REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10015581
Lucas Henrique Rodrigues Bergamini1
Antonelli Antonio Moreira Baracat Secanho2
Resumo
Desde que o Art. 156, II do Código de Processo Penal fora instituído, muitos foram os embates doutrinários a fim de questionar a sua validade no ordenamento pátrio, no entanto, somente com a alteração da Lei 13.964/19 – que instituiu o modelo acusatório como sendo o adotado no Brasil – pôde-se questionar a sua validade, visto que no modelo acusatório a atuação do Magistrado no que toca a determinação para produção de prova, sem provocação, teria escopo inconstitucional.
Palavras-chave: in dubio pro reo. Sistema acusatório. Processo Penal. Produção de provas. Magistrado.
Abstract
Since Art. 156, II of the Code of Criminal Procedure was established, there have been many doctrinal clashes in order to question its validity in the national order, however, only with the amendment of Law 13,964/19 – which established the accusatory model as being adopted in Brazil – its validity could be questioned, given that in the accusatory model, the Magistrate’s action in determining the production of evidence, without provocation, would have an unconstitutional scope.
Keywords: in dubio pro reo. Accusatory system. Criminal Procedure. Production of evidence. Magistrate.
Introdução
A redação original, do Código de Processo Penal brasileiro, possui 78 anos; desde aquela época até os dias atuais, muitas mudanças acometeram a sociedade e, com isto, o Direito teve de acompanhar a velocidade da evolução social, promovendo inúmeras modificações no ordenamento pátrio.
Desde o advento da Promulgação da Constituição Federal de 1988, o processo penal assumiu a feição de um instrumento capaz de esclarecer a verdade, mediante estrita obediência a princípios e regras que não só garantem a proteção da sociedade, mas, também a prevalência e garantia dos direitos do acusado.
Nesse sentido, destaca-se que até dezembro de 2019, inexistia previsão expressa que adotava o sistema acusatório como modelo utilizado no Brasil. No entanto, fato era, uma vez que os princípios constitucionais o albergavam e, o indicavam com forte veemência.
Assim, com a intenção de cumprir com o que prevê a Carta Magna, inseriram, no Código de Processo Penal, por meio da lei 13.964/19, o Artigo. 3º – A (Pacote anticrime), algo que a doutrina, há tempos, vem suplicando ao legislador – Uma afirmação, do sistema adotado no Brasil.
Entretanto, em que pese o novo dispositivo afirmar algo que até então era pacífico pela Doutrina e, pela própria Constituição, ante seus princípios, muitas polêmicas surgiram do aludido dispositivo legal, isto porque, se o sistema é de fato acusatório, como poderia o Magistrado, de ofício, requerer qualquer tipo de diligência?
2. O SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO E A SUA CARCTERIZAÇÃO: ACUSATÓRIO, MISTO OU INQUISITIVO?
2.1 DO SISTEMA INQUISITIVO
O sistema inquisitivo, por si só, remonta a um dos períodos mais obscuros da história – O século XII – que foi o período da santa Inquisição e dos tribunais Eclesiásticos; período de uma das mais gritantes e expressivas mudanças na estruturação social, cultural e econômica da Europa. Foi usado pela Inquisição da Igreja Católica Romana, para suprimir heresias e perseguir aqueles que eram considerados desviantes em termos de fé e prática religiosa.
Nesse sistema, o Magistrado detinha a reunião das funções de acusar, julgar e defender o investigado. Melhor elucidando, o Juiz assumia papel de “investigador, julgador e carrasco” – Pois é ele quem produzia prova, conduz o processo e executa pena. Sem espaço, portanto, para ampla defesa, contraditório e devido processo legal. Nas palavras de Guilherme Nucci, o sistema inquisitivo:
“É caracterizado pela concentração de poder nas mãos do julgador, que exerce, também, a função de acusador; a confissão do réu é considerada a rainha das provas; não há debates orais, predominando procedimentos exclusivamente escritos; os julgadores não estão sujeitos à recusa; o procedimento é sigiloso; há ausência de contraditório e a defesa é meramente decorativa.” (NUCCI, Guilherme, p. 110, 2019)
O réu era considerado herege, e como a confissão era a rainha das provas, eles eram presos, interrogados e submetidos a métodos brutais de confissões, como por exemplo a Donzela de Ferro, que em apertadíssima síntese, consistia em um sarcófago repleto de espinhos afiados, que não atingiam órgãos vitais, mas conduziam o acusado a uma lenta e dolorosa morte.
