THE VALIDITY OF THE EARLY DIRECTIVES OF WILL AND FRONT THE LACK OF LEGAL PREDICTION
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7509812
Sabrina Vieira1
Renato Magri2
RESUMO
Percebe-se que o avanço da tecnologia trouxe inúmeros benefícios para a sociedade, entretanto, questiona-se a sua validade quanto ao prolongamento da vida de pacientes, em especial aqueles em estado de inconsciência, os quais sem perspectivas de cura, são submetidos a tratamentos que causam sofrimento e que muitas vezes não apresentam eficácia. Nesse aspecto, discute-se sobre a possibilidade de permitir ao paciente que decida previamente, por meio das diretivas antecipadas de vontade, especialmente do “testamento vital”, a quais tratamentos deseja ser submetido, como forma de preservar sua dignidade e direito de autonomia. Muitas vezes, o médico pode ter receio de responder a um processo disciplinar ao acatar as diretivas antecipadas de vontade diante da interferência contrária dos familiares do paciente, pois no Brasil não há previsão legal, apenas regulamentação pelo Conselho Federal de Medicina através da Resolução n. 1.995 de 2012. O objetivo do presente estudo foi verificar a validade dessas diretivas no nosso ordenamento jurídico, para tanto buscou-se analisar os requisitos necessários para que sejam válidas.
Palavras-chave: dignidade; diretivas antecipadas de vontade; Resolução 1.995/2012 do CFM; ausência de previsão legal.
Abstract
It is noticed that the advancement of technology has brought countless benefits to society, however, its validity is questioned regarding the extension of the lives of patients, especially those in a state of unconsciousness, who, without prospects of cure, are submitted to treatments that cause suffering and that are often ineffective. In this regard, it is discussed the possibility of allowing the patient to decide in advance, through advance directives of will, especially the “living will”, which treatments he wants to undergo, as a way of preserving his dignity and right to autonomy. Often, the doctor may be afraid to respond to a disciplinary process by complying with advance directives in the face of contrary interference from the patient’s family members, since in Brazil there is no legal provision, only regulation by the Federal Council of Medicine through Resolution n. 1995 of 2012. The objective of the present study was to verify the validity of these directives in our legal system, therefore, we sought to analyze the necessary requirements for them to be valid.
Keywords: dignity; early will directives; CFM Resolution 1.995/2012; absence of legal provision.
1. INTRODUÇÃO
O presente estudo visou abordar as diretivas antecipadas de vontade e a sua validade no ordenamento jurídico brasileiro, diante da ausência de previsão legal e do receio dos médicos de seguirem os desejos do paciente quando há interferência contrária dos familiares. O objetivo é verificar a validade dessas diretivas previstas na Resolução n. 1.995 do Conselho Federal de Medicina, para tanto buscou-se analisar os requisitos necessários para que sejam válidas.
Salienta-se que não há a intenção de aprofundar os conceitos de “vida”, “dignidade” e “viver dignamente” em virtude de que, a definição desses valores é algo subjetivo, individual e depende de inúmeros fatores, como por exemplo, religião, cultura, o que demandaria um longo estudo.
A prioridade é demonstrar a questão do direito de autonomia do paciente como forma de preservar a sua dignidade, tendo em vista que, um dos argumentos que fundamentam a escolha deste quanto aos atos médicos a que deseja ser submetido consiste na garantia desse princípio, como um direito decorrente de sua liberdade, ou seja, uma escolha baseada em pensamentos e ideologias próprios.
2. ASPECTOS METODOLÓGICOS
Quanto ao modelo de pesquisa, buscou-se efetuar uma pesquisa de caráter qualitativo. A respeito da investigação qualitativa, Minayo e Sanches (1993) afirmam que esta trabalha com valores, crenças, representações, hábitos, atitudes e opiniões. Assim como adequa-se a aprofundar a complexidade de fenômenos, fatos e processos particulares e específicos de grupos mais ou menos delimitados em extensão e capazes de serem abrangidos intensamente.
Com a finalidade de alcançar os objetivos da presente pesquisa foi utilizado o método dedutivo, com abordagem qualitativa. A técnica de pesquisa utilizada foi a de pesquisa bibliográfica por meio de publicações como artigos científicos, livros, páginas de websites. A revisão da literatura buscou oferecer as bases teóricas para consecução do estudo, permitindo a compreensão de temas fundamentais para a efetivação da pesquisa.
