A POSSIBILIDADE DE APLICAR A LEI MARIA DA PENHA ÀS MULHERES TRANSEXUAIS EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7717096


Polyanna Pimentel Muniz1
Reichiele Vanessa Vervloet de Carvalho Malanchini2


RESUMO

O presente artigo tem por objetivo demonstrar a possibilidade da aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres transexuais, vítimas de violência doméstica e familiar baseada no gênero, independente da submissão à cirurgia de transgenitalização.

Palavras-chave: Lei Maria da Penha – Mulheres transexuais – Violência doméstica – Gênero.

ABSTRACT

This present article aims to demonstrate the possibility of applying the Maria da Penha Law to transsexual women, victims of domestic and family violence based on gender, independently of their submission to transgenitalization surgery.

Keywords: Maria da Penha Law – Transsexual women – Domestic violence – Gender.

INTRODUÇÃO 

O gênero feminino sempre esteve em uma posição de inferioridade e subordinação ao masculino, tanto que no Código Civil de 19163 era requisito para mulher trabalhar a autorização de seu marido tamanha sua dependência e invisibilidade.

Resquícios do patriarcado permanecem enraizados na sociedade justificando episódios de agressões contra as mulheres. De forma corriqueira, são utilizadas as expressões: “mulher não tem que querer”, “mulher não tem que escolher”, “lugar de mulher é cuidando da casa e dos filhos”, essas frases refletem esse sistema. A cultura patriarcal fez com que muitas mulheres sofressem atos de violência em seus lares apenas por serem mulheres e, por esta razão, consideradas propriedade de seu marido, pai ou companheiro. 

A Constituição Cidadã de 1988 em seu artigo 5º inciso I consagrou o princípio da igualdade entre homens e mulheres, estendendo tal princípio às relações familiares, determinando a criação pelo Estado de mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.4 Contudo, tais previsões não foram suficientes, visto que à época a violência doméstica se tratava de um crime de menor potencial ofensivo.

Dessa forma, tendo em vista a vulnerabilidade do gênero feminino e a necessidade de proteção das mulheres vítimas de violência doméstica foi sancionada a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) que trouxe mecanismos de prevenção e proteção às mulheres em situação de violência no âmbito de suas relações íntimas de afeto.

E as mulheres transexuais? Nasceram com sexo biológico masculino, mas se identificam com o gênero feminino. Além do preconceito sofrido por exercer seu direito de identidade, têm que suportar a violência imposta à mulher sem o amparo da Lei Maria da Penha? Elas devem ser amparadas pela Lei Maria da Penha quando vítimas de violência de gênero no ambiente familiar ou doméstico? São estes os questionamentos que o artigo tem por objetivo discutir.

1 A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER

Nas sociedades antigas a mulher era vista como um objeto, na legislação Mosaica somente os homens podiam divorciar-se, sendo impossível às mulheres tal iniciativa cuja posição é de extrema subordinação. Apesar de diversos códigos antigos e modernos colocarem a mulher nessa mesma configuração o Código de Manu deixa claro a situação jurídica da mulher (CASTRO, 2013).

No Brasil colonial a mulher excluída da sociedade, tinha por objetivo gerar filhos e se submeter aos desejos do marido (BASEGGIO; SILVA, 2015). Naquela época era costume as mulheres se casarem cedo aos doze, treze, quatorze anos de idade. Após o casamento, sucediam-se os partos, de modo que não tinham sequer condições de amamentar seus filhos visto sua impossibilidade física (FREYRE, 2013). A mulher inferior e subordinada, era considerada uma propriedade, primeiramente, de seu pai e após o casamento do marido (CARVALHO, 2017). 

Por muito tempo o sistema familiar foi patriarcal, ou seja, o homem que “detinha o comando exclusivo da família, sendo considerado o chefe da sociedade conjugal e o cabeça do casal.” (DIAS, 2016, p. 106). Portanto, por um longo período a mulher foi discriminada, tratada como um objeto em poder do homem que limitava sua importância à satisfação sexual de seu marido e aos afazeres domésticos.