No final do século XVII, durante o fortalecimento dos valores do Estado e do Direito, o sistema inquisitivo passou a ser abolido em muitos países europeus, sendo substituído por sistemas com princípios acusatórios, que norteavam o sistema judicial à um caminho mais justo.
2.2 DO SISTEMA ACUSATÓRIO
Por seu turno, o sistema acusatório é um imperativo do moderno processo penal (Lopes, Aury), se baseia em princípios e garantias fundamentais, assegurando a imparcialidade e a tranquilidade psíquica do magistrado, conferindo ao acusado garantias – que fazem da justiça, um procedimento mais justo e ímpar – em que o processo é conduzido de forma adversarial, com um órgão acusador (Ministério Público) e uma defesa, ambos independentes e igualmente responsáveis por apresentar suas alegações e provas.
Ademais, prevê um Magistrado imparcial, que atua como árbitro neutro, estando presente para assegurar que as regras e princípios sejam seguidos durante o processo.
Nesse mesmo diapasão, o Ilustre doutrinador Aury Lopes Jr. Define:
“O sistema acusatório é um imperativo do moderno processo penal, frente à atual estrutura social e política do Estado. Assegura a imparcialidade e a tranquilidade psicológica do juiz que sentenciará, garantindo o trato digno e respeitoso com o acusado, que deixa de ser um mero objeto para assumir sua posição de autêntica parte passiva do processo penal. Também conduz a uma maior tranquilidade social, pois se evitam eventuais abusos da prepotência estatal que se pode manifestar na figura do juiz ‘apaixonado’ pelo resultado de seu labor investigador e que, ao sentenciar, olvida-se dos princípios básicos de justiça, pois tratou o suspeito como condenado desde o início da investigação” (LOPES, Aury)
Outrossim, tem-se claro que o sistema acusatório busca proteger os direitos e as liberdades individuais, evitando abusos e garantindo que o processo penal tenha caráter justo e equilibrado, buscando ao máximo a paridade de armas, tanto para o acusador, quanto para que o acusado se defenda.
Como já dito alhures, nos modelos anteriores, resta evidenciado que o Magistrado possui papel ativo no que toca a produção de provas, sendo, portanto, mais que apenas destinatário da prova, mas sim o seu gestor. Nesse mesmo diapasão, Renato Brasileiro de Lima ensina que:
“De mais a mais, não se pode esquecer que uma das grandes diretrizes da reforma processual penal de 2008 é o prestígio do sistema acusatório, por meio do qual se valoriza a imparcialidade do juiz, que deve ser o destinatário da prova, e não seu produtor, na feição inquisitiva” (LIMA, Renato brasileiro de)
Assim, conforme destacado por Renato Brasileiro, o Magistrado deve ser destinatário da prova, e não seu produtor, na feição inquisitiva (Lima, Renato brasileiro de). Atendo-se aos princípios e garantias penais.
2.3 DO SISTEMA MISTO
O sistema misto uniu as virtudes dos dois sistemas anteriores, formando um sistema intermediário, que cuida de equilibrar a busca pela verdade real mantendo a observância aos princípios e garantias fundamentais do acusado.
Neste modelo, o processo penal é dividido em duas grandes fases: a instrução preliminar, com elementos do sistema inquisitivo, e a fase de julgamento, com elementos do sistema acusatório.
O magistrado, preside a fase de investigação preliminar, deixando de ser apenas o destinatário das provas, mas, sim o seu gestor. Em outras palavras, ele coordena todo o procedimento de colheita de provas, bem como dos indícios e demais informações pertinentes ao processo.
Assim, fica nítido o caráter inquisitivo, uma vez que o procedimento preliminar é presidido pelo juiz, bem como que ele poderá, de ofício, determinar quais testemunhas devem ser ouvidas, buscar ativamente evidências, solicitar documentos relevantes e demais atos pertinentes ao processo.
Por fim, a fase de julgamento, por seu turno, possui características do modelo acusatório, visto que admite o contraditório, a oralidade, a publicidade e a concentração dos atos processuais.
