AS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA: UMA ANÁLISE DA EVOLUÇÃO E DESAFIOS NO SISTEMA LEGAL BRASILEIRO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11226218


Daianny Araújo Mestâncio1
Orientadora: Professora Msc. Karla Maia2
Coorientadora: Professora Msc Rebeca Dantas Dib3


RESUMO

A presente monografia trata sobre as consequências jurídicas da paternidade socioafetiva. A paternidade socioafetiva desempenha um papel significativo na configuração das relações familiares contemporâneas. Ela reflete a evolução da sociedade e a diversidade das formas de constituição da família. Compreender a importância e a estabilidade dessas relações é fundamental para garantir o bem-estar das crianças e o reconhecimento de seus direitos. Tem como objetivo geral analisar as consequências jurídicas da paternidade socioafetiva. Os objetivos específicos consistem em diferenciar as diferenças entre paternidade biológica e socioafetiva, destacando as implicações jurídicas; descrever os procedimentos legais e os requisitos para o reconhecimento da paternidade socioafetiva; avaliar a paternidade socioafetiva e a impossibilidade de desconstituição. A metodologia utilizada é a de revisão da literatura acadêmica, livros, artigos científicos e relatórios técnicos relacionados às consequências jurídicas da paternidade socioafetiva. Apesar dos progressos na legislação e na jurisprudência brasileiras, persistem desafios significativos na implementação da paternidade socioafetiva, especialmente no que diz respeito à sua eficácia e à proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes. Portanto, a análise e o aprofundamento desse assunto são de suma importância tanto do ponto de vista social quanto jurídico. Conclui-se que o reconhecimento da paternidade socioafetiva pode trazer benefícios significativos para aqueles envolvidos, especialmente em situações de famílias recompostas ou adoção. Esta medida serve para salvaguardar a dignidade individual e o direito à convivência familiar, possibilitando que esses laços sejam legalmente reconhecidos e respeitados tanto pela sociedade quanto pelo Estado.

Palavras-chave: Paternidade Socioafetiva; Multiparentalidade; Legislação Brasileira; Reconhecimento Legal.

ABSTRACT

This monograph deals with the legal consequences of socio-affective paternity. Socio-affective fatherhood plays a significant role in shaping contemporary family relationships. It reflects the evolution of society and the diversity of forms of family formation. Understanding the importance and stability of these relationships is fundamental to guaranteeing the well-being of children and the recognition of their rights. Its general objective is to analyze the legal consequences of socio-affective paternity. The specific objectives consist of differentiating the differences between biological and socio-affective paternity, highlighting the legal implications; describe the legal procedures and requirements for recognizing socio-affective paternity; evaluate socio-affective paternity and the impossibility of deconstitution. The methodology used is to review academic literature, books, scientific articles and technical reports related to the legal consequences of socio-affective paternity. Despite progress in Brazilian legislation and jurisprudence, significant challenges persist in the implementation of socio-affective paternity, especially with regard to its effectiveness and the protection of the rights of children and adolescents. Therefore, analyzing and deepening this subject is extremely important from both a social and legal point of view. It is concluded that the recognition of socio-affective paternity can bring significant benefits to those involved, especially in situations of blended families or adoption. This measure serves to safeguard individual dignity and the right to family life, enabling these ties to be legally recognized and respected by both society and the State.

Keywords: Socio-affective Fatherhood; Multiparenting; Brazilian legislation; Legal Recognition.

INTRODUÇÃO

O tema as consequências jurídicas da paternidade socioafetiva, análise da evolução e desafios no sistema legal brasileiro aborda uma questão essencial no direito de família contemporâneo. 

A paternidade socioafetiva refere-se aos laços de afeto e cuidado que se estabelecem entre um indivíduo e uma criança, independentemente de laços biológicos. No contexto brasileiro, essa forma de paternidade tem recebido cada vez mais reconhecimento jurídico, gerando consequências legais significativas.

Historicamente, o direito de família brasileiro baseou-se principalmente em vínculos biológicos para determinar a paternidade. No entanto, com a evolução da sociedade e das relações familiares, tornou-se evidente a necessidade de reconhecer e proteger os laços afetivos estabelecidos entre pais e filhos, independentemente da origem genética.

Nesse sentido, o reconhecimento legal da paternidade socioafetiva trouxe consigo uma série de consequências jurídicas importantes, tais como direitos de herança, guarda, alimentos e visitação. No entanto, apesar dos avanços legislativos e jurisprudenciais nesse campo, ainda existem desafios a serem enfrentados no sistema legal brasileiro. 

Entre os principais desafios estão a falta de uniformidade nas decisões judiciais, a necessidade de maior divulgação e conscientização sobre a paternidade socioafetiva, bem como a garantia da efetiva proteção dos direitos das crianças e dos pais envolvidos nessas situações.

Diante disso, visa-se responder: Quais as consequências jurídicas da paternidade socioafetiva no sistema legal brasileiro atual? tendo como hipótese, os pais socioafetivos podem ser obrigados a pagar pensão alimentícia em casos de separação ou divórcio, se a criança ficar sob a guarda do outro pai ou mãe.

Tem como objetivo geral analisar as consequências jurídicas da paternidade socioafetiva. E os objetivos específicos em diferenciar as diferenças entre paternidade biológica e socioafetiva, destacando as implicações jurídicas; descrever os procedimentos legais e os requisitos para o reconhecimento da paternidade socioafetiva; avaliar a paternidade socioafetiva e a impossibilidade de desconstituição. 

A metodologia utilizada é a de revisão da literatura acadêmica, livros, artigos científicos e relatórios técnicos relacionados às consequências jurídicas da paternidade socioafetiva.

A presente monografia justifica-se pois o reconhecimento da paternidade socioafetiva implica direitos e deveres parentais, que podem incluir guarda, visitação, sustento, educação e herança. A impossibilidade de desconstituição garante a segurança jurídica desses direitos, bem como a proteção dos interesses da criança. 

Sendo assim, faz-se necessário realizar o estudo pois a jurisprudência brasileira tem evoluído para reconhecer e proteger as relações socioafetivas, estabelecendo importantes precedentes legais. No entanto, a falta de clareza e uniformidade na interpretação da lei e a ocorrência de decisões divergentes em diferentes tribunais exigem uma análise aprofundada e reflexão crítica sobre a matéria.

O primeiro capítulo irá abordar evolução histórica do reconhecimento da paternidade socioafetiva no sistema jurídico brasileiro; o segundo capítulo trará as diferenças entre paternidade biológica e socioafetiva e os procedimentos legais e os requisitos para o reconhecimento da paternidade socioafetiva, e por fim, o terceiro capítulo analisará a paternidade socioafetiva e a impossibilidade desconstituição.

1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO

A parentalidade socioafetiva surge como um componente essencial nas dinâmicas familiares contemporâneas, superando os laços biológicos para abraçar os vínculos construídos através do afeto e da convivência. Em contraste com a simples relação biológica entre pais e filhos, a parentalidade socioafetiva reconhece a importância das conexões emocionais e sociais na formação da identidade familiar. 

Neste contexto, ela desafia concepções tradicionais, destacando a influência positiva e a contribuição significativa de pais que, mesmo sem laços sanguíneos, desempenham papéis essenciais no desenvolvimento e bem-estar emocional de seus filhos.

Explorar a parentalidade socioafetiva não apenas expande nosso entendimento do que constitui uma família, mas também realça a diversidade e a riqueza das relações parentais na sociedade atual. O artigo tem como objetivo examinar mais a fundo o conceito de parentalidade socioafetiva, seus fundamentos legais e sociais, assim como suas implicações na construção de laços familiares significativos e saudáveis.

1.1. CONCEITO HISTÓRICO DE FAMÍLIA

É crucial ressaltar que a origem do termo “família” remonta ao latim “famulus“, que originalmente denotava um grupo de escravos ou servos que viviam sob a autoridade do “pater família”. Conforme observado por Viana (2000, p.22), ao longo do tempo, esse conceito evoluiu para abranger não apenas os agnados (parentes sujeitos ao poder devido ao casamento), mas também os cognados (parentes pelo lado materno), ampliando-se para se tornar sinônimo de “Genes”.

Claramente, o conceito de família está passando por inúmeras transformações. Nesse cenário, o direito familiar precisa acompanhar essas mudanças e se ajustar às novas configurações familiares. Embora a legislação não ofereça um conceito definitivo de família (Viana, 2023), na área jurídica, podemos identificar três conceitos sugeridos por Maria Helena Diniz (2008, p. 405). 

