetiva a oferta de ações de cuidado integral à saúde. Nessa dimensão os serviços se organizaram para atender as demandas dos grupos, inclusive o infantil, que necessitou de transformações com ênfase na promoção da saúde. Apesar das mudanças propostas no padrão assistencial vigente, observa-se que as práticas destinadas ao público infantil continuam pautadas no modelo assistencial hegemônico curativista, que influencia os trabalhadores e gestores da saúde. Objetivo: Identificar os aspectos que interagem na organização das práticas destinadas à atenção à saúde da criança, no contexto da APS, a partir do olhar dos trabalhadores. Métodos: Trata-se de um estudo qualitativo, de caráter descritivo, realizado em oito Unidades Básicas de Saúde da Família de Mossoró-RN. Os dados foram coletados através de entrevistas semi estruturadas e analisadas a partir da construção de categorias temáticas. Resultados: As dimensões encontradas no estudo estão diretamente relacionadas às formas de fazer as práticas em saúde ao longo dos últimos tempos; ao processo de formação em saúde; a infraestrutura inadequada nas unidades da ESF; a precarização nas relações de trabalho; ao contexto de produção cotidiana nos serviços e, ainda, ao cotidiano político e econômico que modela o saber/fazer. Conclusões: Pode-se sugerir que para melhorar o trabalho em saúde na APS relacionado à saúde da criança, há a necessidade de capacitar os profissionais de saúde nos contextos dos espaços de produção da saúde. Ainda aponta-se para a transformação física dos espaços, entendendo essas condições como indispensáveis na produção dos serviços de saúde oferecidos.

Palavras-chave: Atenção à saúde da criança; Atenção Primária à Saúde; SUS; Cuidado da Criança.

ABSTRACT

Introduction: Primary health care aims to provide integral health care actions. In this dimension, services were organized to meet the demands of groups, including children, who needed transformations with emphasis on health promotion, however, it is observed that the practices aimed at children are still based on the biological and curative care model. Objective: To identify the aspects that interact in the organization of practices aimed at the health care of the child, in the context of PHC, from the perspective of the workers. Methods: This is a qualitative, descriptive study carried out in eight Basic Health Units of Mossoró-RN Family. Data were collected through semi-structured interviews and analyzed by construction of thematic categories. Results: The dimensions found in the study are directly related to the ways of doing health practices in recent times; to the process of training in health; inadequate infrastructure in the ESF units; precariousness in work relations; to the context of daily production in services, and also, to the political and economic quotidian that models know-how. Conclusions: It can be suggested that in order to improve health care in PHC related to the health of the child, there is a need to train health professionals, as well as to adapt the physical space of the units, understanding these conditions as indispensable in the production of integral care in health.

Keywords: Child health care; Primary Health Care; SUS; Child Care.

INTRODUÇÃO

A Atenção Primária em Saúde (APS) é o primeiro nível de assistência, caracterizando-se como estratégia de organização do sistema de saúde para o atendimento das necessidades da população1.

A APS precisa ter como foco a oferta de ações preventivas, curativas, reabilitadoras e de promoção da saúde2. Para a constituição dessas ações, é preciso a efetivação dos quatro atributos essenciais (acesso no primeiro contato, integralidade da atenção e coordenação da assistência no sistema de saúde) e três atributos derivados (orientação familiar, orientação comunitária e competência cultural) dentro da APS3.

Nessa dimensão os serviços de saúde do país se organizaram para atender as demandas dos grupos, inclusive o infantil, e os cuidados para à Saúde da Criança acabaram passando por transformações com ênfase na promoção da saúde. Essas mudanças foram atribuídas, entre outras questões, não apenas aos avanços técnico-científicos, mas também a participação de vários segmentos e agentes da sociedade na composição de políticas públicas destinadas ao grupo4

Para a Atenção Integral à Saúde da Criança focou-se nas seguintes ações básicas: acompanhamento do crescimento e desenvolvimento (CD), atenção à saúde do recém-nascido, promoção, proteção e apoio ao aleitamento materno e prevenção de violências e promoção da cultura de paz4. Além disso, os profissionais inseridos nos serviços precisam estar capacitados para atuar mediante diversidades econômicas, sociais e culturais, buscando atendimento integral e eficiente diante das necessidades. 