2.4 DA OPÇÃO DO SISTEMA PROCESSUAL BRASILEIRO
Antes da reforma realizada pela Lei 13.964/2019, muitos doutrinadores afirmavam que o Brasil adotava um sistema misto; isto porque a Constituição de 1988, delineou diversos princípios processuais penais que apontavam para um sistema acusatório; entretanto, como explica Guilherme Nucci “indicam um sistema acusatório, mas não o impõem, pois quem cria, realmente, as regras processuais penais a seguir é o Código de Processo Penal”.
Ainda a este respeito, Guilherme Nucci afirma:
“A adoção de princípios acusatórios não significa, em hipótese alguma, a eleição de um sistema de persecução penal exclusivamente calcado nesse molde. É preciso que a legislação ordinária acompanhe esses princípios, estabelecendo ritos, procedimentos, regras, meios de prova, recursos etc. Ou que os Tribunais sigam muito mais a CF do que o Código de Processo Penal, o que não ocorre.” (NUCCI, Guilherme, p. 114)
Ademais, Aury Lopes JR, defende que a fase processual do ordenamento pátrio possui características neoinquisitórias, tendo em vista que a gestão da prova fica nas mãos do magistrado. Veja-se:
“Pensamos que o processo penal brasileiro é essencialmente inquisitório, ou neoinquisitório se preferirem, para descolar do modelo histórico medieval. Ainda que se diga que o sistema brasileiro é misto, a fase processual não é acusatória, mas inquisitória ou neoinquisitória, na medida em que o princípio informador é o inquisitivo, pois a gestão da prova está nas mãos do juiz.” (LOPES JR, p. 29, 2016).
Mas não é só. Aury Lopes Jr. afirma, ainda que; mesmo que a Constituição de 1988 tenha trazido por meio de seus princípios, a adoção de um sistema acusatório, o Código de Processo Penal, por outro lado, adotou o modelo inquisitório para a instrução penal, consoante se vê:
“Diante dos inúmeros traços inquisitórios do processo penal brasileiro, era necessário fazer uma ‘filtragem constitucional’ dos dispositivos incompatíveis com o princípio acusatório (como os arts. 156, 385 etc.) pois são ‘substancialmente inconstitucionais’ (e, agora, estão tacitamente revogados pelo art. 3º-A do CPP, com a redação da Lei 13.964). Assumindo o problema estrutural do CPP, a luta passa a ser pela acoplagem constitucional e pela filtragem constitucional, expurgando de eficácia todos aqueles dispositivos que, alinhados ao núcleo inquisitório, são incompatíveis com a matriz constitucional acusatória e, principalmente, pela mudança de cultura, pelo abandono da cultura inquisitória e a assunção de uma postura acusatória por parte do juiz e de todos os atores judiciários”. (LOPES JR. 2019, p. 51)
Assim, depreende-se que o Legislador, visando cumprir com o que prevê a Carta Magna, inseriu, no código de processo penal, por meio da Lei 13.964/19, Art. 3 – A, algo que a doutrina, a tempos, vem, implorando – Uma afirmação, do sistema adotado no Brasil. Vejamos:
“Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.”
Desse modo, resta cristalino que o sistema adotado no Brasil, hoje, se trata do modelo acusatório, embora mitigado, pois ele ainda não se encontra em sua essência – ainda não é purificado.
3. A LEI 13.964/19 E SUAS MODIFICAÇÕES NO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO
Em que pese a ampla reforma do ano de 2008, ainda restaram inúmeros pontos que deveriam ser modificados para atualizar o código e, efetivamente, adequá-lo aos parâmetros da Constituição Federal. Assim, a reforma da Lei 13.964/19, trouxe inúmeras alterações no Código de Processo Penal, ingressando com vários aspectos relevantes e que a tempos vinham sendo suplicados pela doutrina.
Como já dito alhures, a referida Lei introduziu o Art. 3 – A, que nada mais é que uma norma instrutória, em que afirma que o modelo adotado no Brasil se trata do Acusatório.
Ademais, visando fortalecer o referido modelo (Acusatório), também inseriram a figura do juiz das garantias, que, em apertadíssima síntese, institui um magistrado para a fase de inquérito policial, encarregado de atuar pelo controle da legalidade da investigação criminal e, pela garantia dos direitos do acusado; também, instituiu o acordo de não persecução penal e, diversas outras normas relevantes que não são objeto da presente análise.