Por fim, cabe mencionar que o estudo se justifica em razão da necessidade de se averiguar se as últimas vontades das pessoas estão sendo respeitadas, consequentemente, se os princípios norteadores do Direito brasileiro estão sendo respeitados.
3. DESENVOLVIMENTO
Com o progresso da medicina, muito se discute acerca de temas que envolvam a objeção de pacientes em realizar determinados tratamentos médicos, mesmo quando há risco de morte. Assim, questiona-se sobre a possibilidade de a pessoa recusar tratamento que prolongue a sua sobrevivência, mas que seja por esta considerado incompatível com a sua dignidade. Um instrumento importante para consolidação dos direitos de uma pessoa incapacitada e que visa preservar a dignidade desta no fim da vida tem sido a adoção das diretivas antecipadas de vontade.
Inicialmente, em síntese, cabe mencionar a importância do princípio da dignidade humana no nosso ordenamento jurídico. A Constituição Federal de 1988 traz este princípio, em art. 1º, inciso III, como um dos fundamentais do Estado democrático de direito da República Federativa do Brasil.
George Marmelstein (2019) expõe que o homem, pelo simples fato de sua condição humana, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes e pelo Estado, para uma vida digna em sociedade. Essa é a ideia básica de dignidade da pessoa humana. É base axiológica dos direitos fundamentais. De acordo com Sarlet (2012) dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e irrenunciável do ser humano que o faz merecedor de respeito e proteção.
Nenhuma pessoa pode invocar direitos fundamentais para justificar a violação da dignidade de outros seres humanos, é o que explica Marmelstein (2019). Segundo o autor a dignidade da pessoa humana é um elemento intrínseco ao conceito de direitos fundamentais. A observância do princípio da dignidade humana não seria meramente facultativa, mas tão obrigatória quanto a observância das regras/leis. E as regras/leis somente seriam válidas se estivessem de acordo com as diretrizes traçadas nos princípios, entre eles o da dignidade da pessoa humana, reforçando uma ideia atualmente aceita de que os princípios possuem uma função de fundamentação e de legitimação do ordenamento jurídico.
Do exposto, resta evidente a relação entre direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana. Esta última fundamenta a interpretação, aplicação e até mesmo as restrições de determinados direitos, visando o respeito ao indivíduo. Vivemos em uma sociedade em que, o direito à vida que se busca não se refere somente à existência física, e sim, a vida com dignidade (MAGALHÃES, 2000).
De acordo com Sá (2001) a vida não deve ser considerada um bem supremo e absoluto, não pode ser vista como mais importante do que a liberdade e a dignidade, pois, trata-se de um conceito aberto, que deve levar em conta os diferentes valores de cada indivíduo, não podendo ser vista apenas sob o ponto de vista biológico. Da mesma forma que almejamos um viver digno, é importante que tenhamos um fim de vida digno. Assim, o que se pretende é demonstrar a relevância das diretivas antecipadas de vontade, baseando-se no direito de autodeterminação do paciente, ou seja, na sua capacidade de determinar, a qualquer tempo, a quais tratamentos médicos deseja submeter-se ou recusar, tanto em situações de males inofensivos, quanto em momentos terminais.
A concretização da autonomia da pessoa, no campo da relação médico-paciente se materializa no consentimento informado. A acepção do consentimento na atividade médica vem evoluindo historicamente, recebendo tratamento diversificado ao longo do tempo.
Um importante precedente da utilização do consentimento informado para suspensão de um tratamento, com fundamento no direito de autodeterminação do paciente, foi o caso Quinlan, decidido pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1976.
Karen Ann Quinlan havia consumido substâncias químicas que a levaram a perder a consciência e parar de respirar por cerca de quinze minutos. Socorrida e levada ao hospital, entrou em um estado vegetativo permanente. Após alguns meses mantida com o apoio de um respirador artificial, e sem demonstrar qualquer sinal de melhora, os pais de Karen entenderam por bem remover o equipamento. Diante da negativa da equipe médica do hospital, acionaram a justiça e ganharam uma longa batalha judicial, que terminou na Suprema Corte com a decisão em seu favor. Após removido o respirador, Karen viveu em estado vegetativo por outros nove anos, até sua morte de pneumonia em 1985. A Suprema Corte entendeu que os pais de Karen haviam suficientemente demonstrado que o desejo da jovem, naquela situação, seria de suspensão de meios artificiais de manutenção da vida uma vez que não existia perspectiva de melhora de sua situação para além de um estado vegetativo […] (HARTMANN, 2010, p. 269).