O Código Civil Brasileiro de 1916 previa os direitos e deveres do marido que era o chefe da sociedade conjugal, bem como os direitos e deveres da mulher que não poderia sequer trabalhar sem autorização marital, pois, ao casar perdia sua capacidade civil plena (DIAS, 2016). A mulher era mantida em todas as relações privadas como gender-neutral sendo visível ao jurista apenas quando exercia sua função no ambiente doméstico (OLIVEIRA, 2016).

O Estatuto da Mulher Casada (Lei 4121/1962) foi um divisor de águas para romper a hegemonia masculina, pois devolveu à mulher a capacidade plena e a promoveu à condição de colaboradora na sociedade conjugal. Sendo, a partir de então, desnecessária autorização marítima para o trabalho (DIAS, 2016). Da mesma forma, os movimentos feministas das décadas de 60 e 70 em busca da liberdade e igualdade entre os gêneros e o surgimento da pílula anticoncepcional foram de suma importância para a inserção da mulher no mercado de trabalho, visto que, possibilitou a quebra de paradigmas relacionados à sua sexualidade (LUZ; FUCHINA, 2009). 

Buscando dar efetividade, e equilibrar as relações entre os gêneros a Constituição Federal de 1988 consagrou o princípio da igualdade entre homens e mulheres, em direitos e obrigações estendendo tal igualdade à sociedade conjugal determinando que é obrigação do Estado assegurar a assistência à família, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Contudo, apenas as previsões constitucionais não foram suficientes para assegurar às mulheres tratamento igualitário, visto que, resquícios do sistema patriarcal permanecem enraizados na sociedade, atuando como justificativa para agressões físicas, sexuais e psicológicas contra a mulher no âmbito de suas relações íntimas de afeto. 

Tanto que antes do surgimento da Lei 11.340/06, as situações de violência contra a mulher eram julgadas segundo a Lei 9.099/95 consideradas crime de menor potencial ofensivo, cuja pena abstrata ia até dois anos e os casos encaminhados aos Juizados Especiais Criminais, cuja punição imposta era o pagamento de cestas básicas ou prestação de serviço comunitário o que contribui para o sentimento de impunidade (MENEGHEL et al, 2013; DIAS, 2015).

O caso da Maria da Penha foi um marco de grande importância na evolução e reconhecimento dos direitos das mulheres, pois, apenas depois da condenação do Estado brasileiro por omissão e em resposta a determinação da OEA (Organização dos Estados Americanos), foi sancionada a lei Maria da Penha criando mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher e estabelecer medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência. 

Importante ressaltar que a Lei Maria da Penha determina que se a mulher for vítima de violência doméstica ou familiar, como sujeito passivo do delito de lesões corporais, o fato importará em tratamento mais rigoroso ao autor, visto que a o artigo 41 da referida Lei proíbe a aplicação da Lei 9.099/95. Além disso, a substituição da pena não poderá importar em prestação pecuniária ou pagamento de cesta básica ou multa, nos termos do artigo 17 da Lei 11.340/06 (GRECO, 2014). Desse modo, a lei Maria da Penha veio como um socorro às mulheres em situação de violência com o intuito de proporcioná-las o direito à vida digna e possibilitar seu desenvolvimento social. (YMAMOTO, 2011). 

2 O CASO MARIA DA PENHA MAIA FERNANDES E A LEI 11.340/2006

Maria da Penha Maia Fernandes sofreu constantes agressões ao longo de seu casamento com Marco Antônio Heredia Viveros, dentre as quais duas tentativas de homicídio, sendo a primeira um disparo de arma de fogo que a deixou paraplégica e a segunda em que o marido tentou eletrocutá-la durante o banho. Abaixo o relato da vítima Sra. Fernandes: 

Acordei de repente com um forte estampido dentro do quarto. Abri os olhos. Não vi ninguém. Tentei mexer-me, mas não consegui. Imediatamente fechei os olhos e só um pensamento me ocorreu: ‘Meu Deus, o Marco me matou com um tiro’. Um gosto estranho de metal se fez sentir, forte, na minha boca, enquanto um borbulhamento nas minhas costas me deixou ainda mais assustada. Isso me fez permanecer com os olhos fechados, fingindo-me de morta, pois temia que Marco me desse um segundo tiro (FERNANDES, 2012, p 39).

