REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11175048
Isabela França Lopes1;
Adriano Menezes Silva2;
Jacson da Silva Sousa3.
RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar de forma abrangente a relação entre a responsabilidade civil do médico e a violência obstétrica. A violência obstétrica é uma questão global que afeta a dignidade e os direitos das mulheres durante o parto. Envolve práticas médicas que violam o consentimento informado, incluindo abuso físico, verbal, negligência e intervenções médicas desnecessárias. Nesse contexto, surge a necessidade de examinar a responsabilidade dos médicos diante dessas condutas, considerando o impacto físico, emocional e psicológico nas pacientes e seus bebês. Neste sentido, este estudo baseia-se em uma revisão bibliográfica abrangente de artigos científicos, legislação, jurisprudência e documentos oficiais relacionados à responsabilidade civil do médico na violência obstétrica. Além disso, serão analisados casos judiciais emblemáticos disponibilizados na internet.Os resultados indicam que a responsabilidade civil do médico na violência obstétrica é complexa e multifacetada. A falta de padronização nos protocolos de cuidados obstétricos e a ausência de legislação específica em muitos países dificultam a responsabilização dos profissionais de saúde. Além disso, as barreiras culturais, sociais e econômicas podem impedir que as vítimas busquem reparação pelos danos sofridos durante o parto.
Palavras-chave: responsabilidade civil; médico; violência obstétrica.
ABSTRACT
This article aims to comprehensively analyze the relationship between physician’s civil liability and obstetric violence. Obstetric violence is a global issue that affects women’s dignity and rights during childbirth. It involves medical practices that violate informed consent, including physical and verbal abuse, negligence, and unnecessary medical interventions. In this context, there is a need to examine physicians’ liability in light of these behaviors, considering the physical, emotional, and psychological impact on patients and their babies. Accordingly, this study is based on a comprehensive literature review of scientific articles, legislation, case law, and official documents related to physicians’ civil liability in obstetric violence. Additionally, emblematic judicial cases available online will be analyzed. The results indicate that physicians’ civil liability in obstetric violence is complex and multifaceted. The lack of standardization in obstetric care protocols and the absence of specific legislation in many countries hinder the accountability of healthcare professionals. Furthermore, cultural, social, and economic barriers may prevent victims from seeking redress for the harms suffered during childbirth.
Keywords: civil liability; physician; obstetric violence
1.INTRODUÇÃO
O primeiro país a definir legalmente a violência obstétrica e a tipificá-la como delito foi a Venezuela ao sancionar, em 2007, a Ley organica sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violência (Rezende, 2015).
Esta legislação especifica a violência obstétrica como o não atendimento adequado às emergências obstétricas, a imposição à mulher de dar à luz deitada com as pernas elevadas, mesmo quando há meios disponíveis para realizar o parto vertical, se essa for a preferência da mulher (Rezende, 2015).
Além disso, a lei aborda o impedimento do contato precoce entre mãe e filho sem uma justificativa médica, negando a oportunidade de amamentar ou segurar o filho imediatamente após o nascimento, bem como a alteração do processo natural do parto de baixo risco por meio de técnicas de aceleração, sem o consentimento voluntário, expresso e informado da mulher (Rezende, 2015).
Assim, nesse contexto sobre a responsabilidade civil, no Brasil conforme os estudos de Tartuce (2015), a responsabilidade civil surge quando há o descumprimento de obrigações, seja pela violação de uma regra estabelecida em um contrato ou pela negligência de uma pessoa em seguir um preceito normativo que regula a vida.
A partir disso, o problema a ser abordado neste trabalho é: Como a responsabilidade civil do médico se aplica nos casos de violência obstétrica, à luz da Medicina Legal e de que forma a jurisprudência brasileira borda essa questão no contexto do dano moral?
Para responder o presente problema de pesquisa definiu-se como objetivo geral: Analisar de forma abrangente a relação entre a responsabilidade civil do médico e a violência obstétrica.
Já os objetivos específicos são: Apresentar os princípios da medicina legal aplicáveis à violência obstétrica, incluindo a análise das normas e procedimentos médico-legais relevantes para a documentação e investigação de casos de violência obstétrica. Discutir as evidências médicas, instruções em casos de violência obstétrica. Analisar o conceito de dano moral e sua aplicação especificamente nos casos de violência obstétrica e Abordar como a legislação e a legislação têm tratados os danos morais decorrentes de abusos e negligências médicas durante o parto e pós-parto.