Amplamente falando, a família abrange os indivíduos unidos por laços de consanguinidade ou afinidade, incluindo parentes em linha reta, colateral ou afins. Em uma definição mais restrita, a família consiste nos pais e filhos através do casamento ou união estável.

No âmbito do Direito de Família, é crucial compreender que o conceito de família não é estático. Ele se adapta constantemente às mudanças na sociedade e em sua dinâmica.

Ao longo da história, as famílias têm passado por transformações significativas. A partir do século XIX, a sociedade passou a valorizar cada vez mais a convivência harmoniosa entre os membros familiares, reconhecendo que a felicidade está intrinsecamente ligada ao afeto compartilhado entre eles. 

Esse novo enfoque gerou uma mudança paradigmática no âmbito do Direito de Família, que passou a dar prioridade às relações interpessoais influenciadas pelo contexto social em constante evolução. Nesse cenário, a filiação não se limita mais aos laços biológicos, mas também se baseia no afeto e na convivência.

Em sintonia com os progressos da sociedade, o Direito de Família passou a atribuir maior importância às relações afetivas entre as pessoas. O termo “filiação”, derivado do latim “filiatio”, refere-se à conexão de descendência através da paternidade ou maternidade, conforme definido pelo dicionário jurídico (Pereira, 2011).

O conceito de afetividade engloba a habilidade individual de experimentar sentimentos afetivos, sendo o amor um elemento chave que une as pessoas. Essas relações, que são públicas, contínuas e duradouras, desempenham um papel crucial na construção da sociedade, sendo influenciadas por normas culturais, jurídicas e sociais. Assim, a filiação baseada no afeto tem ganhado crescente reconhecimento. Como destacado por Rodrigo da Cunha Pereira (2011, p. 193):

“A família hoje não se baseia mais na dependência econômica, mas sim na cumplicidade, solidariedade mútua e afeto entre seus membros. O ambiente familiar tornou-se um centro de realização pessoal, assumindo essa função em detrimento dos antigos papéis econômicos, políticos, religiosos e prescritivos que eram desempenhados pela instituição.”

Considerando essas ponderações, fica claro que o afeto ultrapassa os vínculos de parentesco consanguíneos e não se limita aos membros de uma única família; é um elo que conecta indivíduos. Dentro desse contexto, surge o conceito de filiação socioafetiva, que se refere à ideia de que a filiação não é estritamente determinada pela relação biológica entre pais e filhos, mas também engloba a construção de laços afetivos, emocionais e de convivência entre eles.

Em outras palavras, a paternidade socioafetiva reconhece a parentalidade com base nos laços de afeto e cuidado estabelecidos dentro de uma família, independentemente de laços sanguíneos (Pereira, 2011).

1.2. CONCEITO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

O conceito de paternidade socioafetiva compreende que a filiação vai além da ligação biológica entre pais e filhos, abrangendo também a formação de vínculos afetivos, emocionais e de convivência entre eles. Em outras palavras, a paternidade socioafetiva reconhece a parentalidade a partir dos laços de afeto e cuidado estabelecidos dentro de uma família, independentemente de conexões sanguíneas (Almeida, 2023).

Essa modalidade de filiação, também denominada filiação afetiva, constitui uma vertente relevante do Direito de Família, que prioriza a paternidade ou maternidade com base nos laços afetivos, de cuidado e convivência, em contraposição à mera filiação biológica. Essa concepção representa uma notável evolução na jurisprudência e na legislação de várias nações, incluindo o Brasil (Almeida, 2023).

Na filiação pelo afeto, a confirmação da ligação genética entre pais e filhos não é o único fator avaliado. Também são considerados os laços emocionais e de cuidado cultivados ao longo do tempo, reconhecendo que o desempenho responsável da parentalidade transcende a conexão sanguínea (Oliveira, 2019).

O reconhecimento da filiação pelo afeto visa salvaguardar o melhor interesse da criança, proporcionando-lhe um ambiente familiar estável e emocionalmente saudável. Isso implica que alguém que efetivamente exerce o papel de pai ou mãe, oferecendo amor, educação, orientação e convivência, pode ser legalmente reconhecido como tal, mesmo sem vínculos biológicos. Esse reconhecimento acarreta implicações em várias áreas, como direito à herança, obrigação de pensão alimentícia, direito de visita, entre outros. Além disso, é essencial para estabelecer responsabilidades parentais em casos de separação ou divórcio, assegurando o bem-estar da criança (Oliveira, 2019).

No Brasil, o reconhecimento da filiação pelo afeto é respaldado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pelas decisões judiciais que consideram a chamada paternidade responsável. Esse conceito é essencial para assegurar que os direitos da criança sejam respeitados, independentemente de sua origem biológica, promovendo relações familiares mais justas e adequadas ao contexto social contemporâneo (Brasil, 1990).

1.3. SURGIMENTO DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVO NO MUNDO JURÍDICO

A emergência da paternidade socioafetiva no cenário jurídico mundial é uma resposta às transformações das relações familiares na sociedade contemporânea. Diferentemente da paternidade biológica, que se fundamenta exclusivamente nos laços consanguíneos, a paternidade socioafetiva reconhece que os vínculos familiares podem ser forjados a partir do afeto, convivência e cuidado.

Historicamente, a filiação esteve intimamente ligada à ideia de descendência biológica. No entanto, mudanças sociais, como o surgimento de famílias reconstituídas, adoção, casais homoafetivos e outras configurações familiares, levaram o direito a reconhecer que os laços de amor e convivência são tão cruciais quanto os laços de sangue. O advento da paternidade socioafetiva está intrinsecamente relacionado a situações reais em que crianças foram criadas por pessoas que não eram seus pais biológicos, mas que desempenhavam um papel fundamental em suas vidas. O direito percebeu a necessidade de abordar essas situações para proteger o melhor interesse da criança (Tartuce, 2017).

No Brasil, a Constituição de 1988 estabeleceu a igualdade entre os filhos, independentemente de sua origem, abrindo caminho para o reconhecimento da paternidade socioafetiva. Posteriormente, o Código Civil de 2002 reforçou a importância do afeto na construção da filiação (Brasil, 1988).

A paternidade socioafetiva reflete a evolução das relações familiares e o reconhecimento de que o amor, cuidado e convivência são fundamentais na formação dos laços familiares. Isso proporciona segurança jurídica e protege o melhor interesse da criança, que deve ser o principal foco nas questões de filiação (Ascensão, 2005).

A proteção à família monoparental, seja fundada nos laços de sangue ou por adoção (conforme estabelecido no art. 226, § 4º da CF/88), reconhece que o afeto é um elemento fundamental na estrutura familiar. A união estável (como descrito no art. 226, § 3º da CF/88) é reconhecida como uma forma legítima de constituição familiar, reconhecendo a convivência duradoura e afetiva como essencial.

A convivência familiar é assegurada à criança e ao adolescente, independentemente da origem biológica (conforme estabelecido no art. 227 da CF/88), garantindo que o afeto seja o alicerce das relações familiares que promovam o desenvolvimento saudável das crianças. 

O artigo 1.596 do Código Civil estabelece que os filhos, independentemente de serem nascidos de uma relação de casamento ou adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, sendo proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Assim, a presença explícita do afeto em diversos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais demonstra sua relevância na construção e no reconhecimento das relações familiares, reforçando a importância do princípio da afetividade na sociedade contemporânea.

A presença do afeto em diversos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, como o princípio da dignidade da pessoa humana, solidariedade, igualdade entre os filhos, adoção como escolha afetiva, proteção à família monoparental e reconhecimento da união estável, demonstra sua relevância na construção e no reconhecimento das relações familiares na sociedade contemporânea. Assim, a paternidade socioafetiva surge como uma resposta jurídica necessária às transformações sociais, garantindo a proteção da dignidade e dos direitos das crianças em diversos contextos familiares (Vecchiatti, 2008).

2. AS DIFERENÇAS ENTRE PATERNIDADE BIOLÓGICA E SOCIOAFETIVA, DESTACANDO AS IMPLICAÇÕES JURÍDICAS

A filiação é o elo que une pais e filhos em um parentesco de primeiro grau, estabelecendo direitos e deveres mútuos. Essa relação, cuja origem remonta ao termo latino “filiatio”, é forjada na convivência familiar e na afetividade. Segundo Paulo Lôbo (2020), quando esse vínculo é estabelecido com o pai, é chamado de paternidade, enquanto com a mãe, de maternidade.