Maria da Penha denunciou as agressões sofridas, mas nenhuma providência por parte das autoridades competentes foi tomada. “Marco Antonio Heredia Viveros foi preso no ano de 2002, faltando seis meses para o crime prescrever, ou seja, 19 anos e seis meses após o meu quase assassinato.” (FERNANDES, 2012, p. 109).

Ante a morosidade da justiça brasileira foi formalizada denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos. Acatada a denúncia o Brasil foi condenado por omissão e negligência em relação à violência doméstica e como forma de punição a OEA exigiu que fossem tomadas medidas adequadas para reduzir a violência doméstica contra a mulher (DIAS, 2015).

A Lei 11.340/06 recebeu o nome de Maria da Penha em homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes. O objetivo desta lei é a criação de mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente de sua orientação sexual, bem como estabelecer medidas de proteção às mulheres em situação de violência não importando o gênero do agressor (DIAS, 2015).

3 TRANSEXUALIDADE, CONCEITO E CARACTERÍSTICAS

A transexualidade ainda é considerada como uma patologia, como um transtorno de identidade de gênero pela Classificação Internacional de Doenças com o CID-10 nº F 64.0. O Conselho Federal de Medicina (Resolução nº 1955/2010) define o transexual como portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual com rejeição do sexo biológico e tendência a automutilação e considera a cirurgia de redesignação sexual como a etapa mais importante no tratamento de seu tratamento.

Adriana Maluf conceitua o transexual como o “indivíduo que apresenta um desvio psicológico que o faz acreditar pertencer ao sexo oposto do seu originário” (MALUF, 2013, p. 301). No mesmo sentido, Maria Helena Diniz argui que o transexual apresenta uma anomalia surgida no desenvolvimento da estrutura nervosa central por ocasião de seu estado embrionário, sem alterar, contudo, suas atividades intelectuais. Conclui a referida autora que os transexuais são biologicamente normais, uma vez que possuem a genitália externa e interna perfeita, porém acreditam pertencer ao sexo contrário à sua anatomia (DINIZ, 2014).

O entendimento divergente defende que apesar da Classificação Internacional das Doenças CID-10 e o Manual Diagnóstico e Estatístico das Doenças Mentais (DSM-IV) manter a identidade de gênero como transtorno mental, não é justificável o uso da expressão transexualismo, sendo importante a adoção do termo transexualidade para que se possa começar a reverter o impiedoso estigma de que são vítimas os transexuais e travestis (DIAS, 2016).

A transexualidade é, portanto, uma divergência entre o estado psicológico de gênero e as características físicas e biológicas que o associam ao gênero oposto. Existindo forte conflito entre o corpo e a identidade de gênero e um profundo desejo de adequar o corpo ao gênero almejado. O transexual tem o sentimento de que nasceu no corpo errado (DIAS, 2016).

Aqueles que defendem a despatologização da transexualidade alegam que por se tratar de mera questão comportamental, a transexualidade não deve permanecer como uma patologia cadastrada em órgãos internacionais e, portanto, deve ser despatologizada da mesma forma que a homossexualidade (DIAS, 2016; FERRARI; CAPELARI, 2014; VEIGA JUNIOR, 2016; BENTO; PELUCIO, 2012). Porque “definir a pessoa transexual como doente é aprisioná-la, fixá-lo em uma posição existencial que encontra no próprio indivíduo a fonte explicativa para seus conflitos, perspectiva diferente daqueles que a interpretam como uma experiência identitária” (BENTO, 2008, p. 18 – 19).

Portanto, entende-se que “A ‘doença’ trans é social. A ausência de reconhecimento destas pessoas como cidadãs, nada mais é do que negar-lhes o direito de existir, de amar, de desejar e de ser feliz.” (DIAS, 2016, p. 238).

Para uma melhor compreensão do tema, é de suma importância diferenciar sexo de gênero. Sexo é biológico, determinado pela genitália externa, já o gênero é construído, é a forma como o indivíduo se enxerga e se expressa socialmente, trata-se sua identidade sexual (JESUS, 2012).