Em suma, a reforma foi extensa. No entanto, algumas normas tiveram a sua vigência suspensa, com prazo indeterminado, por uma decisão liminar do STF, proferida na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.299-DF, do Ministro Luiz Fux, que fora finalmente julgada pelo pleno do Supremo Tribunal.
4. A PERMISSÃO DO ART. 156, INCISO II, DO CPP ESTÁ DE ACORDO COM O PRINCÍPIO ACUSATÓRIO?
Antes de efetivamente se ingressar no ponto nevrálgico do presente caso, e analisar os aspectos acerca do art. 156, inciso II, do Código de Processo Penal, que em breve síntese, concede ao juiz uma permissão legal para que em caso de eventual dúvida sobre ponto relevante, possa, de ofício, determinar a produção de novas provas, faz-se imperiosa a verificação dos princípios penais que conduzem o instituto objeto da análise.
4.1. BUSCA PELA VERDADE REAL X IN DUBIO PRO REO
Neste ponto, são destacados dois princípios que dizem respeito ao tema em questão, sendo eles: a verdade real e o in dubio pro reo, princípios que coexistem e devem ser aplicados por meio da proporcionalidade.
Para Guilherme Nucci, a atuação de ofício do Juiz, no que toca a colheita de prova, trata-se de uma decorrência natural dos princípios da verdade real e do impulso oficial (NUCCI, Guilherme).
Nesse mesmo sentido, Guilherme Nucci explica que:
“A atuação de ofício do juiz, na colheita da prova, é uma decorrência natural dos princípios da verdade real e do impulso oficial. Em homenagem à verdade real, que necessita prevalecer no processo penal, deve o magistrado determinar a produção das provas que entender pertinentes e razoáveis para apurar o fato criminoso. Não deve ter a preocupação de beneficiar, com isso, a acusação ou a defesa, mas única e tão somente atingir a verdade. O impulso oficial também é princípio presente no processo, fazendo com que o juiz provoque o andamento do feito, até final decisão, queiram as partes ou não. O procedimento legal deve ser seguido à risca, designando-se as audiências previstas em lei e atingindo o momento culminante do processo, que é a prolação da sentença.” (NUCCI, Guilherme 2019. P. 696)
Ou seja, dizer que o Juiz tem o dever de seguir o procedimento legal à risca, é o mesmo que dizer que o Magistrado, ante qualquer dúvida, não pode se manter em absoluta inércia, uma vez que tem o dever de seguir com todos os trâmites processuais. Aliás, tal inércia resultaria em uma maior dificuldade para que o Magistrado pudesse formar a sua convicção. Assim como explica Guilherme Nucci:
“[…]Quanto mais atrelado estiver o juiz à absoluta inércia, maior dificuldade terá para formar a sua convicção. Por isso, em muitos casos, acabará sendo obrigado a decidir em favor do réu (in dubio pro reo). Esquecem-se os adversários da verdade real que o magistrado também busca a prova em prol do acusado. Não são poucas as vezes em que praticamente supre a deficiência da defesa, valendo-se de provas importantes, por ele mesmo coletadas, a fim de absolver o acusado.” (NUCCI, Guilherme 2019. P. 696)
Guilherme Nucci também destaca que “os adversários da verdade real” esquecem que o juiz não só determina a produção de provas para acusar, mas também busca prova em prol do acusado, suprindo a carência de bons operadores do direito, especialmente para a população mais pobre e desamparada (NUCCI, Guilherme 2019. P. 696).
O princípio da verdade real, por seu turno, se expressa como “(…) magistrado deve buscar as provas, tanto quanto as partes, não se contentado com o que lhe é apresentado (…)” (NUCCI, Guilherme, p. 191), ou seja, deve-se buscar a realidade dos fatos o mais próximo possível da realidade acontecida. “Encontrando limites, somente, na moral e legalidade das provas.” (NUCCI, Guilherme, 2019, p. 192).
Noutro giro, parte da doutrina entende que a busca da verdade real não é justa ao acusado, uma vez que a produção de provas pelo julgador desconsideraria completamente o princípio do in dubio pro reo – o magistrado que determina a produção de novas provas teria por finalidade a condenação do acusado a qualquer custo.
