A RELIGIOSIDADE DAS COMUNIDADES INDIGENAS E SEUS DESAFIOS HODIENOS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.6819717


Autor:
Ademar Henriques da Silva Filho1


RESUMO

O presente estudo objetivou apresentar os desafios pastorais enfrentados pela Igreja da Amazônia em comunidades ribeirinhas e indígenas que estão às margens dos rios da Prelazia de Tefé/AM. A partir do estudo, foi possível perceber a importância de uma ação evangelizadora que contemple a perspectiva espiritual/religiosa, bem como os aspectos sociais que promovam a dignidade da pessoa humana. Percebe-se que as comunidades ribeirinhas são as periferias dos rios, assim, se nas cidades grandes, as pequenas comunidades estão nas margens, nos rios, os ribeirinhos também estão às margens, não somente dos rios, mas também da evangelização. Os povos indígenas sofrem com a desvalorização de sua cultura e com a devastação predatória das florestas. Por meio do estudo realizado foi possível confirmar que “Cristo aponta para a Amazônia”. A Igreja, presente neste território, mesmo diante dos desafios pastorais que cercam e dificultam a evangelização, segue firme no anúncio salvífico de Cristo. No momento em que se comemoram os 50 anos do documento de Santarém, a Igreja da Amazônia torna-se profética diante das devastações que oprimem o povo marginalizado.

Palavras-chave: Ribeirinhos. Desafios. Igreja da Amazônia. Evangelização. Santarém.

1. INTRODUÇÃO

A Igreja na Amazônia está em constante movimento e dinamismo. Em 2022 celebram-se os 50 anos do documento de Santarém, e neste documento, a Igreja Amazônica reconhece a ação de Deus nessa região do país, enfatizando a necessidade de buscar novos caminhos que correspondam às necessidades pastorais e sociais deste território. O documento de Santarém é um marco importante para a vida da ação evangelizadora e orienta a Igreja a superar os desafios à luz da ação salvífica de Jesus.

Na Amazônia há inúmeras comunidades cristãs que estão diversificadas no imenso território amazônico. Por possuir uma área de grandes proporções, as comunidades ribeirinhas – que estão nas margens dos rios – sofrem grandes desafios pastorais que dificultam a presença constante da Igreja nas áreas mais afastadas. Além da escassa presença dos presbíteros nas comunidades, da falta de eucaristia, dos sacramentos, de formações, os povos amazônicos sofrem com a imensa pobreza, com os garimpos ilegais e também com a presença de muitas madeireiras que, com a exploração predatória das florestas, massacram e ameaçam os ribeirinhos e os indígenas. A Igreja na Amazônia, por meios dos bispos, constantemente denuncia estes crimes, ela carrega em seu cerne o objetivo de ser uma voz profética no meio destas realidades e destes desafios.

No presente artigo, discorremos sobre estes desafios pastorais na ação evangelizadora da Igreja, a partir da experiência da formação do animador de Setor nesta Prelazia de Tefé, localizada no médio Solimões, que realizaram uma formação com as comunidades do Setor Ingá: Comunidade do Marajaí, Comunidade de Juruamã, Comunidade de Assunção, Comunidade de Canariá, Comunidade Tupã Supé, Comunidade do Iingá. Comunidade do Jaqueri, ao todo foi uma semana de barco, partindo de Tefé/AM, ao longo do Lago de Alvarães/Am. A proposta era a de entender como os povos aldeados vivem nas suas comunidades/aldeias, quais seus desafios e suas vivências, para aí sim delinear um processo formativo. Tudo isso, sem “desenraizar, enfraquecer e invadir” a cultura dos povos originários, como nos recorda o Santo Padre,1 buscando averiguar também a caminhada de fé no sentido de contato com o processo de evangelização, levando em conta que a cultura do evangelho tem como horizonte: “cultivar sem desenraizar, fazer crescer sem enfraquecer a identidade, promover sem invadir”2. A partir desta experiência missionária, o estudo pretende apontar os desafios e as possibilidades na evangelização junto aos povos indígenas e às comunidades ribeirinhas. Esta é uma provocação recorrente na Igreja da Amazônia.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 Desafios pastorais em comunidades ribeirinhas na Amazônia