Partindo do pressuposto que “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade […]” (BEAUVOIR, 1967, p. 09), entende-se que ser mulher é uma construção diária que ultrapassa o padrão imposto pelo sexo biológico.

Contrário a este entendimento, a doutrina conservadora entende que a ideologia de gênero é absurda, pois vai de encontro com a lei natural, uma vez que, o sexo é um sinal constitutivo da pessoa e marca por completo sua existência e romper com a natureza biológica não faria o indivíduo libertar-se, mas atentar contra os desígnios divinos (FERNANDES in MARTINS; CARVALHO, 2016; CRUZ in MARTINS; CARVALHO, 2016; CREMONEZE in MARTINS; CARVALHO, 2016).

A transexualidade não deve ser considerada como doença, pois, apesar do CFM, da CID-10 e da DSM-IV considerá-la como um transtorno mental, há uma corrente significativa de pesquisadores buscando, retirá-la da classificação de transtornos mentais da Organização Mundial da Saúde5, da mesma forma, não deve ser analisada sob um prisma religioso, e sim jurídico, visto que, encontra-se profundamente atrelada ao princípio da dignidade da pessoa humana e aos direitos da personalidade.

3.1 A MULHER TRANSEXUAL 

A mulher transexual é aquela cujo sexo biológico é masculino, contudo possui identidade de gênero feminino (adota nome, aparência e comportamento feminino) e reivindica seu reconhecimento social como mulher, utilizando roupas femininas, tratamentos hormonais e até cirúrgicos buscando adequar o corpo à concepção que têm de si mesmo (JESUS, 2012; DIAS, 2016). 

Segundo Adriana Maluf o tratamento clínico da transexual se inicia com a aplicação de hormônio feminino que arredonda suas formas, aumenta as mamas e desacelera o crescimento da barba. Na cirurgia de transgenitalização reduz-se o pomo de Adão por meio da exérese da cartilagem da laringe, realiza-se plásticas no nariz e face e, na genitália os testículos e o tecido do interior do pênis são retirados e é realizada uma abertura no períneo para servir como vagina que é revestida com o tecido que sobrou do pênis e o saco escrotal vazio é utilizado para remodelar os lábios vaginais (MALUF, 2013).

Ressalta-se que a existência da genitália masculina não faz do indivíduo homem e sim a forma como este se identifica no seio social, portanto, a cirurgia de transgenitalização não determina a transexualidade, uma vez que esta não se trata de uma questão meramente sexual, mas, de identidade, visto que, a transexualidade transcende ou dispensa a transgenitalização, pois essa é mera forma de modificar, por sua vontade, o seu sexo (VEIGA JUNIOR, 2016).

Nesse sentido, recentemente o Supremo Tribunal Federal – STF autorizou que transexuais alterem seu nome e sexo no registro civil diretamente em cartório sem que sejam submetidos à cirurgia de transgenitalização ou autorização judicial6.

Assim, entende-se da análise doutrinária e do posicionamento do Supremo Tribunal Federal que a existência da genitália masculina não é fator determinante para a transexualidade, portanto, a cirurgia de transgenitalização não deve ser condição para a proteção dos direitos das mulheres trans. 

4 FEMINICÍDIO, HOMOFOBIA OU LEI MARIA DA PENHA? O QUE APLICAR QUANDO A VÍTIMA DA AGRESSÃO SE TRATAR DE TRANSMULHER?

A maioria dos homicídios contra as mulheres no Brasil é noticiada como crime passional, utiliza-se este termo para tratar dos crimes cometidos por paixão (MELLO, 2016). Contudo, a paixão motivadora da conduta criminosa não é proveniente do amor, mas do ódio, da possessividade, do ciúme, da vingança, da frustração, dentre outros e a maior vítima de crime passional é, sem dúvida, a mulher, tendo em vista os resquícios da opressão do patriarcalismo (ELUF, 2015). 

O homicida passional possui uma necessidade de autoafirmação, ele não é amoroso é cruel e deseja se mostrar no comando do relacionamento causando sofrimento ao outro. Sua vontade é dominar, se não houvesse a separação, a rejeição, a desobediência e, porventura, a infidelidade, não haveria necessidade de eliminar o ser cobiçado (ELUF, 2015).