A esse respeito, Paulo Rangel conclui:
“Estando o juiz diante de prova para condenar, mas não sendo esta suficiente, fazendo restar a dúvida, surgem dois caminhos: condenar o acusado, correndo o risco de se cometer uma injustiça, ou absolvê-lo, correndo o risco de se colocar nas ruas, em pleno convívio com a sociedade, um culpado. A melhor solução será, indiscutivelmente, absolver o acusado, mesmo que correndo o risco de se colocar um culpado nas ruas, pois antes um culpado nas ruas do que um inocente na cadeia.” (RANGEL, 2021, p. 68)
O In dubio pro reo é uma expressão latina que significa “na dúvida, decida a favor do réu”; trata-se, também, de um mecanismo previsto implicitamente no processo penal e que está conectado com o princípio da presunção de inocência. Gustavo Henrique Badaró o define como: “(…) presunção que se fundamenta em um favor legis em relação a uma das partes. No caso, um benefício para quem se vê acusado da prática de um delito.” (BADARÓ, 2021, p. 300).
Aury Lopes Jr., no que toca à produção de provas e o in dubio pro reo, defende que somente existe imparcialidade em uma “estrutura processual acusatória, que mantenha o juiz afastado das atividades que são inerentes às partes.” (LOPES JR, Aury, 2019, p.122). Nesse mesmo sentido aduz em sua obra que:
“Quem procura, procura algo. Logo, quando o juiz vai atrás da prova de ofício, ele decide primeiro e sai em busca dos elementos que justificam a decisão já tomada. Devem ser evitados os atos que impliquem pré-julgamento. Grave problema do processo penal brasileiro decorre dos inúmeros dispositivos que permitem o “ativismo judicial”, com sacrifício da garantia da imparcialidade e do sistema acusatório (exigindo, portanto, uma filtragem constitucional).” (LOPES JR, Aury, 2019, p. 122)
Ademais, Aury Lopes Jr. entende, ainda, que a prática de atos de caráter probatório ou persecutório ferem, gravemente, o sistema acusatório, violando o contraditório e fulminando com a imparcialidade. Destaca ainda que tais práticas são decorrentes de um ativismo tipicamente inquisitivo, e que por sua própria razão de ser, ferem de morte a imparcialidade, pois a contaminação e os pré-julgamentos feitos por um magistrado inquisidor são manifestos (LOPES JR, Aury, 2019, p. 49).
Outrossim, evidente que o embate entre o princípio da busca pela verdade real x in dubio pro reo acarreta diversas polêmicas doutrinárias. No entanto, resta evidenciado que a busca pela verdade real não passa de uma tentativa inalcançável, visto que nas palavras de Guilherme Nucci, “(…) inviável, no processo, encontrar a realidade dos fatos tal como ocorreram. A verdade é apenas uma noção ideológica da realidade, motivo pelo qual o que é verdadeiro para uns, não o é para outros.” (NUCCI, Guilherme, 2019, p.192).
Assim, depreende-se que todas as provas apresentadas pelas partes, irão, ao final do processo, formar uma verdade, nem sempre atingindo a realidade dos fatos; mas sim, a solução mais justa à causa.
4.2. DO ÔNUS DA PROVA NO PROCESSO PENAL
Parte minoritária da doutrina entende que a defesa nada teria de provar; em virtude dos princípios de presunção de inocência do acusado e do princípio do in dubio pro reo, depositando, portanto, o ônus da prova nos ombros da acusação. Isto é: caso o Estado não seja exitoso em provar que o acusado realmente deve ser punido, resta o magistrado absolver em virtude dos princípios postulados.
Assim, explica Aury Lopes Jr. valendo-se da obra de Gustavo Badaró:
“(…) O ônus da prova, já dissemos, é do Estado e não do investigado. Por derradeiro, enfrentando a questão na esfera do Tribunal do Júri, segue o autor explicando que, se há dúvida, é porque o Ministério Público não logrou êxito na acusação que formulou em sua denúncia, sob o aspecto da autoria e materialidade, não sendo admissível que sua falência funcional seja resolvida em desfavor do acusado, mandando-o a júri, onde o sistema que impera, lamentavelmente, é o da íntima convicção. (…) A desculpa de que os jurados são soberanos não pode autorizar uma condenação com base na dúvida.” (LOPES JR, Aury, 2019, p. 971).