As comunidades ribeirinhas são as periferias dos rios. Se nas cidades grandes as pequenas comunidades estão nas margens, nos rios, os ribeirinhos também estão às margens, não somente dos rios, mas da evangelização. Muitos são os desafios que dificultam a ação evangelizadora entre os ribeirinhos, dentre eles: a escassez de recursos para chegar até as comunidades, o pequeno número de missionários, religiosos, padres, contribuindo para que essas comunidades permaneçam sem assistência religiosa durante vários anos. Algumas delas não recebem a presença de um presbítero há mais de 10 ou 15 anos.

Muitas destas comunidades não celebram a eucaristia há vários anos. O magistério sempre afirmou que é a Eucaristia que faz a Igreja. A esse respeito, a Presbyterorum Ordinis (1997, p.501) afirma que: “a eucaristia aparece como fonte e coroa de toda a evangelização […] o banquete eucarístico é o centro da assembleia dos fiéis a que o presbítero preside.” Todavia, o clero amazônico é pequeno e inúmeras são as comunidades. Se a eucaristia é a coroa da evangelização, como levar o maior bem da Igreja – a eucaristia – até os mais afastados, se a presença dos presbitérios é pequena? Daí a necessidade de encontrar novos caminhos para promover a evangelização, caminhos estes que possam fazer valer as afirmações da Igreja de que todos os católicos merecem se alimentar do Pão Eucarístico.

No sonho eclesial, o Papa Francisco (2020, p.42) nos lembra que estas comunidades que estão às margens:

[…] têm direito ao anúncio do Evangelho, sobretudo àquele primeiro anúncio que se chama querigma e “é o anúncio principal, aquele que sempre se tem de voltar a ouvir de diferentes maneiras e aquele que sempre se tem de voltar a anunciar duma forma ou doutra”. É o anúncio de um Deus que ama infinitamente cada ser humano, que manifestou plenamente este amor em Cristo crucificado por nós e ressuscitado na nossa vida. Este anúncio deve ressoar constantemente na Amazónia, expresso em muitas modalidades distintas. Sem este anúncio apaixonado, cada estrutura eclesial transformar- se-á em mais uma ONG e, assim, não responderemos ao pedido de Jesus Cristo: “Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda a criatura” (Mc 16, 15).

O santo Padre nos interpela, enfatizando que este anúncio salvífico de Cristo deve chegar a todos, até mesmo aos que se encontram geograficamente distantes, às margens dos rios e às margens da evangelização da Igreja na Amazônia. Francisco (2020) sonha com uma Igreja em saída, aberta ao Espirito Santo, que seja presença do Ressuscitado.

A ação missionária na Igreja da Amazônia é precária, isto devido ao pequeno número de missionários e de presbíteros; igualmente, em parte, devido à vasta extensão territorial que separa as comunidades e devido à falta de recursos para alcançar tais povos, que vivem em lugares de difícil acesso. A enorme diversidade cultural e linguística na região é outro desafio e a todas estas provações somam-se os problemas sociais que as comunidades enfrentam, as quais serão mencionadas posteriormente, de modo especial na comunidade indígena da etnia Jaqueri.

A Igreja não pode ficar indiferente a todos estes desafios que permeiam sua ação evangelizadora, nem aos problemas sociais que seu povo enfrenta. Neste aspecto, a Doutrina Social da Igreja (2011, p. 46) expressa que:

[…] a Igreja não é indiferente a tudo o que na sociedade se decide, se produz e se vive […] A sociedade e, com ela, a política, a economia, o trabalho, o direito, a cultura não constituem um âmbito meramente secular e mundano e, portanto, marginal e alheio à mensagem e à economia da salvação. Efetivamente, a sociedade ― com tudo o que nela se realiza ― diz respeito ao homem. É a sociedade dos homens, que são “a primeira e fundamental via da Igreja”.