De acordo com o artigo 1.597 do Código Civil, a paternidade é presumida em certas circunstâncias. Filhos nascidos após um período mínimo de convivência conjugal ou até 300 dias após a dissolução do casamento, assim como filhos concebidos por fertilização, são presumidos como legítimos. 

No entanto, a certeza absoluta da maternidade foi questionada devido a casos de troca de bebês ou sequestros, levando a uma maior frequência de investigação de maternidade.

A introdução dos testes de DNA revolucionou a determinação da paternidade e maternidade, substituindo as presunções por evidências científicas. No entanto, mesmo com resultados negativos de DNA, em alguns casos, a relação afetiva entre pai e filho prevalece, mantendo o vínculo independentemente da origem biológica.

Essa evolução de pensamento reconhece que a filiação não se limita aos laços de sangue, mas também inclui a afetividade e o estado de filiação. Portanto, todos os filhos, independentemente da modalidade de filiação, recebem proteção legal, priorizando o bem-estar da criança.

Dias (2017) destaca que a filiação agora é identificada pela presença de afetividade, ampliando o conceito de paternidade para além dos laços biológicos. Com base nessa nova compreensão, a legislação tem evoluído para garantir direitos iguais a todos os filhos, independentemente da origem da filiação.

Embora haja avanços legislativos, como a Lei 883/1949 e a Constituição de 1988, que promovem a igualdade de filiação, o Código Civil de 2002 ainda carece de atualização, especialmente na divisão de capítulos relacionados à filiação biológica e não biológica.

Com essa mudança de paradigma, a filiação baseada no afeto supera a tradicional filiação biológica, permitindo diversas formas de estabelecer o vínculo parental. A filiação pode ser entendida através de critérios jurídicos, biológicos e socioafetivos, cada um reconhecendo diferentes formas de parentesco, todos visando o melhor interesse da criança.

2.1. FILIAÇÃO BIOLÓGICA

Segundo Lacerda (2018), a filiação biológica é caracterizada pela presença do vínculo sanguíneo entre duas pessoas, geralmente resultante da reprodução natural por meio da relação sexual entre um homem e uma mulher, dentro ou fora do casamento, resultando no nascimento de uma criança. Além disso, técnicas de reprodução assistida também podem ser utilizadas com o intuito de facilitar ou substituir etapas da gestação.

Sendo assim, o conceito de filiação biológica refere-se à relação entre pais e filhos determinada pela genética e pela hereditariedade biológica. Em outras palavras, é a conexão entre pais e filhos estabelecida pelo compartilhamento de material genético. Essa filiação é baseada na relação biológica entre um indivíduo e seus pais, determinada pela transmissão de características genéticas através da reprodução.

A filiação biológica é frequentemente contrastada com a filiação adotiva, na qual os pais não têm uma conexão genética com seus filhos, mas estabelecem uma relação de parentalidade através da adoção legal. Esses conceitos são importantes em questões legais, sociais e familiares, influenciando direitos e responsabilidades parentais, herança, entre outros aspectos da vida em sociedade.

Nessa mesma linha de pensamento, Silva (2017) destaca que a filiação biológica é determinada pelo vínculo genético entre pai e filho, originado da união dos gametas, o que constitui um laço biológico inalterável. Essa forma de filiação é uma das mais antigas, baseada na conexão genética que não pode ser alterada.

A identificação da filiação biológica pode ser realizada por meio de exames de DNA, pela presunção de veracidade dos registros de filiação civil e também pelos laços de afeto que caracterizam a filiação socioafetiva. O advento do teste de DNA representou um marco na ciência ao oferecer uma prova conclusiva da existência ou não do vínculo biológico (Rosa, 2014).

Com base nessas considerações, a filiação biológica, com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a constitucionalização do Código Civil de 2002, abrangeu novas modalidades, como a paternidade socioafetiva, que independe do vínculo genético, refletindo uma evolução na legislação sobre o tema.

2.2. ADOÇÃO À BRASILEIRA

Em conformidade com Resende (2018) explora a regulamentação da adoção pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para menores de 18 anos, enquanto o Código Civil/2002 (C.C.) e o ECA se aplicam aos maiores de 18 anos. 

Para Diniz (2010) define a adoção como um ato jurídico solene que estabelece um vínculo fictício de filiação, concedendo ao adotado a posição de filho de forma definitiva e irrevogável, exceto em questões patrimoniais. 

A expressão “adoção à brasileira” descreve um procedimento que ignora os trâmites legais, como o registro de um filho como próprio sem seguir os processos formais de adoção. Portanto, Faria e Rosenvald (2015) destacam que esse método é considerado ilegal, conforme o artigo 242 do Código Penal, e envolve crimes como parto suposto, entrega de filho a pessoa imprópria e falsidade ideológica.

Já para Ferreira (2015) também define a adoção à brasileira como o registro de um filho como próprio, destacando a ilegalidade dessa prática de acordo com o Código Penal. O registro é feito pelo Cartório de Registro Civil sem comprovação de laços biológicos, violando os procedimentos formais de adoção. 

Contudo, Rocha (2010) aponta que a Lei de Adoção 12.010/2009 prioriza a convivência familiar e o afeto sobre o vínculo biológico, o que pode dificultar o retorno da criança à família biológica em caso de arrependimento, gerando incertezas jurídicas. No entanto, Rocha destaca que essa prática pode oferecer proteção emocional e física à criança, promovendo seu melhor interesse, conforme previsto no artigo 227 da Constituição.

Assim, a adoção à brasileira torna-se uma prática comum, apesar de irregular, devido à demora e complexidade do processo legal de adoção, refletindo uma preocupação com o bem-estar da criança, embora careça de segurança jurídica.

A expressão “adoção à brasileira” é utilizada para descrever situações em que uma criança é informalmente entregue a terceiros para ser criada como filho, sem o devido processo legal de adoção. Esse termo é geralmente empregado para descrever situações em que não há a intervenção das autoridades competentes, como o Poder Judiciário e os órgãos responsáveis pela adoção, para regularizar o processo de adoção.

Essa prática pode ocorrer por diversos motivos, como dificuldades no processo legal de adoção, desejo de evitar a burocracia envolvida no procedimento formal, ou mesmo por desconhecimento das consequências legais e sociais dessa decisão. No entanto, a adoção à brasileira é considerada ilegal e pode acarretar sérias consequências tanto para os pais adotivos quanto para a criança.

A legislação brasileira estabelece procedimentos específicos para a adoção, visando garantir os direitos da criança e a legalidade do processo. Qualquer tipo de adoção que não siga esses procedimentos pode ser considerado ilegal e sujeito a penalidades. Por isso, é fundamental que os interessados em adotar uma criança sigam os trâmites legais adequados, garantindo assim a segurança jurídica tanto para a criança quanto para os pais adotivos.

2.3. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA 

Com a evolução da sociedade e da legislação, o conceito de família e filiação passou por mudanças significativas. Antes, apenas a filiação biológica era reconhecida, baseada na relação carnal após o casamento, classificada em três formas no Código Civil de 1916: legítima, ilegítima e legitimada. 

No entanto, a Constituição de 1988 aboliu tais distinções, estabelecendo a igualdade entre os filhos e dando origem à filiação socioafetiva, que considera não só os laços de sangue, mas também os de afeto presentes na convivência familiar.

Essa modalidade de filiação surge do reconhecimento do vínculo emocional entre quem cuida e a criança, independente de laços biológicos, e é estabelecida não no momento do nascimento, mas sim ao longo da convivência diária e por vontade mútua. Tanto Ribeiro (2017) quanto Souza (2016) destacam que a filiação socioafetiva cria um parentesco baseado na convivência e na afetividade, sendo reconhecida pelo artigo 227, §6º da Constituição Federal de 1988, que proíbe qualquer forma de discriminação em relação à filiação e garante tratamento igualitário. Além disso, o artigo 1.593 do Código Civil de 2002 também reconhece essa forma de filiação, possibilitando sua inclusão.

Sendo assim, a filiação socioafetiva estabelece uma relação pai-filho independentemente de laços biológicos, sendo essencial nas relações familiares por se fundamentar no afeto. Essa modalidade foi consolidada pela Constituição de 1988, que promoveu a igualdade entre os filhos e garantiu tratamento equitativo.