Assim, com a finalidade de erradicar a violência contra a mulher a Lei 13.104/15 inseriu no Código Penal Brasileiro a qualificadora do feminicídio, trata-se da eliminação da vida da mulher por condições de sexo feminino, ou seja, motivada pelo menosprezo, discriminação ou pela violência doméstica e familiar (ANDRADE; DOROTEU, 2015). O feminicídio é, na verdade, uma continuidade da tutela especial conferida pela Lei 11.340/06, considerando homicídio qualificado e hediondo a conduta de matar a mulher, valendo-se de sua condição de sexo feminino (NUCCI, 2017).

E qual seria o critério utilizado para afirmar que a vítima é mulher? Psicológico, biológico ou jurídico? Será considerada mulher, para fins de feminicídio, apenas aquelas juridicamente identificadas como tal pelos documentos oficiais de identificação civil, não importando se nasceu do sexo feminino ou se por reconhecimento judicial adquiriu tal condição (GRECO, 2017; BUSATO, 2016). Contrariando os referidos autores, Adriana Ramos de Mello defende “[…] a qualificadora do feminicídio incide quando o sujeito passivo for mulher, entendido, na minha forma de ver, de acordo com o critério psicológico, ou seja, quando a pessoa se identificar com o sexo feminino, mesmo que não tenha nascido com o sexo biológico feminino.” (MELO, 2016, p. 142).

Conforme observado, há divergência doutrinária a respeito do critério de definição de mulher para fins da qualificadora do feminicídio, considerando que existem pessoas que nasceram com o sexo biológico masculino, porém, identificam-se com o sexo oposto e que, são vítimas em maior proporção de violência de gênero que as assim definidas biologicamente (BUSATO, 2016).

Diante do exposto, conclui-se pela aplicação da qualificadora do feminicídio às mulheres transexuais quando a eliminação de sua vida for motivada por sua condição de mulher, desde que assim se identifique perante a sociedade. 

Difícil tratar de transexualidade e não discorrer sobre homofobia, que é o tratamento hostil e discriminatório às pessoas homoafetivas (pessoas que se relacionam com pessoas do mesmo sexo) a transfobia, da mesma forma, trata-se do tratamento hostil e discriminatório aos transexuais (DIAS, 2016) que, via de regra, motivação de crimes praticados contra homossexuais, dentre os quais lesões corporais e homicídio.

O relatório de 2016 do Grupo Gay da Bahia, organização não governamental que milita em defesa dos direitos humanos da comunidade LGBT, aponta que 343 lésbicas, gays, bissexuais e transexuais foram assassinados no Brasil em 2016. Insta salientar que tais informações são subnotificadas visto que não existem estatísticas governamentais a respeito. Segundo o relatório, o risco de uma travesti ou transexual ser assassinada é 14 (catorze) vezes maior que um gay7.

Assim, visando a redução de crimes de ódio praticados contra a comunidade LGBT, o Projeto de Lei n. 134/2018 – Estatuto da diversidade sexual – prevê a criminalização de condutas discriminatórias em razão de orientação sexual e identidade de gênero. 

Considerando a tipificação do crime de homofobia, entende-se que à mulher transexual vítima de violência doméstica e familiar em suas relações íntimas de afeto não seriam aplicadas tal previsão, visto que, não está configurado o fato típico previsto no Estatuto da Diversidade Sexual, mas a lei Maria da Penha.

5 A POSSIBILIDADE DA APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA ÀS MULHERES TRANSEXUAIS EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

A Lei 11.340/06 visa a proteção contra violência doméstica e familiar baseada no gênero, tendo em vista a histórica relação de desigualdade entre o homem e a mulher esta lei procurou dar amparo às mulheres em situação de violência, portanto, sem dúvidas o sujeito passivo é o gênero feminino8.

Marilene Talarico defende que a Lei 11.340/06 é restritiva apenas as pessoas civilmente identificadas como do sexo feminino não havendo previsão para estender sua aplicação a pessoas civilmente identificadas com o sexo diverso (RODRIGUES in MARTINS; CARVALHO, 2016).