O Evangelho também tem um alcance social, a Igreja, esposa de Cristo, é constituída de homens e mulheres que, participando da sociedade dos homens, precisam ter sua dignidade salvaguardada. Este é um grande desafio também para a Igreja, cooperar na promoção humana de seus membros e, neste âmbito, os ribeirinhos estão às margens da sociedade da Igreja, necessitam da ação evangelizadora que promova vida e esperança, que conduza à dignidade.

Os desafios presentes na evangelização destes povos ribeirinhos não se dão somente pela escassez de recursos financeiros ou de missionários, trata-se de um problema mais abrangente. No aspecto eclesiológico, há uma falha na formação dos agentes de pastoral e de lideranças dessas comunidades. A lógica da evangelização nos centros urbanos é diferente daquela da zona rural, pois, faltam catequistas, animadores de comunidades, equipes de liturgia, e em vista disso, ainda há, em muitas comunidades, uma compreensão de que, se não há a presença do presbítero, o povo não é Igreja.

Estas questões são mais desafiadoras nas comunidades em que a presença protestante predomina. A fé católica, em muitas destas comunidades, é constantemente atacada, e o fiel católico e as lideranças, por não possuírem formação consistente, muitas vezes, não sabem como defender sua fé. Grande parte dos católicos migram para as igrejas protestantes, em parte porque são convencidos a mudar, ou porque a igreja (templo) tem um pastor próprio e mora na própria comunidade; muitos dos templos católicos nas margens dos rios tendem a ter uma estrutura mais antiga, já as igrejas protestantes são mais chamativas. Há, nas comunidades ribeirinhas da Amazônia, uma grande ascensão das igrejas pentecostais e da Assembleia de Deus, denominações que adentram cada vez mais estas realidades.

2.2 A Igreja profética na Amazônia

“Cristo aponta para a Amazônia”, afirmou o Papa Paulo VI aos bispos reunidos em Santarém-PA em 1972. Ainda hoje, Cristo aponta para seus filhos e suas filhas na Amazônia, aponta para sua Igreja que sofre e nos aponta para uma evangelização que abarque a vida espiritual e social dos povos ribeirinhos e indígenas. Ao longo dos 50 anos do documento de Santarém, que reanimou as ações missionárias na região amazônica, as comunidades tornaram-se mais samaritanas, misericordiosas, solidárias, pobres e pascais, sobretudo neste tempo de pandemia da Covid-19. E no testemunho de solidariedade aos mais necessitados e vulneráveis reafirmaram o amor fraterno, que é a identidade com o Cristo, Crucificado, Morto e Ressuscitado.

No âmbito sinodal, a Igreja da Amazônia pretende continuar sua missão com coragem e audácia, para “ajudar o coração do homem a abrir-se confiadamente a Deus que não só criou tudo que existe, mas também nos deu a si mesmo em Jesus Cristo.” (Papa Francisco, 2020, p.31). A Igreja é contrária aos abusos que assolam o território amazônico, agredido por um sistema econômico devastador e consumista, que escancara as chagas abertas pela violência socioambiental, que destrói os direitos dos povos originários e tradicionais, da natureza e do território amazônico. A vida dos povos da Amazônia está cada vez mais ameaçada.

É urgente uma parada, que estanque este modelo de soberania privativa que se sobrepõe à soberania social, e se promova a reconstrução e a garantia da Vida e de salvaguarda da Amazônia, pois “cuidar do homem significa, para a Igreja, envolver também a sociedade na sua solicitude missionária e salvífica.” (DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA, 2011, p. 46). A Igreja Amazônica sofre com todos estes desafios, contudo, as esperanças e a alegria do evangelho são maiores, a perseverança e o amor pela vida são expressões desta Igreja que forma leigos e religiosos com rostos amazônicos.