3. OS PROCEDIMENTOS LEGAIS E OS REQUISITOS PARA O RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

Inicialmente, nos deparamos com um desafio considerável ao tentar definir um conceito único e imutável para o termo “paternidade”. Os estudiosos divergem amplamente sobre o assunto, com uma tendência global de dar maior ênfase a certos aspectos em detrimento de outros que também podem ser relevantes para o mesmo conteúdo. O autor Fachin (1996, p. 33) destaca a importância da paternidade afetiva ao abordar a conexão entre essa e a paternidade biológica, ao afirmar que:

“A verdadeira paternidade pode não se limitar apenas à autoria genética da descendência. Pai também é aquele que se manifesta no dia a dia, de maneira consistente e duradoura, fortalecendo os laços da paternidade em uma relação psicoafetiva; aquele que, além de poder lhe dar seu sobrenome, o trata como seu filho verdadeiro perante a sociedade.”

É importante ressaltar que diante dessa perspectiva, as próprias circunstâncias da evolução histórica da civilização demonstram a mutabilidade do conceito de paternidade. Inicialmente, a paternidade se limitava aos laços biológicos tradicionais de descendência, mas atualmente, também se considera como paternidade aquela que é baseada em vínculos afetivos.

É evidente que o conceito de paternidade hoje vai muito além do momento da concepção. Ser pai nos dias atuais envolve uma gama de comportamentos que vão desde criar e sustentar os filhos até oferecer afeto e carinho, merecendo verdadeiramente o papel social atribuído a essa figura. Esta visão moderna sobre o verdadeiro significado da paternidade faz com que a paternidade socioafetiva ganhe uma relevância sem precedentes.

De acordo com Welter (2009) aborda a paternidade e a maternidade de uma perspectiva diferente, enfatizando os direitos estabelecidos de cada cidadão. Para ele, tanto a paternidade quanto a maternidade são, essencialmente, direitos fundamentais e uma questão de dignidade, intrínsecos a cada ser humano em sua individualidade.

Para Maia (2008) destaca a interligação entre os atributos da paternidade e o conceito de filiação, afirmando que “a filiação e a paternidade dizem respeito à mesma relação jurídica que une respectivamente filho e pai, e pai e filho”.

Uma vez definido o conceito de paternidade, é claro que ela pode ser estabelecida de diversas maneiras, cada uma com suas origens e precedentes. No entanto, independentemente da forma como é estabelecida, os efeitos do reconhecimento da paternidade serão os mesmos, gerando os mesmos direitos e obrigações.

No Direito Brasileiro, as formas de estabelecimento da paternidade se dividem principalmente em três categorias distintas. A primeira delas é o estabelecimento da paternidade por meio do casamento, onde se aplica a presunção de paternidade. 

A segunda se relaciona exclusivamente com os filhos nascidos fora do casamento, onde o estabelecimento da paternidade ocorre geralmente por meio do reconhecimento voluntário (perfilhação) ou judicial, através da ação de investigação de paternidade. A terceira e última forma é através da adoção, que é regulamentada pela lei civil quanto aos seus requisitos e procedimentos.

Apesar da existência de alguma regulamentação específica em nosso ordenamento jurídico atual sobre o estabelecimento da paternidade baseada no afeto, ela ainda é bastante vaga e sujeita a diversas interpretações. O conteúdo do artigo 1.593 do Código Civil, por exemplo, é amplo, disperso e indeterminado, o que não favorece a disseminação da paternidade afetiva.

Portanto, embora tenhamos visto uma evolução no reconhecimento da filiação baseada no afeto, o tema ainda é controverso e complexo, exigindo uma ampliação e análise mais detalhada por parte da legislação brasileira. 

A falta de disposições específicas sobre o assunto na legislação traz problemas relacionados a conflitos entre parentes afetivos e entre estes e os parentes biológicos. Esses conflitos exigem uma maior intervenção jurisprudencial e mais pesquisas no campo, justificando a problemática abordada neste trabalho.

3.1. PRESUNÇÃO DE PATERNIDADE

A presunção de paternidade é detalhadamente regulamentada pelo artigo 1.597 do Código Civil de 2002, o qual enumera os casos em que os filhos são presumidos como concebidos durante o casamento. As inovações introduzidas pelo Código Civil de 2002 se concentram nos últimos três incisos desse dispositivo legal. Nesses termos:

A redação desses dispositivos deixa claro que tanto os filhos concebidos com material genético do próprio casal, quanto aqueles nascidos através da utilização de material genético do casal, e mesmo aqueles gerados a partir de material genético de doadores, são presumidos como concebidos durante o casamento. 

Isso evidencia que tanto os filhos concebidos por reprodução assistida homóloga quanto aqueles concebidos por reprodução assistida heteróloga são presumidos como concebidos durante o casamento, refletindo os avanços tecnológicos dos tempos modernos.

Com relação à presunção de paternidade, o artigo 1.597 estabelece que, de acordo com a presunção pater is est quem nuptiae demonstrant, o pai da criança será automaticamente o marido da mãe, ou seja, o cônjuge da genitora do filho. No entanto, é importante destacar que na ausência de casamento, a paternidade requer outro ato, seja reconhecimento judicial ou voluntário, não sendo estabelecida automaticamente.

Para filhos nascidos fora do casamento, a Lei nº 12.004, de 29 de julho de 2009, estabeleceu a presunção de paternidade nos casos em que o suposto pai se recusa a fazer o exame de DNA, sendo essa recusa considerada junto com outras evidências. É relevante observar que essa presunção admite prova em contrário, tendo um efeito jurídico limitado. Assim, o suposto pai pode contestar a presunção legal de paternidade por meio de uma ação negatória de paternidade.

Quanto à contestação, o artigo 1.601 do Código Civil de 2002 estabelece que o marido tem o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua esposa, sendo esse direito imprescritível.

Portanto, é importante notar que na presunção de paternidade, não há certeza da paternidade – ela é alcançada por meio de uma presunção, onde o legislador parte de um fato real para chegar a uma possível existência de outro fato incerto.

3.2. RECONHECIMENTO VOLUNTÁRIO DE PATERNIDADE NO CÓDIGO CIVIL DE 2002

É importante destacar que o Código Civil de 2002 aborda a questão do reconhecimento voluntário de paternidade no artigo 1.609, correspondente ao artigo 357 do Código Civil de 1916. Quanto às formas de concretização do reconhecimento da paternidade afetiva, o dispositivo legal mencionado apresenta as seguintes modalidades:

Art. 1609. O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito:
I- No registro do nascimento;
II- Por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório;
III- Por testamento, ainda que incidentalmente manifestado;
IV- Por manifestação direta e expressa perante o juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido o objeto único e principal do ato que o contém. […]

De acordo com o doutrinador Pereira (2008) é fundamental considerar as características e a natureza intrínseca do reconhecimento voluntário da paternidade, conforme estabelecido pelo próprio Código Civil de 2002. Pereira destaca que esse ato não é meramente unilateral, pois requer o consentimento do indivíduo que se deseja reconhecer, caso seja maior de idade. No entanto, é uma prática comum em nosso direito não exigir o consentimento da mãe para validar o reconhecimento.

Quanto aos requisitos essenciais, o reconhecimento deve ser feito pelo próprio pai, sendo, portanto, uma ação eminentemente pessoal. Além disso, por se tratar de um ato jurídico, é necessário que o declarante tenha capacidade civil. Em relação aos seus atributos, o reconhecimento voluntário é irrevogável, anulável, irrenunciável, indivisível, incondicional e retroativo.

Assim, podemos concluir que o reconhecimento voluntário de paternidade é uma ação personalíssima, emanada diretamente pelo pai, sem a possibilidade de ser realizada por qualquer outra pessoa, e não requer o consentimento da genitora, uma vez que a relação envolve apenas pai e filho. Portanto, sendo uma decisão que envolve ambos os agentes, pai e filho, trata-se de um ato bilateral, dependente da vontade do genitor e do consentimento do filho.

3.3. POSSE DO ESTADO DE FILHO E FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA

Inicialmente, é importante compreender o que significa a expressão “posse do estado de filho” por si só, a fim de estabelecer uma ligação entre essa posse e a filiação socioafetiva. 

Segundo Gomes (2017) a posse do estado de filho refere-se a um conjunto de circunstâncias que indicam a condição de filho legítimo de um casal que assume a responsabilidade de criar e educar uma criança. 

Essas circunstâncias incluem alguns requisitos essenciais, como ter sempre o sobrenome dos supostos genitores, receber tratamento contínuo como filho legítimo e ser reconhecido como tal pelos supostos pais e pela sociedade.