Apesar da APS propor mudanças no padrão assistencial vigente, observa-se que as práticas destinadas ao público infantil ainda estão pautadas em um modelo assistencial hegemônico curativista, que continua influenciando a atuação dos trabalhadores e gestores do setor saúde5

Esse modelo estimula a reprodução de um atendimento individual, biologista, baseado na queixa-conduta, no qual o profissional se mantém como único detentor de saber e não valoriza aspectos de escuta e acolhimento do usuário6. Além disso, coexistem questões que extrapolam as relações interpessoais e de saber/poder, estando focando mais fortemente nas dimensões estruturais, funcionais e de organização do sistema de saúde7. Nesse caso, a atenção prestada acaba por não responder aos anseios do grupo, dos responsáveis e dos profissionais que atuam nessa dinâmica, e, assim, perpetua-se dificuldades passíveis de resolução, mas que acabam não sendo sanadas em função de todo esse contexto. 

Assim, essa investigação objetivou evidenciar os aspectos que interagem na organização das práticas destinadas à atenção à saúde da criança, no contexto da Atenção Primária à Saúde, na perspectiva dos trabalhadores. 

MÉTODOS

Pesquisa qualitativa, descritiva, realizada com médicos e enfermeiros, de 08 (oito) Unidades Básicas de Saúde da Família (UBSF) de Mossoró-RN. A cidade divide-se em zonas (norte, sul, leste e oeste) e, após sorteio, foram selecionadas duas unidades de saúde de cada uma. As unidades selecionadas deveriam ser compostas por equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF).

A população em estudo foi composta por médicos e enfermeiros que atuavam diretamente na atenção à saúde da criança das UBSF pesquisadas, selecionados por conveniência. Por se tratar de uma pesquisa qualitativa, o critério utilizado para o término das entrevistas foi o da saturação de dados, sendo interrompido quando as informações se tornaram repetitivas. Ao todo foram realizadas 20 entrevistas, sendo 10 médicos e 10 enfermeiros.

Para a inclusão dos entrevistados era necessário ser enfermeiro (a) ou médico (a) da ESF das UBSF selecionadas e estar atuando há pelo menos um ano, tendo em vista a importância da prática para refletir aspectos que envolviam o cuidado e a qualidade da assistência prestada à criança na área geográfica investigada.

Para a coleta dos dados foi elaborado um roteiro de entrevista semiestruturado, composto por nove perguntas abertas8. As questões do roteiro buscavam conhecer as percepções e as práticas dos médicos e enfermeiros, quanto ao desenvolvimento das ações destinadas à saúde da criança, no âmbito da APS. 

A coleta de dados ocorreu nas próprias UBSF, e após as entrevistas, o material foi transcrito e analisado a partir da construção de categorias de sentido, orientadas pelo objetivo da pesquisa. 

A investigação foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN e aprovada pelo parecer sob nº 166.366. CAAE: n°07538912.0.0000.5294.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A assistência à saúde da criança deve começar ainda na gestação, com a ênfase nas práticas voltadas ao cuidado do filho, reforçando a importância do acompanhamento na APS, pois essa dimensão deve vincular os sujeitos aos espaços de produção da saúde, contribuindo para minimizar riscos e agravos, a partir das ações de promoção e prevenção à saúde9.

Assim, quando se buscou refletir, a partir do discurso dos trabalhadores da saúde, os aspectos que atuam no desenvolvimento das ações no contexto da atenção primária em Mossoró-RN, foi observado a coexistência de aspectos integrados à dimensão da APS e aspectos caracterizados como potencializadores à dimensão da APS e outros que se caracterizam como lacunas para a plena efetivação da APS. 