2.3 Experiência missionária na aldeia da etnia Jaqueri

A religiosidade católica e a fé popular a partir das devoções aos santos e às santas de Deus são marcantes na Igreja da Amazônia, sobretudo a partir das expressões da piedade popular. Tais expressões são evidenciadas e marcadamente perceptíveis nas comunidades ribeirinhas que circundam as margens dos vários rios da Amazônia. Na Paróquia de São Joaquim (Alvarães/Am), esta realidade é igualmente presente, sobretudo, na área rural da cidade, neste caso o lago. Na área rural, a piedade popular com as devoções são uma riqueza da ação evangelizadora da Prelazia de Tefé. A fé que o povo ribeirinho herda de seus pais e avós ainda é significativa e nas comunidades rurais todos se envolvem com o festejo de seu padroeiro.

A aldeia indígena do Povo Jaqueri tem como padroeiro São Sebastião. A religiosidade a partir da devoção a São Sebastião foi introduzida na comunidade por iniciativa de um dos caciques que primeiro habitou naquela região. A comunidade da Jaraqui, ao longo de seus anos, festeja o seu padroeiro como evento religioso e social.

A comunidade inicia o novenário com a “levantação do mastro” onde está a bandeira do santo. Neste novenário, todas as noites, é realizada a celebração da Palavra, sendo notória a numerosa participação de crianças, adolescentes e jovens. A aldeia é eminentemente jovem, a presença destes perpassa o religioso e o social na comunidade. Nas comunidades ribeirinhas do Amazonas, é comum que, além da festividade religiosa, os habitantes se organizem para uma festa social. Tais festas sociais “do santo” contam com a participação das comunidades ribeirinhas e indígenas próximas. Conta-se com a presença de bandas como atração, há consumo de bebidas alcoólicas, vendas de prêmios em leilão, bingos, além de torneios de futebol ao longo dos dias de festividade.

O Povo Jaqueri caminha em comunhão com a Paróquia de São Joaquim, com visitas pastorais e assistência religiosa, há mais de cinco anos. Nos anos que antecederam esta comunhão os indígenas mantiveram-se organizados de modo particularmente independentes, ainda que sem estrutura católica organizada, sustentados apenas pela religiosidade em torno de seu padroeiro. A comunidade indígena, mesmo com uma caminhada de aproximadamente 60 anos, não possui um espaço físico para suas celebrações e encontros, não há uma Igreja (templo) nesta comunidade. As reuniões tanto da Comunidade como as celebrações acontecem no espaço escolar.

A comunidade do Jaqueri está localizada dentro do Lago de Alavrães/Am reserva indígena. Nos primórdios das repartições de terra, neste local específico onde a comunidade está localizada, os indígenas não tiveram a preocupação de reservar um local para a construção de uma Igreja, daí o relato dos moradores da comunidade de que há um grande desafio que está ligado ao local da construção da Igreja. Os indígenas dividiram as terras entre as famílias, de modo que hoje não há local para a Igreja, e nos espaços vazios (terrenos), onde poderia ser erguido o templo, as famílias não cedem o espaço para tal obra. Este é um desafio/realidade que perpassa a vida da comunidade religiosa.

A presença dos protestantes é um elemento que existe dentro da aldeia. Ainda que poucos, eles também não se reúnem em uma igreja, pois também não há espaço para eles. Sobre este elemento religioso, a comunidade indígena, em sua maioria, opta por estar sob “a lei católica” – expressão usada com frequência entre os indígenas – para expressar que permanecem católicos em sua maioria, quase que absolutamente. Permanecendo católicos, os indígenas se reúnem em torno da Palavra de Deus, aos domingos pela manhã, para celebrar a Palavra, a Vida, a fé.