O direito do paciente de poder optar pelo tratamento é extremamente relevante nesta questão, pois, a liberdade é também um direito fundamental do ser humano.
Assim, cabe mencionar o conceito de liberdade trazido por Hume (1999, p. 100):
A liberdade é um poder de agir ou não agir segundo as determinações de vontade, isto é, se escolhermos permanecer em repouso, podemos; mas se, escolhermos mover-nos, também podemos. Ora, reconhece-se universalmente que esta liberdade incondicional encontra-se em todo homem que esteja prisioneiro ou acorrentado.
As diretivas antecipadas de vontade externalizam esse direito de liberdade da pessoa no fim de sua vida, expresso no direito à autonomia e no consentimento prévio e esclarecido acerca dos tratamentos/procedimentos que está disposta a ser submetida.
As diretivas costumam ser divididas em “testamento vital” e mandato duradouro.
A temática das diretivas antecipadas foi introduzida no Brasil pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), na Resolução n. 1.995/2012, contudo, foi feita uma interpretação bastante restritiva acerca do instituto. O CFM objetivou regulamentar o living will, do qual advém a designação “testamento vital”, que se refere às disposições sobre os tratamentos futuros aos quais a pessoa deseja se submeter caso perca a capacidade de tomar decisões. O CFM entendeu que a nomenclatura seria inadequada ao instituto. Assim, optou por utilizar o gênero documental – diretivas antecipadas – para se referir à espécie, o que acabou gerando uma falsa ideia de que as diretrizes só se aplicam nos casos de terminalidade (CARVALHO et al., 2020, p.139).
Considerando a inexistência de regulamentação sobre diretivas antecipadas de vontade do paciente, para fins de esclarecimentos trazemos o conceito previsto na Resolução n. 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina, que assim dispõe em seu artigo 1º: ”conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”.
Contudo, não há uma obrigatoriedade, por força de lei, para que o médico siga o que consta nas diretivas, pois o art. 2º da Resolução menciona que estas serão apenas levadas em consideração.
Em que pese o art. 2º, § 3º da Resolução n. 1.995 prever que “as diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares”, muitos médicos ainda têm receio de acatar as diretivas antecipadas de vontade do paciente frente a ausência de previsão legal e da interferência de familiares que demonstram contrariedade as vontades manifestadas anteriormente pelo paciente.
As diretivas se referem ao consentimento ou o dissentimento para a realização de determinados atos ou intervenções. A prestação de cuidados de saúde deve ser entendida como uma relação obrigacional complexa, na qual tem incidência e realização o direito à proteção da saúde, o próprio direito à vida, o direito à integridade física e outros direitos fundamentais. Entre eles podem ser citados: o direito à integridade moral, o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, o direito à proteção de dados pessoais e os correlativos deveres e obrigações. As diretivas antecipadas de vontade devem ser entendidas como manifestação e exercício do direito (MONGE, 2022, p. 51).
As diretivas antecipadas refletem a ideia de que a pessoa é capaz de fazer uma reflexão sobre si e de fazer escolhas racionais, de se autodeterminar e, consequentemente, de avaliar e valorar moralmente o seu comportamento, de se responsabilizar por ele e de assumir compromissos e vinculações (NOVAIS, 2016 p. 102-103).
Com a finalidade de demonstrar a validade das diretivas antecipadas de vontade no nosso ordenamento jurídico, há de se fazer uma breve análise dos requisitos formais.
As diretivas antecipadas podem ser realizadas, conforme expõem Carvalho et al. (2020, p. 139) “tanto oralmente como por escrito, e não há formato específico para sua execução. Recomenda-se, no entanto, que sejam feitas por escrito e até trazidas aos prontuários, para maior garantia de sua aplicação nos momentos em que se fizerem necessárias”. Os autores afirmam que as diretivas podem ser modificadas ou revogadas a qualquer momento em que a pessoa recobre a capacidade, pois funcionam como qualquer outra decisão na sua relação com os profissionais de saúde. Para ser válida uma diretiva deve se conformar aos requisitos para o consentimento informado válido (CARVALHO et al., 2020, p. 140).