Mas não é só, Aury Lopes Jr. também destaca que a partir do momento em que o acusado é presumidamente inocente, não haveria necessidade de se provar absolutamente nada, nem mesmo, quando da presença de excludente, pois afirma que nesse caso, inexiste a distribuição de carga probatória entre as partes, existindo, apenas, uma assunção de riscos – em que a defesa assume o risco de uma sentença condenatória – a exemplo do exercício do direito ao silêncio, nemo tenetur se detegere. Não há nesse caso nenhum prejuízo, pois inexiste uma carga, no entanto, agrava o risco de uma sentença condenatória. (LOPES JR, Aury, 2019, p. 429). Senão veja-se:
“É importante recordar que, no processo penal, não há distribuição de cargas probatórias, senão atribuição ao acusador, ou seja, a carga da prova está inteiramente nas mãos do acusador, não só porque a primeira afirmação é feita por ele na peça acusatória (denúncia ou queixa), mas também porque o réu está protegido pela presunção de inocência. (…)
(…) diariamente nos foros brasileiros: sentenças e acórdãos fazendo uma absurda distribuição de cargas no processo penal, tratando a questão da mesma forma que no processo civil. Não raras são as sentenças condenatórias fundamentadas na “falta de provas da tese defensiva”, como se o réu tivesse que provar sua versão de negativa de autoria ou da presença de uma excludente. (…)
(…)quando facultado ao réu fazer prova de determinado fato por ele alegado e não há o aproveitamento dessa chance, assume a defesa o risco inerente à perda de uma chance, logo, assunção do risco de uma sentença desfavorável. Exemplo típico é o exercício do direito de silêncio, calcado no nemo tenetur se detegere. Não gera um prejuízo processual, pois não existe uma carga. Contudo, potencializa o risco de uma sentença condenatória. Isso é inegável.” (LOPES JR, Aury, 2019, p. 429).
Por outro lado, Guilherme Nucci, explica que, geralmente, o ônus probandi é da acusação. Todavia, quando necessário for, o réu deve chamar a si o interesse de produzir prova, o que ocorre quando alega, em seu benefício, a exclusão de ilicitude ou da culpabilidade. Vejamos:
“(…)É preciso provar a ocorrência da excludente não sendo atribuição da acusação fazê-lo, como regra, até por que o fato e suas circunstâncias concernem diretamente ao acusado, vale dizer, não foram investigados previamente pelo órgão acusatório. Saliente-se, no entanto, que tal ônus de prova da defesa não deve ser levado a extremos, em virtude do princípio constitucional da presunção de inocência e, consequentemente, do in dubio pro reo. (…)” (NUCCI, Guilherme, 2019, p. 693).
Isto posto, tem-se cristalino que o ônus da prova é do Estado, que possui o dever de acusar, mas, isto não significa dizer que somente a ele incumbe este dever – o acusado, quando tem a possibilidade, deve fazê-lo, sob pena de assumir o risco de obter uma sentença condenatória.
4.3. ASPECTOS RELEVANTES DO ART. 156, INCISO II, DO CPP E A PERMISSÃO PARA ATUAÇÃO JUDICIAL DE OFÍCIO
Superado o embate entre os princípios pertinentes ao tema, urge, efetivamente, adentrar na espinha dorsal do presente trabalho. O Art. 156, II, do CPP, como já dito alhures, trata-se de uma permissão legal ao juiz para que em caso de eventual dúvida sobre ponto relevante, possa, de ofício, determinar a produção de novas provas. No entanto, diversas dúvidas surgem quando analisamos o presente instituto: pode o Magistrado que não é parte, ter esse grau de convicção para determinar a realização de uma prova, sem que seja provocado? O magistrado não estaria usurpando a atribuição do Ministério Público? Ele já teria tomado a sua decisão (condenar ou absolver) e, apenas estaria buscando meios para comprovar sua tese? Essa permissão estaria de acordo com o princípio acusatório e o mais novo dispositivo Art. 3- A, do CPP? Ocorre que a grande problemática reside no fato de o magistrado assumir a condição de parte no processo, isto porque a permissão legal é claríssima no que toca a possibilidade de o magistrado determinar a realização de diligências, para dirimir dúvida sobre ponto relevante. Assim, dispõe o codex:
“Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;
II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. Nova redação pela lei n. 11.690/2008.” (Grifo não original).
Assim, nasce um grande problema, tendo em vista que, conforme exaustivamente destacado no corpo do presente trabalho, o Processo Penal adota o sistema acusatório como seu modelo no Art. 3 – A, CPP.