A participação dos indígenas na Celebração Dominical é um desafio que a comunidade religiosa enfrenta: por não haver Igreja (templo), muitos alegam o que podemos chamar de desânimo, por isso, a comunidade, mesmo sendo católica, não tem o hábito de reunir-se para celebrar a Palavra. Há um esforço por parte da coordenação religiosa para envolver seus membros em torno de tudo que rege a ação evangelizadora. O Povo Jaqueri presente na comunidade de São Sebastião, em sua maioria, tem vínculo religioso com a Igreja Católica, mas por não haver assistência religiosa católica durante muitos anos, vários de seus membros não puderam realizar os sacramentos.

Diversas famílias têm o desejo de batizar seus membros, as pessoas batizadas na comunidade são aquelas com mais idade, já a grande maioria das crianças necessita do Sacramento do Batismo, bem como quase toda a população adulta necessita fazer o sacramento da Primeira Eucaristia e do Crisma. Além destes fatos, são poucos os casais que contraíram o sacramento do matrimônio, a maioria das famílias convive de forma “amigada”, sem a benção do sacramento. Os indígenas manifestam o desejo de realizar estes sacramentos e de ter um acompanhamento religioso mais presente, com implantação de catequeses, formações e visitas pastorais.

Um dado informativo relevante: a população da aldeia indígena Jaqueri é constituída de 200 pessoas, ao redor de 29 famílias (segundo informações dos próprios comunitários). Destes indígenas, a grande maioria são crianças, seguida dos jovens e, por último, dos adultos. Ratificamos: o número de crianças por casal vem a ser extremamente numeroso, entre 08 a 10 crianças por residência.

2.4 A língua do povo Jaqueri

A língua é, incontestavelmente, um dos aspectos mais extraordinários da identidade e da cultura de um povo. Cada povo é responsável por salvaguardar a sua cultura e a sua história, em consequência, a sociedade, constituída de maneira dinâmica, dispõe imprescindivelmente como eixo estrutural a diversidade dos povos e das culturas. A grandeza de uma língua é permeada por seus atores, isto é, por aqueles que a falam.

Na aldeia indígena, há um dado informativo preocupante: predominantemente, toda a aldeia fala a língua portuguesa, em decorrência da entrada de “não índios” na aldeia e do “casamento” de indígenas do povo Jaqueri com “brancos” da cidade de Alvarães/Am e de outras cidades. Este fato acontece como consequência da imposição da cultura moderna sobre os povos nativos, o antropocentrismo predatório ocidental extingue o que não segue seus padrões, por isso, concordamos com Cirne (2013, p. 185) que afirma: “uma expressão desse antropocentrismo é o caráter etnocêntrico da civilização ocidental, que se expande, impondo seus padrões, desconhecendo a diversidade étnica e cultural dos grupos humanos”. Daí o relato dos problemas que os indígenas apresentaram desde que iniciaram os contatos com “o não índios”, sobretudo, os obstáculos de comunicação em relação à língua materna.

As pessoas da cidade tinham o costume de ridicularizar os Jaqueri quando estes se expressavam em sua língua, segundo o que relatou um dos membros da aldeia e coordenador da comunidade católica; por este motivo, os mais idosos, observando o rápido contato com as metrópoles e diante da necessidade de fazer jus aos benefícios que a cidade grande promove (como é o caso do acesso à saúde e à educação), começaram a orientar os pequenos índios a aprenderem somente a língua portuguesa no lugar da língua vernácula. Este fenômeno não é peculiar a este povo, mas uma onda coletiva que foi se espalhando em grande parte do nosso país.

Ainda hoje é possível acompanhar falas preconceituosas e predatórias divulgadas na internet, especialmente nas redes sociais virtuais, sobre a língua dos povos indígenas. Segundo Morin (2001, p.95): “[…] os humanos desenvolvem sua autonomia na dependência de sua cultura […] Nossa autonomia como indivíduos não só depende da energia que captamos biologicamente do ecossistema, mas da informação cultural”. O que se constata é uma supervalorização da língua e da cultura de outros povos, estrangeiros, do que da língua das nossas populações indígenas que vivem ao longo de nosso território e são membros do nosso corpo social, isto é, da sociedade brasileira.