ASPECTOS E AÇÕES POTENCIALIZADORAS À DIMENSÃO DA APS

  • Demanda organizada no acompanhamento ao Crescimento e Desenvolvimento

Nas narrativas, os profissionais apontaram a organização do atendimento como um aspecto que tende a contribuir para a melhoria da atenção à criança, pois as ações, especialmente as voltadas para o CD, acontecem de forma organizada: 

A gente tem um horário para fazer o atendimento do CD que é o crescimento e desenvolvimento. A gente atende mensalmente as crianças menores de um ano, e depois disso a gente atende com intervalo de dois e dois meses até os dois anos. Nas crianças até os sete anos o acompanhamento é feito pelo Bolsa Família, que é de três e três meses, avaliando peso, altura, fazendo orientação e avaliando o estado nutricional. (MARIA) 
[…] na minha área eu disponibilizo a manhã toda para o CD. Se tiver uma eu atendo, se tiver quinze, eu também atendo. Eu não mando voltar. (MARTA)

O acompanhamento CD é uma das linhas de cuidado à criança priorizada pelo MS e sua prática deve envolver a avaliação integral à saúde da criança de 0 a 6 anos, buscando a qualidade de vida e o desenvolvimento de todo o potencial da população infantil. Esse acompanhamento ainda favorece a identificação das crianças em maior risco de morbimortalidade, contribuindo para a redução da taxa de mortalidade infantil10

O cuidado à criança nos primeiros 24 meses de vida é enfatizado ainda na proposta da Rede Cegonha. Essa rede visa assegurar à mulher o direito ao planejamento reprodutivo e à atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério, bem como à criança o direito ao nascimento seguro e ao crescimento e ao desenvolvimento saudáveis11. A proposta de garantir uma atenção à saúde das crianças com qualidade e resolutividade, aponta para necessidade de arranjos organizativos dos serviços de saúde, que possibilitem a superação da fragmentação do sistema de saúde e ofereçam ações e serviços de saúde de qualidade, de forma acessível, equitativa, integral, continuada, com foco na promoção da saúde. 

Na APS, especialmente nas ações voltadas para a criança, a demanda organizada para o atendimento caracteriza-se como aspecto que potencializa o cuidado; gera maior participação popular e vinculação ao serviço, pela possibilidade de organização dos usuários, e, ainda, favorece o acolhimento na perspectiva do usuário. O acolhimento é destaque na organização do atendimento na APS, pois busca integrar demandas espontâneas e ações programáticas, embasadas nos determinantes sociais e nos arranjos tecnológicos, sem deixar que estes últimos se configuram como eixo central para o cuidar12-13.

  • Vinculação, compromisso profissional e trabalho em equipe

Os aspectos relacionados ao vínculo, ao compromisso profissional e ao trabalho em equipe dentro da APS e voltados para à saúde da criança também foram evidenciados nos discursos  dos profissionais:

[…] Cria vinculação e confiança, justamente para que eles vejam a importância da participação. A própria vinculação do profissional com a mãe acaba sendo um fator que contribui com essa atenção. (JOANA)
Um aspecto principal é o comprometimento profissional, de querer fazer alguma coisa diferente, não só médicos e enfermeiros, mas serviço social também, a própria gerente da unidade compra com a gente essa briga, quando queremos fazer uma atividade diferente. O diferencial é esse […]. (ANA)
[…] acredito que a própria participação do agente comunitário de saúde contribui para prestar uma boa atenção à saúde da criança. No CD, quando percebo que diminui um pouco a frequência deles, a gente pergunta porque não veio no mês passado. (JOANA)

A vinculação e a responsabilização entre o profissional de saúde e o usuário é abordada pela Agenda de Compromissos para a Saúde Integral da Criança e a redução da Mortalidade Infantil14. Esse material afirma que o cuidado em saúde exige dos profissionais um olhar integral, postura acolhedora e prática da escuta do usuário em todos os aspectos. Enfoca ainda a responsabilização e o estabelecimento de vínculo com esse sujeito, pressupondo uma visão abrangente das dimensões de sua vida, com respostas mais globais, resultado do trabalho em equipe14.