Diante do exposto, buscou-se efetuar a análise de conceitos importantes referentes ao assunto, a iniciar-se pela “autonomia de vontade”, priorizando a sua aplicação nas situações que envolvam a relação médico-paciente.
Etimologicamente, autonomia significa o poder de modelar por si, de reger por leis próprias – as regras da própria conduta. O vocábulo autonomia vem do grego autos+nomos e significa independência, autodeterminação; faculdade de determinar as próprias normas de conduta, sem imposições de outrem (CABRAL, 2004, p. 84).
Por sua vez, observa Betti (2008, p.89) que:
A “vontade”, como fato psicológico meramente interno, é qualquer coisa em si mesma incompreensível e incontrolável, e pertence, unicamente, ao foro íntimo da consciência individual. Só na medida em que se torna reconhecível no ambiente social, quer por declarações, quer por comportamentos, ela passa a ser um fato social, susceptível de interpretação e de valoração por parte dos consorciados. Somente declarações ou comportamentos são entidades socialmente reconhecíveis e, portanto, capazes de poder constituir objeto de interpretação, ou instrumento de autonomia privada.
Nesse sentido, Naves (2003, p. 82) esclarece que a autonomia da vontade tem uma carga individualista e liberal. Para o autor, o conteúdo da consciência interna de cada ser não seria o objeto de indagação do direito, “ao direito, pois resta analisar a manifestação concreta da vontade, segundo critérios objetivos de boa – fé, e não suas causas e características intrínsecas”.
Cabral (2004, p.111) diferencia a autonomia de vontade da autonomia privada afirmando que a primeira relaciona-se com a liberdade de autodeterminação, ou seja, manifestação da vontade livre, enquanto a segunda se refere ao poder de auto-regulamentação do indivíduo, ou em outros termos, de estabelecer normas no interesse próprio.
Assim sendo, ao tratarmos da autonomia como fundamento das diretivas de vontade antecipada, deve-se referir à autonomia privada, em decorrência de sua maior aceitação pelos doutrinadores que abordam o tema, pois, a declaração efetuada é uma manifestação de vontade destinada a produzir efeitos, que devem ser reconhecidos pelo Direito.
Historicamente, a autonomia privada está relacionada com o direito patrimonial, sendo aplicada na liberdade de negociar, de escolher o contratante, de determinar o conteúdo do contrato, de escolher, quando puder, a forma do ato (BORGES, 2007, p. 50).
Amaral (2018, p. 131) aduz que a autonomia da vontade tem uma conotação subjetiva e psicológica, enquanto a autonomia privada exprime o poder da vontade no direito, de modo objetivo, concreto e real.
Assim, com base no exposto, define-se a autonomia privada como o poder de regulamentação conferido pelo ordenamento no intuito de dispor acerca dos próprios interesses.
No que concerne a relação médico-paciente, o princípio da autonomia privada aplicado às diretrizes antecipadas e em especial o testamento vital, tem trazido grandes modificações, pois possibilitou que a pessoa opte pelo tratamento médico que entenda adequado, permitindo-lhe exercer o livre-arbítrio.
De acordo com Maria Helena Diniz (2008, p. 636), a autonomia do paciente se manifesta de forma concreta através do consentimento livre e esclarecido enquanto ato de decisão voluntária, baseado numa informação médica, revelada de modo claro, cabendo ao médico esclarecer o paciente sobre a enfermidade e sua evolução; os efeitos colaterais do tratamento; a terapia mais adequada a ser seguida.
A denominação consentimento informado vem sendo substituída por consentimento livre e esclarecido, pois a simples informação sobre o tratamento passada ao paciente é insuficiente. É necessário que ele entenda o que está sendo dito para que possa decidir.
Além disso, também oportuno esclarecer a forma pela qual o consentimento pode se apresentar. De acordo com Siqueira (2008, p. 386) o consentimento consiste em “um processo de diálogo a ser desenvolvido entre o médico e o paciente, ao longo do tratamento ou da intervenção, culminando em sucessivos momentos de manifestação da vontade do enfermo ou de seu representante legal”.
O consentimento informado não se refere a prática de um ato formal isolado. Não se trata, tampouco, do preenchimento e da subscrição pelo paciente de formulários ou termos padronizados de consentimento, facilmente encontrados em obras médicas, jurídicas e na internet (SIQUEIRA, 2008, p. 385-386).