O que se extrai da doutrina é que, no modelo acusatório, o magistrado não pode ter tal permissão; não pode, por exemplo, prescrutar os autos e determinar de ofício a produção de novas provas para sanar qualquer dúvida. Isto porque, esta é uma atribuição do próprio Ministério Público; representante do poder Estatal; parte legitima no processo; órgão acusador, que é a parte competente para requerer qualquer tipo de produção de prova. Logo, não compete ao magistrado, no sistema acusatório, ser elencado como partícipe na construção da prova – sob pena de corromper a sua parcialidade.
Em verdade, denota-se que o exposto por Aury Lopes Jr., em sua obra, resta escancarado quando analisado de maneira profunda, visto que o Código de Processo Penal fora promulgado em 1941 e, assim, inegavelmente possui inspirações autoritárias e do sistema inquisitorial.
4.3. DO JULGAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Consoante destacado no tópico 3, a redação do art. 3 – A, do CPP, encontrava-se suspensa mediante a decisão liminar do STF, proferida na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.299-DF, do Ministro Luiz Fux, em 22 de janeiro de 2020.
Nesse mesmo sentido, a expectativa vivenciada pela doutrina era a de que o Supremo Tribunal Federal, ao verificar a legalidade dos dispositivos trazidos ao Código de Processo Penal pela Lei 13.964/19, pudesse também verificar se o Art. 156, II, CPP, está de acordo com o princípio acusatório.
E assim o fizeram. No dia 23/08/2023, a ministra Rosa Weber, presidente do STF, proclamou o resultado do julgamento que analisou o Juiz das Garantias.
“1. Por maioria, atribuir interpretação conforme ao art. 3º-A do CPP, incluído pela Lei nº 13.964/2019, para assentar que o juiz, pontualmente, nos limites legalmente autorizados, pode determinar a realização de diligências suplementares, para o fim de dirimir dúvida sobre questão relevante para o julgamento do mérito, vencidos os Ministros Cristiano Zanin e Edson Fachin;”
Nesse sentido, o STF entendeu como constitucional a possibilidade do magistrado determinar de ofício a produção de novas provas, mesmo que isso afronte o Art. 3-A do Código de Processo Penal.
5. CONCLUSÃO
Em resposta às considerações formuladas no decorrer da presente pesquisa, pôde-se observar a partir da análise do sistema acusatório e dos princípios penais, que o magistrado não pode ser possuidor de iniciativa probatória no processo – substituindo as partes.
Contudo, consoante exposto no tópico 4.3, a suprema corte ao analisar a constitucionalidade dos dispositivos incluídos na Lei 13.964/19, assentou que o magistrado, pontualmente, e nos limites legais, pode determinar a realização de diligências suplementares.
Nesse mesmo sentido, e de acordo com o que ensina o Ilustre Doutrinador Rogerio Sanches Cunha, membro do Ministério Público do estado de São Paulo, quando indagado sobre este tema na “XXXVIII Semana Jurídica” (2023) do centro universitário do Norte de São Paulo – UNORTE, apresentou como solução a possibilidade de o magistrado determinar a realização de diligências, desde que não o faça em substituição às partes, respeitando, portanto, os interesses do réu e do Ministério Público.
Assim, diante de todos os fatos postulados, resta consolidada a referida permissão legal pelo pleno do STF; desde que seja realizada nos limites legais; de forma pontual; sem que haja a substituição das partes por parte do Magistrado; e respeitando os interesses das partes.
Referências
LOPES JR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8.ed. Salvador: Jus podivm, 2020.
NUCCI, Guilherme. Curso de direito processual penal. 17ª Ed. São Paulo: Editora Forense, Grupo GEN, 2019.
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 8ª ed. São Paulo: RT, 2021.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 29ª ed. São Paulo: Atlas, 2021.
Migalhas, STF proclama julgamento do instituto do juiz das garantias, Acesso em 05/09/2023 (Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/392420/stf-proclama-julgamento-do-instituto-do-juiz-das-garantias).
1Graduando em Direito no Centro Universitário do Norte de São Paulo – UNORTE, 10º Semestre, lhbergamini@hotmail.com
2Doutorando em Ciências da Saúde pela Famerp – Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, Mestre em Ciências Ambientais pela Universidade Brasil, Advogado, Professor e Vice-Coordenador do curso de Direito do Centro Universitário do Norte de São Paulo – UNORTE, antonelli.secanho@unorte.edu.com