Dessa forma, considerou-se as seguintes hipóteses: A violência obstétrica é um fenômeno complexo e multifacetado, cujas causas podem estar relacionadas a fatores individuais, culturais e sistêmicos, e sua discussão aprofundada pode lançar luz sobre estratégias eficazes de prevenção. A análise da responsabilidade civil médica em casos de violência obstétrica pode revelar lacunas ou ambiguidades nas leis existentes, implicando a necessidade de reformas legais para melhor proteger os direitos dos pacientes. A medicina legal desempenha um papel fundamental na documentação e análise de evidências em casos de violência obstétrica, e sua aplicação eficaz pode fortalecer os argumentos das partes envolvidas em ações judiciais.
Mediante o que se expõe, entende-se que a questão da violência obstétrica é de extrema importância no âmbito da assistência à saúde materna e infantil. Esse fenômeno diz respeito a práticas inadequadas, abusivas ou desrespeitosas que ocorrem durante o pré-natal, o parto e o pós-parto, muitas vezes perpetradas por profissionais de saúde, incluindo médicos, enfermeiros e obstetras. Tais práticas variam desde intervenções médicas desnecessárias até maus-tratos físicos e psicológicos, impactando não apenas a saúde física, mas também o bem-estar emocional e psicológico das mulheres (Magalhães, 2020).
2. ASPECTOS GERAIS DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
Em termos gerais, o conceito de violência conforme definido pela Organização Mundial da Saúde (2002) está relacionado à conduta praticada pelo agente, independentemente do resultado. Dessa forma, as condutas não intencionais não são consideradas como fazendo parte desse conceito. Entretanto, quando o uso da força está associado ao poder, a definição de violência é expandida, abrangendo condutas culposas realizadas com imprudência, negligência ou imperícia, além de condutas omissivas, abusos sexuais e psicológicos.
A partir disso, Magnone (2010) destaca que a violência obstétrica se configura como uma manifestação de violência estrutural de gênero, pois restringe os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, privando-as da autonomia e plenitude no desfrute desses direitos.
O autor define essa forma de violência como qualquer conduta, ação ou omissão por parte dos profissionais de saúde, tanto no setor público quanto no privado, que afete direta ou indiretamente o corpo e os processos reprodutivos das mulheres. Essa violência se expressa por meio de um tratamento desumanizado, abuso de medicalização e patologização dos processos naturais (Magnone, 2010).
De acordo com o jornal edição do Brasil (2022) dados do Relatório das Nações Unidas revelam que uma em cada quatro mulheres já sofreram violência obstétrica no Brasil. Segundo a análise, nos últimos 20 anos, profissionais de saúde ampliaram o uso de intervenções que antes serviam apenas para evitar riscos ou tratar complicações no parto.
De acordo com Vieira, Freire e Leitão (2022) o assunto ganhou considerável destaque quando o médico anestesista Giovanni Quintela Bezerra foi gravado cometendo estupro contra uma paciente sedada durante uma cesariana. Após a ampla repercussão do caso, outras mulheres solicitaram investigações sobre seus partos para determinar se foram vítimas de abusos por parte desse profissional, que tinha o hábito de administrar doses elevadas de sedativos para deixá-las inconscientes.
2.1 Tipos de violência obstétrica
Primeiramente, é importante destacar os diversos tipos de violência obstétrica, que incluem: insultos, depreciações, comentários humilhantes relacionados à cor da pele, raça, etnia, religião, orientação sexual, idade, status socioeconômico, número de filhos, entre outros aspectos; realização de episiotomia (corte no períneo durante o parto vaginal) sem necessidade, sem anestesia ou sem consentimento da mulher; administração de ocitocina (oxitocina sintética) sem justificativa; aplicação da manobra de Kristeller (pressão abdominal para facilitar a saída do bebê); realização de lavagem intestinal durante o trabalho de parto; depilação dos pelos pubianos sem consentimento; restrição da liberdade de movimento da mulher durante o parto, como amarrá-la ou impedi-la de escolher sua posição; imposição de posições desconfortáveis, como a posição supina com as pernas elevadas, para o parto; proibição de alimentação e hidratação durante o trabalho de parto; recusa de anestesia, mesmo em partos normais; realização de exames vaginais repetidos sem consentimento explícito da mulher; dificuldade imposta ao aleitamento materno nas primeiras horas após o nascimento; impedimento do contato imediato pele a pele entre mãe e bebê após o parto, sem justificativa adequada à mulher; negação do direito de escolha da acompanhante durante o parto; realização de cesarianas desnecessárias sem informar sobre os riscos envolvidos à mulher (SESAU, 2021).