Nesse sentido, Hartmann (2010, p. 271) aduz que, “o direito de escolher a qual tratamento deseja submeter-se é reservado ao paciente em qualquer situação, não apenas em fase terminal e em oposição a intervenções que somente podem prorrogar a vida”.
Corroborando com esse entendimento Borges (2001, p. 298) afirma que:
O direito do paciente de não se submeter ao tratamento ou de interrompê-lo é consequência da garantia constitucional de sua liberdade, de sua liberdade de consciência (como nos casos de Testemunhas de Jeová), da inviolabilidade de sua vida privada e intimidade e, além disso, da dignidade da pessoa, erigida a fundamento da República Federativa do Brasil, no art. 1º da Constituição Federal.
Almeida Neto et al (2011 p.28- 29) destacam que o consentimento será eficaz, excluindo, portanto, a tipicidade da conduta praticada pelo médico, se houver manifestação de vontade do paciente, que pode ser expressa ou tácita, escrita ou não, desde que suficientemente clara e capaz de fazer com que o médico reconheça sua existência e seus limites; se for livre e informado; se o bem jurídico sobre o qual se consente for disponível; além disso, o paciente deve ter capacidade para consentir e deve haver correspondência entre o que foi consentido e a atuação médica.
Por fim, chamamos a atenção para a relevância do tema tratado, principalmente quando o paciente for se utilizar do testamento vital, pois se este não for devidamente informado quanto aos aspectos que cercam seu tratamento, não terá condições de exercer sua autodeterminação e consentir ou não quanto à prática de alguma intervenção médica a ser realizada.
Outro requisito a ser analisado quanto a validade das diretivas de vontade é em relação à capacidade da pessoa. A capacidade da pessoa é elemento essencial na sua autodeterminação e quanto à validade de seu consentimento. Assim, cabe diferenciar capacidade de fato e de direito e mencionar a incapacidade.
Capacidade de direito é a aptidão para alguém ser titular de direitos e deveres, ser sujeito de relações jurídicas. A capacidade de fato é a aptidão para a prática dos atos da vida civil e para o exercício dos direitos, como efeito imediato da autonomia que as pessoas têm. Enquanto a capacidade de direito decorre apenas do nascimento com vida, para as pessoas naturais, a capacidade de fato depende da capacidade natural de entendimento, inteligência e vontade própria da pessoa natural. E como tais requisitos nem sempre existem, ou existem com diversidade de grau, a lei nega ou limita tal capacidade (AMARAL, 2018).
No que tange à incapacidade, Diniz (2010, p. 154) ensina que essa “é a restrição legal ao exercício dos atos da vida civil, imposta pela lei somente aos que, excepcionalmente, necessitam de proteção, pois a capacidade é a regra”.
A incapacidade é tratada no Código Civil brasileiro, no 3º e 4º artigos, fazendo-se a diferenciação em absolutamente e relativamente incapazes, conforme o grau de incapacidade, sendo que, no primeiro, estão elencados aqueles que são totalmente incapazes para a prática dos atos jurídicos, e, no segundo, aqueles em que a capacitada se limita a determinados atos.
São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: os menores de 16 anos (CC, art. 3º). A incapacidade absoluta impede a prática dos atos da vida civil. Embora com capacidade de direito, o agente não pode exercer sua vontade para produzir efeitos jurídicos. O direito afasta-o da atividade jurídica por acreditá-lo sem o necessário discernimento, por falta da idade necessária. Cabe ressaltar que velhice, surdez, mudez, cegueira não são causas de incapacidade, salvo se impeditivas da manifestação de vontade do agente (AMARAL, 2018, p. 335).
Do exposto extrai-se que os pacientes capazes de decidir utilizam-se do consentimento informado como uma forma de reconhecimento e respeito a sua autonomia no processo de decisão sobre intervenções médicas em seus corpos. Disso decorre a possibilidade de elaboração de diretrizes para permitir a recusa a tratamento médico antecipadamente, prevenindo-se de um provável caso de incapacidade futura.
Pessini (2001, p. 256) menciona que na esperança de agir de acordo com a vontade do paciente, tornou-se comum em muitos dos países desenvolvidos, legislações ou propostas de leis que se propõem a solicitar às pessoas, em caso de hospitalização, ou mesmo em pleno gozo de saúde, a expressão de suas próprias “vontades” em relação à fase final da vida, transmitindo-as antecipadamente aos médicos e familiares, mediante a elaboração de um documento escrito e/ou a nomeação de um tutor.