Divergente do entendimento acima mencionado, Alice Bianchini aduz que o termo mulher contido no artigo 5º da lei Maria da Penha ultrapassa o perfil biológico binário e, por essa razão, deve ser interpretado de forma ampla (BIANCHINI in DIAS, 2017). Segundo a autora a Lei 11.340/06 deve ser aplicada, independentemente de orientação sexual, na relação em que houver mulher heterossexual, homossexual ou transexual, vítima de violência doméstica ou familiar baseada no gênero (BIANCHINI, 2016).

Assim, entende-se que a lei Maria da Penha visa mais que a proteção do sexo biológico mulher seu objetivo é a proteção do gênero feminino, assim considerados aqueles que se comportam como mulheres, exercendo e se apresentando como tal à sociedade. Partindo desse pressuposto “[…] lésbicas, transmulheres, transexuais, travestis e intersexuais, que tenham identidade social com o sexo feminino estão sob a égide da Lei Maria da Penha. A agressão contra elas no âmbito familiar constitui violência doméstica.” (DIAS, 2015, p. 67). 

Essa foi a concepção da juíza Ana Claudia Veloso Magalhães (1ª Vara Criminal de Anápolis – GO) que decidiu pela aplicação da Lei Maria da Penha ao caso de uma transexual agredida por seu companheiro. Segue fragmento da decisão:

[…] 42.a. Esta magistrada não pode deixar a mulher Alexandre Roberto Kley, desabrigada em seus direitos! Não posso deixá-la à margem da proteção legal já que ela se reconhece, age íntima e socialmente como mulher; […] 42.d.A mulher Alexandre Roberto Kley, para os efeitos da Lei Maria da Penha, foi vítima de violência doméstica e familiar contra a sua pessoa, padecendo de lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico, dano moral e patrimonial por parte do imputado […](Grifo nosso).

Visando possibilitar a aplicação da Lei Maria da Penha à mulher transexual em situação de violência doméstica e familiar decidiu o Tribunal de Justiça de Santa Catarina: 

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. HOMOLOGAÇÃO DE AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE. AGRESSÕES PRATICADAS PELO COMPANHEIRO CONTRA PESSOA CIVILMENTE IDENTIFICADA COMO SENDO DO SEXO MASCULINO. VÍTIMA SUBMETIDA À CIRURGIA DE ADEQUAÇÃO DE SEXO POR SER HERMAFRODITA. ADOÇÃO DO SEXO FEMININO. PRESENÇA DE ÓRGÃOS REPRODUTORES FEMININOS QUE LHE CONFEREM A CONDIÇÃO DE MULHER. RETIFICAÇÃO DO REGISTRO CIVIL JÁ REQUERIDA JUDICIALMENTE. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO, NO CASO CONCRETO, DA LEI N. 11.340/06. COMPETÊNCIA DO JUÍZO SUSCITANTE. CONFLITO IMPROCEDENTE. (TJSC, Conflito de Jurisdição n. 2009.006461-6, da Capital, rel. Des. Roberto Lucas Pacheco, j. 23-06-2009). (Grifo nosso)

Com a devida vênia à decisão do Egrégio Tribunal, como supracitado, a cirurgia de redesignação sexual não é fator determinante para caracterizar a transexualidade, portanto, não é razoável que a aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres transexuais vítimas de violência doméstica e familiar seja condicionada a tal procedimento, o simples fato de se reconhecer e agir como mulher perante a sociedade é suficiente para que sejam consideradas como pertencentes ao gênero feminino.

Impor a cirurgia de transgenitalização viola a dignidade da pessoa humana, os direitos da personalidade previstos no artigo 5º, X, da CF e o direito fundamental à vida, que, de forma ampla, abrange o direito à vida digna que é dotada de valoração intrínseca (MENDES; BRANCO, 2013). Atribui-se dignidade ao ser humano justamente por este ser capaz de construir personalidades individuais e insubstituíveis, desse modo, entende-se que a autonomia é inerente à dignidade (KANT, 2004).

Nesse sentido, o princípio bioético da autonomia diz respeito ao poder de decisão do indivíduo sobre questões relacionadas a si mesmo e determina que todos os atos médicos devem ser autorizados pelo paciente (DINIZ, 2013). Nesse sentido, o artigo 15 do CC/02 prevê que ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de morte, a intervenções cirúrgicas.