2.2 Aspectos jurídicos da violência obstétrica
A Constituição Federal estabelece, em seu texto, que o Estado tem a obrigação de evitar práticas concretas de violência e implementar medidas preventivas para coibir tal violência, conforme descrito no artigo 226, assim como a Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003.
Em um contexto supralegal, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, ratificada pelo Decreto nº 1.973/1996, abordou explicitamente em seu texto normativo a proteção contra a violência: Os Estados-Partes devem garantir à mulher assistência apropriada durante a gravidez, parto e pós-parto, oferecendo assistência gratuita quando necessário, e assegurando uma nutrição adequada durante a gravidez e a amamentação.
No que se refere à violência contra a mulher, houve uma ampliação de sua definição com base na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, realizada em Belém do Pará. Em seu artigo 1º, a Convenção define: Para os fins desta Convenção, entende-se por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública quanto na esfera privada.
Além disso, o artigo 2º do Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996, esclarece que esta Convenção inclui a violência sexual, física e psicológica, também quando ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local.
Na alínea c, a Convenção condenou a postura do Estado omisso, conforme o artigo 2º, alínea c, perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.
Alguns Estados-Membros reconheceram a importância do tema da violência obstétrica e criaram leis para proteger a mulher grávida e o bebê. Por exemplo, o Estado de Minas Gerais publicou em dezembro de 2018 a Lei nº 23.175, que trata da garantia de atendimento humanizado à gestante, à parturiente e à mulher em situação de abortamento, para prevenção da violência na assistência obstétrica no Estado (Minas Gerais, 2018).
Da mesma forma, o Estado de Goiás, conforme o artigo 10 de sua Constituição Estadual, promulgou a Lei nº 19.790, de 24 de julho de 2017, onde de forma excepcional define e exemplifica as características da violência obstétrica.
A Assembleia Legislativa do Estado de Rondônia, seguindo a mesma linha do Estado de Goiás, promulgou a Lei nº 606/2017, que condena a prática de violência obstétrica. Essa lei determina que os hospitais devem informar os direitos das parturientes por meio de cartazes.
Da mesma forma, o Estado do Paraná também tomou medidas semelhantes, ao sancionar a Lei nº 19701, em 20 de novembro de 2018. Esta lei aborda a implantação de medidas de informação e proteção às gestantes e parturientes contra a violência obstétrica. Uma característica distinta desta lei em relação às outras é que ela prevê o pagamento de multa em caso de descumprimento, o que demonstra o compromisso com a efetiva aplicação das medidas de proteção, vejamos:
Art. 9º O descumprimento desta Lei sujeitará: I – os estabelecimentos ao pagamento de multa no valor de 1.000 UPF/PR (mil vezes a Unidade Padrão Fiscal do Paraná), aplicada em dobro em caso de reincidência; e II – os profissionais de saúde ao pagamento de multa no valor de 100 UPF/PR (cem vezes a Unidade Padrão Fiscal do Paraná), aplicada em dobro em caso de reincidência (Paraná, 2018, p. 18).
3 CONTEXTO GERAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL
Responsabilidade Civil tem seu fundamento legal no fato de que nenhuma pessoa pode lesar o direito de outra O art. 927 juntamente com o art.186 ambos do CC/15 estabelecem que:
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito (Brasil, 2002).
O ato ilícito acarreta a obrigação de reparar a pessoa lesionada pelo dano causado. No entanto, vale ressaltar que nem toda indenização tem sua origem em um ato ilícito, pois pode ocorrer também a violação de um direito que resulte em prejuízo patrimonial e moral, desde que determinados pressupostos sejam observados (Buchini, 2019).