Conforme visto anteriormente, as diretivas antecipadas, tradicionalmente, têm sido entendidas como o gênero do qual são espécies o testamento vital e o mandato duradouro. Dadalto (2010, p. 64) esclarece que “ambos os documentos serão utilizados quando o paciente não puder, livre e conscientemente, se expressar – ainda que por uma situação transitória, ou seja, as diretivas antecipadas, como gênero, não se referem exclusivamente a situações de terminalidade”.
Após essas ponderações, objetivou-se efetuar uma análise mais detalhada dos temas centrais do presente estudo.
TESTAMENTO VITAL
Há em torno da expressão “testamento vital” uma complexa definição conceitual. Existe um largo rol de nomenclatura, decorrente da tradução de “living will”, denominação desse instituto que surgiu no EUA. Desta forma, buscou-se trazer as considerações de Luciana Dadalto, que, ao discorrer sobre o tema destaca a necessidade de esclarecer a expressão “testamento vital”, consoante ela afirma:
O estudo detalhado deste instituto provoca o questionamento da tradução literal de “living will”, pois o dicionário Oxford apresenta como traduções de will três substantivos, quais sejam, vontade, desejo e testamento. Por outro lado, a tradução de living pode ser o substantivo sustento, o adjetivo vivo ou o verbo vivendo. Assim, é possível perquirir se a tradução literal mais adequada seria “desejos de vida”, ou ainda “disposição de vontade de vida”, expressão que, também designa testamento – vez que este nada mais é do que uma disposição de vontade. Posto isso, torna-se questionável se, originalmente, este instituto foi realmente equiparado a um testamento ou se tal confusão foi provocada por um erro de tradução para outro idioma, que foi perpetuado (DADALTO, 2010, p. 2).
Assim, com base nestes argumentos, alguns autores nomeiam esse instituto como “declaração prévia de vontade do paciente terminal”, por meio da verificação de que o documento comumente chamado de “testamento vital” é, na verdade, uma declaração de vontade que será utilizada pelo paciente terminal, mas que deve ser manifestada previamente à situação de terminalidade (DADALTO, 2010, p. 5). Sendo assim, faz-se necessário esclarecer que nesta pesquisa optou-se pela denominação “testamento vital” em razão deste documento ser assim conhecido no direito brasileiro.
Feitas as considerações acerca da nomenclatura, passamos a análise desta modalidade de declaração de vontade.
Atualmente essa modalidade de diretriz já vem sendo utilizada principalmente nos Estados Unidos e em países europeus, contudo, no Brasil não há regulamentação sobre o testamento vital, mas discute-se a sua validade, diante da autonomia da pessoa e do princípio da dignidade.
O termo living will surgiu nos Estados Unidos, com o Natural Death Act, documento legal promulgado em 1976 pelo Estado da Califórnia. Esclarece Pessini (2001, p. 258) que o Natural Death Act “é uma lei que reconhece a qualquer adulto o direito de dispor antecipadamente sobre a recusa de terapias de suporte vital, quando se encontrar no extremo da condição existencial”.
Pessini (p. 259) destaca, ainda, que em 1989, a Conferência Episcopal Espanhola difundiu o testamento vital, sugerindo aos pacientes que se utilizassem de um documento no qual havia algumas especificações, como a recusa de meios desproporcionais em situações críticas irrecuperáveis, o pedido de cuidados paliativos, entre outros. Esse documento visava evitar a aplicação da eutanásia, a qual trata-se da antecipação da morte, e ao mesmo tempo evitar a distanásia, ou seja, aplicação de tratamentos sem eficácia, dolorosos e fúteis.
Conforme aduz Pessini (2001, p. 256-257) cabe esclarecer que no testamento vital tolera-se apenas o conceito de ‘morte natural’, no sentido de “vontade de morrer sem recorrer a qualquer meio, proporcionado ou não, de sustento vital”, pois a recusa a intervenção médica não implica necessariamente na vontade de eutanásia. Sendo assim, não pode haver um testamento em vida solicitando eutanásia, quando o paciente se encontra em situação degradante e irreversível, obrigando o médico a executá-la.