De maneira similar, De Miranda (2013) descreve a posse do estado de filho legítimo como a experiência de ser tratado como filho legítimo e desfrutar das vantagens dessa condição. 

Ele resume esses requisitos em três palavras: “nomen“, indicando que o suposto filho usa o sobrenome dado pelo pai; “tractatus“, significando que ele é tratado como filho, recebendo cuidados, educação e sustento; e “fama”, denotando que é reconhecido como filho pelo público em geral.

Observa-se que tanto Gomes (2013) menciona os mesmos requisitos para a posse do estado de filho, embora de maneiras diferentes. Ambos destacam a importância de a criança ter o sobrenome dos pais, ser tratada por eles como filha e ser reconhecida como tal pela sociedade. 

Seguindo essa linha de raciocínio, Jorge Fujita (2013) estabelece três fatos constitutivos da posse do estado de filho: a “nominatio”, quando o filho tem o sobrenome do pai; o “tractatus”, quando é tratado como filho pelos pais e é criado e educado por eles; e a “reputation”, quando é considerado filho dentro da família e pelos vizinhos.

Para uma análise mais aprofundada do tema, as perspectivas de Fujita (2013) sobre os requisitos para configurar a posse do estado de filho serão discutidas. Por exemplo, com três requisitos em jogo: nome, tratamento e fama, é importante investigar se todos os três elementos são necessários juntos para estabelecer a posse do estado de filho. 

Não é necessário que os três elementos, nome, tratamento e fama, estejam presentes em conjunto para caracterizar a filiação, sendo preferível um critério de equidade: na dúvida, em favor da filiação.

Em relação ao primeiro requisito, o nome ou “nominatio”, há autores que argumentam que esse requisito é dispensável, bastando comprovar os requisitos do tratamento e da fama, já que os filhos são geralmente reconhecidos pelo seu primeiro nome.

Em relação aos chamados filhos de criação, é fundamental compreender que não é obrigatório que todos os três requisitos estejam presentes simultaneamente para caracterizar a filiação. Isso é particularmente relevante, pois em muitos casos esses filhos podem não adotar o sobrenome dos pais afetivos, embora desfrutem dos outros dois requisitos: fama e tratamento. 

Se essa adoção do sobrenome fosse um requisito obrigatório, os filhos de criação que não o adotassem seriam privados do reconhecimento como filhos afetivos, uma situação comum nesse tipo de filiação caracterizada pela informalidade. De acordo Shiguemitsu Fujita (2013) argumenta que:

“No entanto, em relação aos chamados ‘filhos de criação’, mesmo que existam evidências claras e contundentes da posse do estado de filho afetivo, que caracteriza a relação socioafetiva pai-mãe-filho, ou apenas pai-filho ou mãe-filho, a lei não contempla o reconhecimento da filiação socioafetiva se houver uma certidão de registro civil contendo os nomes dos pais biológicos”.

O senso comum percebe a função de um pai, em geral, como aquela destinada a criar um filho com amor, fornecer proteção, sustento e educação. Em termos gerais, a função de um pai é prover à criança ou adolescente os recursos financeiros necessários para sua sobrevivência e educação, além de oferecer afeto, amor, apoio e proteção.

Por outro lado, nosso sistema jurídico trata diretamente das obrigações dos genitores para com seus filhos. Destacam-se os seguintes dispositivos legais: o artigo 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente, os artigos 227 e 229 da Constituição Federal e, por fim, os artigos 1.634, 1.583 a 1.590 do Código Civil.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 22, estabelece as responsabilidades parentais em relação aos filhos, abrangendo o dever de sustento, guarda, educação e o cumprimento ou execução de decisões judiciais. No entanto, esse artigo aborda principalmente os aspectos financeiros ou econômicos das obrigações parentais, deixando de mencionar aspectos emocionais, como o fornecimento de amor e carinho aos filhos.

No que diz respeito ao artigo 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente, Paulo Lúcio Nogueira argumenta que “observa-se o plural ‘país’, o que significa pai e mãe, conjuntamente. É obrigação de ambos, sem exclusão ou prioridade, uma obrigação solidária, proporcional às possibilidades materiais de cada um dos genitores, sob as penas do artigo 249”. 

Além disso, em relação ao direito à educação da criança e ao dever dos pais de concedê-la, expresso no Estatuto da Criança e do Adolescente, pode-se afirmar que “a educação, conforme os artigos 205 e 6º da Constituição Federal, é incluída como direito fundamental do ser humano. Nesse sentido, o legislador estabeleceu o ensino fundamental obrigatório e gratuito como direito subjetivo da criança e do adolescente”.

Por outro lado, a Constituição Federal, por meio de seu artigo 227, amplia as obrigações dos genitores para com seus descendentes, além dos tradicionais deveres de guarda, educação e sustento. Esses deveres incluem assegurar o direito à vida, à saúde, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, além do dever de proteger a criança contra qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Por fim, nosso Código Civil atual também trata do tema, especificando em seu artigo 1.634 que ambos os pais, independentemente da situação conjugal, têm o pleno exercício do poder familiar em relação aos filhos:

art.1634
I – dirigir-lhes a criação e a educação
II – exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584;
III – conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
IV – conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior;
V – conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município;
VI – nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;
VII – representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
VIII – reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
IX – exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição (BRASIL, 2002).

A doutrina também examina o papel do pai, porém, sua análise se inclina mais para os vínculos afetivos do que para os laços consanguíneos propriamente ditos. Dessa forma, destaca-se a importância, no contexto da paternidade, do pai não biológico que desempenha suas responsabilidades parentais em comparação com o pai biológico que negligencia suas obrigações. Nesse sentido, Maia (2018) argumenta que:

“Entendendo que a paternidade é mais uma função do que uma relação biológica, que o pai que cria não necessariamente é o progenitor, inclusive, utiliza-se o instituto da adoção para ilustrar que o direito não repudia essa ideia. Essa função crucial, destacada pela psicanálise (principalmente após Lacan), precisa ser incorporada pela ciência jurídica”.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, Queiroz (2016) afirma que:

“Um pai, mesmo sendo biológico, se não desempenha a função de pai, nunca será verdadeiramente um pai […] Sendo assim, é um direito fundamental para a formação desse novo indivíduo que, se seus genitores não têm capacidade para proporcioná-lo, a criança seja entregue a uma família substituta, que possa oferecer-lhe essa proteção especial, estabelecendo um vínculo direto com sua identidade dentro do novo grupo familiar. Tornam-se frequentes em nossos tribunais casos nos quais os pais biológicos são destituídos do poder parental quando abusam de seus filhos”.

Do entendimento doutrinário, conclui-se que a função do pai não se limita à reprodução, na qual o progenitor gera um descendente. Pelo contrário, a função do pai está relacionada ao vínculo afetivo formado entre pai e filho, o que abre espaço para a chamada paternidade socioafetiva. 

Nesse contexto, a função do pai não é apenas fornecer material genético, mas sim oferecer carinho, amor, proteção e apoio ao filho. Torna-se claro, com base no exposto, que um pai biológico que falha em cumprir sua função simplesmente não pode ser considerado como tal.

Diante desse quadro, influenciado pelas mudanças de valores e pelo contexto histórico atual, o afeto tem recebido mais destaque, com o vínculo biológico sendo cada vez mais deixado de lado. Diante dessa realidade, é evidente que o conceito do que constitui a função do pai, ou mesmo dos genitores, também mudou.

Portanto, a função de pai é um produto da cultura específica de cada sociedade e de um determinado momento histórico. Enquanto a função paterna na Roma antiga envolvia religião e autoridade, hoje, por motivos psicológicos e culturais, entende-se que a imposição de uma necessidade de apoio afetivo é essencial para a composição da função de pai.

Assim, além de ser influenciada pelo momento histórico atual, a função de um pai não se limita apenas ao apoio material ou financeiro, mas é inegável que o suporte afetivo não só integra, como também é uma parte essencial dessa função. 

Nesse contexto, se torna evidente que o desempenho ou não da função de pai é um elemento crucial para determinar a verdadeira paternidade de um indivíduo. O vínculo sanguíneo estabelecido entre duas pessoas é simplesmente irrelevante para verificar se a função de pai está presente, de modo que o pai socioafetivo desempenha uma função tão importante quanto o pai biológico.

4. A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA E A IMPOSSIBILIDADE DESCONSTITUIÇÃO

A paternidade socioafetiva, um fenômeno cada vez mais reconhecido e valorizado na sociedade contemporânea, desafia as fronteiras tradicionais da filiação biológica ao destacar a importância dos laços emocionais e afetivos na constituição da família. Nesse contexto, emerge a questão da impossibilidade de desconstituição desse vínculo, uma vez estabelecido. 