Nesse contexto, Veloso (2016) sustenta, que na realidade, o que geralmente se avalia em matéria de responsabilidade é uma conduta do agente, ou seja, um encadeamento ou série de atos ou fatos, o que não impede que um único ato por si só gere o dever de indenizar.
Ao falar em responsabilidade civil, a conduta do indivíduo quase sempre gera o motivo do dano, devendo haver o ressarcimento. Para que seja caracterizada a responsabilidade, tem que ter uma ação que seja tida como nociva a moralidade havendo então um nexo (Buchini, 2019).
Conforme os estudos de Maria Helena Diniz, O dano é um dos pressupostos da responsabilidade civil, seja ela contratual ou extracontratual, uma vez que não pode haver ação de indenização sem a existência de um prejuízo. A responsabilidade civil somente ocorre quando há um dano a ser reparado (Diniz, 2009).
Segundo Veloso (2016) o dano consiste no prejuízo sofrido pelo agente. Pode ser individual ou coletivo, moral ou material, ou seja, econômico e não econômico. A noção de dano sempre foi objeto de muita controvérsia. Na noção de dano está sempre presente a noção de prejuízo.
Assim, a maneira como o agente se comporta diante da sociedade é crucial para comprovar as causas do dano e os prejuízos que essas ações causam a terceiros. Sem a existência de dano, não há base para se falar em responsabilidade civil (Buchini,2019).
A CF designa em seu artigo 5º, caput, inciso V e X o direito de ressarcimento ao dano material ou moral:
Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, à segurança e a propriedade, nos termos seguintes: […] V- e assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; […] X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. (Brasil, 1988).
Para melhor compreensão busca-se analisar o recurso a seguir no qual o obstetra foi responsabilizado por dano moral e violência obstétrica:
APELAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA. Parto ocorrido em corredor no nosocômio, após mais de 10 horas da admissão na maternidade, com a queda da recém-nascida, decorrente da expulsão fetal. Ausência de assistência prestada ao final do período de dilatação e período expulsivo. Inadequação dos procedimentos e não observância dos critérios estabelecidos pela ANVISA (RDC 36/2008). Dano moral configurado. Quantum indenizatório. Insurgência das requerentes voltada a aumento dessa verba. Fixação no valor equivalente a vinte salários-mínimos que comporta majoração, para a importância de R$ 50.000,00, a ser corrigida monetariamente desde a data deste julgamento, com afastamento da sucumbência recíproca então determinada. Honorários advocatícios fixados sobre o valor da causa. Impossibilidade. Acolhimento parcial da insurgência do requerido, para arbitramento dessa verba honorária em percentual a incidir sobre o valor da condenação. Sentença parcialmente reformada. RECURSOS PARCIALMENTE PROVIDOS (Brasil, 2021).
A partir disso, o presente tópico buscou abordar a responsabilidade civil, destacando a necessidade de reparação diante de atos ilícitos que causem danos a outrem, conforme estabelecido pelo Código Civil. São discutidos os pressupostos para a caracterização do ato ilícito, a relação entre a conduta do agente e a responsabilidade civil, enfatizando a importância do dano como elemento fundamental para o ressarcimento.
A análise se estende ao contexto da responsabilidade civil no campo da obstetrícia, onde a conduta do profissional de saúde pode resultar em danos materiais e morais. O caso apresentado em apelação destaca a configuração de violência obstétrica, com a queda da recém-nascida devido à inadequação dos procedimentos e à não observância dos critérios estabelecidos. A decisão judicial reconhece o dano moral e determina uma indenização, ressaltando a importância de adequar o quantum indenizatório ao caso específico. Assim, a seguir será apresentado as excludentes da responsabilidade civil.
3.1 Excludentes da responsabilidade civil
A respeito das categorias da responsabilidade civil, é relevante mencionar suas formas de exclusão, que são: 1. Estado de necessidade; 2. Legítima defesa; 3. Exercício regular de um direito; 4. Estrito cumprimento do dever legal; 5. Culpa exclusiva da vítima; 6. Fato de terceiro; 7. Caso fortuito e força maior. As quatro primeiras excluem a ilicitude; as três últimas excluem o nexo causal, além da cláusula contratual que já foi discutida anteriormente como uma exclusão da responsabilidade civil (Cavalieri, 2018). Conforme Tartuce (2019) a legítima defesa é uma justificativa para a conduta, utilizando-se o mesmo conceito do direito penal.
O artigo 188, inciso I, do Código Civil (2002) prevê que não são considerados atos ilícitos aqueles realizados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido. É relevante também mencionar o que o Código Penal estabelece, em seu artigo 25, o código define: entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
Portanto, o agente age para repelir os atos do autor contra si mesmo ou terceiros, sendo essencial que essa ação seja proporcional e indispensável para remover o perigo.
Quanto ao estado de necessidade, presente no inciso II do mesmo artigo 188, é importante ressaltar que ele ocorre quando a deterioração ou destruição da propriedade alheia, ou a lesão a pessoa, acontece para remover um perigo iminente.
Segundo Gagliano e Pamplona Filho (2020), o estado de necessidade pode ser entendido como uma violação de direitos de terceiros, onde o valor jurídico pode ser igual ou menor que o valor destinado a proteger, com o objetivo de afastar uma ameaça iminente, quando não há outros meios de ação possíveis para proteger o bem tutelado.
O exercício regular de um direito ocorre quando o agente está respaldado por um direito reconhecido, portanto, não há responsabilidade civil nesse caso. Stolze (2020) exemplifica que isso acontece quando recebemos autorização do Poder Público para desmatar uma área rural específica para o plantio de cereais. Nesse caso, estamos agindo no exercício regular de um direito.
O estrito cumprimento do dever legal está diretamente ligado ao exercício regular de um direito, pois o agente que age dessa forma está regularmente exercendo seu direito, mesmo que não haja previsão específica no Código Civil para isso. Portanto, é uma forma de exclusão, já que não se pode responsabilizar por um dano quem tem o dever legal de causá-lo. Um exemplo seria o caso de um policial que, para cumprir uma ordem judicial, arromba uma residência.
No que diz respeito à exclusão do nexo causal, a culpa exclusiva da vítima exclui o agente da responsabilidade civil, pois a vítima é apenas um instrumento para o acidente. Nas palavras de Gonçalves (2017), isso ocorre quando a vítima é atropelada ao atravessar uma estrada de alta velocidade embriagada, ou quando o motorista, dirigindo com todo cuidado, é surpreendido pelo ato da vítima que, querendo se suicidar, se joga na frente do veículo.
Por fim, o fato de terceiro, regulado nos artigos 929 e 930 do Código Civil (2002), estabelece que se a pessoa lesada ou o proprietário da coisa não forem culpados pelo perigo, eles têm o direito de ser indenizados pelo prejuízo sofrido. Se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, conforme o inciso II do artigo 188, o autor do dano tem direito a uma ação regressiva para recuperar o valor que pagou ao lesado.
Portanto, é evidente que o comportamento de um terceiro, que não seja o agente do ato ou a vítima, interrompe o nexo causal, afastando a responsabilidade civil. Venosa (2003), essa questão é complexa na jurisprudência, e o juiz muitas vezes se depara com uma situação de difícil solução, pois não temos um texto claro de lei que nos guie para um entendimento unânime, e por vezes os juízes decidem com base na equidade, embora não o declarem.
Em relação ao caso fortuito ou força maior, regulados no artigo 393, parágrafo único, do Código Civil (2002), eles são previstos como excluidores de responsabilidade, pois influenciam a relação de causalidade, que é rompida entre o ato do agente e o dano sofrido pela vítima.
Segundo Gonçalves (2017), o caso fortuito geralmente decorre de um fato ou ação alheia à vontade das partes: greve, motim, guerra. Já a força maior é derivada de eventos naturais: raio, inundação, terremoto. Ambos são equiparados no texto legal como excluidores de responsabilidade.