Mediante estes relatos, tornou-se possível compreender porque mais de 80% dos integrantes da aldeia não falam e nem sabem a língua materna. Somente uma família sabe, fala e se comunica “na’gira” (na língua). Evidentemente que há outras pessoas, porém, somam apenas 15% de falantes. Apesar disso, todas as pessoas residentes sabem algumas expressões “na’gira”, por exemplo: seus nomes de nascimento, nomes de frutas, de alguns animais, de algumas plantas, expressões comuns, como: “sim, não” – “ari, cona”. É relevante destacar: na escola da comunidade estudam a língua materna, porém, não se tem um aprofundamento de fato, o que os jovens e as outras pessoas aprendem se refere somente a esses recursos comuns de comunicação que acabamos de mencionar.

2.5 Pajé e Cacique

Em todas as aldeias indígenas há uma figura de grande importância que gira em torno do Pajé e do Cacique de uma aldeia. O termo “pajé” refere-se àquele que serve a comunidade “espiritualmente”, isto é, que é responsável pelos rituais sagrados daquele povo. Já o “cacique”, para a aldeia dos Jaqueri, é aquele que é responsável burocraticamente por ela, principalmente junto aos órgãos do Estado. A função do cacique é administrativa, econômica e organizacional, enquanto a função do pajé está mais direcionada para a dimensão da espiritualidade do povo.

Para Castro (2020, p.22), o pajé tem uma função muito significativa na vida da aldeia, por isso, afirma:

O pajé tem um papel-chave na sociedade indígena. Ele interage através o rito, dos sonhos ou dos transes induzidos, servindo como mediador entre os domínios humanos e extra-humanos. O xamã, que é médico e conselheiro, é também líder espiritual e genitor simbólico; simboliza um modo de vida distinto, com conhecimentos e poder de cura. Representa a raiz da espiritualidade indígena e sua força, é simbólica. Leva politicamente a comunidade para a autossuficiência, nas atividades econômicas, políticas e sociais, interfere no “mundo que não vê”, no “reino invisível”.

Os Jaqueri reconhecem a importância desta figura para a comunidade, todavia, a aldeia não possui a pessoa de um Pajé, e este fato, certamente, modifica a cosmovisão dos indígenas. Não existem os rituais sagrados, pois isto seria conduzido pelo Pajé, e do mesmo modo a prática da cura medicinal – muito escassa já – existe, mas não com a mesma frequência da antiguidade.

2.6 Perspectiva da Educação na comunidade indígena

O texto base da Campanha da Fraternidade (2022, p.9) começa com a expressão: “Educar é um ato eminentemente humano”. A educação é um processo complexo, e como nos recorda Edgar Morin, a mesma é um processo educativo integral. A complexidade é a relação dos eventos, das atuações, das interatividades, das retroações, das deliberações, dos acasos que constituem nosso mundo fenomênico (MORIN, 2005), ou seja, as áreas dos saberes se relacionam, atuam juntas em prol do desenvolvimento da sociedade humana.

A Igreja, no pontificado do Papa Francisco, na perspectiva eclesiológica, tem enfatizado sua reflexão sobre a sinodalidade, caminhar junto. A Campanha deste ano enfoca os elementos do trabalho sinodal pela educação, caracterizados em conjunto: famílias, escolas, comunidades religiosas, sociedade etc. Estes aspectos fazem parte da educação humana, então, se usa um termo próprio: educação integral da pessoa humana. Partindo deste aspecto universal da educação, há que se observar de que modo a comunidade São Sebastião efetua, no seu processo cultural e sociológico, a questão da educação. Circunvizinha à comunidade está a única escola da aldeia, cujo nome é Escola Municipal São Sebastião.