A complexidade desse tema transcende as linhas do direito, envolvendo aspectos psicológicos, sociais e éticos que exigem uma reflexão cuidadosa e abrangente. Este capítulo busca explorar essa temática, oferecendo uma análise aprofundada sobre os desafios e as implicações da paternidade socioafetiva na contemporaneidade.

4.1 REQUISITOS DO PROVIMENTO 63 DO CNJ

Os critérios necessários para o reconhecimento da filiação socioafetiva fora do âmbito judicial são:

– Requerimento firmado pelo ascendente socioafetivo (nos termos do Anexo VI), testamento ou codicilo (artigo 11, parágrafos 1º e 8º, do Provimento 63/2017 do CNJ);
– Documento de identificação com foto do requerente – original e cópia simples ou autenticada (artigo 11 do Provimento 63/2017 do CNJ);
– Certidão de nascimento atualizada do filho – original e cópia simples ou autenticada (artigo 11 do Provimento 63/2017 do CNJ);
– Anuência pessoalmente dos pais biológicos, na hipótese do filho ser menor de 18 anos de idade (artigo 11, parágrafos 3º e 5º, do Provimento 63/2017 do CNJ);
– Anuência pessoalmente do filho maior de 12 anos de idade (artigo 11, parágrafos 4º e 5º, do Provimento 63/2017 do CNJ);
– Não poderão ter a filiação socioafetiva reconhecida os irmãos entre si nem os ascendentes (artigo 10, parágrafo 3º, do Provimento 63/2017 do CNJ);
– Entre o requerente e o filho deve haver uma diferença de pelo menos 16 anos de idade (artigo 10, parágrafo 3º, do Provimento 63/2017 do CNJ);
– Comprovação da posse do estado de filho (artigo 12 do Provimento 63/2017 do CNJ) (Freitas, 2019, p. 19)

Esses requisitos visam garantir a segurança jurídica e o respeito aos direitos das partes envolvidas no processo de reconhecimento da filiação socioafetiva.

4.2. DA OBRIGAÇÃO ALIMENTAR DECORRENTE DO RECONHECIMENTO DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA

A obrigação de fornecer alimentos, no contexto do parentesco e, consequentemente, entre pais e filhos, é fundamentada no vínculo de solidariedade que une os membros da família e na comunidade de interesses, que impõe o dever recíproco de assistência aos que pertencem ao mesmo grupo.

O Código Civil em vigor, em conformidade com o artigo 229 da Constituição Federal, estipula, em seu artigo 1.696, a reciprocidade do direito de receber pensão alimentícia entre pais e filhos, sendo essa obrigação estendida aos ascendentes, com prioridade para os mais próximos na ausência de outros.

 Além disso, o artigo 1.697 do Código Civil estabelece a ordem de obrigação alimentar dos descendentes na falta de parentes ascendentes. Nesse contexto, Cahali (2013) destaca:

O legislador não apenas identifica os parentes responsáveis pela obrigação alimentar, mas também estabelece uma ordem de prioridade, dando preferência aos mais próximos em grau. A obrigação recai sobre os mais distantes apenas na ausência ou incapacidade dos primeiros em cumpri-la. Essa abordagem reflete a importância de uma estreita ligação entre o devedor e o beneficiário dos alimentos, destacando que o conceito de família não é interpretado em seu sentido mais amplo, mas sim como um núcleo restrito de parentes próximos e outros que compartilham relações patrimoniais íntimas e comuns.

Apesar da previsão da natureza recíproca da pensão alimentícia, é evidente a preocupação do Estado com o bem-estar das crianças, atribuindo aos pais a responsabilidade pelo sustento e cuidado dos filhos. Esse cuidado especial é claramente estabelecido no artigo 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Em conformidade com Rizzardo (2000) destaca precisamente o dever dos pais em relação aos filhos, especialmente no que diz respeito à prestação de alimentos:

“O dever de fornecer alimentos faz parte do dever de assistência que recai sobre os pais. Enquanto em relação aos outros parentes o Código Civil estipula uma simples obrigação, no caso dos filhos incapazes, a disposição é mais abrangente. É exatamente para melhor desempenhar essa importante função que o poder familiar é instituído. Dotados de autoridade na criação e educação dos filhos, os pais têm o direito de administrar os bens dos filhos, impor certos comportamentos e oferecer amplo suporte alimentar e educacional. Seu dever não se limita apenas a fornecer alimentos ou sustentar os filhos. Eles são responsáveis por prover todo apoio necessário, abrangendo aspectos materiais, físicos, espirituais, morais, afetivos e profissionais, mantendo uma presença constante em suas vidas, oferecendo orientação e apoio para prepará-los para enfrentar a vida por conta própria.”

O direito à vida, o princípio da dignidade da pessoa humana e os diversos preceitos estabelecidos pela Constituição contemplam um dever de subsistência entre os parentes, que se traduz no suprimento das necessidades recíprocas. 

Dessa forma, surge o dever de prestação de alimentos mesmo entre parentes distantes em grau, especialmente quando há um vínculo afetivo presente. Vale ressaltar que os alimentos são devidos em função da relação de parentesco entre o alimentante e o alimentando.

Embora a posse do estado de filho não seja explicitamente prevista na legislação, ela é um elemento significativo para a declaração da relação de filiação socioafetiva, acarretando consequências jurídicas, como a obrigação alimentar. Se alguém sempre foi tratado como filho, reconhecido como tal na esfera social da família, obviamente existe uma relação filial, base para o reconhecimento do vínculo jurídico (Do Valle, 2019).

Os juízes, portanto, devem reconhecer a relação de filiação com base no vínculo estabelecido pela posse do estado de filho e, consequentemente, admitir a existência do direito e dever de prestação de alimentos. Maria Berenice Dias reforça esse entendimento ao afirmar que não é suficiente buscar a lei que prevê a obrigação alimentar, nem condicionar a imposição desta obrigação a situações que refletem padrões preestabelecidos. 

O magistrado deve identificar a presença de um vínculo afetivo, dispensando a necessidade de certidão de casamento ou registro de nascimento. A formalização dos relacionamentos não é necessária para o reconhecimento dos vínculos afetivos e, consequentemente, para o estabelecimento de direitos e obrigações recíprocas (Pereira, 2020).

De acordo com Lôbo (2003) acrescenta que a paternidade socioafetiva não é uma forma adicional, excepcional ou suplementar da paternidade biológica; é a própria essência do paradigma contemporâneo de paternidade, que pode se manifestar tanto na forma biológica quanto na não biológica. A complexidade desse conceito reside no fato de que não é uma simples característica da natureza, mas sim uma construção jurídica que leva em consideração diversos fatores sociais e afetivos, transformados em direitos e deveres. A afetividade é um princípio jurídico, dotado de força normativa, impondo deveres e consequências por seu descumprimento.

Diante disso, a filiação baseada no vínculo afetivo não pode ficar desprotegida ou ao acaso. Quando presentes os requisitos que viabilizam o seu reconhecimento, ela deve gerar os mesmos efeitos legais que qualquer outra forma de filiação, como a biológica, incluindo a possibilidade de o filho afetivo receber pensão alimentícia.

Nesse sentido, Dias (2017) destaca que, com o crescente reconhecimento da filiação socioafetiva, cada vez mais privilegiada sobre o vínculo jurídico e genético, essa mudança também se reflete no dever de prestação de alimentos. Assim, quem exerce as funções parentais é quem deve fornecer alimentos, independentemente do vínculo legal ou genético.

Portanto, uma vez estabelecida a filiação socioafetiva, não há mais vínculo de parentesco da criança com seus pais biológicos, mas sim com os parentes ligados afetivamente. O filho “afetivo”, portanto, tem o direito e deve buscar alimentos junto aos seus pais afetivos, e não em detrimento daqueles que eram seus pais apenas biológicos. 

A paternidade socioafetiva é uma realidade cada vez mais reconhecida no Direito de Família, refletida nas decisões judiciais que reconhecem o direito do filho “afetivo” a receber alimentos de seus pais afetivos. Assim, o direito está trilhando o caminho para a plena integração e expressão da posse do estado de filho no ordenamento jurídico brasileiro, inclusive no âmbito da prestação alimentícia.

4.3. IMPOSSIBILIDADE DE DESCONSTITUIÇÃO DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA

Existem diversas maneiras de construir a filiação socioafetiva. Independentemente da modalidade de filiação, uma vez reconhecida a afetividade entre as partes, não é mais possível desfazer esse vínculo, pois fazê-lo iria contra o princípio do melhor interesse da criança.

As consequências de desfazer a filiação vão muito além da esfera patrimonial; os danos psicológicos para o filho seriam enormes e, por isso, a dissolução desse vínculo não é permitida para melhor proteger os interesses da criança. Nesse mesmo sentido, o desembargador Luís Espíndola proferiu o seguinte julgado:

“PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE IRREVOGÁVEL. POSSE DE ESTADO DE FILHO CONFIGURADA. PROTEÇÃO INTEGRAL E PRIORIDADE ABSOLUTA DA CRIANÇA QUE NORTEIAM A DECISÃO JUDICIAL. DIREITO PERSONALÍSSIMO DE FILIAÇÃO RECONHECIDA E OSTENTADO QUE RESTA CONSOLIDADO. PRECEDENTES DOS TRIBUNAIS SUPERIORES. SENTENÇA MANTIDA (Gomes, 2018).

No contexto da repersonalização das relações familiares, a paternidade não se limita ao vínculo biológico, mas constitui uma tríade: paternidade biológica, jurídica e socioafetiva, que nem sempre coexistem na mesma pessoa. 

O conteúdo da relação entre pais e filhos, no que diz respeito à sua dimensão jurídica, não está sujeito aos moldes clássicos da autonomia da vontade, pois está diretamente relacionado com a dignidade da pessoa humana (Tancetti, 2016). Uma vez estabelecida a posse de estado de filho, a simples vontade não é suficiente para desfazer os vínculos construídos. Uma vez caracterizada a posse de estado de filho, é consolidada uma situação jurídica que pode ser considerada de ordem pública.

Sendo assim, segundo o judiciário, a afetividade como critério goza de aplicação na doutrina e jurisprudência desde o Código Civil de 1916 para evitar situações de injustiça, reconhecendo a posse de estado de filho e, consequentemente, o vínculo parental, em favor daquele que usa o nome da família, é tratado como filho pelo pai e é reconhecido como descendente pela comunidade. 

A paternidade responsável, enunciada no art. 226, § 7º, da Constituição, exige o reconhecimento legal tanto dos vínculos de filiação construídos pela relação afetiva quanto dos vínculos biológicos, sem que seja necessário decidir entre um ou outro quando o melhor interesse do filho é o reconhecimento jurídico de ambos.

No caso em questão, a posse de estado de filho, mantida e ostentada por mais de uma década entre a criança e o pai registral, é incontestável. Portanto, não é possível desfazer o vínculo sob o pretexto de privilegiar a verdade biológica, no qual o recurso conhecido e não provido.” Como fica evidente, o desembargador rejeitou o recurso do pai registral, considerando que já havia sido estabelecido um vínculo afetivo na relação pai-filho. Ele destacou, citando Fachin (2016) que a simples vontade de romper o vínculo entre pai e filho não é suficiente para tal.

Assim, independentemente da modalidade de filiação afetiva, se for demonstrada nos autos a existência de afetividade entre as partes, bem como a posse do estado de filho no passado, não é possível determinar a dissolução desse vínculo, pois seria extremamente prejudicial para a criança envolvida. 

Quanto à inseminação artificial heteróloga, entendemos que, uma vez que foi necessário o consentimento prévio do cônjuge para o procedimento, essa paternidade não pode ser contestada. Contestá-la, com base na origem biológica do filho, seria uma conduta ilícita.

A autorização para esse tipo de procedimento não é vitalícia, mas, se o cônjuge não desejar mais a inseminação, deve retirar sua autorização antes que o procedimento seja realizado. Além disso, em casos de vício de consentimento, o pai que não consentiu com a inseminação deve entrar com uma ação negatória de paternidade genética imediatamente, antes que a filiação socioafetiva seja estabelecida. 

Na hipótese de adoção à brasileira, o mesmo entendimento se aplica, pois os pais registraram a criança sabendo que ela não era biológica deles. Portanto, uma vez que reconheceram voluntariamente o filho, sua dissolução é impossível. O STJ também firmou entendimento de que, mesmo nos casos em que o pai afetivo acredita ser o pai biológico, uma vez estabelecida a afetividade na relação, a negativa de paternidade não é mais possível (Valadares, 2015).

Um exemplo disso é o julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, onde o recurso foi rejeitado, uma vez que foi caracterizada a adoção à brasileira e a paternidade socioafetiva, impossibilitando a dissolução do vínculo.

Nas situações de filhos havidos fora do casamento e de enteados, onde só existe a posse do estado de filho e não houve regularização judicial prévia, uma vez estabelecidos os laços afetivos, eles não podem ser desfeitos. Argumenta-se que as relações pais-filhos moldam a identidade do filho, e romper essa relação seria uma violação dos seus direitos de personalidade, ferindo o princípio da dignidade humana (Oliveira, 2018).

Portanto, em nenhuma dessas situações é possível dissolver a filiação socioafetiva, pois nos primeiros casos houve aceitação prévia dessa paternidade, e nos últimos dois casos houve comprovação de afetividade. Em qualquer uma das situações, romper esse vínculo seria uma afronta ao princípio da dignidade humana, em contradição com o artigo 227 da Constituição Federal.

Com esse entendimento, as ações que buscam desfazer a paternidade socioafetiva não têm sido acatadas. Em alguns casos, os tribunais têm até condenado o pai socioafetivo a pagar indenização por danos morais ao filho contra quem a ação foi movida. Isso porque tentar dissolver uma paternidade que ele mesmo reconheceu, mesmo que induzido ao erro, constitui abuso de direito, causando danos psicológicos ao filho.

Entretanto, conforme argumentado por Lôbo (2020) a relação jurídica de filiação pode ser impugnada pelo filho após atingir a maioridade, dentro de um prazo prescricional de quatro anos. No entanto, essa impugnação é válida apenas nos casos em que houve o reconhecimento judicial da afetividade.

Em situações como a adoção e a inseminação artificial heteróloga, onde houve o registro original da filiação, essa possibilidade de impugnação não existe. A obrigação alimentar persiste mesmo nos casos em que o pai afetivo busca a anulação do registro civil feito de forma irregular, o que é comum na adoção à brasileira. Dada a irrevogabilidade do ato voluntário realizado, a filiação socioafetiva estabelecida permanece, com efeitos legais que incluem a esfera alimentar (Silva; Quintinos, 2021).

Os seguintes casos, retirados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), apoiam esse entendimento:

Ato jurídico de reconhecimento da paternidade só pode ser anulado se comprovado ser resultado de vício como coação, erro, dolo, simulação ou fraude. O vínculo biológico não se sobrepõe ao vínculo socioafetivo, se este for comprovado. A consolidação livre e espontânea de uma relação pai e filha não pode ser desfeita por interesses que não os da própria criança. Não é admissível que um indivíduo, de forma consciente, assuma a paternidade de uma criança, permita o estabelecimento de uma relação paterno-filial e, após a consolidação dessa relação, busque rompê-la por razões diversas. A lei também impede tais atitudes, admitindo a anulação apenas para atos que resultaram de vícios. (Decisão do TJRS) 
Julgada improcedente a ação negatória de paternidade, devido ao reconhecimento do vínculo socioafetivo que se consolidou ao longo de 16 anos, é inquestionável a obrigação alimentar do genitor. As necessidades do alimentando, que apresenta sequelas físicas e neurológicas decorrentes de um acidente de trânsito na infância, devem balizar o pensionamento, quando o alimentante não demonstra suas reais possibilidades financeiras. (Decisão do TJRS)
Estando provado o vínculo jurídico de filiação, a alegação de inexistência do liame biológico é irrelevante, pois não há dúvida quanto ao vínculo socioafetivo decorrente da posse do estado de filho, nem que o alimentante era o provedor do núcleo familiar. Os alimentos destinam-se ao atendimento das necessidades presumidas dos filhos, dentro da capacidade econômica do alimentante. (Decisão do TJRS) (Barros, 2018).