O compromisso profissional foi destacado como fundamental para a atenção à saúde da criança na ESF, pois, além de gerar confiança por parte da população, ainda tende a estimular a continuidade na busca pelo acompanhamento junto ao serviço. 

Essas dimensões destacam-se em qualquer ação de saúde, e dentro da APS, a necessidade de vínculo e compromisso, apresentam maior ênfase. Para alcançar um atendimento integral à saúde, objetivo da APS, é necessário fortalecer o trabalho articulado e interativo entre profissionais, família e comunidade. Deve existir a valorização dos diversos saberes, das relações interpessoais e das intersubjetividades na produção de cuidado em saúde, incluindo humanização, acolhimento, vínculo, responsabilização e trabalho em equipe15

ASPECTOS E AÇÕES LIMITANTES À DIMENSÃO DA APS 

Ao se apontar os aspectos que interagem na organização da assistência à criança na APS, é comum evidenciar limitações no trabalho cotidiano em saúde e que acabam por dificultar o desenvolvimento completo das ações dentro da APS. Entre estas, destacaram-se no estudo os seguintes aspectos: 

  • Problemas relacionados ao acesso aos serviços e as ações em saúde

No estudo foi evidenciado, a partir dos discursos dos participantes, a dificuldade no acesso ao atendimento adequado junto aos serviços de saúde como um dos aspectos que limitam a dimensão da APS:

O acesso é difícil, pois como é uma demanda reprimida, a gente escuta os usuários reclamando da dificuldade em conseguir consultas; da necessidade de ter que ir muito cedo à unidade, às vezes de madrugada, para poder conseguir uma ficha. Na minha unidade particularmente tinha uma regra de não fornecer mais de duas fichas para uma mesma família, mas isso é problemático, pois às vezes uma mãe chegava na unidade com três meninos e não conseguia ficha para todos […]. (DAVI) 

A APS deve se constituir como principal ponto de acesso aos serviços e centro de comunicação com toda Rede de Atenção à Saúde, procurando atuar para atender às necessidades da população adscrita com agilidade e qualidade, de modo acolhedor e humanizado. Nessa dimensão, um aspecto fundamental para a APS é organizar-se com o objetivo maior de acolher e oferecer uma resposta capaz de resolver a maioria dos problemas de saúde da população ou, pelo menos, minimizar danos ou ainda se responsabilizar pela resposta, ainda que esta seja ofertada em outros pontos de atenção da rede4.

No que diz respeito a criança, de acordo com a Portaria nº 1.130, de 5 de agosto de 2015, que institui a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança – PNAISC, suas demandas/necessidades devem ser priorizadas, pois os desfechos negativos podem se potencializar a curto prazo. Todavia, nos serviços investigados, evidenciam-se a falta de acesso das crianças às unidades de saúde, reforçando a dicotomia entre a produção das políticas e a operacionalização cotidiana das práticas em saúde. Essa dimensão fere diretrizes e leis que apontam para o direito de proteção à vida e à saúde do grupo, por meio da execução de políticas sociais públicas que proporcionem o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência16

Estudo sobre a universalização do acesso ao SUS e os desafios para a APS, mostra que localização, distribuição geográfica e serviços em qualidade e quantidade adequada às necessidades da população são indispensáveis para o desenvolvimento da atenção em saúde 17. A ausência desses aspectos contribui para a manutenção de uma assistência que não se caracteriza como integral, de qualidade e humanizada no atendimento à população.

  • Aspectos estruturais e materiais

Embora seja do conhecimento comum o entendimento de que a APS usa mínima tecnologia para o desenvolvimento de suas ações, é preciso ressaltar que, mesmo nesse mínimo, há condições indispensáveis para o bom desenvolvimento das ações cotidianas. Assim, para além das relações, na organização da atenção voltada ao grupo na APS é necessário estrutura e materiais que possibilitem o fluxo das ações em saúde para o grupo6

Na realidade investigada, esses aspectos foram apontados como negativos tendo em vista a inexistência, ou falta, de algumas condições básicas e materiais necessárias ao cotidiano das ações em saúde: 

O que ainda limita é o espaço, pois são duas salas para três enfermeiras. As crianças ficam misturadas com os adultos. A criança vem para a vacina e fica com os pacientes que vão para o atendimento. A mãe fica em pé esperando pelo atendimento dela. (MARIA)
Poderia ter uma sala exclusiva para o teste do pezinho. A sala de vacina poderia ser maior. A sala que temos para fazer atividades educativas é quente, o ar-condicionado não funciona adequadamente, a acústica é horrível. Faltam equipamentos de audiovisual. Quando precisamos fazer alguma atividade educativa vamos para a área externa […]. (ANA)
[…] Faltam muitas vacinas, mas também a geladeira que temos não suportaria a quantidade de vacinas que são necessárias […]. (MARIA DE BETÂNIA)
[…] Mossoró não tem balança para as crianças serem monitoradas pelos Agentes Comunitários de Saúde. Como se pede para esses agentes pesarem se não temos balança? […]. (MARTA)

Os discursos reforçam as carências físicas e materiais como limitadoras das ações a serem desenvolvidas, o que não corresponde aos ideais estabelecidos nos documentos oficiais relacionados aos recursos estruturais, físicos e funcionais18-19

A portaria 648/2006 do MS aponta os equipamentos, insumos e materiais adequados para as práticas cotidianas e a resolutividade da Atenção Básica19. Além disso, quando se pensa nas ações voltadas para a criança sabe-se a necessidade de alguns olhares mais específicos e que acabam por facilitar a interação e vincular ainda mais o binômio mãe/filho na APS. Por sua vez, os aspectos subjetivos da assistência associados à estrutura e tecnologias adequadas tendem a contribuir para minimizar riscos e agravos à saúde da criança20-21.

A falta de estrutura básica e de equipamentos tecnológico e gerencial são aspectos limitantes da assistência à saúde e isso dificulta a efetivação dos atributos essenciais e derivados da APS7. De fato, desenvolver as ações em saúde, na proposta da APS, com precárias condições físicas, materiais e/ou de equipamentos, aponta para o estrangulamento do trabalho em saúde, pela compreensão de que se faz necessário investir em capacitação de recursos humanos e, em particular, em infraestrutura para o sucesso na operacionalização das redes de atenção e, consequente, satisfação no atendimento das necessidades dos usuários7.

  • Dificuldade no trabalho em equipe 

Alguns relatos demonstraram dificuldade no desenvolvimento de um trabalho em equipe e a falta de profissionais capacitados. A carência nessas duas dimensões acaba por ser um divisor na qualidade da atenção prestada, inclusive podendo interferir no grau de envolvimento e responsabilidade dos trabalhadores para com o usuário: 

Precisa melhorar bastante, se a gente conseguisse dividir essa carga com os outros profissionais melhoraria com certeza a qualidade. Depende muito da gente, mas quando precisa do todo, do conjunto, é complicado […]. (MARTA)

Na área da saúde, a noção de trabalho em equipe está associada, dentre outros aspectos, à possibilidade de construção de uma rede de relações entre os atores sociais, o que possibilita manter uma união e troca de saberes e práticas na busca por ações inovadoras. A equipe de saúde precisa conhecer o público infantil da área de abrangência do seu território, para assim poder programar e avaliar suas ações, buscando uma abordagem integral e resolutiva, garantindo o cumprimento do calendário de acompanhamento do CD para todas as crianças14

A sobrecarga de trabalho foi outro aspecto citado como limitante da qualidade da assistência destinada a criança, especialmente quando essa sobrecarga apresenta relação direta com a ausência de participação do outro, na divisão do trabalho: 

Um aspecto que limita é a sobrecarga dos enfermeiros, porque tudo vem para o enfermeiro. Mandam chamar primeiro para a reunião o enfermeiro. Era para ser a equipe e não adianta mandar chamar só enfermeiro porque ele fica sobrecarregado. Com relação a responsabilidade pela criança era para ser de toda a equipe[…] (MARIA)

Estudos sobre o impacto da organização do trabalho na ESF e da consulta de enfermagem em puericultura, confirmam que a sobrecarga de atividades desenvolvidas pelos enfermeiros caracteriza-se como um fator que interfere diretamente na qualidade das práticas voltadas para a assistência à saúde da criança16.

A Agenda de Compromissos para a Saúde Integral da Criança e Redução da Mortalidade Infantil destaca a importância de um cuidado integral e multiprofissional que compreenda as necessidades e direitos do público infantil14. Essa agenda propõe linhas de cuidado para a atenção integral à criança que devem ser incorporadas pelas equipes de saúde da família e não apenas por um profissional como mencionado no relato anterior. Além disso, a sobrecarga de trabalho também foi atribuída aos diversos programas do MS, sendo o tempo restrito para prestar uma atenção de qualidade.

Eu acho que o problema maior não é direcionado ao município em si, mas em nível de Ministério mesmo, pois são muitos programas; muita coisa e o tempo não permite muito que a gente direcione a nossa atenção, pois a gente se sente sobrecarregada com tanto programa para dar conta. (ANA) 

Pesquisa sobre a organização do trabalho de enfermagem na estratégia de saúde da família observou que a sobrecarga de atribuições e deveres, condições estruturais inadequadas para o trabalho em saúde, falta de valorização e reconhecimento são os principais motivos de insatisfação do profissional no seu ambiente laboral22. Então, questiona-se se a elaboração e implantação de programas pelo MS consideram o contexto social da população assistida e as limitações de cada trabalhador. 

Cabe refletir as dimensões presentes no contexto da saúde da família que mutilam e/ou dificultam a integralidade nas práticas cotidianas para os diferentes grupos e, em particular, para a criança. É possível sugerir que essas questões estejam diretamente relacionadas às formas de fazer as práticas em saúde ao longo dos últimos tempos; ao processo de formação em saúde; a infraestrutura inadequada nas unidades da ESF; a precarização nas relações de trabalho; ao contexto de produção cotidiana nos serviços e, ainda, ao cotidiano político e econômico que modela o saber/fazer, inclusive na área da saúde. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Identificar os aspectos que interagem nas práticas destinadas à atenção à saúde da criança, no cotidiano da APS, é apontar para as mudanças necessárias e capazes de promover melhorias das ações em saúde ao público infantil. É ainda desvelada a organização de práticas pautadas em um modelo de atenção tradicional, curativista e excludente, ainda hegemônico, e que influencia as ações dos trabalhadores de saúde e gestores, dificultando a participação e a autonomia da população em busca de melhorias. 

Assim, é possível sugerir que para a melhoria do trabalho em saúde, tendo em vista a APS e à saúde da criança, há a necessidade de capacitar os profissionais de saúde mediante os contextos que circundam os espaços de produção da saúde. Esses trabalhadores devem não só executar técnicas de trabalho, mas devem construir ideias críticas e reflexivas de suas práticas, desenvolvendo conhecimentos e competências que permitam a compreensão do trabalho em saúde. É preciso ainda apontar para a transformação de estruturas, materiais e equipamentos, entendendo essas condições também como indispensáveis na produção dos serviços de saúde, inclusive ao se enfatizar a APS.

Nesse sentido, refletir as políticas e práticas em saúde aponta para os espaços do cuidado da criança na APS e a forma como os diferentes atores se inserem nesta dinâmica, com os limites e as potencialidades da atenção em saúde. Essa perspectiva poderia contribuir com a efetivação dos atributos da APS e possivelmente com as mudanças necessárias para a produção dos serviços de saúde para a criança. 

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