Ela possui duas salas de aula, uma cozinha e um banheiro. O sistema de estudo é municipal, todo o processo burocrático é desenrolado no município de Alvarães. A escola conta com cinco professores: quatro são da própria aldeia e um é da zona urbana. Os que são da comunidade ensinam o conhecimento provindo da sabedoria do povo Jaqueri, tradicionalmente. O outro professor, vindo da zona urbana, leciona conhecimentos gerais da história humana.

As etapas de estudo começam no ensino Infantil (é de responsabilidade da família, não existe uma creche); posteriormente, tem-se o Ensino Fundamental, que compreende do 1º ano ao 9º ano. O grande problema sobre a educação escolar na comunidade é a falta de possibilidade de oferecer o Ensino Médio, portanto, os jovens que desejam concluir os estudos deverão migrar para outros lugares e cidades. Os comunitários lutam para obter recursos e condições para que aconteça a continuidade dos estudos escolares de seus jovens, contudo, os desafios são contundentes. A comunidade indígena está localizada a 10h de barco da sede do município, desse modo, para os professores da zona urbana não é viável tal deslocamento, uma vez que não há uma casa para acolhê-los, e por causa da distância, seria necessário que durante o período em que estivessem lecionando residissem no local. Além desses, há outros empecilhos, como alimentação, falta de recursos de salas, que acabam por dificultar a existência desta etapa do ensino para os jovens daquela comunidade.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A querida Amazônia, nosso chão de missão, apresenta-se aos olhos do mundo com todo o seu esplendor, seu drama e seu mistério. A riqueza da cultura, dos gestos, do diferente, acaba por enriquecer também nossa cultura, nossas vidas e nossos sonhos. Desejamos continuar sonhando junto aos sonhos do Papa a fim de que sempre mais e melhor esses povos nativos, que vivem na Amazônia, possam sentir-se acolhidos, amados e respeitados na sua condição étnica. Escutar os gritos desses povos, seus clamores e cosmovisões de mundo é algo necessário para que a vida e a cultura sejam respeitadas e valorizadas.

A Igreja Amazônica deseja promover a vida humana e, nesta promoção, também respeitar a vida da floresta e a diversidade cultural. Nosso chão amazônico é um lugar de beleza, esplendor e de faces diferentes. Sabemos dos movimentos migratórios dos povos indígenas às regiões urbanizadas, mas nosso intuito é o de que os emigrados não se tornem escravos dos processos desumanos que têm atingido as realidades “metropolitanas”, não se tornem vítimas da miséria, dos preconceitos, dos tratamentos violentos e xenofóbicos, que acabam por agredir sua dignidade de pessoa humana.

“Cristo aponta para a Amazônia”- diante das problemáticas apresentadas, há, na Igreja Amazônica, a convicção de que o Cristo ressuscitado não somente aponta para esta Igreja, mas também está verdadeiramente conosco: “eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos.” (Mt 28,20). A Igreja Amazônica é interpelada a não desanimar frente aos desafios e frente à lógica predatória consumista que devasta as florestas e agride nossos ribeirinhos e nossos povos originários. A Igreja da Amazônia persistirá no anúncio do evangelho.


1Na Exortação Apostólica Pós-Sinodal – “Querida Amazônia” o Papa Francisco enfatiza a importância de uma evangelização que respeite a cultura e as tradições dos povos originários.

2Querida Amazônia, p.23.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém – Nova edição, revista e ampliada 3. imp. São Paulo: Paulus, 2004.

CIRNE. Lúcio Flávio Ribeiro. O Espaço da Coexistência. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

PAPA FRANCISCO. Querida Amazônia: Exortação Apostólica pós-sinodal ao povo de Deus e a todas as pessoas de boa vontade. Brasília: CNBB, 2020.

PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2011.

MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução: Eloá Jacobina, 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

MORIN, E. O método 6: ética. Tradução: Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2005.


1Presbítero Diocesano. Mestre em Teologia pela EST/RS. Doutorando em Teologia pela PUCRS.