Os Magistrados reconhecem amplamente a filiação socioafetiva, conferindo-lhe o poder até mesmo de sobrepor-se ao vínculo biológico e registral, e atribuindo aos pais ou parentes que possuem o vínculo afetivo a obrigação de prestação alimentícia. Isso é evidenciado pelas decisões proferidas na Corte gaúcha:

Ainda que o ato registral não tenha seguido o caminho legal, o acolhimento da criança como se fosse filho biológico configura verdadeira adoção “à brasileira”, irrevogável nos termos do artigo 48 do ECA. Portanto, não cabe aos avós solicitarem a anulação desse ato para evitar a obrigação alimentar imposta a eles. (Decisão do TJRS)
A instituição de obrigação alimentar no âmbito do Direito de Família pressupõe a existência de uma relação jurídica que lhe dê causa. Portanto, reconhecer a paternidade socioafetiva implica em manter essa obrigação, mesmo que haja identidade genética com o autor. (Decisão do TJRS)
Caracterizada a adoção “à brasileira” e a paternidade socioafetiva, impedindo a anulação do registro de nascimento do autor, não é possível fixar pensão alimentícia a ser paga pelo pai biológico. (Decisão do TJRS) (Massmann, 2021).

Destaca-se um acórdão relatado pela Desembargadora Maria Berenice Dias em Agravo de Instrumento, que considerou um resultado de exame de DNA excluindo a relação genética entre pai e filha, mas manteve a obrigação de prestar alimentos até que a inexistência do vínculo afetivo entre eles fosse comprovada em uma posterior ação negatória de paternidade:

“NEGATÓRIA DE PATERNIDADE C/C EXONERAÇÃO DE ALIMENTOS. MANUTENÇÃO DO PENSIONAMENTO. Apesar da falta de vínculo biológico entre as partes, evidenciada por exame de DNA, permanece a obrigação de pagar pensão à filha, enquanto não houver prova da ausência de filiação socioafetiva. As necessidades presumidas e crescentes da criança não podem ser ignoradas, e o alimentante não demonstrou incapacidade de arcar com o valor fixado. PROVIMENTO NEGADO.” (Falaschi, 2023).

Desta forma, o TJRS já vinha consolidando, há bastante tempo, o entendimento de que a obrigação de prestar alimentos ao filho deve ser mantida em situações onde existe uma relação afetiva. Isso é evidenciado por um acórdão da 8ª Câmara Cível, relatado pelo Desembargador Rui Portanova:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE ALIMENTOS. INTEMPESTIVIDADE. REQUISITO DO ART. 526 DO CPC. NEGATIVA DA PATERNIDADE. […] A negativa da paternidade. A obrigação alimentar é fundamentada no parentesco, comprovado pela certidão de nascimento. O agravante contesta ser o pai biológico do menor. Enquanto isso não for comprovado, o dever de sustento não pode ser afastado. Mesmo que essa prova seja apresentada, a paternidade socioafetiva também pode ser motivo para a obrigação alimentar.” (Gomes, 2019).

Como observado, os tribunais têm reconhecido a mudança dos valores atuais no Direito de Família e na sociedade como um todo. Nas decisões judiciais, prevalece o aspecto socioafetivo das relações sobre o vínculo biológico ou registral, em conformidade com a Constituição de 1988, em respeito à dignidade da pessoa humana, à igualdade e a todos os demais princípios relevantes.

Portanto, reafirma-se que quem foi criado é filho e, como tal, tem direito a tudo que um filho tem, inclusive alimentos. E quem criou é pai ou mãe, merecendo toda a retribuição pelo esforço e dedicação. Na velhice, o mínimo a que têm direito é a prestação de alimentos, embora certamente recebam muito mais, pois o filho é filho por escolha, não por imposição da sociedade ou do destino.

Cabe aos legisladores a tarefa de adequar o ordenamento jurídico brasileiro para reconhecer plenamente o estado de filho afetivo, com todos os efeitos jurídicos relacionados, sejam morais ou patrimoniais, como, por exemplo, a obrigação e o direito alimentar.

Conforme Polisei (2018), uma vez estabelecido o vínculo de filho, é impossível desconstituí-lo, uma vez que, uma vez conquistado, não se perde. No entanto, caso haja vício na manifestação de vontade no momento do reconhecimento, existe uma certa probabilidade de que essa paternidade seja desfeita.

Além disso, no julgamento, o Ministro Marco Aurélio Bellizze afirmou que não se pode obrigar o pai que registrou a criança a manter uma relação afetiva ou cumprir deveres advindos dessa relação se não estiver voluntariamente disposto, especialmente se foi induzido a erro substancial e vício de consentimento no momento do registro.

No caso em questão, a criança tinha o autor da ação como seu verdadeiro pai, com quem conviveu e teve uma relação afetuosa desde o nascimento. No entanto, os julgadores entenderam que essa relação afetiva foi interrompida quando a criança tinha cinco anos de idade, e após mais de oito anos sem contato, esse vínculo afetivo não poderia ser restabelecido, levando à desconstituição da paternidade.

A tese adotada pelos julgadores concluiu que, se houve indução ao erro no momento do registro da criança, quando o pai não é biológico, é possível contestar a paternidade solicitando a retificação do registro, conforme previsto nos artigos 1.601 e 1.604 do Código Civil. Para que essa desconstituição ocorra, o pai deve ter rompido qualquer vínculo afetivo com o suposto filho ao descobrir que não é o pai biológico.

Em casos como esse, o Superior Tribunal Federal deveria priorizar o interesse da criança e não desconstituir uma paternidade que não é biológica, mas foi estabelecida ao longo dos anos com amor, afeto e convivência.

O Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) defende que o vínculo de parentesco socioafetivo não deve ser contestado com base na origem biológica, e ambas as paternidades devem ser reconhecidas juridicamente de forma igualitária. 

O julgamento do Recurso Extraordinário 898.060 trouxe a aprovação da multiparentalidade, reconhecendo que a paternidade socioafetiva não impede o reconhecimento da paternidade biológica, permitindo que ambas coexistem com todos os direitos e deveres.

Em resumo, a paternidade socioafetiva prevalece sobre possíveis conflitos, seja por desavenças familiares, separação dos pais ou reconhecimento da multiparentalidade, permitindo que ambas as formas de paternidade coexistem no mesmo registro. Como a família é fundamental para a formação do indivíduo, o bem-estar da criança deve ser priorizado.

Mesmo que não haja um dispositivo legal específico que trate desse instituto, a Constituição Federal de 1988 é suprema e estabelece a igualdade entre os filhos, devendo esse princípio ser respeitado e não contrariado.

CONCLUSÃO

Diante da análise realizada sobre as consequências jurídicas da paternidade socioafetiva e sua evolução no sistema legal brasileiro, é possível concluir que este tema representa um importante avanço na proteção dos direitos fundamentais e na promoção da dignidade humana no âmbito familiar.

Ao longo deste trabalho, foi possível compreender que a paternidade socioafetiva, embora não tenha sido inicialmente reconhecida pelo ordenamento jurídico brasileiro, vem ganhando cada vez mais espaço nos tribunais e na doutrina, sendo reconhecida como uma forma legítima de estabelecer vínculos parentais, independentemente da origem biológica.

Nesse sentido, foi evidenciado que a jurisprudência brasileira tem adotado uma postura progressista ao reconhecer a paternidade socioafetiva como uma realidade jurídica, conferindo-lhe os mesmos direitos e deveres atribuídos à paternidade biológica. 

Tal reconhecimento é fundamental para garantir a proteção dos interesses das crianças e adolescentes, bem como para promover a estabilidade e a segurança nas relações familiares.

Contudo, apesar dos avanços observados, ainda existem desafios a serem superados no sistema legal brasileiro em relação à paternidade socioafetiva. Dentre eles, destacam-se a falta de uma legislação específica que regulamente essa forma de filiação, bem como a necessidade de conscientização e sensibilização dos operadores do direito, da sociedade e das próprias famílias sobre a importância e os efeitos jurídicos da paternidade socioafetiva.

Portanto, faz-se necessário que o Poder Legislativo promova debates e elaboração de leis que reconheçam e assegurem os direitos das famílias constituídas por laços socioafetivos, garantindo assim a plena efetivação dos princípios constitucionais da igualdade, dignidade da pessoa humana e proteção integral à criança e ao adolescente.

Diante do exposto, é fundamental que o sistema legal brasileiro esteja em constante evolução e adaptação às transformações sociais e familiares, buscando sempre promover a justiça, a igualdade e o respeito aos direitos fundamentais de todos os cidadãos, independentemente de sua origem ou forma de constituição familiar.


LISTA DE SIGLAS

CC – Código Civil
CF – Constituição Federal
CNJ – Conselho Nacional de Justiça
CPC – Código Processual Civil
ECA – Estatuto da Criança
IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família
STJ – Superior Tribunal de Justiça
TJRS – Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

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