A lei Maria da Penha trata da violência doméstica e familiar, mas seria considerado família a união de uma mulher transexual com outra pessoa? O artigo 5º da Lei 11.340/06 conceitua família como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa em qualquer relação íntima de afeto independentemente de orientação sexual.

Nesse sentido, em 2011 o Supremo Tribunal Federal – STF julgou a ADPF nº 132 e a ADI nº 142 de modo a excluir do artigo 1.723 do Código Civil qualquer significado que impedisse o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, pois, “ impedir uma pessoa de colocar seu afeto e sua sexualidade onde mora seu desejo é o mesmo que roubar-lhe a alma, que submetê-la ao projeto dos outros, torná-la uma engrenagem do sistema.” (BARROSO in FERRAZ et al, 2013, p. 26).

Posteriormente, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ editou a Resolução 175/2013 proibindo às autoridades competentes recusarem a habilitação, a celebração do casamento civil ou a conversão da união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo. Essa resolução garantiu a esses casais a proteção de seus direitos patrimoniais, visto que este é um dos principais efeitos do casamento (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015).

Família não é a constituída por imposição legal, mas pela vontade de seus próprios membros, portanto, é família a união entre homem e mulher, entre mulheres, entre homens e constitui família a união de uma mulher transexual com outra pessoa independente do sexo.

Ante ao exposto, entende-se que a cirurgia de transgenitalização tem como condão a adequação física à psicológica e não deve ser considerada como uma imposição a fim de que direitos sejam tutelados. Portanto, não deve o Estado se manter inerte ante à violação do direito das mulheres transexuais vítimas de violência doméstica e familiar quando não submetidas ao procedimento cirúrgico de redesignação sexual.

CONCLUSÃO

As mulheres desde muito foram subjugadas, diminuídas e consideradas inferiores quando comparadas ao homem. Esse sentimento de inferioridade e submissão permitiu e ainda permite que muitas delas, consideradas como propriedade de seus companheiros e cônjuges, se calem ante as agressões sofridas no ambiente familiar e doméstico, mantendo um verdadeiro pacto de silêncio junto ao agressor.

A Constituição Federal de 1988 consagrou o princípio da igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações, estendendo sua abrangência às relações familiares e responsabilizando o Estado por assegurar assistência à família criando, para isso, mecanismos para coibir a violência no âmbito familiar.

Ocorre que, a previsão constitucional não foi suficiente para assegurar o tratamento igualitário às mulheres, visto que, resquícios do patriarcado arraigado na sociedade, por vezes, fundamentou e ainda fundamenta, agressões e outras barbáries, decorrentes de uma relação de domínio e subordinação, ocorridas no lar doce lar sob pretexto de ser a mulher uma propriedade.

A lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) foi assim batizada em homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes que durante o casamento sofreu constantes agressões, dentre as quais, duas tentativas de homicídio, cuja primeira resultou em sua paraplegia. Buscando a punição de seu algoz, ela juntamente com Organizações Não Governamentais realizou denúncia à OEA, que condenou o Brasil por omissão e recomendou a adoção de medidas para a redução da violência doméstica e familiar contra a mulher. Assim, a lei Maria da Penha veio em socorro às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, restituindo-lhes a dignidade de forma a possibilitar seu desenvolvimento em sociedade. 

Mas a mencionada lei poderia ser aplicada às transexuais? 

A transexualidade trata-se de divergência entre o estado psicológico de gênero e as características físicas e biológicas que associam o indivíduo ao gênero oposto. Não deveria ser considerada como doença, pois, apesar do CFM, da CID-10 e da DSM-IV considerá-la como um transtorno mental, há uma corrente significativa de pesquisadores buscando, por meio de estudos, retirar as pessoas transexuais da classificação de transtornos mentais da Organização Mundial da Saúde.