Luciana Dadalto (2010, p. 132), afirmar que “apenas disposições que digam respeito à recusa de tratamentos fúteis serão válidas, como por exemplo, não intubação, não realização de traqueostomia, suspensão de hemodiálise, ordem de não reanimação, entre outros”. No que concerne à futilidade, a autora aduz que se deve ter em conta a inexistência de benefícios que este tratamento trará ao paciente. Conclui afirmando que, por esta razão, disposições acerca da suspensão de hidratação e alimentação artificial também não serão válidas no ordenamento jurídico brasileiro.
MANDATO DURADOURO
O paciente que não tem mais a capacidade de decisão, pode se utilizar do mandato duradouro, ou seja, escolher alguém para representá-lo em questões relativas à saúde, preservando as suas preferências, objetivos e valores de vida. É o que Dadalto (2010, p. 63-64) chama de “procurador de saúde”, em outras palavras, o responsável por decidir em nome do paciente quando este não o puder fazer.
Segundo ensina Dadalto (2010, p. 66-67):
O mandato duradouro é um documento no qual o paciente nomeia um ou mais “procuradores” que deverão ser consultados pelos médicos, em caso de incapacidade do paciente – terminal ou não, quando estes tiverem que tomar alguma decisão sobre tratamento ou não tratamento. O procurador de saúde decidirá tendo como base a vontade do paciente.
Esse documento poderá ser utilizado em situações em que o paciente incapaz encontra-se totalmente desprovido de representante, ou a pessoa que o acompanha não reúne condições para a tomada de decisões frente ao processo clínico, ou ainda, quando há conflito entre os familiares sobre a conduta a ser tomada (MELO, 2010, p. 20).
O usuário tem ampla liberdade para indicar pessoa de sua confiança e que acredita que conheça bem seus valores para poder decidir como se fosse ele próprio. Esse substituto não necessita ser o representante legal da pessoa, nem seu curador. No momento da nomeação do substituto, o usuário deve ser capaz para realizar essa indicação. Quando se tornar incapaz, o substituto escolhido decidirá em seu lugar, sempre procurando agir segundo os valores do incapaz e conforme ele decidiria se não estivesse incapacitado. Ainda, para se evitar futuros questionamentos na Justiça e eventuais conflitos de interesse, recomenda-se que o usuário não indique para essa função pessoa beneficiária de seu testamento (FREITAS, 2020, p. 140).
Assim sendo, retira-se do exposto que as diretivas antecipadas de vontade visam o respeito à dignidade do indivíduo e auxiliam os profissionais de saúde diante de decisões difíceis, por isso a prática de elaboração de diretivas deve ser estimulada.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As diretivas antecipadas de vontade permitem perpetuar a vontade de pessoas capazes para consentir que poderão se tornar incapazes. Essas informações ajudam as famílias e os profissionais de saúde a tomar decisões em conformidade com os valores do paciente quando este não puder mais se manifestar.
As diretivas antecipadas de vontade se referem ao não prolongamento desnecessário da vida, por meios artificias. Todavia, ressaltamos a importância da regulamentação de diretivas, inclusive para outras hipóteses envolvendo incapacidade, mas que não referentes a terminalidade da vida de alguém.
Conforme visto, independentemente de previsão legal, ou do posicionamento contrário de seus familiares, as diretivas devem ser adotadas, como uma garantia do paciente de que o profissional da saúde irá respeitar sua vontade e também para eximir o profissional de responsabilidade quando o paciente se recusa a submeter-se a determinados tipos de tratamento, assumindo o próprio indivíduo as consequências decorrentes do seu ato.
Contudo, necessária a regulamentação por lei para que haja uma padronização no procedimento e para que o tema seja mais bem discutido e ainda para que o assunto “fim da vida” não se torne um tabu.
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1Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Fundação Universidade Regional de Blumenau – FURB, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI e graduada em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL. Membro do Grupo de Pesquisa “Direitos Fundamentais, Cidadania & Justiça” certificado junto ao CNPq pela FURB. Servidora concursada do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5914235711659240.
2Doutorando em Ciências Sociais na Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, mestre em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; especialista em Finanças, Controladoria e Auditoria pela Fundação Getúlio Vargas – FGV; graduado em Ciências Contábeis pela Universidade de São Paulo – USP, graduado em Administração pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL e tecnólogo em Gestão Financeira pela UNISUL. Administrador da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6911546992579753