4 A MEDICINA LEGAL
A Medicina Legal é uma disciplina rigorosamente científica dedicada à investigação dos aspectos intricados do ser humano e de sua existência, desde o momento da concepção até após o falecimento. Seus dedicados instrutores necessitam não apenas de expertise em Medicina e Direito, mas também de conhecimentos em outras áreas científicas. Isso é essencial para que possam elaborar pareceres minuciosos, claros, concisos e racionais. O objetivo é proporcionar, na consciência daqueles encarregados de julgar, uma representação tão precisa quanto possível da realidade (Novo, 2020).
Segundo Gomes (2003) os primeiros vestígios de uma interligação profunda entre Medicina e Direito remontam a registros da antiguidade, especialmente nas sociedades antigas. Naquele contexto, o exercício do poder não apenas derivava da força, mas também emanava dos líderes que ostentavam poderes especiais, alegadamente devido à sua relação com os deuses – os sacerdotes.
Esses sacerdotes eram considerados representantes divinos e agentes da vontade divina, ditando normas sobrenaturais. Eles eram frequentemente chamados para intervir quando supostas manifestações da ira dos deuses, expressas como doenças, afetavam os membros da comunidade. Nesses momentos, os sacerdotes, intérpretes da vontade divina, invocavam essa relação especial para afastar espíritos malignos e tratar os doentes. Para isso, recorriam a orações, realizavam sacrifícios e empregavam conhecimentos da arte de curar, muitas vezes utilizando ervas medicinais. Dessa forma, o mensageiro das leis divinas desempenhava simultaneamente os papéis de legislador, juiz e médico (Gomes, 2003).
A Medicina Legal e evoluiu para algo maior no decorrer das décadas, o que se tem hoje em dia são profissionais qualificados, divididos em áreas que de Documentos Médicos Legais a Exame de Corpo de Delito, os profissionais dessa área são capazes de apresentar provas técnicas que são essenciais para solucionar crimes. Em 2011, o CFM Conselho Federal de Medicina mudou a então nomenclatura Medicina Legal e Perícias Médicas (Novo, 2020).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência obstétrica representa uma problemática complexa e sensível, cujas ramificações abarcam não apenas a esfera médica, mas também os direitos fundamentais das mulheres durante o processo de parto e pós-parto. Diante dessa realidade, esta pesquisa se propôs a analisar a relação entre a responsabilidade civil do médico e a violência obstétrica, considerando a perspectiva da Medicina Legal e a jurisprudência brasileira no contexto do dano moral.
Os objetivos delineados foram alcançados ao longo deste estudo. Apresentamos os princípios da medicina legal pertinentes à violência obstétrica, elucidando as normas e procedimentos médico-legais essenciais para a documentação e investigação de casos. Discutimos as evidências médicas e instruções aplicáveis em situações de violência obstétrica, além de analisarmos o conceito de dano moral e sua aplicação específica nesse contexto. Abordamos também como a legislação e a jurisprudência têm tratado os danos morais decorrentes de abusos e negligências médicas durante o parto e pós-parto.
Em relação às hipóteses formuladas, pudemos constatar que a violência obstétrica é, de fato, um fenômeno multifacetado, influenciado por uma interação complexa de fatores individuais, culturais e sistêmicos. Aprofundar sua discussão pode fornecer insights cruciais para o desenvolvimento de estratégias eficazes de prevenção e intervenção.
A análise da responsabilidade civil médica revelou lacunas e ambiguidades nas leis existentes, destacando a necessidade premente de reformas legislativas para fortalecer a proteção dos direitos das pacientes. Por fim, confirmamos que a medicina legal desempenha um papel central na documentação e análise de evidências em casos de violência obstétrica, sendo essencial para embasar argumentos judiciais e garantir uma busca por justiça eficaz.
Portanto, este estudo não apenas contribui para o entendimento mais profundo da responsabilidade civil do médico na violência obstétrica, mas também ressalta a importância de abordagens multidisciplinares e sistêmicas para enfrentar esse desafio complexo e proteger os direitos fundamentais das mulheres durante a gestação e o parto.
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1Acadêmica de Direito. Artigo apresentado à Faculdade Fimca como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito. Porto Velho/RO, 2024. Email: isalopes492@gmail.com
2Acadêmico de Direito. Artigo apresentado à Faculdade Fimca como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito, Porto Velho/RO, 2024.Email: adriamsmenezes@gmail.com
3Professor Orientador. Email: jacson.sousa@fimca.com.br.