A mulher transexual, por sua vez, é aquela que possui o sexo biológico masculino, porém, possui identidade de gênero feminino adotando nome, vestimenta e comportamento feminino buscando seu reconhecimento social como mulher realizando tratamentos hormonais e até cirúrgicos para tal. A cirurgia de transgenitalização, visa a adequação do sexo biológico ao psicológico, mas não determina a transexualidade. O transexual pode não desejar se submeter a tal procedimento, pois, como qualquer outro procedimento cirúrgico, inclui risco à vida.

A lei Maria da Penha é uma lei que trata da violência doméstica e familiar contra a mulher baseada no gênero, considerando que gênero, diferente de sexo, trata-se de uma identidade sexual, ou seja, da forma que o indivíduo se enxerga e se expressa socialmente. Entende-se que a referida Lei pode ser aplicada às mulheres transexuais, pois estas possuem identidade de gênero feminina, contudo, alguns julgados vêm exigido, como requisito a cirurgia de transgenitalização.

Considerando que a cirurgia de transgenitalização não determina a transexualidade, que ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de morte, a procedimento cirúrgico, que o princípio bioético da autonomia determina que o indivíduo possui o poder de decisão sobre questões relacionadas a si mesmo e os atos médicos devem ser autorizados, que o direito fundamental à vida não se embasa apenas no fato de existir, mas viver com dignidade.

Conclui-se que às mulheres transexuais vítimas de violência doméstica e familiar deve ser aplicada lei Maria da Penha, mesmo que não tenham sido submetidas à cirurgia de transgenitalização, a fim de lhes proporcionar uma vida digna, sem violência, possibilitando o seu desenvolvimento social e moral.

REFERÊNCIAS

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BARROSO, Luís Roberto. O direito de amar e ser feliz. In: FERRAZ, Carolina Valença et al. Manual do Direito Homoafetivo. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 23-28.

BASEGGIO, Julia Knapp; DA SILVA, Lisa Fernanda Meyer. As condições femininas no Brasil colonial.Maiêutica-História, v. 3, n. 1, 2015. Disponível em: < https://publicacao.uniasselvi.com.br/index.php/hid_ead/article/view/1379 >. Acesso em: 21 mar. 2017.

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3Código Civil de 1916: Art. 233. O marido é chefe da sociedade conjugal. Compete-lhe: […] IV. O direito de autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do tecto conjugal Art. 242. A mulher não pode, sem autorização do marido: […] VII. Exercer profissão; Art. 243. A autorização do marido pode ser geral ou especial, mas deve constar de instrumento público ou particular previamente autenticado Art. 245. A autorização marital pode suprir-se judicialmente: II. Nos casos do art. 242, nºs VII e VIII, se o marido não ministrar os meios de subsistência à mulher e aos filhos (Grifo nosso).
4Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
5[…]Art. 420 Uma mulher está sob a guarda de seu pai, durante a infância, sob a guarda de seu marido durante a juventude, sob a guarda de seus filhos em sua velhice; ela não deve jamais se conduzir à sua vontade. […]Art. 444 Dar à luz a filhos, criá-los quando eles têm vindo ao mundo, ocupar-se todos os dias dos cuidados domésticos; tais são os deveres das mulheres.
6Utilizou – se o termo Transexualidade e não transexualismo, pois, o sufixo ISMO traz uma ideia de doença e já existem estudos a favor de sua despatologização.
7ESTUDO prova que transexualidade não é transtorno psiquiátrico. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/estudo-prova-que-transexualidade-nao-transtorno-psiquiatrico-19805459#ixzz4pgLoB1sB. Acesso em: 17 ago. 2016.
8STF autoriza mudança de sexo no registro civil sem cirurgia. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/03/stf-autoriza-mudar-o-sexo-no-registro-civil-sem-autorizacao-judicial.shtml >. Acesso em: 23 maio 2018.
9RELATÓRIO 2016, assassinatos de LGBT no Brasil. Disponível em: < https://homofobiamata.files.wordpress.com/2017/01/relatc3b3rio-2016-ps.pdf >. Acesso em: 29 mar. 2017.
10Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: […] Parágrafo único: As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.
11Tribunal de Justiça de Goiás. Processo n. 201103873908. Disponível em:< http://www.tjgo.jus.br/decisao/imprimir.php?inoid=2251460 >. Acesso em: 16 mar. 2017.

1Advogada.
2Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES.